Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
718/18.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE FACTO
ÓNUS DE ESPECIFICAÇÃO
CONTRADIÇÃO DE FACTO
CASO JULGADO
FUNDAMENTOS DE FACTO
FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS COMPLEMENTARES
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
OBRAS
ABUSO DE DIREITO
SUPPRESSIO
Data do Acordão: 10/20/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 5, 580, 581, 619, 640 CPC, 334, 1036, 1043, 1083 CC
Sumário: 1. Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, designadamente os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas que tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda.

2. A omissão desse ónus, imposto no referido artigo, implica a rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, não se satisfazendo o mesmo com a menção que a declaração de parte está gravada no sistema digital, ou com a indicação do início aos … e termo aos … (sendo que no caso nem existe transcrição de tais declarações);

3. Sobre este último ónus, o texto da lei e a sua interpretação histórico-actualista, repudiam interpretações facilitistas, que no fundo degeneram em violação: do princípio da igualdade das partes - ao não tratar diferentemente o cumprimento ostensivamente defeituoso da lei adjectiva, pois se há partes que podem cumprir esse ónus e o cumprem, porque razão se haveria de dar igual tratamento a quem não o faz ! -; do princípio do contraditório - por impor à parte contrária um esforço excessivo e não previsto na tarefa de defesa, imputável ao transgressor -; e do princípio da colaboração com o tribunal - por razões análogas, mas reportadas ao julgador.

4. Sendo de rejeitar, também, interpretações complacentes, que se contentam com a indicação do depoimento e identificação de quem o prestou, sem obrigatoriedade de transcrição; com a fixação electrónica/digital do início e fim dos depoimentos e a transcrição dos excertos relevantes; já que a não ser assim há excesso de formalismo que a dogmática processual rejeita; a não ser assim não se respeita o princípio da proporcionalidade.

5. Na verdade, a 1ª interpretação faz tábua rasa do texto legal, relevando dois elementos que a lei não enumerou e “apagando” a passagem nuclear do texto legal “indicação com exactidão das passagens da gravação”; a 2ª interpretação, obnubila também tal trecho legal, pois que apenas releva o fim e início da gravação, acabando por não observar o cumprimento do verdadeiro requisito legal, e por outro lado, passa a requisito de cumprimento obrigatório um elemento – a transcrição dos excertos relevantes – que a lei expressamente vê como facultativo; a 3ª interpretação, não contém objecção de relevo pois a exigência de formalismo nada tem de extraordinário, como o tribunal constitucional já sinalizou; e na 4ª interpretação não se divisa ofensa da exigência de proporcionalidade, pois que, na sua tridimensionalidade de onerosidade, dificuldade e gravidade das consequências, o cumprimento rigoroso da lei, quanto ao indicado requisito de impugnação da matéria de facto, não é oneroso e é de fácil execução, não sendo anómala, no seu incumprimento, a respectiva rejeição do recurso

6. Resposta contraditória à matéria de facto é aquela que deriva da oposição entre as respostas dadas a pontos de factos controvertidos ou com factos já considerados assentes; ou seja, as respostas são contraditórias quando têm um conteúdo logicamente incompatível, quando não podem subsistir ambas utilmente, entrando em colisão uma com a outra.

7. O caso julgado não cobre os factos apurados numa sentença proferida para serem importados para outra sentença, ou seja, não podem ser importados directa e automaticamente de um processo para outro, já que o alcance do caso julgado não os cobre, antes abrangendo, apenas, o decidido (e os fundamentos absolutamente necessários conducentes a tal decisão).

8. Se os factos que se pretendem sejam dados por provados tiverem, a natureza de principais essenciais e não foram alegados pela parte respectiva não podem ser considerados em impugnação da decisão da matéria de facto, sob pena de violação do disposto no art. 5º, nº 1, do NCPC; se tiverem a natureza de factos principais concretizadores ou complementares e resultarem da instrução da causa e que as partes conheceram, só podem ser considerados, nos termos do art. 5º, nº 2, b), do NCPC, se o julgador avisar as partes que está disponível para os considerar factualmente ou as partes requereram que tal aconteça e assim possa haver lugar ao exercício do respectivo contraditório.

9. Se a R./locatária faz obras no locado, sem autorização do senhorio e no decurso das mesmas origina a demolição de uma das abóbodas existentes no tecto do locado, provocando a cedência do chão do piso de cima, onde se encontrava a abóboda, verifica-se causa justificativa para o senhorio resolver o contrato ao abrigo do art. 1083º, nº 2, do CC.

10. Tais obras não podem ser justificadas com a urgência prevista no art. 1036º, nº 2, do CC, para as reparações, se o risco iminente de desabamento da abóboda apenas foi apurado já no decurso das obras; o que significa que as mesmas, inicialmente com o objectivo de resolver problemas de humidade numa das paredes, foram iniciadas sem que a R./locatária sequer cogitasse qualquer situação de urgência;

11. De entre as modalidades que a figura vasta do abuso de direito abarca a denominada suppressio corresponde ao seguinte: perderia a sua posição jurídica a pessoa que não a exerça por um período de tempo e em circunstâncias tais que não mais seja de esperar qualquer exercício;

12. A suppressio redunda num modelo de confiança destinado a proteger um determinado beneficiário com as proposições seguintes: - um não exercício prolongado; uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança; um investimento de confiança; a imputação da confiança ao não exercente do direito. Para tanto há que considerar as circunstâncias do caso concreto e ver se existem indícios objectivos de que o direito em causa não será exercido.

13. Se no caso dos autos se verifica apenas o singelo facto do decurso do prazo de 7 anos, despido do apuramento de outras circunstâncias nem se desvelaram indícios objectivos de que os AA não exerceriam o seu direito à resolução do contrato, não é possível concluir que os AA, ao terem exercitado tal direito, estão a exercer ilegitimamente o mesmo, estão a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé (como determina o art. 334º do CC).

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

 

1. A (…), viúva, e seus filhos, P (…), solteiro, L (…), solteiro, todos residentes nas (...) , e H (…) casado, residente em (...) , intentaram acção declarativa contra “P (…) LDA”, com sede em (...) , peticionando que seja a R. condenada:

a) a despejar o local arrendado, entregando-o aos autores devoluto de todos os entulhos e quaisquer bens que ainda lá possa ter;

b) a pagar aos autores a quantia de 40.996,18 €, a título de indemnização pelos danos causados no local arrendado, e a quantia de 15.000 €, a título de rendas vencidas e não pagas nos últimos cinco anos, tudo no total de 55.996,18 €;

c) a pagar aos autores, a título de indemnização pelo atraso na restituição do locado, o dobro do valor das rendas que se vencerem após citação e até entrega efectiva do local arrendado, tudo acrescido de juros à taxa legal.

Alegaram, em suma, serem donos de fracção urbana, que identificam, sendo a ré arrendatária do mesmo, onde estava instalado o estabelecimento comercial “Restaurante (…)”. Que sem qualquer autorização dos autores, sem licença da Câmara Municipal e sem autorização da actual DGPC (Direção Geral do Património Cultural), a ré fez obras no local, que provocaram vários danos, cuja reabilitação vai custar 40.996,18 € (a que acrescerá o IVA). Desde a data em que iniciou as obras, em Setembro de 2011, até hoje, a ré mantém encerrado o estabelecimento e nunca mais exerceu nele qualquer actividade. E desde a mesma data até hoje a R. deixou de pagar a renda mensal no valor de 250€.

A ré contestou, alegando, em síntese, que o prédio se encontrava há largas décadas em mau estado de conservação. Apenas pretendia substituir a parede de pladur que montou para revestir uma das paredes do locado, a fim de tentar reduzir a humidade nela preexistentes (e decorrentes da má conservação do imóvel). Porém verificou um abaulamento da referida parede, adentro do espaço de serviço e que colocava em risco o móvel (estante/louceiro/garrafeira) que se encontrava nela apoiado e o lavatório das mãos, para além do impacto estético. Uma vez que tal obra inicial tinha sido autorizada pelos senhorios na pessoa de A (…) e acordado o seu custo a expensas da ré, tratou de providenciar pela sua reparação. Todavia, quando retirado o pladur, constatou que a parede se encontrava impregnada de salitre, sendo, por isso, aconselhável e necessário para uma limpeza adequada e duradora do salitre, a limpeza da parede através da picagem e aplicação de anti-salitre e posterior reboco com adição de anti-salitre. Sucede, porém, que no processo de picagem da parede impregnada de salitre, a ré foi alertada pelo empreiteiro a quem contratou a realização da obra sobre o péssimo estado das abóbodas. Foi, por isso,  aconselhada, por razões de segurança, com urgência, a picar as abóbodas de forma a poder verificar a verdadeira dimensão das fissuras e a suspeita de insegurança, tendo sido por esse motivo que foi retirado o reboco de uma das abóbadas, vindo a descobrir fendas enormes. Constatou ainda que outra das abóbadas se encontrava em estado ainda pior, pelo que contactou uma Engª Civil, que aconselhou uma demolição “controlada” da mesma, o que a R. fez. Que em virtude de ir ficar privada do uso do seu estabelecimento comercial até decisão de reconstrução da abóboda demolida e reabilitação da outra (e possivelmente das restantes), ficou acordado com os autores, na pessoa da referida A (...) , que até que se decidisse - de entre os proprietários e a Câmara – a quem e/ou em que medida era imputável tal custo não haveria lugar  ao pagamento de rendas.

Deduziu, ainda, pedido reconvencional, no qual impetra que sejam os autores condenados a:

a) Reconhecer que a substituição/reparação/reabilitação das quatro abóbodas é obra da sua responsabilidade enquanto proprietários e senhorios do locado identificado nos autos;

b) Efetuar, a suas expensas, a reabilitação/substituição das quatro abóbodas existentes no locado onde se encontra instalado o estabelecimento comercial da Ré.

