Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
120/05.5TBACN-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS MENDONÇA
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
FUNDO DE GARANTIA
Data do Acordão: 11/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: LEI N.º 75/98, DE 18/11; DEC.LEI N.º 167/99, DE 13/05; ARTIGO 2006.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A obrigação do Estado à prestação de alimentos a menores é nova, subsidiária e autónoma em relação à do devedor não cumpridor, pelo que é apenas devida desde a data da sentença que a fixar.
Não é legitima a aplicação analógica do regime do artigo 2006.º do Código Civil, dada a diversa natureza das prestações e em virtude de se estar em presença de uma lei geral, no caso o Código Civil, e de uma lei especial, no caso dos diplomas regulador e regulamentar do FGADM
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
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A....instaurou o presente incidente de incumprimento contra B...., alegando que este «ainda não deu qualquer valor da pensão destinada pelo tribunal» às menores C....e D.....
Reconhecido o incumprimento e elaborado relatório social ex artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, o MP requereu que fosse determinado o pagamento pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores (FGADM) da prestação de alimentos em substituição do requerido.
Foi proferida decisão, em 18.02.2008, que determina que o FGADM assegure a prestação alimentícia devida às menores pelo seu progenitor, na quantia mensal individual de € 30,00, sendo certo que, quanto a C…, e por força da sua maioridade, tal montante compreenderia o período compreendido entre 03/03/05 a 27/03/06. A prestação é devida desde 19/01/07.
Inconformado, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, interpôs o competente recurso de agravo, cuja minuta conclui da seguinte forma:
«1. A douta decisão de fls. …, de 18/02/2008, do Tribunal Judicial de Alcanena determina que Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (FGADM) assegure uma prestação de alimentos a duas beneficiárias, «(…) sendo certo que, quanto à primeira, e por força da sua maioridade no entretanto, tal montante compreenderia o período entre 03/02/05 a 27/03/06. A prestação é devida desde 19/10/07».
2. Salvo o devido respeito, o FGADM não pode concordar com a douta decisão recorrida, porquanto, no que se refere à prestação a assegurar à maior C…., desconhece qual o motivo por que foi condenado a prestar desde 03/02/05.
3. Com efeito, as prestações do progenitor e do Fundo têm diferente natureza, a sentença de regulação de poder paternal data de 18/01/07, o requerimento que suscita a intervenção do Fundo é de 19/10/07 e a sentença de condenação a prestar de 18/02/2008.
4. O FGADM desconhece igualmente se em 03/02/05 se encontravam já preenchidos os pressupostos legais de atribuição de uma prestação a assegurar pelo mesmo, decorridos que estão 3 anos.
5. Acresce que C… nasceu em 27/03/1988, pelo que, às datas da sentença de regulação do poder paternal (18/08/06), da entrada do requerimento destinado a fazer intervir o Fundo (19/01/07), e da decisão que condena o Fundo a prestar (Fevereiro de 2008), aquela era já maior de idade. Ora,
6. Os diplomas especiais no âmbito do FGADM – Lei n.º 75/98, de 18 de Novembro e Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, que a regulamenta – destinam-se única e exclusivamente a colmatar necessidades de alimentos de que sejam credores os menores.
7. O elemento literal não permite qualquer dúvida, sendo traço comum o acentuar da vertente da menoridade. A aplicação do regime do FGADM apenas a menores é referida de forma expressa, quer na epígrafe da Lei n.º 75/98 e no preâmbulo do DL n.º 164/99, quer na designação do Fundo e no articulado de ambos os diplomas.
8. «O direito a alimentos resultante da condição jurídica de menor, extingue-se com o advento da maioridade», e esta atinge-se aos 18 anos, nos termos do artigo 130.º do CC.
9. O entendimento defendido, segundo o qual o FGADM não pode ser condenado a assegurar a prestação de alimentos a menores depois de estes atingirem a maioridade (ainda que então se verifiquem as circunstâncias previstas no artigo 1880.º do CC.), é também sufragado uniformemente pela jurisprudência, incluindo o STJ.
