Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
226/08.9GTCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: PENAS ACESSÓRIAS
CÚMULO JURÍDICO
Data do Acordão: 09/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CANTANHEDE – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 77º E 78º CP
Sumário: As regras do cúmulo jurídico de penas, estabelecidas nos artigos 77.º e 78.º do Código Penal, são aplicáveis ao concurso de penas acessórias.
Decisão Texto Integral: I – Relatório
1. No processo sumário n.º 226/08.9GTCBR, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede, o arguido B..., melhor identificado nos autos, foi condenado, por sentença de 30 de Julho de 2008 referente a factos de 26 de Julho do mesmo ano, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º1, do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 € (seis euros), num total de €480,00 (quatrocentos e oitenta euros), bem como na proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses.
O mesmo arguido, no âmbito do processo sumário n.º 441/08.5GAMLD, do Tribunal Judicial da Mealhada, foi condenado, por sentença de 24 de Julho de 2008, referente a factos de 16 de Julho do mesmo ano, transitada em julgado, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º1, do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de €5,00 € (cinco euros), num total de €550,00 (quinhentos e cinquenta euros), bem como na proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 (três) meses.
No âmbito do processo sumário n.º 226/08.9GTCBR foi realizada a audiência a que alude o artigo 471.º, n.º1, do Código de Processo Penal, em ordem à realização do cúmulo jurídico.
Realizada a audiência, foi proferida sentença que condenou o arguido em cúmulo jurídico, na pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de €5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), totalizando a quantia de € 880,00 (oitocentos e oitenta euros). Quanto às penas acessórias, foi decidido não haver lugar à realização de cúmulo jurídico, devendo o arguido cumprir 9 (nove) meses de proibição de conduzir veículos com motor, o que corresponde ao cúmulo material das penas acessórias aplicadas.

2. Inconformado, o Ministério Público recorreu desta sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
A) As penas acessórias constituem verdadeiras penas, com a particularidade de estarem formalmente dependentes da pena principal e de serem material ou substancialmente condicionadas à existência de um conteúdo de ilícito que justifica a censura adicional ínsita na sua aplicação.
B) As penas acessórias visam, por isso, garantir uma maior eficácia na punição do delinquente em específicos tipos criminais para os quais as penas de natureza detentiva ou pecuniária são insuficientes e só indirecta ou complementarmente, actuam ao nível da prevenção da perigosidade.
C) Por isso, a medida concreta da pena acessória deverá ser encontrada em função dos mesmos critérios que o legislador prevê para a pena principal (cfr. arts. 40° e 71 ° do Código Penal).
D) Diferença substancial que distingue a pena do art. 69° do Código Penal da medida de segurança do art. 101.º do mesmo Código, para a aplicação e determinação concreta da qual estão em causa apenas exigência relacionadas com a perigosidade do agente.
E) A aplicação do sistema do cúmulo jurídico às penas acessórias é o que melhor se coaduna com os princípios da culpa, igualdade e proporcionalidade, exigido pelos princípios constitucionais e legais vigentes e aplicados na determinação concreta da medida da pena.
F) A isso não obsta o teor literal dos arts. 77°, n.º 4 e 78°, n.º 3 do Código Penal, perfeitamente compatíveis com o sistema do cúmulo jurídico para as penas acessórias.
G) Nem é questionado pelo sistema da acumulação material aplicado à sanção acessória de inibição de conduzir aplicada em sede de contra-ordenações estradais, por força do disposto no art. 134.º, n.º 3 do Código da Estrada, atenta a diferente natureza das infracções que aqui estão em causa,
H) Sendo certo que a aplicação das regras do cúmulo jurídico, poderão, na prática, aproximar-se ou coincidir com a pena resultante do mero somatório das penas parcelares, o que afasta o argumento de que o sistema que defendemos resulta especial e injustificadamente vantajoso para o arguido.
I) Com a solução que defendemos evita-se o risco de se atingir uma gravidade exponencial, com a aplicação de penas manifestamente desadequadas e excessivas, afastadas dos limites consentidos pela culpa.
J) E afastamo-nos de critérios ou regras formais em favor de princípios de justiça material que não poderão deixar de conformar o Direito Penal moderno dos Estados civilizados, como o nosso.
K) Pelo exposto, salvo melhor opinião, e sempre com muito respeito pela decisão recorrida, decidindo como decidiu, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo não fez uma correcta interpretação da lei, violando o disposto nos arts. 69.º, n. ° 1, 77.º e 78.º, todos do Código Penal.
Nestes termos e nos demais de Direito, que doutamente se suprirão, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que contemple o teor das alegações expendidas e conclusões apresentadas, assim se fazendo INTEIRA JUSTIÇA.

3. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, a fls. 128 e seguintes, no sentido de que o recurso não merece provimento.

4. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º1, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II – Fundamentação
1. Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Assim, atento o teor das conclusões, a única questão a decidir consiste em saber se deve ser efectuado cúmulo jurídico das duas penas acessórias de proibição de conduzir aplicadas ao abrigo do disposto no artigo 69.º do Código Penal.

2. Da sentença recorrida
Diz-se na sentença recorrida (transcrição parcial):
«(…)
Nos termos do artigo 77.º n.º 1, do Código Penal, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Ou seja, há que proceder ao cúmulo jurídico se o crime de que só agora se tenha tomado conhecimento haja sido praticado antes da condenação anteriormente proferida, de tal forma que esta deveria tê-lo tomado em atenção, para efeito da pena conjunta, se dele se tivesse conhecimento. O momento decisivo da questão de saber se o crime agora conhecido foi ou não anterior à condenação é o momento em que esta foi proferida e em que o tribunal poderia ter condenado numa pena conjunta não o do seu trânsito.
Segundo o n.º 2 do mesmo preceito legal, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Ora, no caso vertente, constata-se que existe uma situação de concurso jurídico entre a pena aplicada neste processo e a pena aplicada ao arguido no processo sumário n.º 441/08.5GAMLD, do Tribunal Judicial da Mealhada, pois os crimes por cuja autoria o arguido foi julgado e condenado nesses processos foram todos praticados antes que transitasse em julgado a condenação por qualquer deles.
Com efeito, os factos por que o arguido foi condenado no referido processo sumário n.º 441/08.5GAMLD (ocorridos em 16.07.08) são anteriores à condenação proferida no âmbito destes autos, a qual também condenou o arguido por factos ocorridos em 30.07.08.
Assim, haverá que proceder ao cúmulo jurídico de das penas parcelares em que o arguido foi condenado nesses processos.
Na determinação da pena única a aplicar ao arguido, serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, sendo certo que ter-se-á, mais uma vez, presente que as finalidades de aplicação de uma pena residem, em primeira linha, na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do arguido na comunidade. Por outro lado, não se esquecerá que a pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
O arguido tem, actualmente, 26 anos de idade, sendo que, desde 12.11.2008, encontra-se a trabalhar em França.
Vivia com seus avós, tendo exercido a actividade de construtor civil. Todos os crimes em concurso estão todos relacionados com a condução automóvel: dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez (1,26 g/l e 1,65 g/l, respectivamente).
Antes das presentes condenações, já o arguido havia sido condenado por sentença de 13.12.2000, já transitada em julgado, por um crime de condução sem habilitação legal, por factos ocorridos em 27.01.2000 - cfr. CRC de fls. 17 e 18.
Com a prática de tais factos, o arguido revela uma evidente propensão para a prática de crimes relacionados com a condução automóvel, os quais colocam abstractamente em perigo a segurança dos utentes da via pública, bem como outros bens jurídicos de particular relevo relacionados com a segurança das pessoas face ao trânsito, como a vida, a integridade física, a liberdade e o património, sendo certo que as exigências de prevenção geral são, nestes tipos de crimes, muito elevadas, em função da frequência com que a sua prática ocorre (contribuindo para o aumento da, já de si elevada, taxa de sinistralidade rodoviária existente no nosso país), bem como em função da crescente necessidade de consciencialização para esta fonte de perigo que é a circulação rodoviária.
Por outro lado, constata-se que as diversas condenações aplicadas ao arguido não obviaram à prática sucessiva de novos delitos criminais da mesma natureza por parte do mesmo, o que revela uma elevada necessidade de fazer sentir ao arguido o significado da lei e a necessidade do seu cumprimento, consciencializando-o para os perigos de conduzir um veículo automóvel estando alcoolizado.
