Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
586/07.9GBAND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Data do Acordão: 10/26/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ANADIA - JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: “REENVIO” (PARCIAL)
Legislação Nacional: ART.º 410º, N.º 2, AL. A), DO C. PROC. PENAL
Sumário: Sendo o objecto do processo delimitado pela acusação/pronúncia, pela contestação e pelos factos que resultarem da prova produzida em audiência (cfr. art.º 339º, n.º 4, do C. Proc. Penal) e estando o Tribunal obrigado a enumerar os factos provados e não provados (cfr. art.º 374º, n.º 2, do mesmo Código), esta enumeração respeita aos factos alegados pela acusação e pela defesa que sejam essenciais para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes e os factos provados que resultem da prova produzida em audiência que sejam relevantes para a questão da culpabilidade e determinação da sanção a aplicar (cfr. art.ºs 368º e 369º, do mesmo Código).
Assim, também se verifica o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (cfr. art.º 410º, n.º 2, al. a), do mesmo Código) quando esta não permite uma opção fundamentada entre penas não privativas e privativas da liberdade, entre pena de prisão efectiva e penas de substituição desta ou um juízo inteiramente fundamentado sobre o doseamento da pena, suposto que o Tribunal podia investigar os factos em falta e não investigou.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 586/07.9GBAND que corre termos na comarca do Baixo Vouga, Anadia – Juízo de Instância Criminal, o arguido A... foi condenado, em 4/12/2009, pela prática de um crime de coacção agravada, sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 1 e n.º 2, 155.º, n.º 1, al. a), e 22.º, todos do C. Penal, na pena de 15 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 15 meses.
Foi, ainda, o referido A... condenado a pagar à demandante B... a quantia de 750 euros, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros, desde a condenação até integral pagamento, à taxa legal, determinada nos termos do artigo 559.º, n.º 1, do Código Civil.
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Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 14/12/2009, o Ministério Público, defendendo a sua revogação, na parte em que suspendeu a execução da pena de prisão ou, caso assim não seja entendido, a manutenção da suspensão, mas subordinada ao cumprimento de deveres, regras de conduta ou regime de prova, com PRS ou, ainda, a declaração de nulidade da decisão por falta de fundamentação de facto quanto à decretada suspensão, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões: 1. Por factos de 17/10/2007, o arguido foi condenado pela prática de um crime de coacção agravada, na forma tentada, p. e p. nos artigos 154.º-1-2, 155.º-1-a), 22.º e 23.º, todos do CP, na pena de 15 meses de prisão, suspensa por igual período, sem sujeição a deveres, regras de conduta ou regime de prova.
2. Os factos provados, de onde avultam os antecedentes criminais do arguido, não autorizam o Tribunal a quo a suspender a execução daquela pena, ademais incondicionalmente.
3. Na verdade, o seu percurso criminal já averba 6 condenações, 3 delas pelo crime de detenção de arma proibida, sendo que estes factos foram cometidos de novo com recurso a uma arma de fogo e ocorreram justamente durante a anterior suspensão da pena de 1 ano de prisão que vigora desde 18.1.2007 até 18.1.2011.
4. A decretada suspensão incondicionada, ademais ocorrendo em simultâneo com outra anterior suspensão que perdurará por mais tempo, até 2011, redundaria numa absolvição encapotada, pois seria inócua/inútil e ineficaz, gerando um sentimento de impunidade, inutilidade e inoperância do direito criminal que urge combater.
5. De facto, não se verifica o pressuposto material legitimador da suspensão a que alude o artigo 50.º-1 do CP, a qual não releva de mero capricho, arbítrio ou alvedrio do julgador, antes assenta na efectiva prova de factos objectivos conducentes à afirmação de um juízo de prognose favorável ao arguido pelo Tribunal.
6. Ora, a este respeito, o que o arguido oferece é “uma mão vazia e outra cheia de nada”, pois que, note-se, nada, mesmo nada, se provou vg. no que concerne à sua personalidade, às condições da sua vida, à sua inserção familiar, social e laboral, à sua conduta anterior e posterior aos factos, etc.
7. Ou seja, o Tribunal a quo não fundamentou minimamente a decretada suspensão, ademais tendo fortes argumentos que a desaconselhavam, como o vasto passado criminal do arguido, pelo que, nessa parte, a sentença é nula, nos termos dos artigos 374.º-2 e 379.º-1-a)-2, nulidade que ora se invoca.
8. Mas, ainda que optasse pela suspensão, desde que devidamente fundamentada, então, vistas as fortes exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir, não poderia deixar de a subordinar, nos termos dos artigos 50.º-2, 51.º a 54.º, todos do CP, ao cumprimento de deveres; de regras de conduta ou com regime de prova, como sejam, vg. o ressarcimento ou satisfação moral à ofendida; o não contactar com aquela por qualquer modo ou abster-se de possuir armas de fogo durante certo período; a elaboração de PRS, acompanhado e monitorizado pelo IRS, etc., em ordem a promover a sua integração na sociedade e a afirmar a validade da norma jurídica violada.
