Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
45/08.2GTGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: CRIME DE VIOLAÇÃO DE PROIBIÇÕES
SANÇÃO ACESSÓRIA
Data do Acordão: 01/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1º, 65º,69º,1, B) E 353º DO CP
Sumário: A condenação em pena acessória, pela prática do crime previsto no art.º 353º do CP implica uma violação do princípio da legalidade.
Decisão Texto Integral: No Tribunal Judicial da Guarda 1º Juízo, após audiência de discussão e julgamento, o arguido PJ..., foi condenado como autor material de um crime de violação de proibições, previsto e punido pelo art. 353° do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão, e ainda na pena acessória de proibição de condução de todos os veículos motorizados pelo período de 2 (dois) anos, com suspensão de execução da pena de prisão aplicada por um período de 1 (um) ano.

Inconformado com a decisão interpõe recurso e formula as seguintes conclusões:

1. A aplicação de sanção acessória está sujeita ao princípio da legalidade, como resulta da Constituição da República Portuguesa, e ainda do art. 1º do C. Penal e do art. 65º do mesmo Código.

2. A douta sentença recorrida, ao condenar em sanção acessória de conduzir, fundou-se na al. b) do n. 1 do art. 69º desse Código.

3. Ora, da interpretação de tal norma, resulta que a conduta pela qual o recorrente foi condenado não pode subsumir-se-lhe.

4. Efectivamente, resulta dessa alínea que a condução do veículo deve ser acessória relativamente ao crime pelo qual o arguido é condenado, e não, como nos presentes autos sucede, essencial e necessária.

5. De resto, e considerando que as duas partes da norma estão ligadas por copulativa - pelo que ambas têm de verificar-se -, a segunda parte não tem aplicação à conduta vertente, precisamente por remeter para a ideia de acessoriedade .

6. Sendo certo que a lei penal, quando determina penas, não pode ser interpretada analogicamente, como do n. 3 do art.1º do C. Penal resulta.

7. Militam ainda no sentido de tal interpretação dois argumentos de ordem sistemática, e que são, o primeiro, o facto de o n. 1 do art. 69º ter duas outras alíneas, cuja existência estaria dispensada se a al. b) devesse ser interpretada com a amplitude com que parece ter sido na sentença recorrida.

8. Efectivamente, a bastar que o veículo tenha sido utilizado para a prática do crime, porquê as alíneas a) e c), que o pressupõem sempre?

9. O segundo argumento resultante da interpretação sistemática prende-se com a al. c), pois, sendo o crime em causa um crime desobediência qualificada, e debruçando-se essa alínea sobre o crime de desobediência, parece, ao limitar-se ao tipo aí referido, afastar (num raciocínio a contrario) todas as demais condutas de desobediência.

10. Carece pois de fundamento legal a condenação do recorrente em sanção acessória, violando, nessa parte, a douta sentença recorrida, o princípio da legalidade, com a legal consequência da sua nulidade.

11. Sem prescindir, e por mera prudência de patrocínio, a possibilidade de a conduta do recorrente vir a ser qualificada como estando abrangida pela norma do art. 69 não constava da acusação nem lhe foi posteriormente anunciada.

12. A condenação ao abrigo da referida norma constitui alteração não substancial dos factos (art. 358, n. 3 do C. P. Penal).

13. Sem que, no entanto, fosse dado cumprimento ao disposto no n. 1 do artigo supra.

14. Sendo por isso, nessa parte, nula, ao abrigo do disposto no art. 379º, n. 1, al. b) do c. P. Penal, o que se invoca, com as legais consequências.

15. Ainda sem prescindir, a aplicação da sanção acessória não foi precedida de suficiente fundamentação de facto e direito, em desrespeito pelo disposto nos art. 374º, n. 2 e 375º do C. P. Penal, estando por isso ferida de nulidade, nessa parte, conforme art. 379º, n.l, al. a) do mesmo normativo.

O Ministério Público não respondeu.

O recurso foi admitido.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer favorável.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

O recurso tem por único a pena acessória, averigua se a mês pode ser aplicada à revelia da vinculação temática da acusação.

Estão provados os seguintes factos:

1. No dia 14 de Março de 2008, pelas 19 horas e 45 minutos, o arguido conduzia o seu veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ................ em Sobral da Serra, concelho da Guarda;

2. O arguido havia sido condenado, por sentença proferida no dia 31 de Janeiro de 2008, no processo sumário n° 11/08.8GTGRD, do 2° Juízo deste Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, transitada em julgado, numa pena de sete meses de prisão, substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, e na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de seis meses, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez;

3. Para cumprimento da pena acessória referida no ponto anterior, o arguido entregou a sua carta de condução no dia 25 de Fevereiro de 2008, neste Tribunal;

4. O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, sabendo e querendo violar a proibição de conduzir veículos automóveis que lhe tinha sido imposta por sentença criminal, assim faltando à obediência a ordem legítima, com base legal, emanada de autoridade competente, e que lhe fora devidamente notificada;