Em seu abono, milita o facto das condenações em concurso terem ocorrido num período de tempo muito curto, sendo que a taxas de álcool de que o arguido era portador na primeira situação está próxima do limite mínimo em termos criminais. Por outro lado, encontra-se actualmente a trabalhar em França.
Atendendo às disposições legais supra citadas (artigos 77.º e 78.° do Código Penal) e às penas aplicadas ao arguido supra referidas, a moldura penal abstracta para o presente concurso de crimes em causa tem como limite máximo a pena de 190 dias de multa e como limite mínimo a pena de 110 dias de multa.
Ponderando tudo o referido, e tendo em conta os critérios dos n.º 1 e 2 do artigo 77.° do Código Penal, entende-se adequado fixar a pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos).»
Mais concretamente quanto às penas acessórias:
«No que respeita às sanções acessórias de proibição de conduzir em que o arguido foi condenado em ambos os processos, há que, antes de mais, saber se deve ser efectuado cúmulo jurídico.
A sanção acessória é uma censura adicional do facto praticado pelo agente e não tem necessariamente de seguir o destino e a sorte da pena principal, tanto mais que não visa atingir os mesmos fins daquela. Com efeito, «enquanto a pena acessória visa, tão só, prevenir a perigosidade do agente (muito embora se lhe assinale também um efeito de prevenção gera!), enquanto a pena principal tem em vista a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» - cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 7.11.1996, Col. de Jur., ano XXI, tomo V, pág. 49.
Está-se, por conseguinte, perante uma diversidade de objectivos que se pretendem atingir ao aplicar a sanção acessória ou a pena principal, apesar de se encontrarem intimamente ligados. E daí que a duração da pena acessória possa ser proporcionalmente diferente da concretamente aplicada na pena principal.
Face a estas especificidades que as sanções acessórias comportam, o Código Penal não admite, em nosso entender, o cúmulo jurídico das mesmas – neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11-10-2006, in www.dgsi.pt, cuja redacção seguimos de perto.
Tal conclusão decorre, desde logo, do disposto no artigo 77.º, n.º 4, do Código Penal, ao estabelecer que «as penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis». Neste preceito, consagra-se o sistema de pena conjunta, ou seja, como refere Figueiredo Dias, “cumulativamente com a pena conjunta de prisão ou de multa o tribunal condenará, nos termos do artigo 78.º, n.º 4, na pena acessória (incluídos efeitos da pena) ou medida de segurança que se ligue a qualquer dos factos praticados (e que, como tal, tenha sido fixada na 1.ª operação). Esta solução é compreensível e aceitável de um ponto de vista político-criminal e mesmo da perspectiva da lógica do sistema da pena conjunta: por uma parte, é fruto da ideia de que, por força do concurso, os crimes singulares não perdem a sua individualidade e as suas especificidades (como aconteceria num sistema puro de pena unitária); por outra banda, solução diferente poderia conduzir o agente à prática de outro crime só para evitar uma consequência acessória que ao primeiro se ligava e cuja aplicação pretendesse muito particularmente evitar” - in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 292.
Mas, o entendimento da inadmissibilidade do cúmulo jurídico das sanções acessórias também resulta do n.º 3 do artigo 78.°, referindo que “as penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na sentença anterior mantêm-se, salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão (…)”, sendo que, no caso em apreço, nada faz concluir por esta desnecessidade.
Em suma, do disposto nos citados artigos 77.°, n.º 4, e 78.º, n.º 3, ambos do Código Penal, resulta não poder haver cúmulo jurídico das várias sanções acessórias aplicadas, sanções que, nos termos daqueles preceitos, «mantêm-se» e «são sempre aplicadas ao agente» e, por conseguinte, o arguido terá de cumpri-las sucessiva e integralmente, de acordo com as várias sentenças condenatórias proferidas (ou seja, terá de cumprir 9 meses de sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor)