Os autores replicaram, afiançando que depois de ter tomado o trespasse do locado, a ré nunca solicitou quaisquer obras, sendo que nenhum dos relatórios ou vistorias efetuados antes de, no local a mesma ter feito obras, concluiu pelo mau estado de conservação do locado. Nunca deram autorização à ré para fazer quaisquer obras no locado, nem este pediu qualquer autorização para esse efeito. Concluiu que todos os danos causados no restaurante da ré foram causados pelo comportamento abusivo e negligente da mesma, pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.

Foi admitido o pedido reconvencional formulado.

*

A final foi proferida sentença que decidiu:

a) Declarar resolvido o contrato de arrendamento entre AA e R., condenado a R. a entregar o locado aos AA, devoluto de todos os entulhos e quaisquer bens que ainda lá possa ter;

b) Condenar a R. a pagar aos AA da quantia de 6.149,43 €, a título de indemnização pelos danos causados no local arrendado, valor a que acrescerão juros de mora à taxa legal para as operações civis, desde a citação até efectivo e integral pagamento;

c) Condenar a R. a pagar aos AA, a título de indemnização pelo atraso na restituição do locado, o valor das rendas (250 €) que se vencerem desde a prolação da presente sentença até efectiva entrega do locado;

d) Julgar improcedente o demais peticionado na p.i. e na reconvenção;

e) Condenar os AA, enquanto litigantes de má fé, no pagamento de multa fixada em 6 UC’s.

*

2. A R. recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

3. A A. contra-alegou, concluindo que:

(…)

II – Factos Provados

1. Encontra-se registada a favor dos AA., a fracção “D” do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º 1117, da freguesia de (...) , e inscrito na matriz da união de freguesias de (...) e (...) sob o artigo 891, antes artigo 1688, da freguesia de (...) , pela Ap. 2101 de 2018/01/24.

2. Pelo menos desde 29/5/1987 que a referida fracção se encontrava “arrendada” à sociedade “M (…)Lda.”, que nela explorava o “Restaurante (…)

3. Em execução fiscal contra a referida “M (…), Lda.”, o “direito ao trespasse e arrendamento” do estabelecimento “Restaurante (…) foi adquirido, em 9/9/2005, por (…).

4. Por escrito particular denominado “Contrato de Trespasse”, datado de 15 de Setembro de 2005, celebrado entre o referido R (…) e a sociedade “P (…)Lda”, aqui Ré, o primeiro declara vender à segunda, que declara comprar, “o direito ao trespasse de estabelecimento comercial” do estabelecimento comercial referido nos pontos anteriores.

5. O prédio de que faz parte a fracção “D” é um prédio que se encontra dentro da Zona Especial de Protecção (ZEP) do Mosteiro de (...) .

6. O tecto da parte do restaurante destinada a sala de refeições, com duplo pé direito, é constituído por quatro abóbadas em alvenaria de tijolo maciço.

7. Sem qualquer autorização dos Autores, a Ré decidiu fazer obras na fracção referida em 1., em Setembro de 2011.

8. A Ré iniciou as obras, que inicialmente passavam pela substituição de uma parede de pladur que montou para revestir uma das paredes do locado, a fim de tentar reduzir a humidade nela pré-existente.

9. No processo de picagem da parede impregnada de salitre, a Ré foi alertada pelo empreiteiro a quem contratou sobre o péssimo estado das abóbadas.

10. Tendo o empreiteiro alertado a Ré para as fissuras existentes nas abóbadas, que se notavam a olho nu no reboco, e que criavam a suspeita de se tratarem de fissuras graves.

11. Sob ordens da R., o empreiteiro picou as abóbadas de forma a poder verificar a verdadeira dimensão das fissuras e a suspeita de insegurança.

12. Assim procedendo e no decurso dessas obras, a Ré removeu o reboco das paredes e das abóbadas existentes no tecto da referida fracção.

13. Detectando-se que uma das abóbadas se encontrava em risco iminente de ruir e na sequência de um parecer técnico, o legal representante da Ré (…)ordenou a respectiva demolição, o que veio a suceder (com a precisão de que a mesma ia cedendo à medida que o empreiteiro batia na mesma com um ferro).

14. Com a referida demolição, o pavimento que constitui o chão do piso de cima, no local onde se encontrava a abóbada, cedeu.

15. A construção do prédio onde se insere a fracção “D” data do século XVII/XVIII, tratando-se de um edifício com paredes estruturais em alvenaria de pedra, cobertura inclinada em madeira revestida a telha cerâmica, pavimentos e tectos em estrutura de madeira revestida a soalho ou forro de madeira.

16. O referido prédio apresentava em Setembro de 2011 um mau estado de conservação, resultante da sua deterioração natural ao longo do tempo e ausência de manutenção.

17. Em 4.01.2011 o proprietário do 2º andar direito do referido prédio apresentou uma reclamação na Câmara Municipal de (...) , associando as patologias verificadas na fachada do edifício à empreitada realizada na Praça exterior contígua cerca de 5 anos antes.

18. Tal reclamação determinou a realização de uma vistoria que teve lugar no dia 28.01.2011 e determinou a elaboração de um auto de vistoria.

19. No referido auto ficou registada a fissuração generalizada das fachadas, bem como das abóbadas exteriores.

20. Mais ficaram registadas, entre outras, as seguintes deficiências verificadas na zona sobre as abóbadas no interior do 2º andar direito:

- “assentamento do soalho, com deformação mais acentuada na zona central (corredor) e sala orientada a norte, sobre as abóbadas”.

21. Aí consta indicada como causa para o supra referido que tal “ocorrência constitui uma situação antiga, como se pode comprovar pela reparação efectuada na sala norte, com

intuito de repor a cota do pavimento. Esta intervenção foi anterior ao actual proprietário, desconhecendo-se como e quando terá ocorrido. Aparentemente, procedeu-se ao enchimento do pavimento existente com betonilha ou betão.”

22. Menciona ainda o referido auto que “O edifício foi sujeito ao longo do tempo a diversas intervenções que alteraram as suas condições iniciais, algumas das quais com implicações a nível estrutural. As principais alterações identificadas na vistoria à fracção foram as seguintes: a) Enchimento do pavimento interior na divisão sobre o arco orientada a norte; b) Substituição da estrutura da parte nascente da cobertura do edifício por uma estrutura metálica, com introdução de uma viga em betão armado, na direcção transversal do edifício, para apoio de uma parede de alvenaria em tijolo, na qual remata lateralmente o telhado; c) Execução de lajes de piso nas divisões do lado nascente do arco;”

23. Já na sequência do desabamento da abóbada do tecto da referida fracção D, foi pedido um relatório de consultoria técnica ao Instituto de Investigação e Desenvolvimento Tecnológico em Ciências da Construção, da Universidade de Coimbra, no âmbito do qual foram realizadas duas vistorias técnicas ao local, em 4.10.2011 e 6.12.2011, determinando a elaboração de um relatório.

24. No âmbito do supra referido relatório constam as seguintes verificações: “(…) o pavimento sobre o tecto em abóbada da área afecta ao restaurante, que é constituído por uma betonilha de 3.5 cm de espessura, armada com uma rede de malhasol de diâmetro 3 mm e malha de 50 mm x 50 mm, assente directamente sobre os materiais de enchimento das abóbadas, o desabamento de uma das abóbadas localizada no interior do restaurante e a existência de fissuração na abóbada que não se encontra revestida (…) nas restantes abóbadas situadas no interior do restaurante foi possível observar, para além da existência de fissuração, um ligeiro abatimento central dos arcos que formam a abóbada; o edifício, na sua generalidade, se encontra em mau estado de conservação, resultante da sua deterioração natural ao longo do tempo e da ausência de manutenção”.

25. Referindo-se concretamente ao abatimento de uma das abóbadas “terá sido, aparentemente, causada pela substituição dos pavimentos superiores que terão sido apoiados directamente sobre os enchimentos que constituem a parte superior das abóbadas”.

26. Por forma a repor as condições de segurança e estabilidade do edifício, o referido relatório termina recomendando “a substituição deste pavimento (2º andar), e das próprias abóbadas, por uma nova estrutura realizada com materiais leves”.

27. Correu os seus termos no Juízo Local Cível de Alcobaça – Juiz 1, a acção declarativa comum 891/12.2TBACB, na qual era A. (…)residente e proprietário no 2º andar direito do prédio anteriormente referido e Réus (…) que “explorava (…) o estabelecimento comercial “Restaurante (…)”, na qualidade de sócio-gerente da sociedade comercial “P(… )Lda.”, sendo peticionado que “os Réus sejam condenados a repor de imediato a segurança na fracção do Autor, por forma a que a mesma seja novamente habitável, a pagarem o montante de € 1.800,00 por cada mês que o autor permaneça impedido de fruir da sua habitação, cifrando-se tal importância em € 14.400,00 à data da entrada da presente acção, cujo pagamento requer, mais sendo os réus condenados no pagamento de € 2.400,00 a título de indemnização por despesas de deslocação da mãe do autor a Moçambique, bem como no pagamento das despesas com a reposição do pavimento da habitação do autor, em montante a liquidar em execução de sentença, e ainda no pagamento das despesas de alojamento em Hotel, sempre que necessite de vir a Portugal enquanto permanecer impedido de usar a sua habitação.”

28. No âmbito da supra referida açção, foi determinada a realização de perícia levada a cabo pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), que inspecionou o local depois de tais obras e apresentou o respectivo relatório.

29. Desse relatório constam, para além das demais, as seguintes verificações: “deformações nas abóbadas, fendas nas abóbadas, roço na abóbada sem revestimento; na abóbada que caiu, há indícios de também ter havido roços”.

30. Refere ainda o relatório que, aquando da inspecção, “havia arcos de cantaria com peças partidas, juntas abertas e desníveis entre blocos existentes”;

31. E que “Em vários arcos são identificáveis várias peças metálicas”, “gatos”, “que correspondem certamente a tentativas e reparação e reforço”.

