Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
426/05.3GAMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
Data do Acordão: 06/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 152º, N.º 2, DO C. PENAL
Sumário: I- O crime de maus tratos não é um crime duradouro e permanente, realiza-se através de uma pluralidade de actos ou através de um único acto.

II- O art.º 152º do CP não exige, para a verificação do crime ali previsto, uma conduta plúrima e repetitiva de actos de crueldade.

Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I - RELATÓRIO

O Ministério Público veio interpor recurso da sentença que absolveu o arguido B... da prática do crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152º, n.º 2 do CP por que vinha acusado, e o condenou pela prática de um crime de coacção p. e p. pelo art. 154º, n.º 1 do Código Penal na pena de 160 dias de multa, à razão diária de € 5,00 e, ainda no pagamento à demandante A... da quantia de € 600,00.

E, da respectiva motivação extraiu as seguintes conclusões:
1- O crime de maus tratos e infracção de regras de segurança encontra-se previsto e punido no artigo 152º, n.º l, n.º 2 e n.º 3, do Código Penal.
2- Desde a sua consagração até à reforma de 1995, teve este crime natureza pública, passando então a ter natureza semi-pública, sendo que a Lei n.º 7/2000, de 02/05, restaurou a sua primitiva natureza.
3- Subjacente à consagração do crime de maus tratos está a progressiva consciencialização ético-social da gravidade da violência doméstica e das suas devastadoras consequências no equilíbrio da família e de cada um dos seus membros, que atravessa gerações e conduz, demasiadas vezes, à morte ou à incapacitação das vítimas.
4- A conduta típica desdobra-se em múltiplas condutas parcelares, as quais, consideradas de per si, podem integrar a prática de outros crimes (como sejam a ofensa à integridade física simples, a ameaça, a injúria, a difamação, a coacção, o sequestro, entre outros) ou não assumir relevância jurídico-penal (caso de ameaças que não configurem em si mesmas um crime de ameaça ou das humilhações ou provocações).
5- O crime de mais tratos caracteriza-se por unificar e congregar as condutas parcelares num único crime, que deixam, por isso, de conformar uma pluralidade de crimes.
6- Trata-se, pois, de um crime duradouro ou permanente, ou, como também é classificado na Jurisprudência, um crime de execução permanente ou reiterada.
7- A consumação deste crime dá-se com a prática do último acto de execução.
8- O momento decisivo e, portanto, o tempus delicti, é o momento em que foi praticada a última conduta que integra o comportamento típico.
9- Sendo o crime de maus tratos um crime único, embora duradouro, que se consuma com o cometimento do último acto de execução, não há qualquer sucessão de leis no tempo, visto que a única lei em abstracto aplicável é a vigente no momento em que o crime se consuma.
10- A última conduta parcelar imputada ao arguido ocorreu, de acordo com a factualidade provada na douta sentença a quo, em 11/07/2005, pelo que é esta a data da consumação do crime.
11- Tendo a consumação do crime ocorrido na vigência da Lei n.º 7/2000, de 27/05, é esta a única lei aplicável, não havendo lugar, in casu, a quaisquer considerações quanto à aplicação da lei no tempo.
12- O crime de maus tratos tem in casu natureza pública, pelo que o Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal, sem prejuízo de a ofendida ter também apresentado queixa.
13- Perante a factualidade dada como provada na douta sentença recorrida, que se aceita inteiramente, é inegável que o arguido cometeu o crime de maus tratos por que vinha acusado.
14- Em conformidade, deverá o arguido ser condenado pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de maus tratos e infracção de regras de segurança, previsto e punido no artigo 152°, n.º l e n.º 2, do Código Penal, numa pena de prisão a fixar bem acima do limite mínimo.
15. No caso da pena de prisão aplicada ser suspensa na sua execução, deverá ser ainda imposta ao arguido a condição de não maltratar física ou psiquicamente a ofendida, em conformidade com o disposto no artigo 16°, da Lei n.º 6l/91, de 13/08 (visto que ao arguido havia sido imposta a medida de coacção de afastamento da residência).
16- Deverá ainda o arguido ser condenado na pena acessória de proibição de contactos com a vítima e de afastamento da residência, consagrada no n.º 6, do artigo 152°, do Código Penal.