9. Ao decidir como decidiu, violou o Mº Juiz a quo, entre outros, os artigos 50.º a 54.º, do CP, e 374.º-2, do CPP, o que inquina a sentença de nulidade, nos termos do artigo 379.º-1-a)-2, do CPP.
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O arguido, notificado da sentença e da interposição do recurso em 16/5/2011, nada veio trazer aos autos. ****
O recurso foi, em 1/7/2011, admitido.
Nesta Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, em 6/9/2011, no sentido da procedência do recurso, acompanhando integralmente as razões nele expostas.
Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo sido, em 21/9/2011, exercido o direito de resposta pelo recorrente, pugnando este, então, pela manutenção integral da sentença recorrida.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Decisão Recorrida:
“(…) I – O TRIBUNAL JULGA PROVADOS OS SEGUINTES FACTOS:

1. No dia 17 de Outubro de 2007, cerca das 15 horas, o arguido A… dirigiu-se ao local de trabalho da ofendida B..., sito em …, Anadia, levando com ele uma pistola preta de características não apuradas.
2. Aí chegado, o arguido começou a discutir com a ofendida por causa de uma sociedade a ambos pertencente que estaria com problemas.
3. Na sequência da discussão, o arguido empunhou a pistola que trazia consigo e, ao mesmo tempo que apontava na direcção da ofendida, disse-lhe em voz alta e tom sério: “Ou vens comigo ou dou-te um tiro!”, querendo com isso significar, e assim foi entendido por aquela, que a mataria se a mesma não o acompanhasse.
4. Entretanto, o patrão da ofendida, C..., apercebeu-se da discussão e aproximou-se dizendo ao arguido para baixar a arma e abandonar o local, o que o mesmo acabou por fazer, embora com relutância.
5. O gesto efectuado pelo arguido com a pistola e as palavras que proferiu nessa sequência deixaram a ofendida muito intranquila e assustada, receosa como ficou de que aquele possa levar a cabo o propósito anunciado.
6. O arguido actuou com o propósito de constranger a ofendida a acompanhá-lo através do anúncio de que a mataria ou, no mínimo, a molestaria fisicamente alvejando-a a tiro, bem sabendo que dessa forma a deixava assustada, inquieta e com receio de vir a sofrer qualquer acto atentatório da sua vida ou integridade física, querendo agir da forma por que o fez.
7. Sabia, também que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
8. Em consequência da actuação do arguido, a ofendida sentiu medo, receio, inquietação pela sua integridade física e pela sua vida.
9. Os factos ocorreram no local de trabalho da ofendida, circunstância que ainda mais a afectou pela vergonha e por todas as repercussões sociais que um incidente deste acarreta.
10. Na manhã do dia em causa, ofendida e arguido estiveram os dois numa Clínica Médica Dentária, sita na …, em Seia, onde ambos receberam tratamentos dentários pagos pelo arguido, tendo sido indicado ao arguido um medicamento.
11. Nessa manhã, pelas 11 horas, o arguido fez um levantamento bancário com o seu cartão de crédito.
12. Por factos ocorridos a 20/04/1999, o arguido foi condenado (sentença a 23/04/1999; extinta a 21/01/2002) pela prática de um crime de detenção de arma proibida numa pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 1.700$00 (Proc. Sumário n.º 62/96 do Tribunal de Moimenta da Beira).
13. Por factos ocorridos a 21/05/1999, o arguido foi condenado (sentença a 21/06/1999; trânsito a 06/07/1999; extinta a 24/09/2001) pela prática de um crime de detenção de arma proibida numa pena de 05 (cinco) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de 01 (um) ano (Proc. Sumário n.º 90/99 do Tribunal de Moimenta da Beira).
14. Por factos ocorridos a 26/05/2003, o arguido foi condenado (sentença a 08/04/2005; trânsito a 27/04/2005) pela prática de um crime de desobediência qualificada numa pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 3,00 (Proc. C.S. n.º 106/03.4GBLMG do Tribunal de Lamego).
15. Por factos ocorridos a 06/10/2004, o arguido foi condenado (sentença a 31/03/2006; trânsito a 28/07/2008) pela prática de um crime de dano numa pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (Proc. C.S. n.º 539/04.9GBAND do extinto 2.º Juízo do Tribunal de Anadia).
16. Por factos ocorridos a 13/12/2004, o arguido foi condenado (sentença a 15/11/2006; trânsito a 18/01/2007) pela prática de um crime de detenção de arma proibida numa pena de 01 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de 04 (quatro) anos (Proc. C.S. n.º 393/04.0GBSCD do 1.º Juízo do Tribunal de Santa Comba Dão).