5. O arguido sabia que praticava acto proibido e punido por lei criminal;

6. O arguido é casado, tendo dois filhos a cargo;

7. O arguido é ajudante de mecânico, auferindo o rendimento mensal de cerca de € 500;

8. A esposa do arguido é doméstica;

9. O arguido habita em casa arrendada, liquidando a renda mensal de € 125;

10.O arguido completou o 6° ano de escolaridade;

11. O arguido admitiu, em julgamento, a prática dos factos que lhe eram imputados, de forma espontânea, integral e sem reservas;

12. O arguido tem sido seguido no CRI da Guarda desde 22 de Abril de 2008, sujeitando-se a tratamento medicamentoso;

13. O arguido foi ainda condenado, por sentença proferida no dia 09-10¬97, no processo sumário n° 213/97, do 2° Juízo deste Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, transitada em julgado, numa pena de multa, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez;

14. O arguido foi ainda condenado, por sentença proferida no dia 02-07¬2000, no processo sumário nº 110/2000, do 2° Juízo deste Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, transitada em julgado, numa pena de multa, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez;

15. O arguido foi ainda condenado, por sentença proferida no dia 08-02-2004, no processo sumário nº 22/04.2GTGRD, do 2° Juízo deste Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, transitada em julgado, numa pena de seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 18 meses, e ainda na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de 18 meses, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez;

16. O arguido foi ainda condenado, por sentença proferida no dia 19-10¬2004, no processo sumário n° 158/04.0GTGRD, do 3° Juízo deste Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, transitada em julgado, numa pena de dez meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 30 meses, pela prática de um crime de violação de proibições ou interdições.

Não se provou qualquer outro facto com relevo para a decisão da causa.

Da Sanção Acessória

Considera o recorrente que a aplicação de sanção acessória está sujeita ao princípio da legalidade, como resulta da Constituição da República Portuguesa, e ainda do art. 1º do C. Penal e do art. 65º do mesmo Código e que a sentença recorrida, ao condenar em sanção acessória de conduzir, fundou-se indevidamente na al. b) do n. 1 do art. 69º desse Código e fê-lo à revelia de qualquer suporte factual constante da acusação.

Efectivamente o recorrente tem razão a condenação em pena acessória, neste caso, implica uma violação do princípio da legalidade e a violação do princípio do acusatório.

Da legalidade porque da letra da lei retira-se, no que à alínea al. b) do n. 1 do art. 69º diz respeito que a sanção pode ser aplicada a crimes em que a condução do veículo seja acessória da prática do crime. Ora no crime de violação de proibições o acto de conduzir não é acessório, mas antes essencial ao tipo do crime.

Como questiona o recorrente se basta que o veículo esteja de qualquer forma associado à prática do crime, para se aplicar a sanção acessória porquê as alíneas a) e c) do nº 1 do art. 69º?

A conduta punida no crime de violação de proibições ou interdições - prevista no art. 353º do Código Penal -  de acordo com a sua integração sistemática é valorada como uma desobediência qualificada [1]. E o art. 69º na alínea c), remetendo para os crimes de desobediência, limita a aplicação da sanção às condutas de desobediência praticadas de acordo com o tipo aí previsto, excluindo, a contrario, todas as demais condutas integradoras de crimes de desobediência.

Portanto não é claro ou pacífico que a violação do art. 353º do Código Penal implique necessariamente a proibição de conduzir prevista no art. 69º.

Veja-se, a este propósito, os exemplos que Maia Gonçalves, no seu comentário ao Código Penal Português (12ª Edição, Almedina, Coimbra), a págs. 240, em nota à mesma alínea b) do n. 1, do art. 69º, utiliza, esclarecendo o tipo de conduta a que o legislador pretendeu aplicar a sanção a que nos vimos reportando: atropelamento mortal e furto com veículo (reforçando-se, embora o autor - importa reconhecê-lo - o não afirme expressamente, a ideia de "acessoriedade" em relação ao crime principal).

A nossa jurisprudência tem entendido que a previsão da alínea b) do nº 1 do art. 69º do C. Penal abrange apenas os casos de crime em que o veículo, não sendo essencial à prática do delito, é nele utilizado dolosamente como instrumento, como “arma de arremesso”, assim potenciando a perigosidade e as consequências criminais[2].

Com efeito, resulta literalmente da al. b) do nº 1 do artº 69º do CP, norma aplicada na sentença recorrida, que «é condenado na proibição de conduzir veículos com motor (…) quem for punido por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido facilitada de forma relevante».

Como se diz no acórdão da Relação do Porto de 8/3/2006, a interpretação gramatical da norma, em que as duas orações se ligam através de uma conjunção copulativa (indicando adição), revela que as condições previstas são de verificação cumulativa.

Ora, é um facto indesmentível que para o cometimento do crime de desobediência pelo qual veio a ser condenado, o arguido utilizou um veículo automóvel. A própria desobediência em questão consiste na utilização de veículo e sem a utilização deste nem sequer haveria crime.