3. Apreciando
1.O arguido B... foi condenado:
A) no âmbito do PROCESSO SUMÁRIO N.º 226/08.9GTCBR, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros), e na pena acessória de proibição de condução de veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses, pela prática, como autor material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, por factos ocorridos em 26 de Julho de 2008, por sentença de 30 de Julho de 2008, transitada em julgado;
B) no âmbito do PROCESSO SUMÁRIO N.º 441/08.5GAMLD, do Tribunal Judicial da Mealhada, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 (três) meses, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, por factos ocorridos em 16 de Julho de 2008, por sentença proferida em 24 de Julho de 2008, transitada em julgado.
Tendo em vista que estamos perante vários crimes que foram praticados antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, o tribunal recorrido entendeu estarem verificados os requisitos para operar o cúmulo de penas.
Procedeu-se, então, a audiência nos termos do disposto no artigo 472.º, n.º1, após o que, por sentença, decidiu-se operar o cúmulo jurídico das penas de multa parcelares. Quanto às penas acessórias, entendeu-se não serem cumuláveis juridicamente, mas apenas materialmente.

2. Como já se disse, o que se debate no presente recurso é se as penas acessórias – designadamente as penas de proibição de conduzir veículos com motor, previstas no artigo 69.º do Código Penal – devem ou não ser cumuláveis juridicamente segundo o critério estabelecido no n.º1 do artigo 77.º do Código Penal.
A esta questão respondeu negativamente a Relação do Porto, em acórdão de 11 de Outubro de 2006 (C.J., Ano XXXI, IV, p. 202 e ss.), expressamente invocado na sentença recorrida.
Para fundamentar tal posição, estriba-se o referido aresto na diversidade de objectivos que se pretendem atingir ao aplicar a sanção acessória ou a pena principal e no disposto no artigo 77.º, n.º4, do Código Penal, ao estabelecer que «as penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis». E acrescenta: «Mas, o entendimento da inadmissibilidade do cúmulo jurídico das sanções acessórias também resulta do n.º3 do art. 78.º, referindo que “as penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na sentença anterior mantêm-se, salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão (…)”».
Conclui-se, assim, nesse acórdão:
«Em suma, do disposto nos citados arts. 77.º, n.º4, e 78.º, n.º3, ambos do Cód. Penal, resulta não poder haver cúmulo jurídico das várias sanções acessórias aplicadas, sanções que, nos termos daqueles preceitos, “mantêm-se” e “são sempre aplicadas ao agente” e, por conseguinte, o arguido terá de cumpri-las sucessiva e integralmente, de acordo com as várias sentenças condenatórias proferidas».