17. Por factos ocorridos em 08/2001, o arguido foi condenado (sentença a 21/07/2008; trânsito a 10/09/2008) pela prática de um crime de auxílio à imigração ilegal numa pena de 14 (catorze) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de 14 (catorze) meses (Proc. C.C. n.º 13/02.8ZRCBR do 2.º Juízo do Tribunal de Lamego).

II – O TRIBUNAL JULGA NÃO PROVADOS TODOS OS RESTANTES FACTOS, NOMEADAMENTE QUE:
1. Em consequência da actuação do arguido, a ofendida ficou profundamente afectada, alterando a sua postura de vida e a forma como passou a encarar as relações inter-pessoais.
2. À data dos factos, a ofendida trabalhava no principal café de …, terra pequena, onde todos se conhecem e tudo se sabe. Café esse situado na rua principal da localidade, muito frequentado pelas pessoas da terra, sendo que rapidamente a notícia se espalhou e a ofendida passou a estar, como popularmente se diz: “nas bocas do mundo”.
3. Toda esta situação afectou fortemente a sua situação laboral e o seu desempenho profissional, tendo a ofendida sofrido gravemente com isso, sentindo-se desajustada e marginalizada.
4. Em consequência da conduta do arguido, a ofendida evitou sair à rua com medo que o arguido a pudesse encontrar, reiterar a ameaça ou mesmo concretizá-la, perdeu apetite, começou a ter pesadelos nos poucos momentos em que conseguia dormitar, mais insónias teve, tornando-se uma pessoa mais isolada e anémica quando anteriormente era uma pessoa mais alegre, extrovertida, lutadora e com gosto pela vida.
5. A ofendida passou a temer pela sua vida e pela vida dos seus familiares, alterando tanto a sua rotina como a da sua família mais próxima.
6. O relatado na acusação é apenas e só fruto da imaginação da ofendida e dos seus familiares com o intuito de evitar uma reconciliação entre ambos.
7. Na manhã do dia em causa, o arguido ia pelo terceiro dia consecutivo para tratamentos dentários à Clínica Médica Dentária.
9. O arguido chegou a Portugal no dia 13 de Outubro, Sábado, e ficou na casa dos pais da arguida em …, Seia, onde abasteceu o seu veículo no Posto da GALP.
10. Nesse mesmo dia 17 de Outubro, cerca das 15 horas, o arguido estava em Nelas com o Sr. D....

III – MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
O Tribunal baseou a sua convicção na análise crítica de todas as provas produzidas e analisadas em audiência de discussão e julgamento, livremente apreciadas e valoradas em conjugação com as regras da experiência comum, nomeadamente:
Os documentos de fls.2, 124, e 125. As declarações da ofendida/demandante B… que relatou os factos em conformidade com a matéria provada.

Mais relatou o que têm sido o relacionamento e os contactos com o arguido e as consequências que daí resultam para si.

Os depoimentos das seguintes testemunhas:

C...; que se encontrava no local e teve a intervenção relatada na acusação; mais referiu a forma como a ofendida se sentiu na sequência dos factos.

F...; irmã da ofendida; que relatou os negócios e o tipo de relacionamento que a sua irmã mantém com o arguido; os diversos incidentes que ocorreram entre o arguido e a irmã e com a família; e as consequências psicológicas que para a irmã resultam de todo o relacionamento e dos diversos incidentes ocorridos entre ambos.
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Quanto aos factos não provados:
A motivação resulta de sobre os mesmos não ter sido produzida qualquer prova ou prova bastante e credível ou por ter sido produzida prova do contrário.
Quanto aos factos não provados relativos ao pedido de indemnização civil, a motivação da prova resulta da não demonstração do nexo de causalidade adequada entre os concretos factos objecto do processo e esses danos. Com efeito, os danos a atender são os que resultaram directa e adequadamente dos factos objecto da acusação e não de quaisquer outros factos ocorridos entre a ofendida e o arguido.
O Tribunal valorou o C.R.C. do arguido quanto aos antecedentes criminais.

IV – ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL:
Prevê o art. 154.º (coacção) do C.Penal que:
1 – Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade…
2 – A tentativa é punível.
Determina o art. 155.º (agravação) do C. Penal que:
1 – Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados:
a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos;

o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.º 1 do artigo 154.º.”.
Por seu turno, o art. 22.º (tentativa) do C. Penal prescreve que:
1 – Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar -se.
2 – São actos de execução:
a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;
b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou
c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.”.
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Numa breve análise ao tipo legal de crime em apreço, acompanhando PAULO PINTO DE ALBURQUERQUE (“Comentário do Código Penal”, Universidade católica, Editora, 2008, páginas 415 a 420), constata-se que se trata de uma incriminação cujo bem jurídico é a liberdade de decisão e de acção.