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O arguido não respondeu.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer defendendo a improcedência do recurso, por duas ordens de razões:
- por concordar com a tese do tribunal de 1ª instância, segundo a qual os factos praticados anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 7/2000, de 27.05, podendo constituir crimes autónomos, tais como ofensa à integridade física, ameaça e injúria, não podem ser incluídos na caracterização da conduta reiterada ou continuada que tipifica o crime de maus tratos, da previsão do art. 152º; e,
- por considerar que de acordo com os factos apurados falta o elemento subjectivo do crime de coacção por que o arguido foi condenado, pelo que deverá a sentença ser revogada e substituída por outra que contemple a absolvição (integral) do arguido.
Os autos tiveram os vistos legais.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
É do seguinte teor a decisão recorrida (por transcrição):
1.1. Factos provados
1. O arguido e A... são casados há mais de 45 anos, tendo duas filhas, e estão separados desde 11 de Julho de 2005.
2. Ao longo de todo o período de convivência conjugal, sempre no interior da casa de morada de família, situada no ......., Montemor-o-Velho, o arguido manifestou em relação à sua mulher uma personalidade agressiva e violenta.
3. Muitas vezes o arguido dirigiu a A... expressões como “vaca”, “puta”, “porca”, “tens os amantes à tua espera”, “eu mato-te”, “eu corto-te o pescoço” e “eu corto-te às postas”.
4. Muitas vezes o arguido se dirigiu a A... e, enquanto a acusava de ter amantes e de o andar a trair, desferia-lhe murros e bofetadas na cabeça, apertava-lhe e torcia-lhe os braços e o pescoço e empurrava-a, projectando-a contra os móveis e as paredes ou para o chão.
5. Nessas ocasiões, sucedeu por vezes o arguido exibir-lhe facas, no intuito de a intimidar ainda mais.
6. A primeira vez que tal sucedeu foi cerca de ano e meio depois de se casarem.
7. Estes comportamentos tornaram-se mais frequentes pelo há cerca de 15 anos.
8. Numa noite, há cerca de 12 anos, o arguido desferiu vários murros e encontrões à denunciante, após o que a arrastou para fora de casa, dizendo-lhe que se tentasse entrar a cortava às postas.
9. Alertada pelo ruído, a testemunha C... veio à janela de sua casa e, condoendo-se da denunciante, acolheu-a em sua casa, juntamente com um neto que a acompanhava, onde ficou a residir cerca de 15 dias.
10. Depois deste período de separação, a denunciante e o arguido reataram a convivência conjugal, regressando aquela ao lar.
11. No dia 11 de Julho de 2005, cerca das 21 horas, o arguido expulsou A... de casa, após o que fechou a respectiva porta.
12. Quando esta tentava entrar, o arguido saiu de casa e dirigiu-se-lhe empunhando uma navalha.
13. A denunciante, em pânico, solicitou socorro, tendo acorrido ao local uma brigada da GNR de Montemor-o-Velho, que tomou conta da ocorrência.
14. Temendo pela sua vida, a denunciante não regressou a casa, tendo arrendado uma casa onde morar, pela qual paga € 100,00 mensais de renda.
15. A denunciante, por vergonha e por medo do arguido, nunca recebeu tratamento médico na sequência das agressões, nem nunca apresentou queixa, limitando-se a desabafar com as amigas e vizinhas, nomeadamente as testemunhas C..., D... , E... e F... .
16. O arguido agiu com o propósito conseguido de infligir à sua mulher maus tratos físicos e psíquicos, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
17. O arguido não tem antecedentes criminais.
18. Tem como habilitações literárias o 6º ano de escolaridade; encontra-se reformado auferindo uma pensão de reforma de € 600,00 mensais.
19. A denunciante sofre de diabetes, suportando despesas avultadas em medicamentos, e tem como única fonte de rendimentos uma reforma no valor de € 245,00 mensais.