3. Com o devido respeito pelo entendimento expresso no citado acórdão, perfilhamos a posição de que são aplicáveis as regras do cúmulo jurídico de penas, estabelecidas nos artigos 77.º e 78.º do Código Penal, ao concurso de penas acessórias.
Passamos a fundamentar este entendimento.
3.1. Não vem questionada a existência de uma relação de concurso entre os vários crimes de condução em estado de embriaguez a que se reporta a sentença recorrida, mas tão-só a aplicabilidade das regras do cúmulo jurídico às respectivas penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor.
A sentença recorrida estriba-se, essencialmente, no elemento literal do n.º4 do artigo 77.º e do n.º3 do artigo 78.º, ambos do Código Penal.
No primeiro dispõe-se que «as penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis», enquanto no segundo se prescreve que «as penas acessórias e as medidas de segurança aplicadas na sentença anterior mantêm-se, salvo quando se mostrarem desnecessárias em vista da nova decisão; se forem aplicáveis apenas ao crime que falta apreciar só são decretadas se ainda forem necessárias em face da decisão anterior».
Porém, como salienta o Prof. Faria Costa, «a tarefa de interpretação penal apenas se inicia com o recurso àquele elemento hermenêutico, o texto-norma – por certo importante, mas, seguramente, não o único para se levar a cabo uma consequente, adequada e correcta interpretação (…)» (“Penas acessórias: cúmulo jurídico ou cúmulo material, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 136.º, n.º 3945, Julho-Agosto 2007, p. 323).
As penas acessórias são penas que se contrapõem às principais, porquanto estas últimas são enunciadas pelo legislador nas normas incriminadoras a fim de com elas sancionar, directa e independentemente de qualquer outra, os diferentes tipos de crime. Diversamente, as penas acessórias são aquelas que só podem ser aplicadas se for também aplicada uma pena principal, ou seja, juntamente com uma pena principal.
Escreve o Prof. Faria Costa (ob. cit., 323 e ss.):
«A pena acessória é uma pena e como pena que é, apresenta-se como consequência jurídica de um restrito número de factos típicos com relevância penal, residindo a sua especificidade no facto de a sua aplicação se encontrar inexoravelmente dependente da aplicação da pena principal. Não obstante a necessidade desta condição formal, de que não se pode prescindir em caso algum, ela é, por si só, insuficiente, porquanto a sua aplicação há-de ainda encontrar justificação em uma razão material ou substancial, qual seja um particular conteúdo de ilícito que justifique materialmente a sua aplicação. Isto é, através delas tem-se como objectivo dirigir ao condenado uma especial censura pelas circunstâncias em que o crime foi praticado.»
E acrescenta, mais adiante:
«Tudo depende do crime que foi cometido. Tudo depende se a sua aplicação se revela ou não necessária face à concretude do caso. Todavia, saber se elas serão ou não aplicadas não é qualquer coisa que se encontre prevista na lei, de uma forma abstracta, mas é, sim, questão que está na dependência do julgador, quando, através de um juízo discricionário, descobre, na conduta do agente, o particular conteúdo de ilícito que justifica a censura adicional ínsita na pena acessória. Por princípio, rejeitamos assim qualquer pena acessória que seja aplicada de uma forma automática ou necessária, logo que o agente seja condenado pela prática de determinados crimes. Daí que nos mereça alguma dúvida a formulação dada ao artigo 69.º do CP (proibição de conduzir veículos com motor), parecendo que o legislador a assumiu com um traço muito para além daquele que caracteriza as penas acessórias.»
Quer isto dizer que o insigne autor identifica na formulação legal do artigo 69.º traços que particularizam a pena de proibição de conduzir veículos com motor no quadro das penas acessórias.
Embora a proibição de conduzir veículos com motor fosse um instituto já conhecido no ordenamento jurídico português (no Código da Estrada e em leis extravagantes), esta sanção alcançou, a partir da revisão do Código Penal realizada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, um estatuto bem diferente, sendo introduzida no artigo 69º do Código e inserida no seu Capítulo III, do Título III, do Livro I, que tem como epígrafe «Penas acessórias e efeitos das penas».
Anteriormente, já o Prof. Figueiredo Dias sustentava a necessidade e a urgência político-criminais de que o sistema sancionatório português passasse a dispor de uma verdadeira pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, sujeita a determinados pressupostos formais e a um pressuposto material que se consubstanciava em, «consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável.» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Aequitas, 1993, p. 165).
Porém, a partir da redacção do artigo 69.º que foi introduzida pela Lei n.º 77/2001, de 13 de Julho, em que desapareceu, pelo menos no que respeita à actual alínea a) do n.º 1 – referente a quem for punido por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º - a menção expressa a qualquer pressuposto material para além da condenação por esses crimes, há que reconhecer que tal pena acessória assumiu uma configuração especial, pois não depende de quaisquer outras circunstâncias que justifiquem a necessidade da sua aplicação, sendo sempre aplicada cumulativamente com a pena principal aplicada aos crimes enumerados no n.º1 do referido artigo. Daí que, sem que se questione a sua classificação como pena acessória, se destaque a sua especificidade em relação às penas acessórias em geral, como uma verdadeira pena acessória cumulativa (Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, III, 2008, p. 82), ou como uma pena complementar da pena de prisão ou multa cominada no artigo 292º, aplicável sempre que existir condenação por este crime (neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 16 de Dezembro de 2002, Proc. 6956/2002-3, www.dgsi.pt).