Qualifica-se como um crime de dano (quanto ao bem jurídico) e de resultado (quanto ao objecto da acção).
O tipo objectivo consiste no constrangimento de outra pessoa a praticar ou omitir uma acção ou suportar um resultado.
O constrangimento opera-se por violência ou ameaça. É um crime de execução vinculada. Sendo um crime de resultado, é aplicável a teoria da imputação objectiva do resultado à acção, devendo provar-se que a violência ou ameaça eram adequadas à produção do resultado de constrangimento.
A ameaça com mal importante consiste na comunicação de um mal “em sentido social e não jurídico nem, muito menos, jurídico-criminal”. Basta, portanto, o temor criado pelo agente da ocorrência de um facto futuro socialmente nocivo para o coagido, mesmo que esse facto não seja criminoso.
A ameaça não tem que ser dirigida ao coagido, podendo visar um terceiro.
A acção de violência ou ameaça deve ser adequada ao resultado do constrangimento. Neste juízo de adequação devem ser ponderadas, por um lado, as características físicas e psíquicas da pessoa vítima do constrangimento e do agente do crime e, por outro lado, as competências técnicas da vítima para resistir à violência, como é o caso de agentes de autoridade.
O tipo subjectivo é preenchido com qualquer uma das formas de dolo.
A tentativa é punível. O crime consuma-se quando a vítima começa a comportar-se como o agente quer.
A agravação prevê, no n.º 1 (art. 155.º), crimes qualificados ao nível do tipo de ilícito, pois as circunstâncias agravantes revelam um maior desvalor da acção, são de funcionamento automático e constituem um elenco taxativo.
A circunstância agravante da al. a) consiste na especial gravidade da ameaça.
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No caso concreto, demonstrou-se que o arguido A… no dia 17/10/2007, pelas 15 horas, dirigiu-se ao local de trabalho da ofendida B..., sito em …, Anadia, levando com ele uma pistola preta de características não apuradas.
Aí chegado, o arguido começou a discutir com a ofendida por causa de uma sociedade a ambos pertencente que estaria com problemas.
Na sequência da discussão, o arguido empunhou a pistola que trazia consigo e, ao mesmo tempo que apontava na direcção da ofendida, disse-lhe em voz alta e tom sério: “Ou vens comigo ou dou-te um tiro!”, querendo com isso significar, e assim foi entendido por aquela, que a mataria se a mesma não o acompanhasse.
Pretendia assim o arguido constranger a ofendida a acompanhá-lo, isto apesar de saber que não era essa a sua vontade, mediante a ameaça de que a alvejaria a tiro para a matar, o que configura ameaça com a prática dolosa de um crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131.º do C. Penal, com pena de prisão de oito a dezasseis anos.
Com tal conduta, o arguido quis e criou na ofendida receio pela sua integridade física e pela sua vida, visando com o seu comportamento perturbar o seu sentimento de segurança e afectá-la na sua liberdade de decisão, não tendo a ofendida acatado essa imposição por razões alheias à vontade do arguido devido à intervenção de terceira pessoa.
Mais se provou que o arguido actuou sempre de forma livre, deliberada e consciente, perfeitamente conhecedor do carácter proibido e punido da sua conduta, sabendo que incorria em responsabilidade criminal.
Desta forma, não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, não restam dúvidas que a conduta do arguido preenche, objectiva e subjectivamente, o tipo legal de crime de coação agravada, sob a forma tentada, p. e p. pelo art.os 154.º, n.os 1 e 2, 155.º, n.º 1, al. a), e 22.º, todos do C. Penal, crime pelo qual será criminalmente responsabilizado.

IV – ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA:
O art. 40,º, n.º 1, do C.Penal, determina que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.”.
O crime de coação agravada, sob a forma tentada, é punido com pena de prisão de um mês a três anos e quatro meses (art.os 155.º, n.º 1, 23, n.º 2, 73.º, e 41.º, todos do C. Penal).
Considerando os seis antecedentes criminais do arguido, onde avultam três crimes de detenção de arma proibida, sendo que os factos dos presentes autos ocorreram durante o período da suspensão da execução pena de prisão aplicada pela prática do último crime de detenção de arma proibida, e que, por outro lado, o crime agora aqui em causa foi também praticado com a utilização de uma arma; é forçoso concluir que a aplicação a este arguido de uma pena de multa já não salvaguardaria de forma bastante a protecção dos bens jurídicos protegidos com a incriminação nem teria a necessária eficácia para afastar o arguido da prática de novos ilícitos desta natureza por forma a que, para o futuro, o arguido se reintegre na sociedade e conduza a sua vida de acordo com o dever-ser jurídico-penal (art. 70.º do C.Penal), pelo que será aplicada ao mesmo uma pena de prisão.