10. Não são devidas quaisquer prestações à maior Raquel Alves. Com efeito, não se encontra preenchido o pressuposto legal de menoridade, condicionante da atribuição de uma prestação de alimentos a assegurar pelo FGADM, pelo que nunca se constituiu quanto à mesma a obrigação de prestar.
11. Discorda também o FGADM da sua condenação a assegurar prestações de alimentos devidos desde 19/01/07, uma vez que se tratam de prestações de natureza diversa.
12. As prestações alimentícias a satisfazer pelo Fundo não vêm substituir as prestações que tenham por fundamento uma relação familiar, como configurada pelo artigo 1576.º do Código Civil. E, nem se refira também uma eventual analogia com o artigo 2006.º do CC, porquanto se está em presença de lei geral e lei especial.
13. Não há qualquer semelhança entre a razão de ser da prestação alimentar fixada ao abrigo das disposições do Código Civil e a fixada no âmbito do Fundo. A primeira consubstancia a forma de concretização de um dos deveres em que se desdobra o exercício do pode paternal; a última refere-se ao pagamento de uma nova e autónoma prestação de alimentos a cargo do Estado, em substituição do devedor, com a finalidade de proporcionar ao menor as necessárias condições de subsistência;
14. O Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, é taxativo quanto ao início da responsabilidade do Fundo pelo pagamento das prestações, decorrendo a limitação temporal expressamente indicada naquele diploma legal do n.º 5 do artigo 4.º.
15. A ratio legis dos diplomas que regulam o FGADM, é a de suprir necessidades de alimentos actuais dos menores. De facto, as necessidades pretéritas do menor estão, por natureza, satisfeitas.
16. Apenas assim se compreendem a determinação legal que faz impender sobre o Tribunal a obrigação de apuramento dos rendimentos do agregado familiar do menor e da efectivação de um inquérito sobre as suas necessidades, «posto o que decidirá»; de que a prestação se mantenha enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão (…)»; da obrigação da renovação anual da prova de que os pressupostos de atribuição se mantêm, sob pena de cessação.
17. Em caso de pretensão do requerente justificada e urgente, pode ser estabelecida uma prestação de alimentos provisória «após diligências de prova» cfr. o n.º 2, do artigo 3.º da Lei n.º 75/98, acautelando-se, deste modo, a situação dos menores face a uma possível demora na tramitação do incidente;
18. A prestação a assegurar pelo FGADM não tem um carácter incondicional. Somente a sentença determina que se encontram preenchidos os pressupostos legais condicionantes da atribuição da prestação e fixa o seu valor, pelo que, só a partir da data da mesma se constitui para o Fundo a obrigação de prestar alimentos (artigo 3.º, n.º 6 da Lei n.º 75/98; artigo 9.º, n.º 1 do DL n.º 164/99).
19. É prolífera a jurisprudência no sentido que ora se defende;
20. Assim sendo, a decisão ora recorrida contraria frontalmente a letra e o espírito da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro e no Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, considerados no seu todo, no que se refere a Raquel Alves, e viola o artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, quanto ao restante».
O Ministério Público secundou as alegações do recorrente.
O primeiro grau reparou o agravo quanto à decisão referente a C…, mas manteve-a no que respeita às prestações alimentícias no que concerne a D…..
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A questão decidenda consiste tão só em saber se o FGADM deverá ser responsabilizado pelo pagamento das prestações em dívida a partir da entrada em juízo do requerimento destinado a fazer intervir o Fundo (19/01/07) ou assegurar o pagamento das prestações apenas desde o mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal.