4. Sem esquecer a distinção que importa fazer entre penas acessórias e efeitos das penas, matéria em que tem reinado muita confusão (ver, a este propósito, Figueiredo Dias, ob. cit., p. 157 e ss.), inclusivamente por parte do legislador, certo é que não se questiona, presentemente, a classificação como pena da proibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69.º do Código Penal, cujo n.º1 estabelece a respectiva moldura abstracta.
Como pena acessória (diga-se acessória cumulativa ou complementar, pelas razões acima descritas) assenta no pressuposto formal da condenação do agente numa pena principal por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º do Código Penal, ou por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante, ou por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, sendo que, dentro do limite da culpa, desempenha um efeito de prevenção geral de intimidação e um efeito de prevenção especial para emenda cívica do condutor imprudente ou leviano, cumprindo, assim, uma função preventiva adjuvante da pena principal e tendo por fim (mediato) a tutela dos bens jurídicos subjacentes ao tipo de crime praticado.
Atente-se que o Acórdão do Pleno das Secções Criminais do S.T.J. n.º 5/99 do STJ (DR I.ª Série-A de 20 de Julho de 1999) fixou jurisprudência no seguinte sentido: «O agente do crime de condução em estado de embriaguez previsto e punido pelo artigo 292.º do Código Penal, deve ser sancionado, a título de pena acessória, com a proibição de conduzir prevista no art. 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal».
A proibição de conduzir decretada nos termos do citado artigo 69.º, n.º 1, pressupõe, como ocorre com qualquer pena, a intervenção mediadora do Juiz, que atendendo, ao circunstancialismo do caso e perante a avaliação da culpa do agente, deve fixar a sua concreta duração.
Quer isto dizer que a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, tal como a pena de prisão e a multa, deve ser graduada dentro dos limites legais, ou seja, entre 3 meses e 3 anos, atendendo aos critérios e factores mencionados no artigo 71.º do Código Penal vigente, ou seja, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tendo por base “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”. Ambas as penas – principal e acessória – assentam num juízo de censura global pelo crime praticado, remetendo a sua determinação concreta para os critérios do referido normativo.
Salienta Faria Costa:
«Mais: se estamos a tratar de uma verdadeira pena, então a sua medida é sempre a medida da culpa e toda a medida da pena que ultrapasse a medida da culpa é absolutamente ilegal, e, logo, o que se pretende em última análise é que na aplicação concreta da medida da pena, levando em linha de conta a moldura penal abstracta, se encontrem presentes os princípios da perequação dos mínimos e máximos. Em termos legais, estas duas ideias acabadas de expender encontram-se previstas nos artigos 40.º, n.º 2, e 71.º, ambos do CP. Não há, como se está a ver, razão alguma para que esse raciocínio não seja válido para as penas acessórias. E efectivamente é-o, sendo consensual, no seio da doutrina e da jurisprudência, que a medida da pena acessória é igualmente encontrada através daqueles critérios.» (ob. cit., p. 326).