Na determinação, dentro da moldura penal abstracta, da medida concreta da pena, seguir-se-á o critério geral dos art.os 71.º, n.º 1, e 40.º, n.os 1 e 2, ambos do C.Penal: em função da culpa do agente, e atendendo ainda às exigências de prevenção de futuros crimes. Este critério legal coincide com a posição do professor FIGUEIREDO DIAS (“Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime”, 1993 e “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra, 2001, página 104 e seguintes) quanto à matéria e cujas linhas essenciais se enunciam, sucintamente, em seguida.
Os princípios regulativos da actividade de determinação da medida concreta da pena são a culpa e a prevenção, encontrando-se assim tal actividade intimamente relacionada com a teoria dos fins das penas.
A culpa estabelece o máximo da pena concreta que não pode, em caso algum, ser ultrapassado, constituindo-se como um limite às considerações de prevenção, as quais apenas actuam dentro do âmbito permitido pelo princípio da culpa.
Desta forma, até ao máximo consentido pela culpa, a medida concreta da pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva ou de integração, cujo limite superior é a medida exigida pela tutela dos bens jurídicos (estabilização das expectativas comunitárias na manutenção ou reforço da vigência da norma violada) e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas do ordenamento jurídico. A prevenção geral negativa de intimidação actua apenas de uma forma lateral não sendo uma finalidade da pena só por si.
A medida concreta da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou de segurança individuais.
A determinação da pena concreta faz-se à luz dos princípios “supra” expostos e dos critérios do art. 71.º, n.os 1 e 2, do C. Penal: em função da culpa do agente, atendendo às exigências de prevenção de futuros crimes, e considerando todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime e não estando excluídas por aplicação do princípio da proibição da dupla valoração, deponham a favor do agente ou contra ele.
Para a determinação da medida concreta das penas a aplicar ao arguido assumem particular relevância os seguintes factos:
O grau mediano da ilicitude da coacção, traduzido no objectivo visado e no meio de constrangimento utilizado;
O dolo, na modalidade de directo, que presidiu à conduta do arguido;
As demais circunstâncias concretas em que ocorreram os factos;
As medianas exigências de prevenção geral que se fazem sentir no que concerne a estes tipos legais de crime, atenta a frequência com que os mesmos ocorrem; e
As elevadas exigências de prevenção especial, atentos os antecedentes criminais do arguido.
Após ponderação global das referidas circunstâncias, atenta a moldura penal aplicável (entre um mês a três anos e quatro meses para o crime de coação), de acordo com o disposto nos art.os 40.º, n.os 1 e 2, e 71.º, n.os 1 e 2, ambos do C.Penal, julga-se adequada a pena de 15 (quinze) meses de prisão.
Nos termos do art. 50.º, n.º 1, do C. Penal, o Tribunal pode suspender a execução da pena de prisão não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do arguido, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao facto punível e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o arguido da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
Considerando que, não obstante os diversos antecedentes criminais, ao arguido nunca foi revogada nenhuma das suspensões da execução das penas de prisão que lhe foram aplicadas, e que aqui estamos perante um crime apenas tentado e não consumado, em nosso entender, deve ainda ser feito um juízo de prognose favorável em relação à adesão do arguido ao dever-ser jurídico-penal e ao seu afastamento da prática de novos crimes sem necessidade de recorrer ao cumprimento de prisão efectiva.
Deste modo, julga-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que se entende que a execução da pena de prisão deve ser suspensa.

V – ENQUADRAMENTO JURÍDICO-CIVIL:

Nos termos do art. 377.º do C.P.Penal, a sentença condena o demandado civil sempre que o pedido vier a revelar-se fundado.
Cumpre apreciar se o é.
De acordo com o art. 129.º do C.Penal: “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pelo lei civil.”.
A demandante B... deduziu contra o arguido um pedido de indemnização civil (fls.110) pelos danos decorrentes dos factos cuja prática lhe é imputada.
Reclama a quantia de € 1.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a notificação do pedido até efectivo e integral pagamento.
A causa de pedir fundamenta-se na prática de factos ilícitos pelo arguido que o fizeram incorrer em responsabilidade civil extracontratual.
A responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos tem consagração legal nos art.os 483.º e seguintes do C.Civil.
