Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
665/1998.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VÍTOR
Descritores: CLÁUSULA CONTRATUAL
DOCUMENTO AUTÊNTICO
PROVA TESTEMUNHAL
UNIÃO DE CONTRATOS
Data do Acordão: 01/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 373º A 379º DO CÓDIGO CIVIL
Legislação Estrangeira:
Sumário: 1. Inserindo-se uma cláusula contratual no âmbito de um documento autêntico ou dos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º do Código Civil, é inadmissível a prova por testemunhas se tiver por objecto quaisquer convenções anteriores à respectiva formação, dele contemporâneas ou posteriores.
2. Estamos em presença da figura da “união de contratos” quando se reúnem dois ou mais mantendo cada negócio maior ou menor autonomia. Tal união pode ser extrínseca, extrínseca com dependência e alternativa.
3. Apresentando-se todavia as relações contratuais entre as partes como emergem do contrato de fls. 6 em que a venda de semente da Autora à Ré e da colheita desta última para àquela surgem no âmbito de uma série de actos interligados, verifica-se uma fusão patenteada num contrato misto no qual convergem elementos da compra e venda e prestação de serviços.
4. Fornecendo a Autora semente à Ré agricultora, no valor de Esc. 1 321 190$00, a fim de que esta última lhe entregasse a colheita e não o tendo esta feito em virtude de factores climatéricos adversos que provocaram a perda daquela, repugna à consciência jurídica que a Ré ainda assim reclame da Ré aquele valor.
5. Deverá considerar-se a pretensão da Autora ofensiva da boa-fé ainda que coberta por uma cláusula contratual, aliás ao arrepio do que o Legislador do Código Civil estatuiu no artigo 796º nº 1 segundo o qual o risco caberia in casu à Autora.
6. Nesta conformidade não cabe à Autora indemnização pelo valor da semente que não frutificou por razões não imputáveis à Ré.
Decisão Texto Integral:

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.

