Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2537/08.4TJPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: DESALFANDEGAMENTO
CAUÇÃO
Data do Acordão: 11/13/2012
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INST. CÍVEL DE AVEIRO.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DEC. LEI Nº 289/88, DE 24/08
Sumário: 1. O Decreto – Lei n.º 289/88, de 24 de Agosto, na redacção dada pelo Decreto - Lei n.º 294/92, de 30 de Dezembro, instituiu um novo processo de desalfandegamento de mercadorias, mais célere e eficaz, com vista a evitar “o cumprimento de numerosas formalidades, quer para os declarantes perante a alfândega, designadamente os despachantes oficiais, que têm de as cumprir, quer para os agentes económicos, que têm de suportar eventuais prejuízos decorrentes da demora ..”

2. Foi, assim, instituída a caução global para o desalfandegamento, que simplifica o sistema de prestação de garantia e de pagamento dos direitos e demais imposições e reduz os prazos de entrega das mercadorias.

3. O sistema de caução global de desalfandegamento não se reconduz ao mandato sem representação, porque o despachante oficial, embora aja em nome próprio e por conta do importador, constitui-se solidariamente com este responsável pelo pagamento de todos os direitos e imposições devidos à alfândega.

4. Quando ocorre incumprimento do importador, tem a alfândega a garantia de recebimento os direitos do despachante oficial ou do segurador, situação em que estes terão direito de regresso contra o devedor dos direitos aduaneiros, direito este, que assiste à seguradora por via de sub-rogação do credor mesmo contra o importador que pagou ao despachante os direitos e imposições devidas à Alfândega.

5. O resultado pretendido pela recorrente só poderia ser alcançado através de uma interpretação correctiva do normativo em causa. Mas, como ensina o Professor Oliveira Ascensão – O Direito – Introdução e Teoria Geral, 2.ª Ed, pág. 372 – até por razões históricas insuperáveis, uma tal espécie de interpretação não é permitida pelo nosso ordenamento jurídico.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I.Relatório

“L…, S.A.”, Ré nos autos, não se conformando com sentença proferida no Juízo de Média e Pequena Instância Cível da Comarca do Baixo Vouga - Aveiro, por entender que a Meritíssima Juiz “a quo” efectuou uma errada interpretação e aplicação do direito aos factos dados por provados, apresenta o presente recurso.

Eis os termos do processado:

C… – Companhia de Seguro de Créditos, S.A., com sede em …, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário contra L…, S.A., com sede na …, pedindo a condenação desta última a pagar-lhe a quantia de €9.853,60 (nove mil oitocentos e cinquenta e três euros e oitenta e nove cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos no valor de €411,29 (quatrocentos e onze euros e vinte e nove cêntimos) e dos vincendos até integral e efectivo pagamento.

Alega, em síntese, para o efeito, que no exercício da sua indústria de seguros de crédito e caução, celebrou com a sociedade J…, Lda contrato de seguro titulado pela apólice de seguro de caução global, para desalfandegamento, n.º …, nos termos do Decreto – Lei n.º 289/88, de 24/08, sendo que ao abrigo do mesmo segurou a Direcção Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, o pagamento, até ao montante garantido, dos direitos e demais imposições e eventuais juros de mora.

Como esta sociedade não procedeu ao pagamento à Alfândega do Aeroporto do Porto das declarações de despacho referentes à ré, cujo valor ascendia a €9.756,04, em 12 de Agosto de 2008, a autora, no cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de seguro, pagou à Direcção Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o consumo o mencionado valor.

A ré é solidariamente responsável com aquela sociedade pelo pagamento da mencionada quantia perante a autora.

A ré já foi interpelada pela autora, designadamente a 28/08/2008, para proceder ao pagamento e ainda não o fez até hoje.

Daí que sejam devidos juros de mora à taxa aplicável para os créditos de que são titulares empresas comerciais desde a interpelação até efectivo pagamento.

