Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ISABEL FONSECA | ||
Descritores: | LETRA DE CÂMBIO REFORMA DE LETRA NOVAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 06/23/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | SÃO PEDRO DO SUL | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 217º E 859º DO CÓD. CIVIL | ||
Sumário: | Reformada uma letra – operação que ocorre quando se substitui esse título cambiário por outro, sendo que, usualmente, a ratio desse procedimento está em diferir o prazo de pagamento consignado no título, estando muitas vezes associada, também, a pagamentos parciais da dívida –, só é legítimo concluir pela extinção da primitiva obrigação cambiária, por novação, e constituição de uma nova, quando a vontade de novar se manifeste de forma expressa, ainda que não se exija formalidade específica para o efeito. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
I. RELATÓRIO Por apenso à execução que A... intentou contra B... , veio o executado deduzir oposição à execução invocando, em síntese, que: A letra que constitui o título executivo, no valor de 18.475 euros, com vencimento em 19.6.04, foi subscrita pelo executado por mero favor, pois que a sua emissão tinha por finalidade garantir uma dívida de C... para com a exequente. Tal letra foi sucessivamente reformada por outras, estando parcialmente paga, e perdeu eficácia pela constituição de nova obrigação cambiária em substituição da antiga, não tendo o exequente devolvido as letras reformadas sempre sob a alegação de que ainda estavam no banco aquando das reformas. A exequente foi lançando na conta corrente do dito C... as despesas ocasionadas com letras aceites por terceiros e, porque estes não dessem garantia de cobrança à exequente, veio esta dar à execução uma das letras já reformadas, cujo valor se aproximava do débito da conta corrente do referido C.... A exequente lançou na dita conta corrente, até 17.11.04, os juros e despesas de letras já reformadas, pelo que ao peticionar o pagamento de juros moratórios desde a data do vencimento da letra dada à execução, encontra-se a exequente a duplicar o seu pedido de juros. Conclui peticionando a extinção da execução de que os autos dependem, bem como a condenação da exequente como litigante de má-fé. A exequente contestou, impugnando a factualidade invocada no requerimento inicial. Proferiu-se despacho saneador, com selecção da matéria assente e base instrutória, objecto de reclamação, que foi deferida. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e respondeu-se aos quesitos, sem reclamações. Proferiu-se sentença, que concluiu nos seguintes termos: “Julgo a presente oposição parcialmente procedente, já que: a) Declaro que a letra dada à execução já foi parcialmente paga, pelo montante de 2.700 euros, pelo que a título de capital somente se encontra em dívida a importância de 15.775 euros; b) Em consequência declaro extinta a execução na medida do pagamento da letra exequenda tal como referido em a). c) Absolvo a exequente do demais peticionado, designadamente da sua condenação como litigante de má-fé. * Custas pelo executado/oponente e pela exequente, na proporção de ¾ e ¼, respectivamente - artº 446º, nºs 1 e 2 do CPC.” Não se conformando, o executado opoente recorreu, peticionando a revogação da sentença e o arquivamento da execução, condenando-se o exequente como litigante de má fé ou que seja ordenada a “ampliação da matéria de facto e repetição do julgamento”. Formula as seguintes conclusões: “a) A reforma de uma letra significa a substituição de uma letra vencida e não paga integralmente por uma outra igual ou inferior valor, com nova data de vencimento. b) Quando é o caso da substituição por valor inferior, a reforma da letra constitui uma operação complexa, em que figura não só a substituição da letra mas, também, o pagamento da reforma, isto é, da diferença entre a letra reformada e a letra de reforma. c) Aquela operação jurídico-cambiária só se deve dar como perfeita quando as duas sub-operações estiverem realizadas. d) Assim consumada a operação de reforma de uma letra antiga por uma nova em substituição daquela, opera a novação da obrigação cambiária antiga pela nova, extinguindo-se aquela, que, assim, deixa de integrar qualquer obrigação e, portanto, de constitutir título executivo. De qualquer modo, e) Provado que: - A letra de fls. 12 do procedimento executivo em apenso, sacada pela exequente e aceite pelo executado, datada de 19-04-04, no valor de 18.475 euros, com vencimento em 19-06-04. - Para “reforma” da letra referida em A) o executado aceitou uma outra letra de 15.775 euros. - Foi pago à exequente a diferença entre as letras referidas em A) e C). E resultando assim e ainda dos autos que: - houve acordo na substituição das letras – envio e aceitação, - a exequente, antes de executada a letra dos autos, por 2 escritos, exigiu ao executado o pagamento da letra de 15.775 euros, da qual consta a menção “Reforma do aceite de 18.475,00 euros”, - a exequente apresentou a desconto esta letra de 15.775 euros, f) resulta demonstrado um verdadeiro animus novandi e não uma mera datio pro solvendo, sendo que, g) a entender-se que é necessária à integração do conceito de novação e não resulta provada nos autos a matéria de facto referida em e) das conclusões supra, então deverá ordenar-se a ampliação da matéria de facto e repetição de julgamento, baixando os autos à 1ª instância. Não foram apresentadas contra alegações. Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II. FUNDAMENTOS DE FACTO A 1ª instância deu por provada a seguinte factualidade: A letra de fl. 12 do procedimento executivo em apenso, sacada pela exequente e aceite pelo executado, datada de 19.4.04, no valor de 18.475 euros, com vencimento em 19.6.04 (alínea A) dos factos assentes). Tal letra destinava-se a garantir o pagamento de uma dívida de C... para com a exequente (alínea B) dos factos assentes). Para “reforma” da letra referida em A) o executado aceitou uma outra letra de 15.775 euros (alínea C) dos factos assentes). Para “reforma” da letra referida em C) o executado aceitou uma outra letra de 13.075 euros (alínea D) dos factos assentes). Foi pago à exequente a diferença entre as letras referidas em A) e C) (resposta ao quesito1º). A letra referida em A) englobava parte da dívida que C... tinha para com a exequente (resposta ao quesito 3º).