A......, intentou a presente acção declarativa sob a forma sumária contra B... e marido, C...., pedindo a condenação dos Réus no pagamento da quantia de 1.321.190$00, acrescida de juros vincendos desde a data da citação.
Para tanto, alega que, no âmbito da sua actividade comercial celebrou um contrato de fornecimento de ervilha com a Ré, nos termos do qual lhe forneceria sementes de ervilha, serviço de sementeira (tudo no dito valor de 1.321.190$00) e toda a assistência técnica.
Acordaram as partes que se a Ré deixasse que a cultura viesse a sofrer danos por vários factores, de onde resultasse a impossibilidade da colheita mecânica não seria imputada qualquer responsabilidade à Autora.
Acontece que no final do processo de cultura não houve produção que a Autora pudesse adquirir, por falta de cumprimento das instruções dadas pela Autora, por parte da Ré.
Finalmente, alega que o preço da sementeira seria descontado no preço que a Autora viesse a adquirir à Ré, tendo a Autora sofrido grande prejuízo pela falta de produção.
Os Réus contestaram. A Ré mulher excepciona a prescrição do crédito invocado, por já terem decorrido mais de três anos desde a data da factura e a da sua citação e a ilegitimidade do Réu, uma vez que está judicialmente separada de bens do Réu, sendo ela a única outorgante do contrato em causa. No mais, impugna parcialmente a factualidade invocada pela Autora, negando não ter cumprido as instruções dadas por aquela e imputando a impossibilidade da colheita às chuvas diluvianas que ocorreram.
Conclui, pugnando pela sua absolvição do pedido.
O Réu invoca, nos mesmos termos a sua ilegitimidade e, no mais, reproduz a contestação apresentada pela Ré.
A Autora respondeu alegando que a Ré exerce a actividade de agricultora como actividade comercial concluindo assim pela não prescrição do seu crédito.
No saneador conheceu-se da validade e regularidade da instância relegando-se para final o conhecimento das invocadas excepções.
Procedeu-se a julgamento acabando por ser proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente e assim condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 6.590.07, acrescida de juros à taxa legal que em cada momento for devida desde 10/3/1999, até efectivo e integral pagamento.
Daí o presente recurso de apelação interposto pela Ré, a qual no termo da sua alegação pediu que se profira Acórdão no sentido de se considerar que a recorrente não é devedora da recorrida, atenta a divisão de risco contratualizada que impõe que cada um dos outorgantes do contrato arcasse com os seus prejuízos.
Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) O Sr. Juiz a quo ao dar como não provada a matéria constante no nº 33 da base instrutória efectuou um julgamento errado da prova existente nos autos;
2) O depoimento da testemunha ......, proferido na cassete 1, lado B a voltas 111 a voltas 276, do referido lado e que aqui se dá por integralmente reproduzido, é claro quanto a quem competia os riscos do contrato, pelo que deveria ter sido dado como provada a matéria constante no nº 33 da Base instrutória, ou seja que "o contrato celebrado entre a A. e a R. pressupunha, como se veio a efectuar, uma divisão dos riscos da cultura?”;
3) Mas ainda que não se considerasse o testemunho como suficiente para se dar como provado o constante no artº 33, a prova documental existentes nos autos, o contrato celebrado, por si só ou conjuntamente com o testemunho supra referido, é suficiente para se dar como provado o ponto da base instrutória;
4) O Sr. Juiz a quo efectua uma deficiente leitura, quer literal quer lógica do contrato celebrado entre recorrente e recorrida, pelo que enferma a sua decisão de dar como não provado o ponto 33 da base instrutória, de erro;
5) Violou assim a sentença em análise o disposto no artº 653º nº 2 do C.P.C., pelo que se deve dar como provada a matéria constante no nº 33 supra-aludido;
6) A qualificação dada ao contrato pelo Sr. Juiz a quo é incorrecta, porquanto entende estarmos perante uma união de contratos, ambos de compra e venda.
7) Estamos sim perante um contrato atípico misto, do tipo múltiplo, em que se verifica uma componente de contrato de compra e venda, um contrato de prestação de serviços consubstanciado numa empreitada e um contrato de compra e venda de bens futuros;
8) Face à caracterização do contrato, partindo da teoria da combinação, verifica-se que aplicando, ao fornecimento da semente de ervilha, a regra geral do artº 796 do C. C. e à sementeira as normas dos artsº 1 228º e 1212º do C. C., a responsabilidade pelo perecimento da coisa deveria caber à Recorrente, tendo esta de pagar as prestações peticionadas pela recorrida.
9) Porém, as normas supra-indicadas têm carácter supletivo, nada impedindo que as partes fixem em moldes diferentes o regime do risco, o que estas de facto fizeram;
10) Desde logo tal se verifica, sendo (como é claro e evidente) provado o nº 33 da base instrutória, que o acordo entre a Ré e a Autora pressupunha divisão de riscos de cultura, pelo que o prejuízo adveniente do perecimento total da mesma deverá ser suportado pelas duas partes;
11) Ou seja: as duas partes fixaram em moldes diferentes daqueles que as regras gerais quanto aos tipos de contrato prevêem de forma supletiva a questão do risco do contrato, prevendo a divisão dos mesmos e assunção dos prejuízos para si mesmo atento a impossibilidade superveniente da produção não imputável a qualquer um dos contraentes;
12) Pelo que a sentença julgou erradamente o presente processo, violando o disposto no artº 809º do Código Civil a contrario.
Contra-alegou a apelada pugnando pela confirmação da sentença.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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2. FUNDAMENTOS.

