Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
212/20.0T8PVC-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
SUPRIMENTO DE CONSENTIMENTO DO REQUERIDO
Data do Acordão: 10/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 141º C. CIVIL, 891º A 904º DO C.P.CIVIL.
Sumário: I - A situação factual relevante para decidir se o tribunal deve suprir a autorização do Requerido – artigo 141.º do Código Civil – é a situação existente na data dessa decisão.

II - A audição do acompanhado antes da decisão final é obrigatória e constitui uma formalidade que assegura, perante o acompanhado, o reconhecimento da sua dignidade por parte do tribunal e, ao mesmo tempo, faculta ao tribunal um acréscimo de conhecimento sobre a situação factual que dá corpo ao processo.

III. Não é obrigatória a audição do acompanhado antes da decisão provisória de acompanhamento, quando, existindo urgência, não é fisicamente possível a audição do beneficiário devido ao facto deste se encontrar incontactável, por razões de saúde ou outras.

IV. A circunstância do Requerente não ter indicado medidas concretas não impede que elas sejam decretadas pelo tribunal, se o interesse do requerido o reclamar.

Decisão Texto Integral:











Sumário:

 I - A situação factual relevante para decidir se o tribunal deve suprir a autorização do Requerido – artigo 141.º do Código Civil – é a situação existente na data dessa decisão.

II - A audição do acompanhado antes da decisão final é obrigatória e constitui uma formalidade que assegura, perante o acompanhado, o reconhecimento da sua dignidade por parte do tribunal, e, ao mesmo, tempo faculta ao tribunal um acréscimo de conhecimento sobre a situação factual que dá corpo ao processo.

III. Não é obrigatória a audição do acompanhado antes da decisão provisória de acompanhamento, quando, existindo urgência, não é fisicamente possível a audição do beneficiário devido ao facto deste se encontrar incontactável, por razões de saúde ou outras.

IV. A circunstância do Requerente não ter indicado medidas concretas não impede que elas sejam decretadas pelo tribunal, se o interesse do requerido o reclamar.


*

Recorrente ………………….F...;

Recorrido……………………J...

Ambos melhor identificados nos autos.

I. Relatório

a) O presente recurso insere-se num processo especial de acompanhamento de maior – artigos 891.º a 904.º do Código de Processo Civil – e vem interposto da decisão que relegou o conhecimento do incidente de suprimento da vontade do requerido J... para momento ulterior e indeferiu o pedido de aplicação de medida de nomeação do Requerente como acompanhante provisório do Requerido (despacho de 16 de junho de 2021).

Transcreve-se a parte da decisão que contém os fundamentos jurídicos da decisão:

«(…) Cumpre apreciar e decidir.

No que concerne ao suprimento do consentimento, há que atentar ao disposto no artigo 141º, nº1 do Código Civil.

Dispõe o preceito legal mencionado que o acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.

Por seu turno, dispõe o artigo 892º, nº 2 do CPC que, nos casos em que for cumulado o pedido de suprimento da autorização do beneficiário, deve o requerente alegar os factos que o fundamentam.

Ora, o pedido foi deduzido pelo Requerente, mas sem a autorização do Requerido, o qual, aliás, se opõe frontalmente a este processo.

A este respeito dispõe o artigo 141º, nº 2 do Código Civil, o Tribunal apenas pode suprir a autorização do beneficiário em dois casos: quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível.

Tal justifica-se em virtude do reconhecimento de que o beneficiário é o único interessado na sua instauração, face à valorização da sua autonomia (e logo da sua vontade reconhecível) e ao carácter profundamente intrusivo da instauração da medida, potencialmente ablativa de direitos fundamentais (Vítor, Paula Távora, in Código Civil Anotado, Almedina, 2019, pág. 175).

Assim sendo, apesar de não se olvidar que este elemento é um elemento fulcral da regularidade da instância, apesar de não se olvidar o teor das conclusões constantes do relatório preliminar, atenta essa sua natureza (preliminar) e face aos esclarecimentos prestados pela Sra. Perita na sequência do despacho proferido a 15/04/2021, entende-se ser de relegar a apreciação do suprimento em causa para momento ulterior, entendendo-se que tal poderá e deverá ser aferido, com a segurança devida e exigida, tendo por base naturalmente quer as conclusões da perícia (relatório preliminar e o relatório final a apresentar), após a audição pessoal do Requerido e, consequentemente, em sede, de decisão final a proferir nestes autos, o que determina.

Já quanto ao pedido de medida de acompanhamento provisória e urgente de nomeação de Acompanhante Provisório, cumpre apreciar desde já da sua viabilidade.

Dispõe o artigo 139º, nº 2 do C.Civil “Em qualquer altura do processo podem ser determinadas as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido”.