1.2. Factos não provados
a) Que o arguido dirigisse à denunciante as expressões referidas no ponto 3 quase todos os dias;
b) Que de há cerca de 15 anos a esta parte o arguido passou a tomar estas atitudes pelo menos uma vez por mês;
c) Que no dia 11 de Julho de 2005 o arguido se dirigiu à denunciante, desferiu-lhe diversos murros e empurrou-a até à rua, após o que entrou em casa;
d) Que depois de ter sido expulsa da casa de habitação, a denunciante procurou refúgio junto das filhas.

1.3. Motivação
A convicção do tribunal, no que respeita aos factos descritos na acusação, alicerçou-se fundamentalmente nas declarações da denunciante, A..., que depôs de forma segura, clara e convincente, dando conta das agressões verbais e físicas de que foi vítima ao longo da convivência que manteve com o arguido durante mais de quarenta anos, e que tiveram início pouco mais de um ano sobre a data do respectivo matrimónio, das repercussões de tais agressões continuadas e da forma como a sua convivência conjugal findou, tudo em termos essencialmente concordantes com a descrição constante da acusação.
É certo que tais declarações não foram corroboradas por nenhum meio de prova directo, como sejam testemunhas presenciais das agressões, e que a denunciante nunca foi sujeita a exames médicos que atestassem as lesões causadas pelo arguido.
Todavia, os demais depoimentos produzidos em audiência vieram dar apoio ao depoimento da denunciante, de forma a convencer o tribunal da sua valia – sendo certo que este depoimento assume no caso um relevo acrescido, por se reportar a factos ocorridos na dentro do domicílio conjugal (cfr. a propósito do relevo do depoimento da vítima no âmbito da violência doméstica, o Ac.da RE de 9.03.2004, www.dgsi.pt).
Nesse sentido, desde logo as declarações do arguido, que apesar de negar parte dos factos constantes da acusação, que classificou de fantasiosa e exagerada, admitiu em audiência que, ao longo da respectiva convivência conjugal, ameaçou algumas vezes a denunciante com agressões físicas, exibiu-lhe ocasionalmente facas, chamou-lhe algumas vezes “porca” e agarrou-a pelos braços.
Mais relevante do que admissão parcial de alguns dos factos referidos na peça acusatória, no sentido de credibilizar as declarações da denunciante, foi o facto de o arguido ter revelado em audiência uma personalidade que corresponde ao perfil característico de um agressor, como seja o facto de formular constantes acusações à sua mulher (v.g., que esta não lhe cozinhava o jantar a horas, que não mantinha a casa limpa e que passava muito tempo fora de casa, queixas com que justificou o seu comportamento), e o facto de querer isolar a sua mulher das vizinhas e das amigas com quem esta se relacionava, evidenciando claramente a intenção de a dominar e de condicionar o seu poder decisão.
Por outro lado, as testemunhas C..., D..., E... e F..., pessoas que foram vizinhas da denunciante e do arguido, e que depuseram de forma isenta e desinteressada, confirmaram que ao longo dos anos a denunciante, por diversas vezes, se queixou dos maus tratos que lhe eram infligidos pelo arguido, evidenciando sempre não só uma profunda tristeza (que chegou a culminar numa tentativa de suicídio), como também um grande temor pelo eventual agravamento das condutas do arguido; a testemunha C... chegou inclusivamente a escutar a voz alterada do arguido em algumas das situações ocorridas e a acolher a denunciante em sua casa, enquanto a testemunha E... viu algumas vezes a denunciante apresentar hematomas na cabeça e nos braços.
Face à conjugação destes depoimentos, analisados à luz das regras da experiência comum, criou-se a convicção da efectiva verificação dos fatos descritos na acusação.
Teve-se ainda em consideração a certidão de nascimento de folhas 41, o certificado de registo criminal de folhas 10 e as declarações do arguido relativamente à sua situação socio-económica.
Os factos não provados resultaram de nenhuma prova ter sido produzida acerca dos mesmos – observando-se a este propósito que a própria vítima esclareceu que não foi agredida fisicamente não dia 11 de Julho de 2005.