III FUNDAMENTOS DE DIREITO 1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C. – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 664 do mesmo diploma. Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, está em causa saber se a reforma de uma letra opera a novação da obrigação e, em segundo plano, se se justifica a ampliação da base instrutória, conforme pretende o recorrente.
2. À primeira questão reportada tem a jurisprudência e doutrina respondido de forma nem sempre uniforme. Temos para nós como melhor solução a que considera que, reformada uma letra – operação que ocorre quando se substitui esse título cambiário por outro, sendo que, usualmente, a ratio desse procedimento está em diferir o prazo de pagamento consignado no título, estando muitas vezes associada, também, a pagamentos parciais da dívida –, só é legítimo concluir pela extinção da primitiva obrigação cambiária, por novação, e constituição de uma nova, quando a vontade de novar se manifeste de forma expressa, ainda que não se exija formalidade específica para o efeito [ [1] ]. Efectivamente, nos termos do art. 859º do Cód. Civil – diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem – “a vontade de contrair uma nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada”, aferindo-se o conceito de declaração expressa de acordo com o disposto no art. 217º e por confronto com a “declaração tácita”: a declaração é expressa “quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação de vontade” e “tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam”. O animus novandi é, precisamente, um dos casos em que a lei exige que a vontade seja expressamente exteriorizada, não bastando, portanto, a verificação de factos indiciadores de comportamento concludente. Ou seja, admitindo-se, a partir do art. 217º, “a formação de negócios jurídicos na base de declarações tácitas” [ [2] ], a novação configura uma hipótese em que não é legítimo assim considerar. Como também não basta que estejamos perante uma declaração clara e unívoca, partilhando-se, pois, a posição sustentada por Antunes Varela quando, criticando Vaz Serra, refere que “é expressa a declaração quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, nos termos do nº 1 do art. 217º” [ [3] ]. No contexto assinalado, não pode aceitar-se a posição do apelante, que faz decorrer a intenção de novar não de qualquer declaração dos contraentes nesse sentido, mas apenas de um dado objectivo, traduzido no facto das partes terem procedido à reforma da letra, ou seja, parte do pressuposto que constitui essência da operação de reforma da letra a novação da obrigação e, portanto, a extinção da primitiva. Tanto mais que, como obviamente decorre do processo, não foi entregue ao executado aceitante a primitiva letra que, ao invés, foi apresentada à execução, constituindo o título executivo. Efectivamente, a jurisprudência vem considerando que a devolução dos títulos reformados constitui um meio directo de manifestação da vontade de novar. Concordamos, pois, com o Sr. juiz, quando conclui da seguinte forma: “Assim, na ausência de tal expressa declaração de novação, isto é, em face da não demonstração da emergência de um animus novandi, a reforma efectuada exprima uma mera datio pro solvendo, referindo-se por isso a letra reformada e a letra de reforma à mesma relação subjacente ou à satisfação de um único interesse patrimonial. E sendo um dos principais caracteres da obrigação cambiária aquele reconhecido como ‘princípio da incorporação’, segundo o qual o direito de crédito cambiário está como que compenetrado no documento, o pagamento parcial da letra não lhe retira validade como título executivo, precisamente porque, face à indemonstrada intenção de novação, a letra continua a incorporar o direito nela plasmado”. Improcedem, pois, as conclusões de recurso.