O Tribunal deu como provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. A Autora é uma Sociedade comercial, que tem por objecto a actividade de produção, tratamento, conservação e comercialização de produtos alimentares (al. A) dos factos assentes).
2.1.2. No âmbito da sua actividade comercial, a Autora efectuou com a Ré, um contrato de fornecimento de semente de ervilha da variedade Triscar, datado de 16 de Novembro de 1995, cuja cópia se mostra junta, constituindo doc. nº 1, que se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais (al. B) dos factos assentes).
2.1.3. Conforme o estabelecido no contrato ora em apreço, o 2º Outorgante e ora Ré mulher, semearia a ervilha no seu terreno sito em Taipadas, numa área de 20 Ha (al. C) dos factos assentes).
2.1.4. Por seu lado a 1º outorgante, ora Autora, forneceria 197 doses de semente de ervilha Bolero Tristar, ao preço de 5 765$00 + IVA por dose, garantindo a sua qualidade (resposta ao facto nº 1 da BI).
2.1.5. A 1ª Outorgante cobraria ainda a quantia de 5.5000$00 +IVA/Ha à 2ª Outorgante ora Ré, pelo serviço de sementeira (resposta ao facto n.º 2 da BI).
2.1.6. Toda a assistência técnica, regras e procedimentos necessários a esta produção seriam fornecidos gratuitamente pela 1ª Outorgante, através dos seus técnicos (al. D) dos factos assentes).
2.1.7. A 1ª Outorgante obrigou-se a comprar e a 2º a vender-lhe toda a ervilha em grão que esteja dentro das normas de qualidade definidas no contrato, da produção da campanha de l996 (cfr. cláusula 2ª do contrato referido em B).
2.1.8. A 2ª outorgante vinculou-se no sentido de que, caso não cumprisse as instruções dadas pelo técnico da autora, e isso, viesse a afectar a produção, colheita ou a qualidade final do produto, a 1º Outorgante declinaria quaisquer responsabilidades, conforme cláusula 4ª do contrato referido em B) (al. E) dos factos assentes).
2.1.9. Foi ainda acordado que se por falta de rega, tratamentos fitossanitários ou factores endo-climáticos (chuva ou estado do terreno), dos quais resulte impossibilidade de colheita ou falta de qualidade do produto, a 1º Outorgante não procederá à colheita mecânica da totalidade ou parte da área semeada, não sendo imputada quaisquer responsabilidades à 1ª Outorgante, pelo que não haverá direito a qualquer indemnização (resposta ao facto nº 3 da BI).
2.1.10. A Autora forneceu as sementes de ervilha de qualidade garantida, prestou o fornecimento técnico no processo de semeadura e deu instruções à Ré, quanto aos cuidados a ter com a produção (als. F), G) e H) dos factos assentes).
2.1.11. No final do processo de cultura não houve produção que a Autora pudesse adquirir, nos termos contratados (resposta ao facto n.º 4 da BI).
2.1.12. A Autora tem conhecimento do facto de terem existido à época chuvas fortes, que provocaram o alagamento da cultura (resposta ao facto n.º 6 da BI).
2.1.13. A Autora havia fornecido à Ré semente de ervilha Tristar no valor de Esc. 1 135 705$00, conforme factura nº 7908 de 29.12.95, a qual inclui ainda e nos termos do contrato, a cobrança do valor de serviço de sementeira que totalizava 110.000$00, tudo num total de Esc. l 321 190$00 (resposta ao facto nº 7 da BI).
2.1.14. O preço da semente seria descontado no valor final da produção que a Autora viria a adquirir à Ré (resposta ao facto nº 8 da BI).
2.1.15. A Autora teve um grande prejuízo pela falta de produção como resultado final a que o contrato acordado com a Ré se propunha (resposta ao facto n.º 9 da BI).
2.1.16. A Ré é agricultora (resposta ao facto nº 16 da BI).
2.1.17. No acordo realizado competia à Autora a comercialização da ervilha que eventualmente viesse a ser produzida (resposta ao facto nº 17 da BI).
2.1.18. A Ré e outro agricultor também relacionado com a Autora devolveram à “COOPERFOROS”, sita em Foros de Salvaterra de Magos, cerca de 27 sacos de semente (resposta ao facto n.º 18 da BI).
2.1.19. Tal sucedeu a mando dos serviços técnicos da Autora (resposta ao facto nº 19 da BI).
2.1.20. Depois da celebração do contrato a Ré e a Autora, através de um seu técnico, o Sr. Eng.º Francisco Mindrico, iniciaram a cooperação para a realização da cultura (resposta ao facto nº 20 da BI).
2.1.21. Tudo o que foi sendo dito pelo referido representante foi sendo cumprido na íntegra pela Ré (resposta ao facto nº 21 da BI).
2.1.22. O desenvolvimento inicial da cultura foi excelente, decorrendo tudo como seria de esperar devido ao empenhamento da R. e às indicações técnicas do representante a Autora (resposta aos factos n.ºs 22 e 23 da BI).
2.1.23. Em Dezembro de 1995 e Janeiro de 1996 ocorreu uma calamidade (resposta ao facto nº 24 da BI).
2.1.24. Na zona de Canha, no local onde foi efectuado o cultivo, ocorreram más condições climatéricas, nomeadamente chuvas diluvianas, durante dias a fio, por cerca de um mês e meio (resposta aos factos nsº 25, 26 e 27 da BI).
2.1.25. As condições climatéricas destruíram completamente a cultura das ervilhas (resposta ao facto nº 28 da BI).
2.1.26. Esta situação causou graves prejuízos, avaliados pelos Técnicos do Núcleo da Zona Agrária da Península de Setúbal no Montijo em 2.830.070$50 (resposta ao facto n.º 29 da 61).
2.1.27. O que não possibilitou efectuar qualquer colheita (resposta ao facto n.º 30 da BI).
2.1.28. Todos os desenvolvimentos foram acompanhados de perto pelo representante da Autora, que verificou as condições da plantação, após a intempérie, e todos os danos decorrentes da mesma (resposta ao facto n.º 31 da BI).
2.1.29. Sempre foi a Autora posta ao corrente de tudo o que se passou, através de contactos diversos (resposta ao facto nº 32 da BI).
2.1.30. Competia à Autora fornecer a semente e o apoio técnico e à Ré fornecer o seu trabalho e esforço, além de afectar para os interesses da Autora a parcela de terreno que tinha arrendada (resposta ao facto nº 34 da BI).
2.1.31. Os Réus são casados entre si desde 13/12/1975, no regime de comunhão de adquiridos, tendo sido decretada a separação judicial de bens dos Réus por sentença de 27 de Outubro de 1987, transitada em julgado em 6/11/87, proferida pelo Tribunal Judicial da comarca de Benavente.
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2.2. Reapreciação da matéria de facto.

