Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1868/09.0TJCBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
INCIDENTE
LIQUIDAÇÃO
Data do Acordão: 11/13/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – 4º JUÍZO CÍVEL.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 378º, Nº 2, 661º E 865º-A DO CPC; 566º, Nº 3 DO C. CIVIL.
Sumário: I – Quando o Tribunal de 1ª instância dá preferência a determinados depoimentos em detrimento de outros, fundamentando a sua convicção e não se afastando das regras de experiência comum na fundamentação, será essa convicção a prevalecer, como consequência de se presumir que a imediação e a oralidade proporcionam as condições ideais para uma correcta apreciação da prova.

II. A quantificação no incidente de liquidação é possível mesmo que resulte da insuficiência da prova produzida na acção declarativa, sem que isso implique violação de caso julgado.

III. A equidade deve ser a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei, devendo o julgador ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

M… deduziu incidente de liquidação, no âmbito da presente ação sumária n.º 1868/09.0TJCBR, contra a ré V…, Lda., pedindo que se liquide a quantia a pagar pela ré em € 7.500,00.

Alega o requerente que na mencionada ação foi a requerida, ali ré, condenada a restituir-lhe a quantia correspondente à diferença entre o preço que pagou (€24.000,00) e o valor de uma viatura idêntica, com 157.647 Kms, calculado à data do negócio (18.12.2006), a apurar mediante o incidente de liquidação, tendo tal restituição como limite o valor de € 7.500,00.

Invoca que à data do negócio um veículo com as características do veículo adquirido pelo autor, mas com os seus reais 157.647 Kms, valeria € 15.299,00, pelo que, deve o requerido pagar-lhe o valor de € 7.500,00, acrescido de juros moratórios até efetivo e integral pagamento.

Contestou a requerida invocando que o veículo em causa valeria à data da sua aquisição pelo requerente € 26.750,00, pelo que, tendo-o este adquirido por um valor inferior ao seu valor de mercado, nada há a restituir.

Eis a decisão proferida pela 1.ª instância:

“Pelo exposto, na parcial procedência do presente incidente de liquidação, fixo a quantia a restituir pela requerida ao requerente em € 4.750,00 (quatro mil setecentos e cinquenta euros), acrescendo à mesma juros de mora à taxa legal, atualmente de 4%, vencidos desde o trânsito da presente decisão e vincendos até integral pagamento).

Condeno o requerente e a requerida no pagamento das custas do incidente, na proporção de decaimento (art. 446.º, n.º s 1 e 2 do Código de Processo Civil).”

2.O Objecto da instância de recurso

Nos termos do art. 684°, n°3 e 685º, do CPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente.

São as seguintes as conclusões que apresenta a recorrente “V…, LDA.”:

...

M…, A./Recorrido, notificado da interposição de recurso pela R./Recorrida V…, Lda., atravessou as suas contra-alegações: 

3. A Decisão

As questões a decidir são as seguintes:

I – Impugnação da matéria de facto - Pontos 1) e 2) da Base.

II – Se deve ser alterada a decisão recorrida, limitando - se a indemnização a um valor nunca superior a € 2.500,00.

A matéria de facto dada como provada pela 1ª Instância é a seguinte:

Como é sobejamente sabido, a divergência quanto ao decidido pelo tribunal a quo na fixação da matéria de facto, só sobrelevará no Tribunal da Relação se resultar demonstrada, através dos meios de prova indicados pelo recorrente, a ocorrência de erro na apreciação do seu valor probatório, tornando-se necessário, para equacionar aquele, que os aludidos meios de prova apontem, inequivocamente, no sentido propugnado pelo mesmo recorrente.

O recurso visa apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente.

A criação da convicção do julgador que leva à decisão da matéria de facto tem de assentar em dados concretos, alguns dos quais elementos não repetíveis ou tão fiáveis na 2.ª instância como na 1.ª, em situação de reapreciação da prova.

Na verdade, escapam à 2.ª instância, por princípio, a imediação e a oralidade que o juiz da 1.ª instância possui.

Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respetiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela.

...

Assim, mantemos a matéria de facto fixada pela 1.ª instância.

Sendo esta a factualidade assente por provada cumpre agora fazer o seu enquadramento jurídico.

No 4.º Juízo Cível dos Juízos Cíveis de Coimbra foi decidido na acção sumária que opõe o ora recorrido à recorrente, julgar: “(…) a presente acção parcialmente procedente, por provada e, consequentemente, declaro anulado o negócio que o autor celebrou com a ré e condeno a ré a restituir ao autor o preço pago, de € 24.000,00 (vinte e quatro mil euros), acrescido de juros à taxa legal, actualmente de 4%, vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento.”

Da sentença supra referida foi interposto recurso de apelação que decidiu definitivamente a causa nos seguintes termos: “(…) revogam em parte a sentença, e, em função disso, na procedência parcial da acção, condenam a Ré a restituir ao A. a quantia correspondente à diferença entre o preço pago por este (€ 24.000) e o valor de uma viatura idêntica, com 157.647 Km, calculado à data do negócio (18/12/2006), a apurar mediante o incidente de liquidação, tendo tal restituição como limite o valor de € 7.500,00.”