Por seu turno, a ré apresentou contestação nos termos de folhas 23/29, impugnando a versão dos factos apresentada pela autora, alegando que pagou directamente à empresa de transitários denominada S…, Lda., por si contratada para proceder à importação de máquinas em Maio de 2008, pela Alfandega de Leixões, mediante cheque com data de 9/06/2008, no montante de €12.089,13.

A ré não contratou directamente os serviços daquele referido despachante oficial, porquanto encarregou a referida S… de proceder a todas as operações administrativas, fiscais e logísticas inerentes às suas importações.

Do exposto, deverá a acção improceder.

Todavia e para o caso da acção proceder, deduziu a ré na sua contestação o incidente de intervenção principal provocada do despachante J…, Lda. e o de intervenção acessória provocada da S...

II. Conclusões

A recorrente alinhou as seguintes conclusões.

...

Nos termos do art. 684°, n°3 e 685-A, do Código do Processo Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente.

As questões pedidas a este Tribunal são:

1.A autora tem direito a receber da ré o montante que pagou à Alfândega do Aeroporto do Porto das declarações de despacho referentes a esta, no valor de €9.756,04?

2.Sendo devidos juros desde 28/08/2008 até efectivo e integral pagamento?

            É este o teor da decisão em crise:

 “julgar a presente acção totalmente procedente, por provada e, em consequência, condenar a ré L…, S.A. e a interveniente J…, Lda. a pagar à autora C,… - Companhia de Seguro de Créditos, S.A., solidariamente, a quantia de €9.853,60  (nove mil oitocentos e cinquenta e três euros e dez cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde 28 de Agosto de 2008 até à presente data e dos vincendos até integral e efectivo pagamento.”

III. Os factos

IV. Direito

O Decreto–Lei  n.º 289/88, de 24 de Agosto, - na redacção dada pelo  Decreto - Lei n.º 294/92, de 30 de Dezembro - instituiu um novo processo  de desalfandegamento  de mercadorias, mais célere e eficaz, com vista  a evitar “o cumprimento  de numerosas  formalidades, quer para os declarantes perante a alfândega, designadamente  os despachantes oficiais, que têm de as cumprir, quer para os agentes económicos, que têm de suportar eventuais prejuízos decorrentes da demora ..” (preambulo do citado diploma legal).

Foi, assim, instituída a caução global para o desalfandegamento, que simplifica o sistema de prestação de garantia e de pagamento dos direitos e demais imposições e reduz os prazos de entrega das mercadorias.

Tal regime actua mediante os despachantes oficiais.

Resulta do artigo 2º, n.º 1 do diploma legal acima citado que “ no âmbito da utilização do sistema de caução global para desalfandegamento o despachante oficial age em nome próprio e por conta de outrem, constituindo-se, porém, aquele e a pessoa por conta de quem declara perante as alfândegas solidariamente responsáveis pelo pagamento dos direitos e demais imposições exigíveis.”

  Os despachantes oficiais, exercem profissionalmente a actividade do despacho aduaneiro, sem procuração e sem vínculo laboral às empresas donas das mercadorias ou destinatárias dos bens exportados ou importados.

Intervêm, pois, perante as alfândegas, no despacho aduaneiro, em nome próprio e por conta de outrem, sem necessidade de procuração.

Ora, o normativo legal supra transcrito, estipula, como se vê, a responsabilidade solidária da entidade despachante e do seu mandante - a entidade dona das mercadorias -, no âmbito do mandato sem representação, perante as alfândegas, pelo pagamento dos direitos aduaneiros e demais imposições.

Existe, assim, uma extensão da responsabilidade pelos impostos alfandegários também ao despachante, já que, em primeira linha, seria responsável o dono das mercadorias, o importador ou exportador.

 No âmbito da atribuição dessa responsabilidade solidária, surge a sub-rogação a que alude o n.º 2 desse mesmo artigo 2º.