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APRECIANDO

Sendo o objecto do recurso fixado pelas conclusões retiradas pelo recorrente da respectiva motivação, a questão colocada à apreciação deste tribunal consiste em saber se a conduta do arguido configura efectivamente a prática de um crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152º, n.ºs 1 e 2 do CP, pelo que deveria ter sido condenado em conformidade.
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Vinha o arguido acusado da prática de um crime de maus tratos a cônjuge p. e p. pelo art. 152º, n.º 2 do Código Penal.
Segundo este preceito, quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos ou o tratar cruelmente, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo art. 144.º do mesmo diploma.
Este tipo de crime visa a protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, sustentando Taipa de Carvalho ( [1] ) que o bem jurídico aqui protegido é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade pessoal do cônjuge.

Considerou o tribunal a quo que o arguido, ao longo do respectivo casamento, dirigiu à sua mulher expressões injuriosas e ameaças e a agrediu fisicamente, empregando sobre ela maus tratos psíquicos e físicos (fls. 91).
Mais considerou que:
- as ocorrências anteriores a 2 de Junho de 2000 (visto que a Lei nº 7/2000, de 27 de Maio, passou a caracterizar o crime de maus tratos a cônjuge como crime público, e, quanto às anteriores ocorrências se extinguira a possibilidade de procedimento criminal, por falta de apresentação de queixa da ofendida) não poderão ser valorados para efeito do preenchimento do tipo de crime de maus tratos; e
- quanto aos factos posteriores a Junho de 2000, em concreto apenas se apurou que o arguido, no dia 11 de Julho de 2005, expulsou a sua mulher da residência do casal e impediu-a de entrar, exibindo-lhe para tanto uma faca [verificando-se que os demais factos dados como provados (relativos a injúrias e agressões) se não encontram minimamente circunstanciados e concretizados no tempo, de forma a considerar-se que aquela ocorrência se enquadra numa reiteração de actos ou num continuar de sucessivas acções susceptível de configurar o conceito de maus tratos], sendo certo que a mencionada ocorrência, por si só, não assume gravidade suficiente para integrar o tipo de crime de maus tratos (…) os quais integrarão a prática de um crime de coacção, p. e p. pelo art. 154º, nº1, do Código Penal.

Discordamos da apreciação efectuada pelo tribunal recorrido.
Com efeito, com a Lei nº 7/2000, de 27.05, o crime de maus tratos a cônjuge passou a revestir a natureza pública, mas essa era também a natureza do crime antes da reforma penal introduzida pelo DL n.º 48/95, de 15.03, como se pode observar no art. 153º do CP/82 ([2] ). Ou seja, há um lapso temporal de cerca de 5 anos em que o crime de maus tratos a cônjuge revestiu a natureza semi-pública, logo dependente de queixa.
Sendo certo que, tal como concluiu o tribunal, ao longo do casamento - 45 anos - o arguido dirigiu à sua mulher expressões injuriosas e ameaças e a agrediu fisicamente, empregando sobre ela maus tratos psíquicos e físicos.
Neste tipo de ilícito a tónica tem de ser colocada na sua concretização, na forma como o crime de maus tratos se realiza.
Contrariamente ao invocado pelo recorrente, entendemos que não se trata de um crime duradouro ou permanente. Nestes crimes, de que é exemplo o sequestro, a consumação material inicia-se com a efectiva privação da liberdade e só termina com a libertação da vítima; portanto, é criada determinada situação antijurídica, situação essa que se vai mantendo; há um único acto que se vai prolongando no tempo.
No crime de maus tratos tal não acontece. O crime de maus tratos realiza-se através de uma pluralidade de actos, ou através de um único acto, que atingiram a saúde física, psíquica ou mental do cônjuge e afectaram a sua dignidade pessoal.
Por outro lado, não desconhecendo que alguma doutrina e jurisprudência defendem que o tipo de crime em causa pressupõe uma reiteração das respectivas condutas, não perfilhamos tal entendimento.
Desde logo, não se nos afigura que da letra do preceito, ou do anterior art. 153º, resulte a necessidade da verificação de uma acção plúrima, reiterada.
Assim, seguindo de perto o Ac. da Rel. Évora de 29-11-2005, in www.dgsi.pt, que perfilhou a tese do Supremo Tribunal de Justiça ([3].), também consideramos que “o art. 152º do CP não exige, para verificação do crime nele previsto, uma conduta plúrima e repetitiva dos actos de crueldade”. Tal dispositivo legal “abarca qualquer conduta do cônjuge ofensor que pela sua gravidade ponha em causa a dignidade humana do cônjuge ofendido que por via dela fique ostensivamente desprotegido na sua individualidade própria de pessoa humana, ou dito de outra forma, só as ofensas, ainda que praticadas por uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, ou seja que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária por parte do agente é que cabem na previsão no art. 152º do CP”.