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São os seguintes os enunciados de dados de facto relevantes para julgamento do recurso:
1. D.... nasceu a 07/08/92, de B.... e A.....
2. Na sentença proferida em 18/08/06, nos autos de regulação do exercício do poder paternal de que estes são apenso, foi decidido:
«O pai contribuirá com a importância de € 30 (trinta euros) mensais, a título de alimentos para a filha menor D…., a ser paga até ao dia 8 de cada mês, quantia esta doravante actualizada em Janeiro de cada ano em função da taxa de inflação fixada pelo INE para o ano anterior àquele a que disser respeito e que é devida desde a data da instauração da acção».
3. O requerido nunca procedeu ao pagamento de qualquer quantia a título de alimentos devidos à menor, tal como estabelecido na decisão referida em 2.
4. O requerido não compareceu na conferência de pais designada nestes autos.
5. O requerido é seguido no Hospital Egas Moniz, em Lisboa, por doença crónica grave, sendo também seguido regularmente na Consulta de Psiquiatria do mesmo Hospital.
6. A.... Oliveira vive com a menor e a outra filha, Raquel Alves, ambas estudantes, subsistindo o agregado familiar com o valor do Rendimento Social de Inserção (€ 497,18) e das prestações familiares a crianças e jovens (€ 65,30).
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A questão decidenda é uma questão recorrente e que divide, desde há alguns anos, a jurisprudência dos nossos tribunais.
A nossa posição orienta-se claramente no sentido da posição sustentada pelo recorrente a quem damos razão.
Vejamos.
Comecemos pelo enquadramento legal.
De acordo com o artigo 1.º da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, «quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, e o alimentando não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação».
Que prestações são essas?
Precisamente as previstas no n.º 1 do artigo 2.º da citada Lei, a saber: as prestações fixadas pelo tribunal não excedentes, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC.
Compete ao FGADM assegurar o pagamento das prestações fixadas nos termos acima aludidos (artigo 6.º, n.º 2).
A garantia de alimentos devidos a menores prevista na citada Lei foi regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, em cujo preâmbulo se consignou: «De entre os factores que relevam para o não cumprimento da obrigação de alimentos assumem frequência significativa a ausência do devedor e a sua situação sócio-económica, seja por motivo de desemprego ou de situação laboral menos estável, doença ou incapacidade, decorrentes, em muitos casos, da toxicodependência, e o crescimento de situações de maternidade ou paternidade na adolescência que inviabilizam, por vezes, a assunção das respectivas responsabilidades parentais.
Estas situações justificam que o Estado crie mecanismos que assegurem, na falta de cumprimento daquela obrigação, a satisfação do direito de alimentos.
Ao regulamentar a Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, (…) cria-se uma nova prestação social, que traduz um avanço qualitativo inovador na política social desenvolvida pelo Estado, ao mesmo tempo que se dá cumprimento ao objectivo de reforço da protecção social devida a menores».
Competindo ao FGADM assegurar o pagamento das prestações de alimentos atribuídas a menores, nos termos do citado diploma, o efectivo pagamento das mesmas passou a caber ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, enquanto gestor do Fundo, por ordem do tribunal competente, através dos centros regionais de segurança social da área de residência do alimentando (artigos 2.º, n.ºs. 1 e 3, e 4.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 164/99).
Particularmente importante é o disposto no artigo 4.º, n.º 5, deste decreto, quando preceitua que «o centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal».
Pois bem, a partir deste quadro legal, a jurisprudência tem-se dividido entre aqueles que convocando, no essencial, a obrigação constitucional do Estado em proteger o direito a uma existência condigna das crianças e jovens carenciados de alimentos, defendem que o Estado deve suportar os alimentos desde a data em que o progenitor obrigado a prestá-los deixe de o fazer ou então, por aplicação do artigo 2006.º CC, desde o momento em que é requerida a intervenção do Fundo, e os que, a partir da ideia de que a obrigação estadual é nova, subsidiária e autónoma em relação à do devedor não cumpridor, sustentam que as prestações alimentares são apenas devidas desde a data da sentença que as fixar.