Já no âmbito do incidente de liquidação, foi proferida sentença com o seguinte teor: “(…) na parcial procedência do presente incidente de liquidação, fixo a quantia a restituir pela requerida ao requerente em € 4.750,00 (quatro mil setecentos e cinquenta euros), acrescendo à mesma juros de mora à taxa legal, atualmente de 4%, vencidos desde o trânsito da presente decisão e vincendos até integral pagamento).”

De acordo com o disposto no art. 661.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.

O incidente da instância através da qual é liquidada a condenação genérica proferida ao abrigo do disposto no referido normativo corresponde, como é sabido, ao incidente de liquidação.

Este incidente tem lugar depois de proferida a sentença de condenação genérica e visa tão só concretizar o objeto da condenação, com respeito pelo caso julgado por aquela formado - artigo 378.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

Com a entrada em vigor do DL n.º 38/2003, de 8/3, a liquidação das condenações genéricas decretadas em sentenças proferidas após 15/9/2003, que não dependa de simples cálculo aritmético, passou a efectivar-se na respectiva acção declarativa, atento o disposto nos art.ºs 47.º, n.º 5 e 378.º, n.º 2, ambos do Código do Processo Civil.

A quantificação no incidente de liquidação é possível mesmo que resulte da insuficiência da prova produzida na acção declarativa, sem que isso implique violação de caso julgado.

A utilização da equidade surge como último recurso, não devendo ter lugar quando seja possível a liquidação nos termos do art.º 378.º do CPC, mas funcionando, também neste incidente, quando não se consiga determinar o montante do dano.

No âmbito da ação declarativa de condenação em que foi enxertado o presente incidente foi proferida condenação genérica através da qual a ré/requerida foi condenada a restituir ao autor/requerente a quantia correspondente à diferença entre o preço que este pagou pela viatura que adquiriu à ré/requerida e o valor de uma viatura idêntica, com 157.647 Km, calculado à data em que foi concluído o negócio (18/12/2006), tendo tal restituição como limite o valor de € 7.500,00.

A questão a decidir neste incidente de liquidação consiste, assim, tão só em apurar o valor de uma viatura idêntica à adquirida pelo requerente à data em que foi concluído o negócio, correspondendo a quantia a restituir à diferença entre o montante pago por este, de € 24.000,00, e aquele valor da viatura, tendo contudo como limite o valor de € 7.500,00.

Em sede de julgamento não foi possível apurar o valor concreto que uma viatura idêntica à adquirida pelo requerente, com 157.647 Kms, teria em 18/12/2006, tendo-se apurado apenas que esse valor seria não inferior a € 17.500,00 e não superior a € 21.000,00.

De acordo com o art.º 380.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, quando a prova produzida pelos litigantes for insuficiente para fixar a quantia devida, incumbe ao juiz completá-la mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial.

Se a prova global produzida se não mostrar concludente, e não permitir a quantificação exata da indemnização a liquidar, deve o juiz operar a liquidação com base em juízos de equidade, nos termos do art. 566.º, n.º 3, do Código Civil.

“O princípio que resulta da lei, ao aliviar o ónus probatório do requerido, por via da ampliação dos poderes do juiz no âmbito probatório, à luz do caso julgado decorrente da sentença condenatória, implica que, se a prova produzida for inconclusiva para apuramento do dano, seja este fixado com base na equidade” - Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, Almedina, 5.ª edição, pág. 304.

Como refere a Sr.ª Juiz da 1.ª instância, a prova produzida pelas partes não permitiu apurar o valor concreto de uma viatura idêntica à adquirida pelo autor, mas tão só que tal esse valor se situaria ente os € 17.500,00 e os € 21.000,00.

Não se lhe afigurou útil a realização de qualquer outra diligência probatória, nomeadamente de perícia, na medida em que dos depoimentos das testemunhas com base nas quais foi decidida a matéria de facto, e que detinham especiais conhecimentos na matéria, resultou que dificilmente o resultado de tais diligências seria conclusivo, posto que o valor comercial de uma viatura depende sempre do negócio concreto em que tal valor é fixado.

Por isso, e bem, fixou o valor da viatura com recurso às regras da equidade, dentro dos limites tidos como provados, de acordo com o art. 566.º, n.º 3, do Código Civil.

Temos, para nós, que a equidade deve ser a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei, devendo, o julgador ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.

Refere a ilustre julgadora, na sua decisão “ …Assim, e tendo por base os limites acima mencionados (€17.500,00 como limite mínimo e € 21.000,00 como limite máximo), afigura-se adequado fixar o valor da viatura em € 19.250,00, cifrando-se consequentemente a quantia a restituir em € 4.750,00 (= € 24.000,00 - € 19.250,00).

Porque concordamos com este valor e a forma como foi calculado, na improcedência do recurso, mantemos a decisão da 1.ª instância.

Passemos ao sumário:

I. Quando o Tribunal de 1ª instância dá preferência a determinados depoimentos em detrimento de outros, fundamentando a sua convicção e não se afastando das regras de experiência comum na fundamentação, será essa convicção a prevalecer, como consequência de se presumir que a imediação e a oralidade proporcionam as condições ideais para uma correcta apreciação da prova.

II. A quantificação no incidente de liquidação é possível mesmo que resulte da insuficiência da prova produzida na acção declarativa, sem que isso implique violação de caso julgado.

III. Temos, para nós, que a equidade deve ser a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei, devendo o julgador ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

José Avelino - Relator)

Regina Rosa

 Artur Dias