Em função do expendido, concluímos que, face à factualidade dada como provada, a conduta do arguido preenche o crime de maus tratos a cônjuge que lhe era imputado.
De todo o circunstancialismo resulta, como bem referiu a Mmª Juiz, que ao longo do respectivo casamento, o arguido dirigiu à sua mulher expressões injuriosas e ameaças e a agrediu fisicamente, empregando sobre ela maus tratos psíquicos e físicos. Daqui decorre que o arguido, no caso vertente, realizou uma pluralidade de actos que culminou com a actuação vertida em 11., 12., 13. e 14. dos factos provados, e datada de 11-7-2005.
De qualquer forma, e aqui uma vez mais discordando da sentença recorrida, esta última actuação, por si só, era idónea e suficiente para integrar a prática do aludido crime.
Na verdade, o arguido expulsou a ofendida da casa de morada de família, de noite, e quando esta tentava entrar, o arguido (que, para além dos factos provados, como se referiu na Motivação, revelou uma personalidade que corresponde ao perfil de agressor) dirigiu-se-lhe empunhando uma navalha, tendo a ofendida, em pânico, solicitado socorro. Não temos qualquer dúvida em afirmar que esta conduta revestiu gravidade suficiente para integrar o crime de maus tratos.
Como se escreveu no Acórdão desta Relação, de 29-1-2003, in www.dgsi.pt «Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge. O que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade da vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.».
Em conformidade, deverá o arguido ser condenado pela prática do crime p. e p. pelo artigo 152º, n.º 2 do Código Penal.
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Tal crime é punível, em abstracto, com prisão de 1 a 5 anos.
Ora, para a determinação da medida concreta da pena há que fazer apelo aos critérios definidos pelo artigo 71º do mesmo Código, nos termos do qual, tal medida será encontrada dentro da moldura penal abstractamente aplicável, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.
Deste modo, o juiz conforme a natureza do facto punível, a sua gravidade e a forma de execução, aplicando o direito, escolhe uma das várias possibilidades legalmente previstas.
No entanto, em caso algum, a pena poderá ultrapassar a medida de culpa do agente, concretamente revelada, correspondendo o limite superior da pena ao máximo grau de culpa e, o limite mínimo aquele abaixo do qual se não respeitam as expectativas da comunidade (art. 40º, n.º 2 do C.Penal).
Porém, não pode apenas atender-se à culpa e à sua medida, impôs o legislador que a determinação concreta da pena seja feita também em função da prevenção. O que no entender do Prof. Figueiredo Dias “(…) é perfeitamente compreensível e justificável; através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências da prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária de punição do caso concreto e, consequentemente, à realização “in casu” das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limita de forma inultrapassável as exigências de prevenção” (cfr. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime – Notícias editorial – pág. 215).
Com efeito, para além da idade do arguido, que conta actualmente 72 anos de idade, resultou provado que não tem antecedentes criminais.
Por outro lado, como salienta o recorrente na sua motivação, a violência doméstica é uma realidade social muito grave e que urge combater, tornando particularmente prementes as exigências de prevenção geral; a que acrescem as elevadas necessidade de prevenção especial, atendendo a que o arguido agiu com dolo intenso, sendo elevado o grau da culpa, à persistência do seu comportamento e, considerando ainda a sua personalidade agressiva, que até em julgamento não se coibiu de demonstrar.
Deste modo, em função dos factores enumerados, entendemos como proporcional e adequada a pena de 2 (dois) anos de prisão a impor ao arguido.