32. Havia ainda fendas na abóbada sem revestimento preenchidas com material de enchimento, aparentemente com espuma de isolamento térmico.

33. Conclui o referido relatório que “um dos factores determinantes para a queda da abóbada terá sido o mau estado de conservação das abóbadas; outro factor determinante para a queda da abóbada terá sido as obras no interior do restaurante, as quais terão introduzido acções directamente nas abóbadas e nos seus suportes não compatíveis com o seu estado de conservação à data (…) podendo as obras no restaurante, com remoção do reboco das paredes e das abóbadas e a execução de roços ter precipitado a situação”.

34. Bem como que “(…) se foi decidido proceder à demolição da abóbada, essa opção não foi prudente dado que a abóbada funciona como pavimento do piso superior (…) A solução mais lógica seria a de proceder ao escoramento da abóbada”.

35. A acção referida em 27. chegou ao seu termo por sentença de 23/05/2017, transitada em julgado no dia 30/5/2018, na qual os pedidos formulados foram julgados totalmente improcedentes.

36. Os Autores pediram à empresa de construção “C (…)”, um orçamento para reabilitar as abóbadas e as paredes danificadas durante a execução das obras iniciadas pela Ré.

37. De acordo com tal orçamento, essa reabilitação vai custar 40.996,18€, importância a que acrescerá o respectivo IVA.

38. Desde a data em que iniciou as obras, em Setembro de 2011, até hoje, durante mais de seis anos, a Ré mantem encerrado o estabelecimento e nunca mais exerceu nele qualquer actividade.

39. Desde então, a Ré não tem no estabelecimento quaisquer bens.

40. O local encontra-se todo sujo e cheio de entulhos, resultantes das obras e da queda dos tectos.

41. Até à data em que iniciou tais obras, 11 de Setembro de 2011, a Ré pagava aos Autores pela cedência do gozo do local referido no ponto 1., renda mensal de 250€.

42. Desde Setembro de 2011, a Ré deixou de pagar aos Autores qualquer renda.

43. O referido em 41. e 42 sucede porque Autores, na pessoa de (…)e a Ré acordaram verbalmente que não haveria lugar ao pagamento de rendas até que se decidisse – de entre os proprietários e a Câmara – a quem e/ou em que medida seria imputável o custo da reconstrução da abóbada demolida e reabilitação da outra (ou

de todas as restantes) e enquanto a R. estivesse privada de explorar o estabelecimento comercial.

*

Factos não provados:

(…)

45. A Ré foi aconselhada, por razões de segurança e com urgência, a proceder do modo descrito em 11.

*

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Inexistência de fundamento para a resolução do contrato de arrendamento.

- Caducidade do direito de resolução.

- Abuso de direito dos AA no pedido de resolução do contrato.

- Inexistência de fundamento para arbitrar indemnização.

- Inexistência de fundamento para arbitrar indemnização pelo atraso na entrega do locado.

- Procedência do pedido reconvencional.

2. A recorrente impugna a decisão da matéria de facto, concretamente os factos provados 7. e 8. – aos quais pretende resposta diferente -, 36. e 37. – que devem passar a não provados -, facto não provado 45. – que deve passar a provado -, e que sejam aditados 2 novos factos aos factos provados, o 34-A. e o 44. Baseia-se, para tanto, no depoimento das testemunhas (…), certidão da sentença proferida no Proc.891/12.2TBAACB, prova documental junta aos autos (que indica) e contradição entre a matéria apurada (cfr. as suas conclusões de recurso II. a XXV.).   

Na motivação da decisão da matéria de facto, o tribunal exarou que:

“A convicção do Tribunal alicerçou-se nas posições assumidas pelas partes na petição inicial e na contestação, e na análise crítica da prova documental junta aos autos, conjugada com a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento e declarações de parte do legal representante da R., sempre à luz do ónus de prova que resulta dos artigos 342.º do Código Civil e 414.º do Código de Processo Civil, com consideração dos factos instrumentais resultantes da instrução da causa e os quais é lícito ao Tribunal conhecer oficiosamente (artigo 5.º, n.º 2, do CPC).

Concretizando.

(…)

Os factos … 7…foram extraídos da certidão da sentença proferida no processo n.º 891/12.2TBACB e subsequente acórdão da Relação de Coimbra, acção essa que correu os seus termos no Juízo Local Cível de Alcobaça, e em que foram partes José Padrão, como Autor, proprietário da fracção correspondente ao 2º andar direito do prédio referido em 1. e como réus a aqui primeira Autora (…) representante da aqui R. “P(..:)”.

Tal acção, ainda que com diferentes partes e pedidos – visava-se, em suma, a responsabilização do proprietário e do arrendatário da fracção “D” pelo abatimento do piso superior ao restaurante – versou precisamente sobre as obras levadas a cabo nesta fracção em Setembro de 2011, obras essas que o Autor entendia serem causa directa dos danos provocados no 2º direito.

Ora, a factualidade que aí resultou provada e não provada não pode deixar de impor a autoridade de caso julgado nos presentes autos.

Efectivamente, preceitua o n.º 1 do artigo 619.º do CPC que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele dentro dos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”.

Por sua vez, dispõe o artigo 620.º do mesmo diploma que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: (…)”.

Estas duas normas legais referem-se ao caso julgado material, ou seja, ao efeito imperativo atribuído à decisão transitada em julgado, cfr. artigo 628.º do CPC, que tenha recaído sobre a relação jurídica substancial.

O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. A função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado. A função negativa é exercida através da excepção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas, cfr. artigo 580.º, n.º 1 e 2 do CPC.

A autoridade de caso julgado da sentença que transitou e a excepção dilatória do caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica.

Como refere Lebre de Freitas 1In Código de Processo Civil Anotado, vol 2.º, pág. 354, “pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito (…) Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.”

Na mesma linha de pensamento, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa 2In “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ 325-49 afirma que “a excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (…), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica”, ao passo que “quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior”.

A nossa jurisprudência vem entendendo que a autoridade do caso julgado, diversamente da excepção do caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o artigo 581.º do CPC – sujeitos, pedido e causa de pedir – pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida – nesse sentido, entre outros, Acs. do STJ de 13.12.2007, de 06.03.2008 e de 23.11.2011 3Todos em www.dgsi.pt.

Sendo ainda entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado, cfr. o já referido acórdão do STJ de 12.07.2011.

Pois que, como refere o Prof. Miguel Teixeira de Sousa 4In “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág. 579, também entendemos que “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: caso julgado incide sobre a decisão, como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela acção”.

Ou, como ensinou o Prof. Manuel Andrade 5In “Noções Elementares do Processo Civil”, pág. 319, o fundamento do caso julgado reside no prestígio dos Tribunais, considerando que “tal prestígio seria comprometido em alto grau se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente” e, numa razão de certeza ou segurança jurídica, “sem o caso julgado estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa”.

Retornando ao caso concreto, a factualidade dada como assente pelo Tribunal de Alcobaça que supra se elencou, atinente às obras levadas a cabo no locado pela Ré e, em particular, ao mau estado de conservação do edifício, ao tipo de obras realizadas, à falta de autorização para as mesmas e à decisão de proceder a uma “demolição controlada” ante o risco de iminente desabamento, não pode deixar de impor tal autoridade nos presentes autos, sob pena do Tribunal se estar a pronunciar duplamente – e, eventualmente, de forma contraditória – em relação à mesma questão.

Ainda que assim não fosse, sempre se dirá que este Tribunal chegaria às mesmas conclusões, com base nos relatórios da vistoria da CM de (...) , do ITeCons e do LNEC, juntos aos presentes autos e que aquela sentença transcreve parcialmente, bem como nos depoimentos das testemunhas (…).

Em suma, pelas testemunhas foi sendo destacada a falta de manutenção naquele edifício ao longo dos anos, nomeadamente ao nível das referidas abóbadas no interior do restaurante, que apresentavam graves deformações, como fissuras que foram sendo disfarçadas ao longo do tempo, bem visíveis à data em que a R. decidiu proceder a obras.

De entre elas, as testemunhas com maior conhecimento, em razão das suas qualificações profissionais – (…)foram explicando que a abóbada é uma estrutura autossustentada ou autoportante, cujas forças que a compõem, na sua globalidade, se encontravam desequilibradas pela deformação do “corpo” da abóbada, não oferecendo a mesma segurança naquele momento. Foram unânimes em concluir pela necessidade de uma intervenção aprofundada, apontando as testemunhas (…) a necessidade da estrutura ser “desmanchada” e reconstituída.

Esta última, em particular, foi quem recomendou à R., na pessoa do seu sócio-gerente e depois de se deslocar ao local, que procedesse à demolição controlada, salientando que a estrutura não oferecia qualquer segurança para quem se encontrasse dentro do espaço.

Para a situação existente, foram apontando causas, como a idade do edifício, as características do terreno de implantação (uma zona de aluvião, ao longo do rio), obras na envolvência e no próprio edifício ao longo dos anos e deslocações ao nível das fundações do mesmo.

(…)

Concomitantemente, salientou a testemunha (…) que apenas retirando tal reboco era possível avaliar o real estado das abóbadas e o risco existente.

Acrescentou-se ao que o Tribunal de Alcobaça havia dado como provado, com arrimo no depoimento da testemunha (…), empreiteiro que levou a cabo as referidas obras, que o objectivo inicial das mesmas era tirar uma placa de pladur na parede do lado direito da entrada do edifício (que estava cheia de humidade) e meter argamassa com isolante para tentar eliminar humidade dessa parede.

Foi no decurso das obras que constatou a existência de fissuras nas abóbadas e, ao montar os andaimes com o intuito de as reparar, viu que a pedra central da abóbada estava descaída, tendo avisado o legal representante da R. do risco iminente de desabamento. Também esclareceu esta testemunha à medida que ia batendo com um ferro na abóbada, a mesma colapsava imediatamente – foi secundado neste facto pela testemunha (…), que assistiu a essa situação.