Por sua vez, este n.º 2 refere que “o despachante oficial ou a entidade garante gozam do direito de regresso contra a pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e demais imposições, ficando sub-rogados em todos os direitos das alfândegas relativos às quantias pagas, acompanhados de todos os seus privilégios, nomeadamente do direito de retenção sobre as mercadorias e documentos objecto das declarações apresentadas.”

A caução global para desalfandegamento é prestada sob a forma de fiança bancária ou de seguro-caução.

É o que nos diz o artigo 3º do diploma legal citado - no caso dos autos, a caução prestada assumiu esta segunda modalidade, centremo-nos, pois, nesta.

O seguro-caução está, pois, edificado como um seguro por conta de outrem, em que se entrosam o segurador, o tomador do seguro e o beneficiário. Segurador que aqui é a autora, sendo o tomador do seguro o despachante oficial e o beneficiário a Alfândega.

Neste trilateral relacionamento negocial, o tomador do seguro assume as obrigações relativas ao contrato de seguro, pagando os prémios, o beneficiário tem a garantia do recebimento dos valores cobertos pelo risco segurado e o segurador garante esse pagamento caso ocorra o incumprimento do tomador do seguro perante o beneficiário.

Não existem, pois, dúvidas de que o legislador estabeleceu que o despachante oficial ou a seguradora gozam do direito de regresso contra a pessoa por conta de quem foram pagos os direitos e demais imposições, ficando, assim, subrogados em todos os direitos das alfândegas.

Deste modo, tendo a seguradora assumido o pagamento dos encargos devidos à alfândega, fica neles sub-rogada contra o devedor.

 Esta interpretação é unânime quando o devedor está em falta nesse pagamento ao despachante oficial.

Todavia, situações existem em que o devedor pagou ao despachante oficial – é o que se passa no caso dos autos -.

 Na verdade, a ré - que assume a qualidade de devedora-importadora - alegou e demonstrou provar que pagou tais valores à empresa que, para o efeito, contratou e que esta, por sua vez, pagou ao despachante oficial que não os entregou à alfândega, provocando o accionamento do seguro.

Neste particular, por exemplo, o Acórdão do STJ de 17.11.1998 in CJ, ACSTJ, 1998, III, 117, entendeu que este direito depende do importador não ter entregue ao despachante oficial o montante necessário ao pagamento dos direitos aduaneiros.

No entanto, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Abril de 2007 – este publicado na Col. Jur. Ano XV, Tomo 2, págs. 35 a 39 – é peremptório ao decidir que “ a entidade garante, que, por força do seguro, pagou esses direitos, pode exercer o direito de regresso não só contra o despachante, como contra o dono das mercadorias, mesmo que este último tenha já entregue ao despachante o valor dos direitos e imposições devidos.”

“…nada impõe, portanto, uma interpretação restritiva desta disposição legal, condicionando-se a sua aplicação à inexistência de prévio pagamento, pelo importador ao despachante das importâncias a que aí se alude”.

O resultado pretendido pela recorrente só poderia ser alcançado através de uma interpretação correctiva do normativo em causa.

Mas, como ensina o Professor Oliveira Ascensão – O Direito – Introdução e Teoria Geral, 2.ª Ed, pág. 372 – até por razões históricas insuperáveis, uma tal espécie de interpretação não é permitida pelo nosso ordenamento jurídico.

É assim que, na situação factual delineada, o segurado e tomador do seguro, o despachante oficial, não tendo cumprido as suas obrigações perante o beneficiário, a Alfândega, deu azo ao accionamento do seguro, levando a seguradora a suportar os valores em jogo.

Por isso, a seguradora, que paga a indemnização ao beneficiário, fica sub-rogada nos direitos deste contra o seu segurado e o importador.