Insurge-se a Apelante Maria António Gomes Casaca contra a resposta conferida ao quesito 33º da Base Instrutória.
Perguntava-se neste quesito o seguinte: “O contrato celebrado entre A. e a R. pressupunha, como se veio a efectuar, uma divisão dos riscos da cultura?”

O Tribunal respondeu negativamente a este quesito, pretendendo a Apelante que lhe fosse conferida resposta positiva.

Decidindo:

A Apelante não tem razão; o decidido em tal matéria baseou-se nomeadamente no documento de fls. 6, cuja cláusula 11ª que se relaciona directamente com o quesito em análise é expressa no sentido de referir que “Se por falta de rega, tratamentos fito-sanitários, ou factores endo-climáticos (chuva ou estado do terreno) dos quais resulte a impossibilidade da colheita ou falta de qualidade do produto, o primeiro outorgante não procederá à colheita mecânica da totalidade ou parte da área semeada, não sendo imputadas quaisquer responsabilidades ao primeiro outorgante, pelo que não haverá lugar a qualquer indemnização). O contrato mostra-se subscrito por ambas as partes e não foi de modo algum impugnado. Perante isto bem se compreende a irrelevância do depoimento da testemunha ..... ao referir que o contrato em análise é igual ao dele pressupondo a divisão dos riscos entre os respectivos intervenientes. A isto acresce que, nos termos do artigo 394º do Código Civil, “É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”. Ora inserindo-se o documento em causa dentro do âmbito dos enumerados pelo normativo em causa, também não poderia ser impugnado pela via testemunhal, sendo certo que não foi apresentada qualquer tipo de prova superior que o pudesse infirmar.
Improcede pois nesta conformidade o pedido de alteração da matéria de facto.
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2.3. O Direito.

Nos termos do preceituado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

- Caracterização do contrato celebrado entre as partes.
- A solução do caso à luz dos factos provados e da lei aplicável.
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2.3.1. Caracterização do contrato celebrado entre as partes.

A primeira questão a resolver emergente dos factos provados traduz-se em apurar a natureza do contrato em presença.
São a este respeito divergentes as posições das partes; na verdade enquanto a Autora subsume a relação contratual das partes em dois contratos de compra e venda unificados, já a Ré aponta para “um contrato atípico misto do tipo múltiplo, em que se verifica uma componente de contrato de compra e venda, um contrato de prestação de serviços consubstanciado numa empreitada e um contrato de compra e venda de bens futuros”.
A sentença apelada inclinou-se para a figura da “união de dois contratos” de compra e venda.
Tal qualificação não tem a nossa concordância.
Estamos em presença da figura da “união de contratos” quando se reúnem dois ou mais mantendo cada negócio maior ou menor autonomia. Assim a união pode ser extrínseca, extrínseca com dependência e alternativa Cfr. Galvão Telles “Manual dos Contratos em Geral”, 4ª Edição, 2002, pags 475 ss. . No caso vertente poderia parecer estarmos perante uma união com dependência; em tais casos, para além da união extrínseca de contratos, existe uma associação mais estreita entre ambos de tal modo que a validade e vigência de um contrato depende da validade e vigência do outro Cfr. Ac. do S.T.J. de 4-6-1995 (P. 88 341) in Col. de Jur., 1996, 2, 102; de 27-2-1996 (P. 88 157) in Col. de Jur., 1996, 1, 99; da Rel. de Évora de 23-2-1989 (R. 419/88) in Col. de Jur., 1989, 1, 256.