Relativamente à falta de autorização, a testemunha (…) relatou a surpresa da 1º A., com quem estava num café das (...) , quando esta recebeu a notícia do colapso da abóbada, mostrando-se a mesma estupefacta porque não tinha autorizado qualquer intervenção no espaço.

(…)

No mais, os factos 36 e 37 emergem do orçamento junto como doc. 7 com a p.i.

(…)

Os factos 45 … são dados como não provados devido à total ausência de elementos probatórios que nos permitam concluir nesse sentido.”.

2.1. Recorde-se que a norma que regula a impugnação da matéria de facto (art. 640º do NCPC) dita que tem de observar-se os ditames fixados no seu nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, sob pena de rejeição.

Ou seja, de tal dispositivo verifica-se que a lei exige 5 requisitos:

i) Que o recorrente obrigatoriamente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

ii) Que o recorrente obrigatoriamente especifique o sentido concreto da resposta, que na óptica do recorrente, se impunha fosse dado a tais pontos;

iii) Que o recorrente obrigatoriamente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa;

iv) E por que razão assim seria, com análise crítica criteriosa;

v) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de facultativa transcrição dos excertos relevantes.

Ora, das alegações de recurso – corpo e conclusões – verifica-se que a recorrente, relativamente ao depoimento das testemunhas que indicou, (…), e parte do referente ao (…), não cumpriu o quinto dos mencionados requisitos processuais, pois não indicou, em lado algum, com exactidão as passagens da gravação em que funda a sua impugnação, apesar de, face à gravação efectuada (vide as respectivas actas), haver identificação precisa e separada de tais depoimentos. Tendo-se limitado a indicar o seu início em … e o seu termo  em …, da gravação digital. Nem sequer transcreveu tais declarações.

Na realidade, o ónus imposto a qualquer recorrente no aludido nº 2, a) do art. 640º, do NCPC, não se satisfaz com a menção de que os depoimentos estão gravados no sistema digital, nem com a referência de que os depoimentos tiveram o seu início em … e o seu termo em … - o que representa uma verdadeira inutilidade, pois isso resulta do registo exarado na acta - ou que duraram determinado tempo – isso é uma simples operação de cálculo entre o início e o termo do depoimento. Nem, por último, sequer com a transcrição, total ou parcial, dos depoimentos prestados, já que esta é meramente facultativa.

Não deixando a lei neste ponto qualquer dúvida, face aos termos claros e terminantes com que está redigida (vide igualmente no mesmo sentido L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 3º, T. I, 2ª Ed., nota 4. ao artigo 685º-B, págs. 62/64, e A. Geraldes, Recursos em P. Civil, 2ª Ed., 2008, notas 3. e 4. ao referido artigo, págs. 138/142, normativo do CPC semelhante ao actual 640º do NCPC, e a título de exemplo os recentes Acds. do STJ de 18.9.2018, Proc.108/13.2TBPNH e desta Rel. de 28.9.2015, Proc.198/10.0TBVLF, 10.2.2015, Proc.2466/11.4TBFIG e de 17.12.2014, Proc.6213/08.0TBLRA; e quanto à facultatividade das transcrições o Ac. do STJ, de 19.2.2015, Proc.405/09.1TMCBR, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Aliás, o NCPC no seu art. 640º, manteve em termos idênticos esse ónus, introduzido pelo regime de reforma de recursos (DL 303/2007, de 24.8) no anterior art. 685º-B, mantendo, igualmente, a cominação da imediata rejeição do recurso para o seu incumprimento. Esta posição recente do legislador evidencia a desconformidade relativamente à lei, quer no seu elemento literal, quer no histórico-actualista (no discurso de apresentação da proposta de Lei de Autorização Legislativa 6/2007, de 2.2., publicado no Diário da Assembleia da República de 21.12.2006, e ainda na Reforma dos Recursos em Processo Civil - Trabalhos Preparatórios, págs. 343 e segs. O Ministro da Justiça referiu que na “proposta prevê-se, expressamente, que a gravação digital do julgamento possa ser em áudio, ou logo que possível, em vídeo e que haja identificação precisa e separada dos depoimentos. Isto, de modo a permitir às partes que indiquem as passagens da gravação em que se fundam…” - sublinhado nosso - como se retira de Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 143), de interpretações facilitistas, acima elencado -, que por vezes se vêm, que no fundo degeneram em violação do princípio da igualdade das partes - ao não tratar diferentemente o cumprimento ostensivamente defeituoso da lei adjectiva, pois se há partes que podem cumprir esse ónus e o cumprem, como se pode constatar noutros processos que passam nos tribunais superiores, porque razão se haveria de dar igual tratamento a quem não o faz ! -; do princípio do contraditório - por impor à parte contrária um esforço excessivo e não previsto na tarefa de defesa, imputável ao transgressor -; e do princípio da colaboração com o tribunal - por razões análogas, mas reportadas ao julgador (vide neste sentido o Ac. da Rel. Lisboa de 12.2.2014, Proc.26/10.6TTBRR, em www.dgsi.pt).

Sendo também de rejeitar interpretações complacentes, que se vão vendo noutras instâncias de recurso, sobre este aspecto, acima elencado - no seguinte sentido: a) o tribunal de recurso deve contentar-se, na impugnação da matéria de facto, com a indicação do depoimento e identificação de quem o prestou, sem obrigatoriedade de transcrição; b) basta a fixação electrónica/digital do início e fim dos depoimentos e a transcrição dos excertos relevantes; c) a não ser assim há excesso de formalismo que a dogmática processual rejeita; d) a não ser assim não se respeita o princípio da proporcionalidade.

Quanto à 1ª interpretação, ela faz tábua rasa do texto legal, relevando dois elementos que a lei não enumerou e “apagando” a passagem nuclear do texto legal que consiste no cerne da questão e que se reporta à indicação “com exactidão das passagens da gravação” em que se funda o recurso, pelo que não pode aceitar-se a mesma.

A 2ª interpretação, obnubila também tal trecho legal, pois que apenas releva o fim e início da gravação, quando esse elemento é o lógico antecedente do posterior cumprimento da indicação com exactidão das passagens da gravação. Com essa interpretação contenta-se o intérprete meramente com o pressuposto legal do cumprimento da lei, acabando por não ser observado o cumprimento do verdadeiro requisito legal. E por outro lado, com tal interpretação, passa a requisito de cumprimento obrigatório um elemento – a transcrição dos excertos relevantes – que a lei expressamente vê como facultativo ! Não podemos, também, acompanhar tal entendimento.

Quanto ao “plus” da 3ª interpretação, não vemos objecção de relevo. Por um lado, quanto à modernidade da exigência legal referida só podemos constatar que assim é, pois foi introduzida no nosso ordenamento jurídico em 2007 e de caso pensado pelo legislador, como acima vimos. Por outro lado, a exigência de formalismo nada tem de extraordinário. Na verdade, a este propósito, no seu acórdão de 14.3.2002 o Tribunal Constitucional decidiu o seguinte: "As formalidades processuais ou, se se quiser, os formalismos, os ritualismos, os estabelecimentos de prazos, os requisitos de apresentação das peças processuais e os efeitos cominatórios são, pois, algo de inerente ao próprio processo. Ponto é que a exigência desses formalismos se não antolhe como algo que, mercê da extrema dificuldade que apresenta, vá representar um excesso ou uma intolerável desproporção, que, ao fim e ao resto, apenas serve para acentuadamente dificultar o acesso aos tribunais, assim deixando, na prática, sem conteúdo útil a garantia postulada pelo nº 1 do art. 20° da Constituição" [Diário da República, II, de 29.5.2001]. Ou seja, o formalismo processual é normal e aceitável, porque inerente naturalmente ao próprio processo. Ponto é que não descambe em desrespeito do princípio da proporcionalidade, com a consequente dificuldade de acesso aos tribunais que a nossa constituição quer garantir.

O que nos faz entrar no “quid” da 4ª interpretação. Concordando, obviamente, com a exigência de proporcionalidade, todavia na sua tridimensionalidade de onerosidade, dificuldade e gravidade das consequências, não divisamos ofensa de tal princípio na interpretação que fazemos. Indicar com exactidão as passagens da gravação, não é oneroso, bastando ao Sr(a). Advogado(a) que patrocina a parte e quer recorrer dispor de um aparelho/leitor de CD, com contador digital, que lhe permita essa indicação exacta, aparelhos esses que se vendem no mercado a preços perfeitamente acessíveis. Dificuldade não existe, bastando, ouvido o depoimento que se considera relevante, tomar nota do momento temporalmente em que ele ocorreu e fazer a sua indicação digital – dificuldade nenhuma, se detecta, também, na indicação dos pontos em concreto da matéria de facto que estão elencados na decisão sob recurso. Sendo estes dois elementos perfeitamente observáveis já não se detecta nenhuma anomalia na rejeição do recurso, a não ser que se queira erigir a “gravidade das consequências” como elemento de per si determinante, o que rejeitamos em absoluto, bastando pensar no fenómeno processual da preclusão (por ex., deixar passar um prazo peremptório para contestar, deixar passar um prazo para recorrer, etc), em que a defesa da parte pode ficar seriamente afectada, sem que se possa solidamente defender que foi violado, com implicações constitucionais, o princípio da proporcionalidade. 

Revertendo, ao nosso caso, a recorrente limitaram-se a referenciar o início e termo dos depoimentos, sem sequer ter, depois, apresentado transcrição do mesmo, em vez de indicar com exactidão as passagens temporais da gravação daquilo que foi declarado por tais testemunhas, no sentido supostamente afirmado/defendido pela apelante, a fim de permitir, como pretendia, diferente resposta aos apontados factos impugnados e a aditar, depois de prévia audição por esta Relação e subsequente análise e ponderação de tais depoimentos.