Nos termos da lei civil, dispõe o art. 483.º, n.º 1, do C.Civil, que: “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Da análise do seu regime resulta claro, de uma forma maioritária para a doutrina e jurisprudência, que os elementos constitutivos da responsabilidade civil extracontratual são (MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, em “Direito das Obrigações”, 8.ª edição, Coimbra, 2000, página 501): O facto; a ilicitude; a imputação do facto ao lesante (culpa); o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Ficou demonstrado que o arguido praticou um crime de coacção agravada, na forma tentada. O arguido violou de modo censurável os direitos de personalidade da ofendida que o direito civil protege através da tutela geral da personalidade, inscrita no art. 70.º do C. Civil, sem que actuasse a coberto de alguma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. A ilicitude da conduta e a culpa do arguido resultam assim das considerações acima expendidas relativamente à responsabilidade criminal. De tal conduta resultaram, directa e necessariamente, danos.
Em conclusão, encontram-se provados todos os elementos constitutivos da responsabilidade civil extracontratual do arguido, a qual faz nascer a obrigação de indemnizar e compensar os danos causados.

Danos não patrimoniais:
De uma forma geral entende-se que os danos não patrimoniais são insusceptíveis de uma verdadeira e própria indemnização, dado que, pela sua natureza, não são avaliáveis em dinheiro. No entanto, a lei entende, no art. 496.º, n.º 1, do C. Civil, que os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito devem ser compensados.
No caso dos autos, não restam dúvidas que os danos não patrimoniais constantes dos factos provados são relevantes, pelo que merecem a tutela do direito.
Esta compensação é calculada segundo critérios de equidade tal como estabelece o art. 496.º, n.º 3, do C.Civil. Nesta operação deve atender-se (Confrontar: PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, com a colaboração de C...MESQUITA, “Código Civil Anotado”, 1987, V. I, P. 501 e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/2/98, C.J.-S.T.J., Tomo I, página 67) ao circunstancialismo do caso concreto, atendendo aos factores referidos no art. 494.º do C.Civil (culpabilidade do lesante, a situação económica deste e do lesado), tomando o julgador em conta todas as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.
Assim, considerando, principalmente, o dolo directo com que actuou o arguido, o modo de execução dos factos, e as suas consequências; à luz dos critérios de avaliação acima indicados, julga-se adequado o montante de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) para compensar os danos não patrimoniais causados.
A quantia atribuída a título de compensação por danos não patrimoniais é um valor fixado após cálculo actualizado à luz do disposto o n.º 2 do art. 566.º do C. Civil, pelo que, de acordo com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência n.º 4/2002, de 9 de Maio de 2002 (D.R. I-A, de 27 de Junho), apenas são devidos juros de mora desde a data da presente decisão. Os juros devidos são os determinados nos termos do art. 559.º, n.º 1, do C. Civil.”
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III. Apreciação do Recurso:
De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
As questões a conhecer são as seguintes:
A) Saber se deve ser declarada parcialmente nula a sentença, por falta de fundamentação quanto à suspensão da execução da pena.
B) Saber se deve ser revogada a suspensão da execução da pena.
C) Saber se deve ser mantida a suspensão da execução da pena, subordinada, porém, ao cumprimento de deveres, regras de conduta ou a regime de prova, com PRS.
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A) Do vício previsto no artigo 410.º, n.º 2 , al. a), do CPP:
Nos termos do art. 50.º, n.º1, do C. Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão não superior a 5 anos de prisão (redacção introduzida pela Lei 59/2007 de 04.09) se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Tal impõe que seja feito um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no futuro, e sobre se a suspensão realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, tendo em vista a personalidade do agente, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime, as circunstâncias do crime, tudo em função da matéria de facto provada no caso concreto. A suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, do exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos legais, sendo certo que o juízo de prognose não deve assentar necessariamente numa «certeza», bastando uma «expectativa» fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e, consequentemente, a ressocialização em liberdade do arguido – cfr. Ac. STJ de 08.07.1998, CJ/STJ, tomo II/98, p. 237. Como salientou o AC. do STJ, de 25 de Junho de 2003, Col. Jur. Acs do STJ , ano XXI, tomo II, 2003, p. 221, “Na suspensão da execução da pena (de prisão) não são as considerações sobre a culpa do agente que devem ser tomadas em conta, mas antes juízos prognósticos sobre o desempenho da sua personalidade perante as condições da sua vida, o seu comportamento e bem assim as circunstâncias de facto, que permitam ao julgador fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas”. De qualquer forma tal juízo há-de ser estruturado com base na matéria de facto (relativa à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste) apurada no caso concreto.