; no fundo legitimam-se e justificam-se reciprocamente. Assim o contrato de compra e venda de sementes de ervilha que a 1ª Outorgante Monliz fez à Ré Apelante B...para que esta semeasse (cláusula 5º do contrato de fls. 6), teria o seu correspectivo no contrato de compra e venda de ervilha que a 1ª Outorgante se compromete a efectuar à Ré ora Apelante também interveniente no mesmo instrumento contratual; o valor da semente vendida seria descontado no preço da produção.
Todavia as relações contratuais entre as partes, tais como emergem do contrato junto a fls. 6, apresentam-se de tal forma interligadas que a venda de semente da Autora à Ré e da colheita desta última para àquela surgem no âmbito de uma série de actos que inculcam a existência de um contrato misto no qual convergem elementos da compra e venda e prestação de serviços Cfr. acerca deste tipo de contratos Pedro Pais de Vasconcelos “Contratos Atípicos Almedina, Coimbra Teses 1995, pags. 230 ss; e Rui Pinto Duarte “Tipicidade e Atipicidade dos Contratos”, Almedina, Coimbra, Teses, pags. 50, onde nomeadamente se esboça a construção de uma fronteira entre os contratos atípicos e a união de contratos.; todos os actos realizados pelas partes em comunhão de esforços seriam destinados à produção de uma colheita; a Autora forneceria a semente, respectivo transporte e apoio técnico, enquanto a Ré o terreno de semeadura e o seu trabalho; contrato que traria vantagens para ambas as partes; a Autora venderia a semente e a Ré a colheita à Autora. Assim a unicidade contratual e não a mera união é a que melhor espelha todo o relacionamento contratual das partes em que os respectivos elementos mais do que associar-se se fundem num escopo único se bem que plurifacetado.
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2.3.2. A solução do caso à luz dos factos provados e da lei aplicável.