É este o sentido que trilhou, também, o Acórdão da Relação do Porto de 3 de Novembro de 2010, retirado do site www.dgsi.pt, que alinhavou as seguintes conclusões: “I. O sistema de caução global de desalfandegamento não se reconduz ao mandato sem representação, porque o despachante oficial, embora aja em nome próprio e por conta do importador, constitui-se solidariamente com este responsável pelo pagamento de todos os direitos e imposições devidos à alfândega. II - Quando ocorre incumprimento do importador, tem a alfândega a garantia de recebimento os direitos do despachante oficial ou do segurador, situação em que estes terão direito de regresso contra o devedor dos direitos aduaneiros. III - Direito que assiste à seguradora por via de sub-rogação do credor mesmo contra o importador que pagou ao despachante os direitos e imposições devidas à Alfândega”.

Assim, a Autora/Seguradora ao pagar às Alfândegas a quantia devida pela Ré ficou sub-rogada nos direitos de crédito daquela sobre esta.

A Ré L…, S.A não pode defender-se perante a Autora com o pagamento da quantia pedida que, entretanto, fizera ao despachante J…, Lda.

Em suma, não assiste à ré o direito de recusar a devolução da importância em causa, atinente aos direitos e demais imposições exigíveis por causa do desalfandegamento - à autora (seguradora) por ter pago como logrou demonstrar ao despachante oficial.

Assim, mantemos a decisão proferida pela 1.ª instância.

Eis o sumário do decidido:

1. O Decreto –Lei  n.º 289/88, de 24 de Agosto, - na redacção dada pelo  Decreto - Lei n.º 294/92, de 30 de Dezembro - instituiu um novo processo  de desalfandegamento  de mercadorias, mais célere e eficaz, com vista  a evitar “o cumprimento  de numerosas  formalidades, quer para os declarantes perante a alfândega, designadamente  os despachantes oficiais, que têm de as cumprir, quer para os agentes económicos, que têm de suportar eventuais prejuízos decorrentes da demora ..”

2. Foi, assim, instituída a caução global para o desalfandegamento, que simplifica o sistema de prestação de garantia e de pagamento dos direitos e demais imposições e reduz os prazos de entrega das mercadorias.

3. O sistema de caução global de desalfandegamento não se reconduz ao mandato sem representação, porque o despachante oficial, embora aja em nome próprio e por conta do importador, constitui-se solidariamente com este responsável pelo pagamento de todos os direitos e imposições devidos à alfândega.

4. Quando ocorre incumprimento do importador, tem a alfândega a garantia de recebimento os direitos do despachante oficial ou do segurador, situação em que estes terão direito de regresso contra o devedor dos direitos aduaneiros, direito este, que assiste à seguradora por via de sub-rogação do credor mesmo contra o importador que pagou ao despachante os direitos e imposições devidas à Alfândega.

5. O resultado pretendido pela recorrente só poderia ser alcançado através de uma interpretação correctiva do normativo em causa. Mas, como ensina o Professor Oliveira Ascensão – O Direito – Introdução e Teoria Geral, 2.ª Ed, pág. 372 – até por razões históricas insuperáveis, uma tal espécie de interpretação não é permitida pelo nosso ordenamento jurídico.

 V. A Decisão:

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

José Avelino (Relator)

Regina Rosa

Artur Dias



Voto de vencido (do adjunto - Des. Artur Dias):

Pelas razões dele constantes, convence-me mais a solução adoptada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/11/1998, citado no texto que fez vencimento.

Nesse acórdão se concluiu que:

“O direito de regresso contra o importador de mercadorias desalfandegadas com utilização do «sistema de caução global» depende de esse importador não ter entregue ao despachante oficial o montante necessário ao pagamento dos direitos aduaneiros”.

“No caso de o importador ter feito a entrega desse montante mas o despachante não haver pago os referidos direitos, vindo o pagamento a ser efectuado pela seguradora, aquele direito de regresso (ou sub-rogação legal) deve ser exercido por ela contra o despachante oficial, por conduta ilícita (artºs 483º e 762º, nº 2 do Código Civil) e por lhe serem oponíveis as excepções que o importador poderia deduzir contra o despachante (artº 525º, nº 1 do mesmo Código)”.

Julgaria, pois, a apelação procedente e revogaria a decisão recorrida.


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