5. Aqui chegados, entendida a «proibição de conduzir veículos com motor» como uma verdadeira pena, não se alcança qualquer razão válida para que não esteja subordinada ao regime do cúmulo jurídico de penas.
Tendo o Código Penal português escolhido o sistema não da pena unitária, mas sim o da pena conjunta como resultado do cúmulo jurídico efectuado – dentro da moldura penal abstracta que se há-de encontrar para os factos em relação de concurso -, não vemos como afastar tal sistema no caso de concurso de penas acessórias.
Escreve, sobre esta matéria, Faria Costa:
«Sendo estes os limites com que o julgador irá trabalhar, fácil é de ver que, dentro deles, se encontra espaço suficiente para chegar à pena justa. Acresce que a não ser assim encontrada a pena, a função do artigo 71.º, muito especialmente na parte em que tal determinação legal manda atender a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, pese embora o facto de não fazerem parte do tipo legal de crime, encontrar-se-ia truncada, pelo menos parcialmente, na sua ratio. A não ser assim - repete-se enfaticamente - não se cumpria, através do julgamento judicial, o direito que cada con­denado tem à pena justa.
Fechemos o parêntesis e liguemos, neste momento, a ideia que nele deixámos ao tema em análise: a pena acessória é uma verdadeira pena. E, tratando-se de uma verdadeira pena, não vemos como as considerações acabadas de expender não devam igualmente valer para elas. Isto é, encontrando-se dois ou mais crimes em relação de concurso efectivo e revelando-se necessário aplicar em pelo menos dois daqueles uma pena acessória de igual espécie em cada um deles, só o sistema do cúmulo jurídico se revela consentâneo na escolha da pena acessória única. Derradeiramente, exigências de culpa, exigências de reintegração social e até mesmo de justa retribuição, obrigam o julgador a operar não o cúmulo material, mas sim o jurídico, porque só assim, com uma moldura penal abstracta da pena acessória encontrada nos termos do n. ° 2 do artigo 77.° do CP, o julgador se pode afastar de uma pena fixa, igual à soma aritmética de todas as penas parcelares. Só desse modo o julgador conseguirá uma verdadeira individualização da sanção penal que não seja redutora da complexidade do caso concreto, encaminhando-se, então, para uma pena acessória justa porque respeitadora dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.»
E logo a seguir, refutando a comparação com o regime estradal:
«Impõe-se ainda refutar um outro argumento contra o funcionamento das regras do cúmulo jurídico no âmbito das penas acessórias. Não colhe - pelo menos para nós ­ que, em última análise, seja mais benéfico, sob o ponto de vista do condenado, o regime do cúmulo jurídico - que defendemos para as penas acessórias -, do que o regime legal de algumas contra-ordenações, que consagra, no tocante às sanções acessórias, a regra do cúmulo material. E não colhe pelo seguinte: porque o desvalor e a reprovação social que merece aquele que praticou um ilícito criminal deve ser sempre maior do que o desvalor e a reprovação social dado aqueloutro que praticou uma contra-ordenação. E muito especialmente porque estando em causa dois ordenamentos jurídicos sancionatórios de gravidade material tão desigual, por certo que as molduras penais abstractas previstas no CP terão de ser sempre mais gravosas do que as das sanções acessórias. Portanto, por aqui se frustra, de imediato, a hipótese de a pena acessória vir a ser inferior à sanção acessória. A não ser assim, a não se espelhar essa diferença de valoração também nas molduras penais dos dois ordenamentos, a não se revelar a maior ofensividade da censura jurídica no crime do que na contra-ordenação, por certo também aqui haveria violação do princípio da igualdade e, em última análise, do princípio da perequação. Não colhe ainda porque a pena a aplicar em concreto, depois de efectuada a operação do cúmulo jurídico, pode perfeitamente ser igual - ou pelo menos ser praticamente igual - à pena a que se chega através do funcionamento das regras do cúmulo material.
Refira-se, por último, que, em bom rigor interpretativo, mesmo com recurso ao elemento gramatical ou literal daqueles artigos, não vemos como se possa daí retirar - de uma forma límpida e clara - a não aplicação das regras do cúmulo jurídico no âmbito das penas acessórias da mesma espécie. Isto é: se, por um lado, dali não se retira, inequivocamente, a aplicação do sistema do cúmulo jurídico, por outro, também não se retira, de uma forma que não deixe margem para dúvidas, o seu contrário.
É inconsistente, por conseguinte, o argumento literal que se quer extrair dos artigos 77.°, n.º 4, e 78.°, n.º 4, e inconsistente e frágil porque afastado, já o vimos, pelos restantes cânones interpretativos.»
No plano jurisprudencial, o Acórdão da Relação de Lisboa de 25 de Junho de 2003 (C.J., Ano XXVIII, III, p. 144) e o Acórdão do S.T.J. de 21 de Junho de 2006 (C.J., Acs. S.T.J., Ano XIV, II, 223) sustentaram, já, a aplicação das regras do cúmulo jurídico de penas ao concurso de penas acessórias, com argumentos que merecem a nossa concordância.

6. Em conclusão: as penas acessórias, designadamente as de proibição de conduzir veículos com motor, são cumuláveis juridicamente segundo o critério estabelecido no n.º1 do artigo 77.º do Código Penal, ainda que se trate de conhecimento superveniente.
Revertendo ao caso concreto, em que a sentença recorrida apenas não operou o cúmulo jurídico dessas penas por entender que não seria legalmente admissível, verificando-se que tal inadmissibilidade não ocorre, haverá, apenas, que proceder a esse cúmulo, dentro de uma moldura abstracta com um mínimo de 6 meses e um máximo de 9 meses.
Reapreciando os factos e a personalidade do arguido, avultando a grande proximidade temporal dos mesmos, no quadro das exigências de prevenção que se fazem sentir, entendemos adequada a pena acessória (única) de oito meses de proibição de conduzir veículos motorizados.


III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, procedendo ao cúmulo jurídico das penas acessórias parcelares aplicadas ao arguido B..., condená-lo na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 8 (oito) meses, no mais se mantendo o decidido pela 1.ª instância.

Sem tributação.


Coimbra,
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


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(Jorge Gonçalves)

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(Jorge Raposo)