Aliás esta atitude da apelante é difícil de perceber, pois relativamente a outras testemunhas e parte de depoimento do (…) fê-lo !     

Assim, face ao não cumprimento do referido ónus legal, a impugnação da indicada matéria de facto não pode proceder com base em tais depoimentos testemunhais do R. (…) e parte do (…) tendo, por isso, de ser rejeitada, como estipula o aludido art. 640º.

Concomitante e concretizando o depoimento do R. (…)não pode ser usado para apreciar a impugnação dos factos 7. e 8., o depoimento da (…) o mesmo quanto ao aditamento do facto a aditar 34.-A. e facto não provado 45. e parte do depoimento do V (...) a este apontado facto não provado 45.

2.2. Como o aditamento do facto 34.-A. assentava apenas no depoimento da aludida (…) o pretendido aditamento vai indeferido.  

2.3. Relativamente à impugnação do facto não provado 45. ficou excluída a sua apreciação com base no depoimento das indicadas testemunhas V(…), como acima mencionámos. Subsiste como base de impugnação a invocada contradição entre tal facto não provado e o facto provado 13.

Resposta contraditória é aquela que deriva da oposição entre as respostas dadas a pontos de factos controvertidos ou com factos já considerados assentes. Ou seja, as respostas são contraditórias quando têm um conteúdo logicamente incompatível, quando não podem subsistir ambas utilmente, entrando em colisão uma com a outra (vide A. Geraldes, ob. cit., nota 10. c) ao artigo 712º do anterior CPC, págs. 294/295).

Ora, compulsados ambos os factos, não se divisa em que é que o facto não provado 45., que se reporta ao facto provado 11., tem a ver com a diferente matéria factual do facto provado 13. O primeiro facto provado refere-se ao picar das abóbadas o segundo à demolição de uma delas. Inexiste, pois, qualquer contradição.

Assim, improcede a impugnação a tal facto não provado.

2.4. Pretende a recorrente o aditamento do facto 44., com a redacção que sugere, com base no depoimento da testemunha (…), e doc. nº 1, junto com as alegações de recurso.

Torna-se, contudo, inútil fazê-lo, pois, tal factualidade que se pretende aditada, sobre o conhecimento dos AA na pessoa da A. A. (…), já decorre claramente do facto provado 43. Não havendo, pois, lugar ao mesmo.

2.5. Relativamente aos factos provados 7. e 8. a apelante pretende as respostas explicativas constantes da redacção que propõe sob 7.1. a 7.3. e 8.

O tribunal baseou as respostas a tais factos no caso julgado baseado na sentença proferida no Proc.891/12.2TBACB, relatórios periciais juntos aos autos e no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência (…)

A apelante contesta que o decidido no referido processo 891/12, o caso julgado aí formado, possa cobrir tais factos provados.  E tem razão.

Efectivamente, face aos requisitos do caso julgado fixados no art. 581º do NCPC – sobre identidade de sujeitos, de pedidos e de causa de pedir -, ao preceituado no nº 1 do art. 619º do NCPC que dispõe que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele dentro dos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º” e perante o que estatui o art. 621º do mesmo diploma que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: (…)”, o caso julgado apenas cobre o teor da decisão e os pressupostos jurídicos necessários que a ela conduzem, como correctamente se sublinha na decisão recorrida.

Pelo que, evidentemente, não cobre os factos apurados numa sentença proferida para serem importados para outra sentença, pois os factos provados noutros processos não transitam, sem mais, para outro processo, ou seja não podem ser importados directa e automaticamente de um processo para outro, já que o alcance do caso julgado não os cobre, antes abrangendo, apenas, o decidido (e os fundamentos absolutamente necessários conducentes a tal decisão).  

De sorte que a sentença proferida no referido processo não pode servir, sem mais, para fundamentar a resposta aos referidos factos. Mas podem os mesmos serem sustentados, como foram, na remanescente prova aduzida pelo julgador a quo e que o mesmo especifica na sua motivação.

Ora, a apelante, pretende que seja dado dado como provado o facto 7.1. cujo texto sugeriu., com base no depoimento da testemunha (…). Já acima explicámos que o depoimento desta última testemunha não pode ser considerado.

Porém, e mais relevantemente, há que salientar que tal factualidade essencial, proposta pela apelante, não foi alegada pela mesma na sua contestação, como era seu ónus, atento o princípio do dispositivo, consagrado no art. 5º, nº 1, do NCPC. O que não pode ser alcançado, agora, em fase de recurso atento o princípio do dispositivo, consagrado no art. 5º, nº 1, do NCPC. E mesmo que tal factualidade pudesse ser vista como facto complementar ou concretizador doutro facto alegado pela R. e resultasse da instrução da causa, o certo é que as partes tinham de ter a possibilidade de sobre ele se pronunciar - mesmo artigo e número, b) –, para o juiz o poder considerar, o que não se revela ter acontecido. Na verdade, no caso concreto, o juiz não avisou as partes que estava disponível para o considerar factualmente nem as partes, designadamente a R., requereram que tal acontecesse (veja-se as actas de julgamento onde, sobre este aspecto, nada é dito pela sra. Juíza ou pelas partes). E só neste circunstancialismo se poderia equacionar a aplicação de tal preceito, como defendemos e se decidiu recentemente no Acórdão proferido em 9.1.2018, no Proc.825/15.2TBLRA (com o mesmo relator e 1º adjunto do presente), consultável em www.dgsi.pt.

De maneira que tal matéria proposta pela recorrente não pode ser considerada, não procedendo a impugnação nesta parte.

No respeitante ao pretendido aditamento do facto 7.2., com base no depoimento da aludida testemunha R. (…), torna-se o mesmo desnecessário, face ao que já decorre do facto 8. E quanto ao facto a aditar 7.3., também se torna inútil fazê-lo, pois, tal factualidade, sobre o conhecimento da A. A. (…), já emerge medianamente do facto provado 43. Não havendo, pois, lugar ao mesmo. Finalmente, relativo ao facto provado 8., com base no depoimento da testemunha (…), igualmente o mesmo se torna desnecessário, considerando o que resulta do facto provado 9. sobre o salitre.  

Improcede, por isso, a impugnação nesta parte.       

2.6. Mais atrás explicitámos o conceito de contraditoriedade na decisão da matéria de facto. Defende a recorrente que o facto provado 36. está em contradição em relação ao facto provado 26. Não vemos como, pois não vislumbramos como é que a recomendação concreta do IIDTCC da Universidade de Coimbra, para repor a segurança e estabilidade do edifício onde se integra o locado tem um conteúdo logicamente incompatível com um orçamento para reabilitar as abóbadas e as paredes danificadas, porque é que aquele facto entra em colisão com este último, não podendo os dois subsistir utilmente ? Nem a recorrente justifica fundadamente tal asserção, pelo que a conclusão a tirar é que inexiste a apontada contradição.

Por outro lado, a recorrente pugna (no art. 52º do corpo das suas alegações) para que a manter-se tal facto seja o mesmo expurgado da sua parte final, a parte em que se refere “durante a execução das obras iniciadas pela Ré”.

Temos por desditosa tal pretensão, pois da matéria apurada nos autos sabemos que foi a R. que fez as obras e que provocou os resultados carentes de reabilitação. Então não foi a recorrente que fez as obras no locado que levaram à danificação das abóbadas e das paredes ! Basta ver os factos provados 7. a 9. e 11. a 13. Não procede, por isso, tal impugnação.

Quanto ao facto 37., já assiste parcialmente razão à apelante. Na verdade, o mesmo assentou apenas no doc. de fls. 7, junto com a p.i., conforme resulta da motivação exarada pelo julgador. Só que o respectivo facto alegado pelos AA e doc. de suporte probatório junto foram impugnados pela R. (na sua contestação). Cabia, por isso, aos apelados prova-lo, demonstrar o alcance e valor concretos da reparação, produzindo outra prova em audiência que o corroborasse, o que não se mostra ter sido efectuado, como decorre dos arts. 342º, nº 1, e 374º, nº 2, do Código Civil.

Já divergimos da posição da recorrente quando afirma que os trabalhos a efectuar apenas se podem reportar à abóboda que ruiu e não mais, ou que o valor para trabalhos instrumentais (de apoio, limpeza e remoção) é mais do dobro do que quanto aos trabalhos de execução, ou que os AA não fizeram prova da necessidade de tais trabalhos, bem como do seu nexo de causalidade.

Desde logo, em tal orçamento o valor dos trabalhos instrumentais (de apoio, limpeza e remoção) ronda os 4.100 €, enquanto os de execução ascendem a cerca de 36.600 €, pelo resulta incompreensível a inversão de valores feita pela apelante. Sabemos também que foram danificadas 2 abóbodas e danificadas paredes (factos 8., 9., 11. a 13., e 43. e arts. 42º e 43º da contestação, onde a R. menciona 2 abóbodas), daí que a reabilitação não seja tão exígua como afirma a mesma. É bom de ver, portanto, que existe nexo de causalidade entre as ditas obras de reabilitação e os danos provocados pela apelante.      

Assim, procede parcialmente a impugnação, passando o facto 37. a ter a seguinte redacção (a negrito, passando o anterior facto 37. a letra minúscula):

37. A reabilitação referida em 36. vai custar valor não concretamente apurado, a que acrescerá o respectivo IVA.

3. Na decisão apelada, exarou-se que:

“Os AA. pedem que seja posto termo ao contrato de arrendamento, por resolução do mesmo. 

(…)

Desde a entrada em vigor do NRAU 8Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (com aplicação ao presente caso por força do seu artigo 59.º) que, como refere Albertina Pedroso, o legislador consagrou um conceito genérico e indeterminado de incumprimento como fundamento de resolução do contrato tanto pelo arrendatário como pelo senhorio 9Albertina Pedroso, in A Resolução do Contrato de Arrendamento no Novo e Novíssimo Regime Do Arrendamento Urbano, JULGAR - N.º 19 – 2013:

O artigo 1083.º do CC, sob a epígrafe Fundamento da resolução, afirma categoricamente no n.º 1 que qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte.