O que já não se pode afirmar sem subverter o sentido da norma é que a execução do crime tenha sido facilitada de forma relevante pela utilização do veículo. Na verdade, só é facilitado de forma relevante pela utilização do veículo o crime que sempre poderia ser cometido sem essa utilização, mas que graças a ela se tornou significativamente de mais fácil execução. O que, obviamente, exclui as situações em que a utilização do automóvel é elemento necessário do crime. Tais situações, correspondentes a factos ilícitos típicos, têm tratamento autónomo. É esse, aliás, o caso da previsão da al. a), relativamente aos crimes dos arts. 291º e 292º.”

Ou seja, o âmbito de aplicação da norma em questão apenas abrange os casos de crime em que o veículo, não sendo essencial à eclosão do delito, é nele utilizado dolosamente como instrumento, como ‘arma de arremesso’, assim potenciando a perigosidade e as consequências criminais.

No mesmo sentido o Acórdão da Relação do Porto de 8/03/08 onde se refere que da previsão da alínea b) do nº1 do artº 69º do CP95 estão excluídas as situações em que a utilização do automóvel é elemento necessário do crime aí referido.

Entre nós, por acórdão de 1/10/2003[3], decidiu-se que: a letra da lei ao aludir a crime cometido com a utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante refere-se a factos típicos em que o veículo é utilizado para os cometer e em que a respectiva execução foi pelo veículo facilitada de forma relevante, o que significa que o veículo surge aqui como simples meio de comissão do crime, muito embora se exija, ainda, que a execução do facto haja sido relevantemente facilitada pelo uso daquele. Estamos, pois, perante situações em que o veículo é (mero) instrumento do crime, isto é, em que o veículo não é essencial para a sua prática.

Uma coisa é crime cometido com a utilização de veículo, outra é crime cometido no exercício da condução.

Como diz Germano Marques da Silva ( - Crimes Rodoviários -Pena Acessória e Medidas de Segurança (1996), 30/31.), crimes cometidos no exercício da condução são todos aqueles em que a acção viola as regras do trânsito rodoviário, sendo elemento da sua estrutura típica, como sucede nos crimes previstos nos arts.291º e 292º, do Código Penal, ou causa do evento, como acontece em muitos crimes materiais em que a violação das regras da condução é a causa do evento típico – v.g. homicídio ou ofensas corporais negligentes causados por excesso de velocidade, ultrapassagem e demais manobras perigosas.

Crimes cometidos com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por esta facilitada de forma relevante são aqueles em que o uso do veículo é instrumento relevante para a prática do crime; a lei não exige que o uso do veículo tenha sido condição necessária da prática do crime, basta-se com que esse uso tenha sido instrumento relevante, isto é, tenha contribuído de modo importante para a sua prática. Assim, se sem o uso do veículo a prática do crime tivesse sido bastante mais difícil, já é aplicável a sanção acessória.

Prova cabal, aliás, da essencialidade da redacção originária da al.a), do n.º1 do art.69º, na parte em que aludia a grave violação das regras do trânsito rodoviário, é o facto de este inciso haver sido aditado ao texto do Anteprojecto (art.69º-A) pela Comissão Revisora, sendo que na respectiva Acta (acta n.º 7) ficou exarado o seguinte comentário: «Por último foi abordada a pena de proibição de condução de veículos motorizados (novo art.68º-A), que deverá prever, ao contrário do art.69º-A do Anteprojecto, uma menção a grave violação das regras de trânsito rodoviário, pena esta que não poderá ser acumulada com a medida de segurança da apreensão de carta de condução».

De onde resulta que face ao princípio da tipicidade, que rege no direito criminal, não pode, a conduta do arguido ser objecto desta reacção penal secundária.

Acresce que a questão, mesmo que contemplada no espírito da lei, implicaria saber se é admissível a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no n.º 1 do artigo 69º do Código Penal, sem que a acusação contenha qualquer referência àquela pena acessória, designadamente qualquer menção à disposição legal que prevê a sua cominação e estabelece o seu quantum, e sem que o tribunal dê cumprimento ao disposto no artigo 358º, ou, ao invés, a condenação naquela pena acessória, inexistindo qualquer referência à mesma na acusação, designadamente ao preceito que a prevê e quantifica, só é legalmente admissível mediante prévia comunicação ao arguido nos termos do artigo 358º.

 A resposta do STJ é hoje inequívoca: Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do n.º 1 do artigo 69º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 358º do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379º deste último diploma legal[4].

Contudo porque é absolutamente inquestionável que a conduta não implica necessariamente a aplicação da sanção acessória, o recorrente nesta parte deve ser absolvido.

Termos em que se concede provimento ao recurso e declara-se sem efeito a pena acessória de proibição de condução.

Sem tributação

[1] Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial, Tomo III, pág. 404

[2] Acórdão da Relação do Porto de 24/10/2007.
[3] Acórdão Relatado por Oliveira Mendes, constante da base de dados da DGSI.

[4] Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Junho de 2008