Com efeito, há que fazer a destrinça entre as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes das medidas cautelares (art.º 891.º, n.º 2), porquanto enquanto as primeiras se reconduzem a medidas que o tribunal “impõe para proteção da pessoa ou do património do beneficiário, designadamente congelamento das contas bancárias do beneficiário ou que alguém, em representação deste beneficiário, trate da obtenção, junto dos serviços da segurança social, de uma pensão ou procure regularizar a situação sucessória do beneficiário junto de outros herdeiros”, já as segundas consubstanciam uma antecipação de uma medida de acompanhamento, “por exemplo: o tribunal pode sujeitar, desde já, a celebração de certa categoria de negócios à autorização de uma outra pessoa (que pode vir a ser o futuro acompanhante) – cfr. O Novo Regime do Maior Acompanhado, Colecção Formação Contínua do Centro de Estudos Judiciários, Fevereiro de 2019, págs. 43 e 44).

Revertamos ao caso em apreço.

In casu, da leitura da petição inicial resulta desde logo que além não ser indicada uma medida em concreto, sendo manifesto que a nomeação de acompanhante provisório não consubstancia naturalmente uma qualquer medida, não se vislumbra que tipo de actos se pretende acautelar/praticar e, consequentemente, qual a urgência em causa.

Acresce que após o início destes autos a vida do Requerido alterou-se de sobremaneira, tendo o mesmo iniciado o cumprimento de pena efetiva em estabelecimento prisional, sendo que atualmente, na sequência de decisão proferida pelo TEP, se encontra em cumprimento de pena no domicílio, atento o seu estado de saúde debilitado, não se mantendo, naturalmente, o contexto de alegado isolamento do Requerido, tal como plasmado em sede de petição inicial.

Assim, ao Requerente, enquanto filho, não está naturalmente vedado o contacto com o Requerido, assim como não está o mesmo impossibilitado de, querendo, cumpridas que estejam as formalidades legais junto do TEP, designadamente autorização para saída do domicílio, de o acompanhar em consultas médicas e quiçá em tratamento médicos de que o mesmo necessite, bem como de o auxiliar em tudo que o mesmo necessite. Aliás, este dever de assistência está expressamente consagrado no art. 1874º do C.Civil.

Deste modo, a intervenção do Tribunal nesta fase, tal como a final apenas de justifica em última ratio, sendo certo que, tal como se fez menção anteriormente, antes da decisão final necessário se tornaria que fosse alegado em concreto os actos que se pretendem levar a cabo e, não menos relevante, que fosse alegada factualidade que permitisse ao Tribunal concluir pela urgência do decretamento dos mesmos para salvaguarda da pessoa e bens do Requerido.

Termos em que, face ao exposto, não se verificando em concreto qualquer necessidade de, por ora, determinar quaisquer medidas urgentes ou cautelares, indefere-se o pedido de aplicação de medida de nomeação de acompanhante provisório.».

b) As conclusões do recurso do Requerente são as seguintes:

...

Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, em conformidade com as conclusões tecidas.»

c) O Requerido contra-alegou e concluiu deste modo:

...

II. Objeto do recurso.

O âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.

As questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 – A primeira questão tem implicações de ordem processual, uma vez que o pedido de acompanhamento de maior só pode ser formulado pelo Ministério Público, pelo próprio beneficiário ou por outrem autorizado pelo próprio maior e, no presente caso, foi feito fora destas hipóteses.

Tal pode ser feito quando se invoque, como aqui foi invocado, que o beneficiário não tem possibilidade de dar essa autorização, situação que, sendo procedente, conduz a que o tribunal possa suprir a falta de autorização do beneficiário.

O tribunal relegou a decisão sobre este suprimento para momento processual posterior, cumprindo verificar se esta decisão deve manter-se.

O Recorrente pretende que a decisão seja revogada e que o Tribunal da Relação decida já favoravelmente o pedido de suprimento.

O Recorrido entende que deve manter-se a decisão porque, por um lado, não é certo que à data da instauração da ação não gozasse da capacidade de administrar autonomamente a sua pessoa e bens e, por outro, o decretamento de tal medida, mesmo provisória, implica a sua prévia audição, o que ainda não foi feito.

2 – Em segundo lugar, se não tiver ficado prejudicada pela decisão dadaa questão anterior, coloca-se a questão de saber se se justifica ou não (tendo sido decidido que não), decretar o acompanhamento provisório e urgente do Requerido, cumprindo verificar se isso é possível antes do juiz ter ouvido o Requerido.

Cumprindo analisar se a situação do Requerido fica tutelada com o mero exercício dos deveres gerais de cooperação e assistência por parte dos seus familiares.

 3 – Em terceiro lugar, se for dada resposta positiva às anteriores questões, cumpre ponderar se deverá ser nomeado como acompanhante do Requerido o ora Recorrente, seu filho, ponderando se a tal obstará o facto do Requerido ter discordado de tal nomeação na contestação.

III. Fundamentação

(a) Matéria de facto – Factos provados

...

b – Questões colocadas pelo recurso

Antes de analisar as questões colocadas pelo recurso, indica-se de seguida a regulação legal da matéria, na sua vertente substantiva, fixada no Código Civil.

Assim, o artigo 138.º do Código Civil dispõe que «O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.»

Vê-se pelo teor deste artigo que a razão de ser do acompanhamento reside no facto do acompanhado não conseguir por si mesmo cumprir os seus múltiplos deveres, quer os respeitantes a si mesmo, devidos a terceiros ou à sociedade, residindo a causa dessa impossibilidade no seu estado de saúde, numa deficiência ou no seu comportamento.