Daqui parece resultar, portanto, que ambos os contraentes podem resolver o contrato de arrendamento apenas com base no incumprimento culposo da outra parte, nos termos previstos nos artigos 432.º e ss. e 801.º, n.º 2, do CC.”

Cumpre salientar que, como resulta do n.º 2, não é um qualquer incumprimento que fundamenta o recurso a esta cláusula geral resolutiva – é necessário que pela sua gravidade, ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento 10Sobre esta matéria, vd. Fernando Baptista de Oliveira, A Resolução do Contrato no Novo Regime do Arrendamento Urbano, Causas de Resolução e Questões Conexas, Almedina, 2007

No caso de resolução pelo senhorio, a lei fornece um elenco (não taxativo, como se depreende do advérbio de modo designadamente) de fundamentos de resolução.

São eles os seguintes:

a) A violação de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio;

b) A utilização do prédio contrária à lei, aos bons costumes ou à ordem pública;

c) O uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização para o prédio;

d) O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072.º;

e) A cessão, total ou parcial, temporária ou permanente e onerosa ou gratuita, do gozo do prédio, quando ilícita, inválida ou ineficaz perante o senhorio.

A este fundamentos acresce um outro, especificamente previsto no n.º 3 do mesmo artigo – “É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos n.os 3 a 5 do artigo seguinte.”

Para estribar a resolução contratual, os AA. invocam, em primeiro lugar, a realização de obras no locado sem a sua autorização.

Obras essas que, como vimos, vieram a culminar na “demolição controlada” de uma das abóbadas existentes no tecto do estabelecimento comercial.

O pretérito regime do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15/10, previa expressamente que era fundamento de resolução pelo senhorio o caso em que o arrendatário “Fizer no prédio, sem consentimento escrito do senhorio, obras que alterem substancialmente a sua estrutura externa ou a disposição interna das suas divisões, ou praticar actos que nele causem deteriorações consideráveis, igualmente não consentidas e que não possam justificar-se nos termos dos artigos 1043.º do Código Civil ou 4.º do presente diploma”.

Entre os incumprimentos do locatário mencionados no n.º 2 do art. 1083.º do Código Civil deixou de figurar o relativo a obras realizadas pelo locatário não autorizadas pelo senhorio e que não possam justificar-se nos termos dos arts. 1036.º e 1074.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil. Porém, tal não significa que esse comportamento não constitua causa de resolução pelo senhorio. O que agora se exige é que constitua uma infracção de tal modo grave e com tais consequências ao nível da relação locatícia que torne inexigível ao senhorio manter o arrendamento.

Em sede de obras, o princípio, como não pode deixar de ser, é o de que “cabe ao senhorio executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário”, podendo o arrendatário “executar quaisquer obras, quando o contrato o faculte ou quando seja autorizado, por escrito, pelo senhorio.” (artigo 1074.º, n.º 1 e 2 do CC).

Exceptuam-se do disposto no n.º 2 as situações previstas no artigo 1036.º do CC.

Diz-nos este último que “1. Se o locador estiver em mora quanto à obrigação de fazer reparações ou outras despesas, e umas e outras, pela sua urgência, se não compadecerem com as delongas do procedimento judicial, tem o locatário a possibilidade de fazê-las extrajudicialmente, com direito a reembolso. 2. Quando a urgência não consista qualquer dilação, o locatário pode fazer as reparações ou despesas, também com direito a reembolso, independentemente de mora do locador, contanto que o avise ao mesmo tempo.”

Começaremos a análise deste ponto salientando que a presunção iuris tantum (artigo 350.º, n.º 2, do CC) do artigo 1043.º do CC, n.º2, se deve ter por cabalmente ilidida pelo teor da vistoria da CM e dos relatórios do ITeCons e do LNEC, que dão conta das profundas deficiências estruturais do edifício, as quais não podem, naturalmente, configurar uma situação recente, mas sim um estado de coisas antigo e certamente anterior à data do contrato de trespasse celebrado com a R.

Aqui chegados, e provado que está que as obras foram realizadas à revelia dos AA., a R. defende-se destacando o carácter urgente das obras, que levou a cabo por imperativos de segurança.

Considerando que a R. não alegou nem provou qualquer interpelação dirigida aos AA. no sentido de solicitar que estes procedessem a obras, que fundasse a mora destes (artigo 805.º, n.º 1, do CC), as obras que a R. realizou apenas se poderiam abstractamente enquadrar no n.º 2 do supra citado artigo 1036.º do CC (“quando a urgência não consista qualquer dilação, o locatário pode fazer as reparações (…) independentemente de mora do locador (…)”.

Cremos que não é o caso.

Em primeiro lugar, o risco iminente de desabamento apenas foi apurado já no decurso das obras. O que significa que as mesmas, inicialmente com o objectivo de resolver problemas de humidade numa das paredes, foram iniciadas sem autorização e sem que a R. sequer cogitasse qualquer situação de urgência.

Por outro lado, e mesmo concedendo que o risco de desabamento era iminente (o que pode significar que a estrutura poderia desabar no segundo seguinte, uma semana ou anos depois), a demolição controlada da abóbada, sem uma imediata e simultânea reconstrução da mesma, não configura qualquer acto de reparação.

Trata-se, pura e simplesmente, de uma deterioração da coisa, sem qualquer vantagem para a R. ou para a utilização do locado. Por outras palavras, do ponto de vista da R. era igual encerrar o espaço e informar os AA. de que o mesmo não tinha condições para continuar a laborar até que esta realizasse obras substanciais no locado ou, como veio a fazer, deitar abaixo a referida abóbada, apressando aquilo de que o tempo eventualmente se encarregaria. De uma forma ou de outra, o espaço ficaria encerrado e insusceptível de ser utilizado, tal como permanece nos dias de hoje.

As obras em causa não são, assim, justificáveis à luz do artigo 1036.º do CC.

Isto posto, como se lê no acórdão da Relação de Coimbra de 7/9/2010, Relator Távora Vítor 11Em www.dgsi.pt, “subjacente à resolução do contrato de arrendamento com base na realização de obras não autorizadas no locado está a ideia que se verificou um incumprimento tão grave dos deveres do inquilino de molde a entender-se ser razoável libertar o senhorio do ónus que impendia sobre o seu direito colocando termo ao vínculo contratual.”; “Será assim em termos de relevância da obra sob o ponto de vista interno e externo que casuisticamente se terá que aquilatar da violação do contrato; numa palavra fazendo singelamente apelo pelo carácter substancial ou não das modificações levadas a cabo.

Nas circunstâncias do caso concreto, parece-nos que a intervenção da R., que é substancial e de gravidade não despicienda, é suficiente para escorar a resolução do contrato com base na cláusula resolutiva genérica a que nos referimos anteriormente.

Com efeito, o edifício onde se situa a fracção é um edifício antigo, no qual foi provocado um dano que alterou de modo relevante a sua configuração interna, importando uma reparação dispendiosa e certamente demorada, não sendo também de olvidar que a R. paga uma exígua renda mensal de 250€ pelo gozo da fracção.

Não descurando os vícios pré-existentes que afectavam a integridade do edifício, e que nos levam a apontar à existência de uma culpa concorrente dos proprietários, pela falta de manutenção ao longo dos anos, a conduta da R. reveste-se, ainda assim, de alguma censurabilidade.

Pelo que temos vindo a expor, deverá ser julgada procedente, nesta parte, a pretensão dos AA., com a consequente condenação da R. a entregar o locado, livre de entulho e de bens que se encontrem no seu interior.”.

Temos por bom o raciocínio jurídico apresentado na sentença recorrida, tendo a mesma citado e interpretado correctamente as disposições legais a ter em conta para a análise do caso concreto.

A apelante discorda (conclusão de recurso XXVIII., mas de carácter meramente genérico).

Onde podemos encontrar a sua discordância é nos números 75. a 84. do corpo das suas alegações). Esgrime a mesma no essencial com dois argumentos: que teve autorização dos senhorios, houve acordo com os AA, para realizar trabalhos de manutenção no locado, conforme a matéria provada que propôs; havia urgência nos trabalhos.

Relativamente ao primeiro argumento, a apelante não tem razão, por motivo muito simples. Não provou a aludida autorização, como se propunha na impugnação deduzida e que corresponderia ao facto 7.1., cuja redacção sugeriu. Pelo contrário, subsiste como assente que tal autorização dos AA não foi concedida, como resulta do facto provado 7.

No respeitante ao segundo argumento, já sentença recorrida deu acertada e suficiente justificação, quando relembrou, quanto ao carácter urgente das obras, que a R. não alegou nem provou qualquer interpelação dirigida aos AA no sentido de solicitar que estes procedessem a obras, que fundasse a mora destes (arts. 805º, nº 1, e acima mencionado art. 1036º do CC). E, de outra parte, quando explicou que as obras que a R. realizou apenas se poderiam abstractamente enquadrar no nº 2 do supra citado art. 1036º do CC (“quando a urgência não consista qualquer dilação, o locatário pode fazer as reparações (…) independentemente de mora do locador (…)”, mas que em concreto não era o caso. Isto porque, em primeiro lugar, o risco iminente de desabamento apenas foi apurado já no decurso das obras. O que significa que as mesmas, inicialmente com o objectivo de resolver problemas de humidade numa das paredes, foram iniciadas sem autorização e sem que a R. sequer cogitasse qualquer situação de urgência. Em segundo lugar, ainda que concedendo que o risco de desabamento era iminente, porque a demolição controlada da abóbada, sem uma imediata e simultânea reconstrução da mesma, não configura qualquer acto de reparação.

Atentemos nas valorações previstas no corpo do nº 2 do corpo do art. 1083º do CC.