No caso vertente, sufragou-se a tese de que as prestações alimentares a cargo do Fundo são as devidas a partir da entrada em juízo do requerimento destinado a fazer intervir o Fundo, isto é, desde 19/01/07, e não apenas as futuras após prolação da decisão que as determina.
Ora, «as prestações alimentícias a satisfazer pelo Fundo não vêm substituir as prestações que tenham por fundamento uma relação familiar, como configurada pelo artigo 1576.º do Código Civil»; «não há qualquer semelhança entre a razão de ser das duas prestações em causa. A primeira visa assegurar no desenvolvimento da política social do Estado, a protecção do menor, proporcionando-lhe as necessárias condições de subsistência; a última consubstancia a forma de concretização de um dos deveres em que se desdobra o exercício do poder paternal».
A falta de alusão nos citados diplomas relativos ao Fundo às prestações anteriores em dívida, não pode considerar-se uma lacuna, a integrar por analogia.
Se tivesse havido o propósito de estabelecer uma qualquer responsabilidade do Estado por prestações vencidas e não pagas pelo obrigado, o legislador não teria deixado de a prever e até de cominar a modalidade e prazo de pagamento, tal como, aliás, o fez no citado artigo 4.º, n.º 5, do DL n.º 164/99.
Daí a conclusão, que também se sufraga, de que não é legitima a aplicação analógica do regime do artigo 2006.º do CC, «dada a diversa natureza das prestações e em virtude de se estar em presença de uma lei geral, no caso o CC, e de uma lei especial, no caso dos diplomas regulador e regulamentar do FGADM».
Não pode também deixar de se pôr em destaque que «a responsabilidade assumida pelo Estado é uma obrigação nova, distinta da do devedor, determinada por pressupostos próprios, uma obrigação autónoma que determina o pagamento da prestação alimentar pelo Fundo de Garantia».
Assim sendo, a obrigação do Fundo só nasce «com a decisão judicial que verifica os pressupostos da sua intervenção, ordena o pagamento e determina o seu montante, diferentemente da obrigação dos pais em «prover o sustento» dos filhos, que decorre do próprio vínculo da filiação».
E não se diga que o menor fica assim numa situação de insuportável desprotecção, à mercê das vicissitudes várias que possam protelar o processo.
Por um lado, o artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 75/98, prevê a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória quanto aos alimentos a prestar a menor que deles careça. Por outro lado, da decisão a proferir cabe recurso com efeito meramente devolutivo (artigo 3.º, n.º 5).
Por fim dir-se-á que a teleologia dos diplomas regulador e regulamentar do FGADM inculca a ideia de que houve um propósito de prover às necessidades alimentares actuais do menor e ao mesmo tempo de dissuadir atitudes menos diligentes dos progenitores, que, à custa de um retardar da actuação dos mecanismos sociais previstos, pudessem beneficiar de prestações acumuladas que, bem ponderadas as coisas, deixariam de satisfazer, com a desejada celeridade e eficiência, os bens e interesses para cuja satisfação foram criadas.
Entendemos, pois, aliás em conformidade com o que vem sendo decidido nesta 2.ª Secção Cível da Relação de Coimbra (cfr. Recursos n.º 274-B/1999.C1; 750/2001.C1; 629/2002.C2 e n.º 402-D/1997.C1), que a interpretação adequada do regime legal deve conduzir à conclusão de a responsabilidade do FGADM só começar quando a prestação é fixada pelo tribunal, rectius, no mês seguinte ao da notificação da decisão por aquele proferida.
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Pelo exposto, acordamos em conceder provimento ao recurso e em revogar a decisão recorrida, na parte em que condenou o FGADM ao pagamento das prestações vencidas, mantendo-a quanto ao mais.
Sem custas.
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04.11.08
(Luís Correia de Mendonça)

(Maria da Graça Santos Silva)

(A. Costa Fernandes)