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De acordo com o preceituado no artigo 50º do Código Penal, o tribunal afirma a prognose social favorável em que assenta o instituto da suspensão da execução da pena, se conclui que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, devendo, para tal, atender à personalidade do agente; às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
E só deve decretar a suspensão da execução quando concluir, face a esses elementos que essa é a medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade. O Tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do arguido para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa (neste sentido o Ac. do STJ de 11-01-2001, proc. n.º3095/00-5).
Perante o citado normativo os julgadores não podem estribar-se em condições acerca da culpa do arguido, mas somente reportar-se às finalidades preventivas da punição. A suspensão terá, assim, de assegurar as finalidades da prevenção geral e as necessidades de prevenção especial ou de reintegração.
Em suma, é necessário que, por um lado se faça uma prognose social favorável quanto ao arguido no sentido de que, perante a factualidade apurada se conclui que o mesmo aproveitará a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, não voltando, com elevado grau de certeza, a delinquir e, por outro lado, que a suspensão cumpra as exigências de reprovação do crime servindo para satisfazer a confiança da comunidade nas normas jurídicas violadas.
In casu, atendendo à sua avançada idade e que não lhe são conhecidos antecedentes criminais, afigura-se-nos que pode formular-se quanto ao arguido uma prognose favorável, no sentido de que, não voltará a delinquir; fixando-se a duração da suspensão em 4 anos, mas condicionada nos termos que a seguir se mencionam.
Estabelece o n.º 2 do art. 16º da Lei n.º 61/91, de 13.08 (Diploma que garante protecção adequada às mulheres vítimas de violência), que sempre que a medida de coacção de afastamento da residência for imposta ao arguido (nos termos do n.º 1), a pena que vier ser aplicada só poderá ser suspensa com a condição de o arguido não maltratar física ou psiquicamente a mulher.
E, como se observa do despacho de fls. 51 foi a aludida medida de coacção aplicada ao arguido.
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Finalmente, atendendo também ao comportamento agressivo que o arguido manteve para com a ofendida, ao abrigo do disposto no artigo 152º, n.º 6 do Código Penal, é aplicada ao arguido a pena acessória de proibição de contacto com a ofendida A..., incluindo a proibição de afastamento da residência desta, pelo período de 2 anos.

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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:
- Conceder provimento ao presente recurso e, em consequência:
a) revogar a sentença recorrida, na parte em que absolveu o arguido B... da prática do crime de maus tratos e o condenou pela prática de um crime de coacção p. e p. pelo art. 154º, n.º 1 do CP;
b) condenar o arguido pela prática de um crime de maus tratos a cônjuge p. e p. pelo artigo 152º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão,
c) suspender a execução desta pena, pelo período de 4 (quatro) anos, na condição de, no referido período, o arguido não maltratar física ou psiquicamente a mulher A...,
d) aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contacto com a ofendida A..., incluindo a proibição de afastamento da residência desta, pelo período de 2 anos.
- manter no mais a decisão recorrida.
Sem tributação.

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[1] - in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 332.
[2] - para além da Lei n.º 65/98, de 02.09, embora mantendo a natureza semi-pública, ter consagrado a possibilidade de o MP dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impusesse e não houvesse oposição do ofendido antes de ser deduzida a acusação.
[3] - Acs. do STJ de 17-10-1996, in CJ, III, pág. 170, e de 14-11-1997, in CJ, III, pág. 235