A gravidade surge quando a conduta considerada entre em oposição clara com os valores do arrendamento ou com a confiança legítima do senhorio. Ela é independente das consequências. Assim, tem uma gravidade que justifica a resolução pelo senhorio a efectivação, pelo arrendatário, sem autorização, de obras ou actos que provoquem deteriorações ilícitas consideráveis. E isso sucede por eles porem em crise a ordem dominial dos bens, ordem essa que reserva, para o proprietário, o poder de transformação. Perante um directo atentado à ordenação dominial em que assenta o próprio arrendamento, a correspondente relação torna-se inexigível (vide Januário da Costa Gomes em Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, 2014, Coord. de A. Menezes Cordeiro, nota 13. ao art. 1083º do CC, pág. 233). As consequências prendem-se com a projecção, directa ou indirecta, da conduta do arrendatário, no valor do locado ou com os incómodos que o senhorio possa vir a sentir. Neste caso a ponderação é mais fácil, ainda que nem sempre se possa desligar da gravidade (mesmo autor, ob. citada, nota 14, indicada pág.).

A inexigibilidade em si é aferida perante os valores básicos do ordenamento jurídico, reportados através da ideia de boa-fé. Digamos que pode haver resolução quando a exigência, à contraparte, da manutenção de certo arrendamento ultrapasse a margem dos incommoda máximos aceitáveis por via do arrendamento, sendo contrária à boa-fé (ibidem, nota 15).

De modo que há que terminar afirmando que o tribunal a quo concluiu juridicamente bem que o incumprimento da R. é grave e revestiu consequências danosas de relevo que tornam inexigível a manutenção do arrendamento existente.

Não procede esta parte do recurso.

4. Na dita sentença deixou-se dito que:

“… consignando-se ainda que não se apreciou o eventual decurso do prazo de caducidade previsto no artigo 1085.º, n.º 1, do CC, por não ter sido tal excepção peremptória suscitada e não ser a mesma de conhecimento oficioso, tratando-se de matéria não excluída da disponibilidade das partes (artigo 333.º, n.º 2, que remete para o artigo 303.º, ambos do CC).“.

Vem a apelante dizer em recurso que invocou tal excepção (conclusão de recurso XXIX.). Perguntamos, onde é que o fez ?

Na verdade, percorrendo o seu articulado de contestação, não se encontra em tal articulado, em lado algum, a dedução de tal excepção. Trata-se de uma afirmação inverídica, que está, por isso, destinada ao fracasso.

Não procede, pois, o recurso nesta parte.

5. Igualmente, invoca a recorrente que existe abuso de direito por parte dos AA, face à sua inacção em resolver o contrato durante 7 anos (conclusão de recurso XXX.).

Do facto provado 43. decorre claramente que, depois da demolição da abóbada, os apelados tiveram conhecimento de que essa demolição ocorreu, no decurso de obras que a apelante estava a levar a efeito no local arrendado, sem autorização dos senhorios (como os próprios apelados reconhecem no ponto 12. do corpo das suas alegações). Daí que tivessem acordado a suspensão do pagamento das rendas enquanto a R. estivesse privada de explorar o estabelecimento comercial.

Ora, a inacção dos AA em resolver o contrato durante o período de 7 anos, de per si, sem mais quaisquer outros elementos, não permite fazer funcionar o instituto do abuso de direito. Nem a apelante justifica juridicamente, com uma apresentação analítica mínima de tal figura a sua asserção. De entre as modalidades que a figura vasta do abuso de direito abarca poderíamos equacionar a hipótese da denominada suppressio que corresponde ao seguinte: perderia a sua posição jurídica a pessoa que não a exerça por um período de tempo e em circunstâncias tais que não mais seja de esperar qualquer exercício  (vide A. Menezes Cordeiro, Trat. Dir. Civ., I, Parte Geral, T. IV, 2007, págs. 236, 313/325, máxime 321/325). Mais desenvolvidamente explica que a suppressio redunda num modelo de confiança destinado a proteger um determinado beneficiário com as proposições seguintes: - um não exercício prolongado; uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança; um investimento de confiança; a imputação da confiança ao não exercente do direito. Para tanto há que considerar as circunstâncias do caso concreto e ver se existem indícios objectivos de que o direito em causa não será exercido.

Ora, no nosso caso, verifica-se apenas um singelo facto, o decurso do prazo de 7 anos. Para além disso, não se apuraram outras circunstâncias ou se desvelaram indícios objectivos de que os AA não exerceriam o seu direito à resolução do contrato. De sorte, que não conseguimos concluir que os AA ao terem exercitado o seu direito à resolução contratual, estão a exercer ilegitimamente o mesmo, estão a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, como determina o art. 334º do CC.

Não procede esta parte do recurso.                                                                                                               

6. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“De seguida, peticionam os AA. o pagamento de uma indemnização no valor de 40.996,18€, pelos danos causados nas paredes e abóbadas pelas obras realizadas em Setembro de 2011.

Dispõe o artigo 1038.º, al. d) do CC, que é dever do locatário não fazer uma utilização imprudente da coisa.

Esclarece ainda o artigo 1043.º, n.º 1, que “na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato. Não o fazendo, estatui o artigo seguinte que “o locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, salvo se resultarem de causa que não lhe seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela”.

Este artigo deve ser interpretado no sentido de que contempla uma hipótese de presunção de culpa do locatário, não fazendo recair sobre este uma “responsabilidade objectiva”, só afastada quando feita a prova de que a perda ou deterioração da coisa foi devida a caso fortuito ou de força maior ou a vício da coisa locada.

Esta interpretação impõe-se na medida em que a utilização da coisa locada tem lugar no interesse de ambas as partes (do locador que recebe o aluguer e do locatário que a utiliza em seu proveito), nada justificando fazer recair sobre este a pesada responsabilidade resultante da segunda das mencionadas interpretações.

No caso, dada a factualidade provada nos pontos 7 a 14, os danos provocados no locado não se ficaram a dever, certamente, a caso fortuito, nem, exclusivamente, a vício da coisa locada.

Não obstante, também não se pode dizer que tenham decorrido de culpa exclusiva do locatário, que optou por proceder à “demolição controlada” da abóbada, precipitando o seu colapso.

É que a factualidade provada dá-nos igualmente conta de que, nesse momento, a mesma encontrava-se em situação periclitante, com risco iminente de queda, situação essa à qual não são alheios o mau estado de conservação, resultante da sua deterioração natural ao longo do tempo e ausência de manutenção.

As obras de maior vulto de que o prédio em causa estava carecido são da responsabilidade dos proprietários, atento o princípio ínsito no artigo 1074.º, n.º 1, do CC.

Este circunstancialismo aponta-nos para uma concorrência de culpas – dos proprietários, pelo estado de incúria em que se encontrava o locado; do arrendatário, pela decisão imponderada de demolir a abóbada - que terá de ser distribuída de harmonia com o artigo 570.º do Código Civil, considerando-se ilidida a presunção do artigo 1043.º, n.º 1, do CC, sobre a qual nos debruçamos supra.

Ambas as condutas – a omissiva dos AA. e a activa do R. - são causais desse dano, de harmonia com a doutrina da causalidade adequada, entre nós acolhida, de acordo com a qual se pode afirmar que a causa juridicamente relevante de um dano é aquela que, em abstracto, se mostra adequada ou apropriada à produção desse dano, segundo as regras da experiência comum ou conhecidas do agente.

É também de chamar à colação o disposto no artigo 566.º, n.º 3, do CC, que determina que “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.

Revela-se tarefa difícil (senão mesmo impossível) e extremamente incerta a determinação da proporção em que cada um deles concorreu para a verificação do evento danoso; por outro lado, de igual dificuldade se reveste a cisão, dentro do valor orçamentado para a reparação da abóbada, da parte que se destina a repor o status quo ante. A título de exemplo, não se afigura que “o carrego dos arcos da abóbada que ruiu”, com “limpeza dos quatro arcos” e “assentemento de pedra aparelhada com argamassa”, o “preenchimento das juntas” do tijolo e das pedras dos arcos de suporte e das paredes, o “fornecimento e aplicação de rede de reforço estrutural” se destinem exclusivamente a “apagar” as consequências da actuação imprudente da R.; pelo contrário, tais trabalhos servirão também, necessariamente, para obviar à prolongada falta de manutenção que deixou as abóbadas naquele estado.

Ao mesmo tempo e pelo mesmo motivo, também não é exigível aos AA. que consigam efectuar tal destrinça, solicitando e apresentando um orçamento que discrimine unicamente os danos provocados com a “demolição controlada” pela R. e que exclua os provenientes da sua própria inércia em prover pela adequada manutenção do edifício.

Afigura-se que a solução mais correcta e equitativa será a de, tomando como bom o orçamento apresentado pelos AA. (que ademais, não foi impugnado pela R.), repartir o pagamento do valor orçado por AA. e R., na proporção das respectivas responsabilidades.

Esta repartição não pode deixar de ser muito mais gravosa para os AA.

Efectivamente, do que emerge da factualidade provada (v.g., que existiam fissuras nas abóbadas, que se notavam a olho nu no reboco, e que criavam a suspeita de se tratarem de fissuras graves; que uma das abóbadas se encontrava em risco iminente de ruir; que o prédio apresentava em Setembro de 2011 um mau estado de conservação, resultante da sua deterioração natural ao longo do tempo e ausência de manutenção; o ligeiro abatimento central dos arcos que formam a abóbada; deformações nas abóbadas, fendas nas abóbadas; arcos de cantaria com peças partidas, juntas abertas e desníveis entre blocos existentes; em vários arcos eram identificáveis várias peças metálicas, que correspondem a tentativas e reparação e reforço;), a conclusão a que se chega é que a R. apenas deu a “estocada final”, precipitado um desenlace que se vinha adivinhando há vários anos.