3. Assim considerando, então há que apreciar se foram levados à base instrutória todos os factos (articulados) pertinentes ao conhecimento do mérito da causa, ponderando as várias soluções plausíveis de direito. Efectivamente, em segunda linha, o recorrente pretende a ampliação da matéria de facto, salientando, expressamente, a matéria invocada nos arts. 7º, 9º, 14º, 16º e 17º do requerimento de oposição. Afasta-se, desde logo, a alegação que consubstancia matéria notoriamente conclusiva e que, portanto, nunca seria susceptível de ser levada à base instrutória, como acontece com a alegação vertida na 2º parte do art. 7º e no art. 17º do requerimento de oposição. Também nos parece indubitável que deve ter-se por assente – e não foi –, como o recorrente pretende, a factualidade invocada nos arts. 14º e 16º do requerimento inicial, com referência aos documentos nºs 12 e 13, juntos a fls. 24 e 25, ou seja, que foram enviadas ao executado tais cartas, com esse teor, cartas que o executado recebeu, salientando-se que na missiva enviada em 2 de Junho de 2005, o advogado do exequente interpela o executado ao pagamento da quantia “de 15.775,00 euros resultante de uma letra nº 500792887032865120, datada de 19/06/2004, com vencimento em 17/08/2004”, letra a que se volta a aludir na missiva de 02/05/2006, enviada pelo próprio exequente. Efectivamente, trata-se de factualidade que não foi impugnada, como resulta da análise da contestação. No entanto, ao contrário do que o apelante refere, nada nos autos permite concluir que o exequente “apresentou a desconto esta letra de 15.775 euros” – cfr. o art. 7º do requerimento inicial – o mesmo acontecendo quanto à letra de €13.075,00 referida na alínea D) dos factos assentes – cfr. o art. 9º do requerimento inicial. Também nada se sabe quanto à factualidade invocada no art. 9º do mesmo requerimento e alusiva ao motivo pelo qual não foram as letras “reformadas” devolvidas ao executado [ [4] ]. E será que essa factualidade é relevante? Parece-nos que não. Não há dúvida que o executado apenas pagou parcialmente a dívida titulada pela letra apresentada à execução, sendo certo que, na medida do que pagou, foi a oposição julgada procedente. Se o executado aceitou outras letras para reforma daquela que foi dada à execução, então daí decorre que qualquer actuação do exequente da qual resulte a possibilidade de colocação dessas letras em circulação e nas mãos de terceiros de boa fé é susceptível de configurar actuação abusiva da sua parte, com a correlativa obrigação de indemnizar o executado pelos eventuais prejuízos que lhe causar. Efectivamente, não será aceitável que o exequente exija aqui a cobrança coerciva da letra reformada e, em simultâneo, coloque as outras letras em circulação, arriscando-se o executado a ter de pagar a terceiros portadores de boa fé, relativamente aos quais é alheia a relação negocial estabelecida entre o exequente e o executado aceitante [ [5] ]. Esse circunstancialismo, no entanto, não é de molde a obstar à executoriedade do título aqui apresentado, não se vislumbrando elementos que permitam considerar o título ineficaz, como pretende o apelante. Não se justifica, portanto, a pretendida “ampliação da matéria de facto e repetição do julgamento, baixando os autos à 1ª instância”. * * * Conclusão Reformada uma letra – operação que ocorre quando se substitui esse título cambiário por outro, sendo que, usualmente, a ratio desse procedimento está em diferir o prazo de pagamento consignado no título, estando muitas vezes associada, também, a pagamentos parciais da dívida –, só é legítimo concluir pela extinção da primitiva obrigação cambiária, por novação, e constituição de uma nova, quando a vontade de novar se manifeste de forma expressa, ainda que não se exija formalidade específica para o efeito. * * *
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida. Custas pelo apelante. Notifique.
Em sentido contrário, considerando que a reforma de uma letra antiga por uma nova em substituição daquela opera a novação da obrigação cambiária antiga pela nova, extinguindo-se aquela, que, assim, deixa de integrar qualquer obrigação e, portanto, de constituir título executivo, vejam-se os Acs. STJ de 13/02/1996, processo 087805 (Relator: Metelo de Nápoles) e de 03/03/1998, processo 98B033 (Relator: Lúcio Teixeira), todos acessíveis in www.dgsi.pt. [3] Escreve o autor (Código Civil Anotado, vol. II, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1981, p.131: “Era esta já esta a doutrina do Código de 1867 (cfr. art. 803º). E pareceu conveniente não a alterar, não obstante Vaz Serra, por inspiração dos Códigos Francês (art. 1273º) e italiano (art. 1230º), ter sugerido que se substituísse a declaração expressa por uma declaração claramente manifestada (est. cit., nota 74). Esta fórmula seria bastante mais imprecisa do que a do Código de 1867. Não se viu, por isso, qualquer vantagem na substituição, devendo considerar-se manifestamente contrária à determinação da lei a tese sustentada por Vaz Serra, ao arrepio do texto do art. 859º e dos trabalhos preparatórios, de que a vontade de novar não precisa de ser manifestada expressa ou directamente, bastando que seja clara ou inequívoca”. |