Do ponto de vista dogmático, estamos uma pena de substituição, pois é necessariamente aplicada em substituição da execução da pena de prisão concretamente determinada, revestindo a natureza de verdadeira pena, com carácter autónomo e campo de aplicação, regime e conteúdo político-criminal próprios. Por isso, a sua aplicação funda-se em critérios de legalidade e não de moralidade, havendo que respeitar as exigências legais para a sua aplicação, as quais, no essencial, se reconduzem à ideia da existência de prognóstico favorável quanto ao comportamento futuro do agente, sem esquecer todas as circunstâncias que, na vertente da medida da pena e em concreto, se coloquem e que não colidam com as necessidades preventivas que se deparem. São, pois, essencialmente considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, e não de culpa, que devem conduzir a apreciação sobre a aplicação, ou não, da suspensão da execução da pena, sem prejuízo da adequada análise das restantes vertentes que os factos e a personalidade do agente revelem. Acresce que a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada, mesmo que o tribunal conclua por um prognóstico favorável à luz de considerações exclusivas de socialização do arguido, quando a essa suspensão se opuserem as finalidades da punição, nomeadamente, as considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, pois que só por estas exigências se limita o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto.
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No caso dos autos, o tribunal recorrido fundamenta assim a suspensão:
Nos termos do art. 50.º, n.º 1, do C. Penal, o Tribunal pode suspender a execução da pena de prisão não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do arguido, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao facto punível e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o arguido da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
Considerando que, não obstante os diversos antecedentes criminais, ao arguido nunca foi revogada nenhuma das suspensões da execução das penas de prisão que lhe foram aplicadas, e que aqui estamos perante um crime apenas tentado e não consumado, em nosso entender, deve ainda ser feito um juízo de prognose favorável em relação à adesão do arguido ao dever-ser jurídico-penal e ao seu afastamento da prática de novos crimes sem necessidade de recorrer ao cumprimento de prisão efectiva.
Deste modo, julga-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que se entende que a execução da pena de prisão deve ser suspensa.”
Perante isto, o recorrente, na sua motivação, e com relevo para o que agora interessa, alega o seguinte:
“(…) O Tribunal a quo não justificou minimamente o sobredito pressuposto material da suspensão, condensado no juízo de prognose favorável com que creditou o arguido.
(…)
De facto, a este respeito, a sentença dedicou um único e escasso parágrafo, com os argumentos a favor da suspensão, de que:
- ao arguido não foram revogadas as anteriores suspensões e
- cometeu o crime na forma tentada e não consumada;
para depois concluir pela verificação do juízo de prognose favorável.
(…)
Mas, decisivamente, essa fundamentação é mais conclusiva que objectiva, pois que omitiu, pura e simplesmente, os factos dos quais o Tribunal possa extrair os pressupostos materiais elencados no citado artigo 50.º-1 do CP, ou seja, os fundamentos da suspensão.
(…)
Dito de outra forma, o julgador não fundamentou minimamente o alegado juízo de prognose de que aproveitou, de novo, o arguido (com o que nem ele contaria…), à revelia de quaisquer factos nesse sentido.
(…)
Noutros termos, nesta parte, a sentença padece de nulidade manifesta, à luz dos artigos 374.º-2 e 379.º-1-a) -2, do CPP, que ora se invoca, pois que a suspensão não é de aplicação automática ou arbitrária como parece emergir da sentença sob censura.
Exige-se do Tribunal uma efectiva e aturada fundamentação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do delinquente, o que, efectivamente, não se verifica no caso da sentença de que se recorre.
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Na sentença recorrida, fundamentou-se a aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão com os argumentos de que ao arguido não foram revogadas as anteriores suspensões e de que o mesmo cometeu o crime na forma tentada e não consumada.
Temos de convir que os argumentos para a aplicação do instituto da suspensão da pena de prisão ao arguido são manifestamente insuficientes para que possam ser entendidos como uma fundamentação de tal decisão, de acordo com aquilo que é estabelecido por lei.
Na realidade, nada se provou no que diz respeito à sua personalidade, às condições da sua vida, à sua inserção familiar, social e laboral, à sua conduta anterior e posterior aos factos.
O que releva, nesta matéria, e há que vincar este aspecto, é a existência de uma prognose social favorável ao arguido, ou seja, a esperança de que sentirá a sua condenação como uma advertência e que de futuro não cometerá nenhum crime. Ora, a fundamentação da desnecessidade do cumprimento efectivo da pena de prisão, na sentença recorrida, mais não constitui do que uma simples consideração de ordem conclusiva, na qual não se encontra qualquer exame em termos de juízo favorável ao arguido para o futuro. Com efeito, se bem repararmos, nem sequer se refere à personalidade do arguido, às suas condições de vida, à conduta anterior e posterior ao facto punível e às circunstâncias deste, limitando-se a salientar, neste último patamar, que estamos perante a prática de um crime sob a forma tentada, o que, por si só, nada adianta em sede de conduta futura do arguido.
Acresce que, na referência feita às anteriores suspensões, é preciso sublinhar que nem uma palavra foi dita quanto a um factor muito importante, a saber, os factos em causa nos presentes autos ocorreram durante um período de suspensão de execução de uma pena de prisão, conforme resulta do facto provado n.º 16.