Parece-nos assim justo e equitativo que a R. seja condenado ao pagamento de 15% (ou seja, 6.149,43€ - seis mil, cento e quarenta e nove euros e quarenta e três cêntimos) do valor em causa, cabendo aos AA. suportar os restantes 85%.”.

Face à inalteração da matéria de facto – com excepção do facto 37. – a argumentação expendida nas conclusões de recurso XXXII. a XXXVI. não pode ser acolhida, pois, a matéria de facto provada é suficiente para: preencher todos os pressupostos da responsabilidade civil, a saber o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, como justificado na decisão apelada; o custo com a reabilitação das abóbodas e das paredes danificadas é imputável a actuação da R., daí que se verifique o respectivo nexo de causalidade entre esta actuação, o facto, e aquele dano; do que deriva, obviamente, não existir qualquer enriquecimento ilícito dos AA; não se mostrando irrelevante a demolição da abóboda para a situação dos AA, ao contrário do que a recorrente propugna, pois foi a R. que provocou a sua demolição.

De outra parte, verificando-se uma situação de culpas concorrentes, como a sentença apelada justa e acertadamente constatou e decidiu, podia-se discutir o grau de responsabilidade de cada uma das partes. Todavia, a recorrente não questionou tal grau de culpa, pelo que tem de aceitar-se o aí decidido, mas claro tendo em consideração o que emerge do novo facto provado.

Indemnização a arbitrar, então, nos termos do art. 609º, nº 2, do NCPC, no que se liquidar em sentença, com o grau de responsabilidade da R. de 15 %, atendendo ao limite do pedido formulado de 40.996,18 €.    

7. Na sentença apelada condenou-se a R. a pagar aos AA, a título de indemnização pelo atraso na restituição do locado, o valor das rendas (250 €) que se vencerem desde a prolação da presente sentença até efectiva entrega do locado. A recorrente está contra tal condenação apenas porque defende haver lugar à não resolução do contrato.

Como já verificámos e concluímos que há lugar a tal resolução, desapareceu o pressuposto em que assentava a posição jurídica da apelante, pelo que não procede esta parte do recurso.

8. Na mesma sentença escreveu-se que:

“Sobeja a apreciação do pedido reconvencional formulado pela R., na qual esta impetra que sejam os AA. condenados a “reconhecer que a substituição/reparação/reabilitação das quatros abóbadas é obra da sua responsabilidade enquanto proprietários e senhorios do locado identificado nos autos” e ainda que sejam condenados a “efectuar, a expensas suas, a reabilitação/substituição das quatro abóbadas existentes no locado onde se encontra instalado o estabelecimento comercial da R.”

Na verdade, na parte que excede a reparação da abóbada colapsada, sobre a qual nos pronunciamos quando repartimos as responsabilidades na produção do evento danoso entre AA. e R., a obrigação do senhorio efectuar obras no locado apenas se coloca na economia de um contrato de arrendamento em vigor.

Apenas o arrendatário tem o direito de exigir o cumprimento da obrigação do senhorio de efectuar obras de conservação no locado.

Sucede que com a resolução do contrato, o mesmo finda, produzindo os mesmos efeitos que a nulidade ou anulabilidade dos negócios jurídicos (ressalvado o disposto no artigo 434º, n.º 2, do CC) – artigo 433.º do CC.

Cessam os direitos e obrigações das partes, a R. perde a qualidade de arrendatária, deixando de poder exigir que os AA. cumpram o que se encontra plasmado na lei quanto a obras no locado.

Deverá, assim, ser julgado improcedente o pedido reconvencional formulado.”.

Concorda-se com esta motivação jurídica.

A recorrente discorda, apenas porque pugnava pela alteração da matéria de facto a ela atinente, mas que não logrou conseguir, e pela não resolução do contrato de arrendamento, que, igualmente, não conseguiu atingir. Consequentemente, não existe fundamento para julgar procedente o pedido reconvencional. Como tal não procede esta parte do recurso.

9. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, designadamente os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas que tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda;

ii) A omissão desse ónus, imposto no referido artigo, implica a rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, não se satisfazendo o mesmo com a menção que a declaração de parte está gravada no sistema digital, ou com a indicação do início aos … e termo aos … (sendo que no caso nem existe transcrição de tais declarações);

iii) Sobre este último ónus, o texto da lei e a sua interpretação histórico-actualista, repudiam interpretações facilitistas, que no fundo degeneram em violação: do princípio da igualdade das partes - ao não tratar diferentemente o cumprimento ostensivamente defeituoso da lei adjectiva, pois se há partes que podem cumprir esse ónus e o cumprem, porque razão se haveria de dar igual tratamento a quem não o faz ! -; do princípio do contraditório - por impor à parte contrária um esforço excessivo e não previsto na tarefa de defesa, imputável ao transgressor -; e do princípio da colaboração com o tribunal - por razões análogas, mas reportadas ao julgador;

iv) Sendo de rejeitar, também, interpretações complacentes, que se contentam com a indicação do depoimento e identificação de quem o prestou, sem obrigatoriedade de transcrição; com a fixação electrónica/digital do início e fim dos depoimentos e a transcrição dos excertos relevantes; já que a não ser assim há excesso de formalismo que a dogmática processual rejeita; a não ser assim não se respeita o princípio da proporcionalidade.

v) Na verdade, a 1ª interpretação faz tábua rasa do texto legal, relevando dois elementos que a lei não enumerou e “apagando” a passagem nuclear do texto legal “indicação com exactidão das passagens da gravação”; a 2ª interpretação, obnubila também tal trecho legal, pois que apenas releva o fim e início da gravação, acabando por não observar o cumprimento do verdadeiro requisito legal, e por outro lado, passa a requisito de cumprimento obrigatório um elemento – a transcrição dos excertos relevantes – que a lei expressamente vê como facultativo; a 3ª interpretação, não contém objecção de relevo pois a exigência de formalismo nada tem de extraordinário, como o tribunal constitucional já sinalizou; e na 4ª interpretação não se divisa ofensa da exigência de proporcionalidade, pois que, na sua tridimensionalidade de onerosidade, dificuldade e gravidade das consequências, o cumprimento rigoroso da lei, quanto ao indicado requisito de impugnação da matéria de facto, não é oneroso e é de fácil execução, não sendo anómala, no seu incumprimento, a respectiva rejeição do recurso; 

vi) Resposta contraditória à matéria de facto é aquela que deriva da oposição entre as respostas dadas a pontos de factos controvertidos ou com factos já considerados assentes; ou seja, as respostas são contraditórias quando têm um conteúdo logicamente incompatível, quando não podem subsistir ambas utilmente, entrando em colisão uma com a outra;

vii) O caso julgado não cobre os factos apurados numa sentença proferida para serem importados para outra sentença, ou seja, não podem ser importados directa e automaticamente de um processo para outro, já que o alcance do caso julgado não os cobre, antes abrangendo, apenas, o decidido (e os fundamentos absolutamente necessários conducentes a tal decisão); 

viii) Se os factos que se pretendem sejam dados por provados tiverem, a natureza de principais essenciais e não foram alegados pela parte respectiva não podem ser considerados em impugnação da decisão da matéria de facto, sob pena de violação do disposto no art. 5º, nº 1, do NCPC; se tiverem a natureza de factos principais concretizadores ou complementares e resultarem da instrução da causa e que as partes conheceram, só podem ser considerados, nos termos do art. 5º, nº 2, b), do NCPC, se o julgador avisar as partes que está disponível para os considerar factualmente ou as partes requereram que tal aconteça e assim possa haver lugar ao exercício do respectivo contraditório;

ix) Se a R./locatária faz obras no locado, sem autorização do senhorio e no decurso das mesmas origina a demolição de uma das abóbodas existentes no tecto do locado, provocando a cedência do chão do piso de cima, onde se encontrava a abóboda, verifica-se causa justificativa para o senhorio resolver o contrato ao abrigo do art. 1083º, nº 2, do CC;

x) Tais obras não podem ser justificadas com a urgência prevista no art. 1036º, nº 2, do CC, para as reparações, se o risco iminente de desabamento da abóboda apenas foi apurado já no decurso das obras; o que significa que as mesmas, inicialmente com o objectivo de resolver problemas de humidade numa das paredes, foram iniciadas sem que a R./locatária sequer cogitasse qualquer situação de urgência;

xi) De entre as modalidades que a figura vasta do abuso de direito abarca a denominada suppressio corresponde ao seguinte: perderia a sua posição jurídica a pessoa que não a exerça por um período de tempo e em circunstâncias tais que não mais seja de esperar qualquer exercício;

xii) A suppressio redunda num modelo de confiança destinado a proteger um determinado beneficiário com as proposições seguintes: - um não exercício prolongado; uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança; um investimento de confiança; a imputação da confiança ao não exercente do direito. Para tanto há que considerar as circunstâncias do caso concreto e ver se existem indícios objectivos de que o direito em causa não será exercido.

xiii) Se no caso dos autos se verifica apenas o singelo facto do decurso do prazo de 7 anos, despido do apuramento de outras circunstâncias nem se desvelaram indícios objectivos de que os AA não exerceriam o seu direito à resolução do contrato, não é possível concluir que os AA, ao terem exercitado tal direito, estão a exercer ilegitimamente o mesmo, estão a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé (como determina o art. 334º do CC).

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, assim se revogando parcialmente a sentença recorrida, e em consequência, decide-se alterar, parcialmente, a alínea b) do segmento decisório (acima transcrito na parte I deste acórdão), que passará a ter a seguinte redacção: condena-se a R. a pagar aos AA a quantia que se liquidar em sentença, correspondente a 15% do máximo de 40.996, 18 €, a título de indemnização pelos danos causados no local arrendado; no mais se mantendo todo o restante decidido na dita sentença apelada, incluindo os juros de mora fixados.

*

Custas do recurso por AA e R., na proporção, respectivamente, de 15% e 85%.

*

Coimbra, 20.10.2020

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Alberto Ruço