Assente que os factos provados corporizam um contrato misto, certo é também que a Autora forneceu semente à Ré no valor de esc. 1 321 190$00; a Ré não entregou a colheita à Autora apenas por um factor que lhe foi estranho. Efectivamente, em virtude de factores climatéricos adversos, a colheita resultante da semente vendida perdeu-se completamente, como se vê da resposta aos quesitos 4º e 6º.
À luz da unificação contratual a Ré é indiscutivelmente a vendedora da colheita e a Autora a adquirente; é que na verdade a venda da semente à Ré perde a sua autonomia sendo um acto pré-ordenado ao objectivo final da produção e venda da colheita à Autora. Mas em toda a relação contratual existe um risco que é supletivamente regido pelo artigo 796º nº 1 do Código Civil no que ora nos cumpre apreciar. “1. Nos contratos que importem a transferência do domínio sobre certa coisa ou que constituam ou transfiram um direito real sobre ela, o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante corre por conta do adquirente”. O risco caberia assim à Autora. É bem certo que o disposto no citado normativo legal não é imperativo, sendo susceptível de ser afastado por acordo das partes; e efectivamente consta da cláusula 11º do contrato que “Se por falta de rega, tratamentos fito-sanitários, ou factores endo-climáticos (chuva ou estado do terreno) dos quais resulte a impossibilidade da colheita ou falta de qualidade do produto), o primeiro outorgante não procederá à colheita mecânica da totalidade ou parte da área semeada, não sendo imputada quaisquer responsabilidades ao primeiro outorgante pelo que não haverá lugar a qualquer indemnização. Pretende a Autora afastar qualquer responsabilidade pelo risco de perda da colheita que em caso de compra e venda correria à face da lei por conta do adquirente, aqui a Autora Monliz Cfr. Menezes Leitão “Direito das obrigações” III, Almedina 4ª Edição, 2006 pags. 28 ss.; e o certo é que houve investimento em mão de obra por parte da Ré na plantação da ervilha e ocupação de espaço que poderia ter sido ocupado quiçá noutro tipo de cultura não tão vulnerável às intempéries.
Contudo do contrato faz parte o fornecimento de semente que serviu para a plantação de ervilha e cujo custo, agora no montante de esc. 1.321.190$00, a Autora pretende recuperar da Ré; esta insurge-se contra o decidido que anuiu ao pedido da Autora na medida em que em por via da decisão de primeira instância terá sido aquela a única que na globalidade não suportou qualquer risco.
Independentemente de não ter sido provada qualquer repartição de riscos, apuremos se face ao ordenamento jurídico há possibilidade de conferir outra solução ao caso em análise. Temos por líquido que ao sucedido não poderá ser aplicada a “teoria da pressuposição ou base negocial” com acolhimento no artigo 437º nº 1 do Código Civil “Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou a modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato”. No caso vertente a base contratual não se alterou, os pressupostos da contratação mantêm-se; só que o problema está precisamente na iniquidade da base contratual que postularia um resultado injusto não fossem as válvulas de escape do sistema jurídico (Ventilbegriffe) como a do “abuso do direito” acolhido entre nós no artigo 334º do Código Civil onde se lê “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; criar-se-ia sem essa mediação judicial correctiva, uma situação lesiva para a Ré com artificiosa cobertura legal a que importa obviar fazendo uso daquele mecanismo Cfr. Cunha de Sá “Abuso do Direito” Reimpressão, Almedina 1997, pags. 248. Menezes Cordeiro “Tratado de Direito Civil” IV, Almedina, 2005, pags. 372 ss, o qual é de conhecimento oficioso Cfr. Ac. do S.T.J. de 25-11-1999 (P. 602/99) in Col. de Jur., 1999, 3, 124; de 5-2-1987 (P. 73 777); desta Relação de 12-7-1994 (P. 215/94) in Bol. do Min. da Just., 439, 656. . Munida certamente de meios superiores de esclarecimento, a Autora, através de um hábil mecanismo de endosso de risco que era seu, à face do artigo 796º nº 1 do Código Civil alija-o através da cláusula 11ª do contrato para a Ré e ainda assim pretende acautelar o seu interesse na recuperação do custo da semente que em caso de sucesso da sementeira descontaria no montante a pagar à Ré e que agora exige judicialmente daquela. Ora afigura-se-nos que este comportamento excede manifestamente os limites da boa-fé. Assim sendo, entendemos não ser de aplicar a cláusula 11ª, devendo o risco do contrato caber também à Autora no que toca à semente que aliás fora empregue para obtenção de ervilha, tanto mais que a Ré em todo este processo nada exigiu Pedro Pais de Vasconcelos in Ob. cit. pags 397 ss expende judiciosas considerações acerca do alcance do princípio de boa-fé neste tipo de contratos.. Na verdade a Autora já arcou com a perda do seu trabalho e ocupação do terreno com aquela sementeira.
Assim e pelo que se disse, a acção terá que improceder com a absolvição da Ré do pedido que contra a mesma vem formulado.

Poderá assim concluir-se o seguinte:

1) Inserindo-se uma cláusula contratual no âmbito de um documento autêntico ou dos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º do Código Civil, é inadmissível a prova por testemunhas se tiver por objecto quaisquer convenções anteriores à respectiva formação, dele contemporâneas ou posteriores.
2) Estamos em presença da figura da “união de contratos” quando se reúnem dois ou mais mantendo cada negócio maior ou menor autonomia. Tal união pode ser extrínseca, extrínseca com dependência e alternativa.
3) Apresentando-se todavia as relações contratuais entre as partes como emergem do contrato de fls. 6 em que a venda de semente da Autora à Ré e da colheita desta última para àquela surgem no âmbito de uma série de actos interligados, verifica-se uma fusão patenteada num contrato misto no qual convergem elementos da compra e venda e prestação de serviços.
4) Fornecendo a Autora semente à Ré agricultora, no valor de esc. 1 321 190$00, a fim de que esta última lhe entregasse a colheita e não o tendo esta feito em virtude de factores climatéricos adversos que provocaram a perda daquela, repugna à consciência jurídica que a Ré ainda assim reclame da Ré aquele valor.
5) Deverá considerar-se a pretensão da Autora ofensiva da boa-fé ainda que coberta por uma cláusula contratual, aliás ao arrepio do que o Legislador do Código Civil estatuiu no artigo 796º nº 1 segundo o qual o risco caberia in casu à Autora.
6) Nesta conformidade não cabe à Autora indemnização pelo valor da semente que não frutificou por razões não imputáveis à Ré.
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3. DECISÃO.

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e assim revogando-se a sentença apelada, absolve-se a Ré do pedido.
Custas pela Autora.