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Face ao até agora exposto, uma conclusão deve ser retirada - a sentença recorrida não cumpriu as exigências de prova relevantes para conseguir, de uma forma sustentada, fundamentar a escolha e medida da pena a aplicar. E isso consubstancia uma insuficiência da matéria de facto, relativa às condições pessoais do agente, conforme exige o art. 71º, nº 2, al. d), do Código Penal, com vista «à correcta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada», segundo o artigo 370.º, do CPP (cf. neste sentido, entre outros os Ac. R. de Coimbra, de 5.11.2008 (relator Jorge Gonçalves) e Ac. R. Porto de, 18.11.2009 (relator Olga Maurício) ambos em www.dgsi.pt.
Conceitualmente, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada significa que a decisão de facto apurada não é suficiente para a decisão de direito encontrada, ou, como salienta Germano Marques da Silva, ob. cit., vol. III, a pág.325, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito, e que acontece, conforme se lê no acórdão do STJ de 16.04.1998 (www.dgsi.pt), quando o tribunal “a quo” deixou de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar, dentro do objecto do processo, tal como este está enformado pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique. Ou, como se assinalou no acórdão do STJ de 20.04.2006, proferido no proc. nº.06P363 (www.dgsi.pt),” A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista à sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.”
Preceitua o artigo 410.º, n.º 2, a), do Código de Processo Penal, que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da sentença recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;». A insuficiência a que se reporta a citada alínea a) é um vício de conhecimento oficioso. Sendo o objecto do processo delimitado pela acusação/pronúncia, pela contestação e pelos factos que resultarem da prova produzida em audiência (cfr. artigo 339º, nº 4 do Código de Processo Penal) e estando Tribunal obrigado a enumerar os factos provados e não provados (cfr. artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal) esta enumeração respeita aos factos alegados pela acusação e pela defesa que sejam essenciais para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes e os factos provados que resultem da prova produzida em audiência que sejam relevantes para a questão da culpabilidade e determinação da sanção a aplicar (cfr. artigos 368º e 369º do Código de Processo Penal). Para de um ponto de vista substancial sedimentar a obrigação do tribunal de investigar todos os factos relevantes, ainda que não alegados e ainda que as partes não ofereçam prova sobre eles, o artigo 340.º, do Código de Processo Penal, impõe ao tribunal a obrigação de ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (consagrando-se, assim, na fase de julgamento, o primado do princípio da investigação – poder-dever que incumbe ao tribunal de investigar autonomamente os factos, para além das contribuições de acusação e defesa).
Assentemos, a este propósito, que a matéria de facto tanto pode ser insuficiente quando não permite a subsunção efectuada em termos de imputação de determinado crime, como quando não permite uma opção fundamentada entre penas não privativas e privativas da liberdade, entre pena de prisão efectiva e penas de substituição desta ou um juízo inteiramente fundamentado sobre o doseamento da pena, suposto que o tribunal podia investigar os factos em falta e não investigou. A razão de ser da consagração legal do vício decorre do princípio geral de descoberta da verdade material e da boa decisão da causa (art.340.º, do CPP), exigindo, assim, o necessário apuramento da culpabilidade e da determinação da sanção, de harmonia com os arts.368.º e 369.º, do CPP. Para o efeito desta última, nos termos do art.370.º, do CPP, poderá o tribunal, quando o entender necessário, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, o que configura faculdade que, embora não discricionária, se reconduz a tradução daquele princípio geral. Revertendo ao nosso caso, são nulos, os elementos relevantes ao apuramento da personalidade do recorrente e das suas condições pessoais e económicas. Com efeito, conferida a necessária dignidade que ao momento dessa determinação o regime processual penal consagra, em sintonia com as garantias de defesa e com a mínima restrição de direitos fundamentais, constitucionalmente relevantes (arts.18º, nº.2, e 32º, nº.1, da CRP), assegurando a necessidade, a proporcionalidade e a adequação das penas, para a realização das finalidades punitivas do art.40º, nº.1, do CP, entende-se que a sentença sob censura padece do referido vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ao nível da determinação da pena, implicando que, nessa vertente, se apurem os aspectos relativos à personalidade e às condições pessoais e económicas do recorrente, mediante as diligências que se tenham por pertinentes, designadamente, a elaboração de relatório social. Impõe-se, em conformidade e para tanto, o reenvio do processo para novo julgamento nessa parte – art.426.º, n.º1, do CPP -, a realizar pelo tribunal recorrido (art.426.º-A. do CPP). Fica, deste modo, prejudicada a apreciação das restantes questões objecto do recurso.
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IV. Decisão:
Nestes termos, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em ordenar o reenvio do processo para novo julgamento, restrito à investigação dos factos acima mencionados relativos à situação pessoal do arguido.
Sem custas.

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José Eduardo Martins (Relator)
Maria José Nogueira