Como referiu o Prof. Dr. António Pinto Monteiro, o regime consagrado no Código Civil pressupõe a manutenção da «… capacidade de exercício de direitos por parte da pessoa que a elas recorre. Trata-se de medidas de apoio a pessoa com deficiência assentes na sua autodeterminação» - «Das Incapacidades ao Maior Acompanhado – Breve Apresentação da Lei n.º 49/2018». Em O novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2019, pág. pág. 31 (e-book).

Continuando, refere este autor, que «“Proteger sem incapacitar” constitui, hoje, a palavra de ordem, de acordo com os princípios perfilhados pela referida Convenção da ONU e em conformidade com a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisão. Há, assim, escrevi-o há já dois anos, uma mudança de paradigma, deixando a pessoa deficiente de ser vista como mero alvo de políticas assistencialistas e paternalistas, para se reforçar a sua qualidade de sujeito de direitos. Em vez da pergunta: “aquela pessoa possui capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica?”, deve perguntar-se: “quais os tipos de apoio necessários àquela pessoa para que exerça a sua capacidade jurídica?”» - Ob. Cit., - pág. 31.

Por conseguinte, o novo regime legal mantém no beneficiário o exercício de todos os direitos e este só deixa de os exercer quando se mostre que não tem capacidade para esse exercício.

Dado o largo espectro das carências que um maior pode apresentar, aquele professor interroga-se quanto aos casos mais graves:

«Quid iuris, todavia, naquelas situações em que falte, de todo, a vontade ou a capacidade para entender e querer, ou ela está profundamente afectada, em termos tais que a deficiência de que a pessoa sofre a impossibilita de governar a sua pessoa e bens, sem que esta situação haja sido prevenida em momento anterior (se isso tivesse sido possível) através do mandato em previsão da incapacidade?

Em situações destas, ainda que a título excepcional, deve continuar a recorrer-se ao instituto da representação, substituindo-se o incapaz, no interesse deste, pela actuação do tutor.

Mas isso implica abandonar o regime da interdição, medida radical e rígida, substituindo-o por um regime flexível, que permita ao juiz, qual alfaiate, fazer um “fato à medida” do necessitado, adequando as medidas à situação concreta de cada pessoa…»  - Ob. Cit., pág. 32.

«Em suma e para concluir este ponto, de um modelo, do passado, rígido e dualista, de tudo ou nada, em que prepondera a substituição, deve partir-se para um modelo flexível e humanista, baseado em medidas adoptadas casuisticamente e periodicamente revistas, prioritariamente destinadas a apoiar quem delas necessite, mas sem prejuízo de elas poderem vir a suprir a incapacidade em situações excepcionais, sempre com respeito pelos princípios da adequação, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana» – Ob. Cit. Pág. 33.

Continuando.

O acompanhamento pode ser solicitado ao tribunal «…pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público» - n.º 1 do artigo 141.º do Código Civil –, mas «O tribunal pode suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível.»

Quanto ao estatuto do acompanhante.

O acompanhante deve ser de maioridade e encontrar-se no pleno exercício dos seus direitos – artigo 143.º, n.º 1, do Código Civil.

Pode ser escolhido pelo próprio acompanhado; na falta de escolha o tribunal nomeará quem «melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário», designadamente, o cônjuge não separado, judicialmente ou de facto; o unido de facto; qualquer dos pais, avós, filhos maiores, pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado, etc., desde que seja pessoa idónea – n.º 2 do artigo 143.º do Código Civil.

No que respeita ao exercício do acompanhamento, este «limita-se ao necessário», ou seja, ao mínimo, àquilo que o representado não consiga fazer sozinho e em termos considerados socialmente aceitáveis.

Independentemente daquilo que tenha sido pedido ao tribunal, o tribunal pode atribuir ao acompanhante alguns dos seguintes regimes:

«a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;

b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária;

c) Administração total ou parcial de bens;

d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos;

e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.» - artigo … do Código Civil.


*

Passando agora à análise das questões colocadas pelo recurso.

1 – Como se disse, a primeira questão tem implicações de ordem processual, porquanto o pedido de acompanhamento não foi formulado pelo próprio beneficiário, nem pelo Ministério Público.

O tribunal relegou a decisão sobre o suprimento da autorização do beneficiário para momento processual posterior.

O Recorrente sustenta que podia e devia ter sido proferida decisão a este respeito e pretende que o Tribunal da Relação decida já o pedido de suprimento, revogando a decisão recorrida.

O Recorrido entende que a decisão recorrida deve manter-se, porquanto não é certo que à data da instauração da ação não gozasse da capacidade de administrar autonomamente a sua pessoa e bens.

Vejamos.

Como já foi referido supra, o pedido de acompanhamento é solicitado ao tribunal pelo próprio beneficiário, ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto ou por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público, mas o tribunal pode suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível – artigo 141.º do Código Civil.

No caso, o Requerente é filho da pessoa visada pelo pedido de acompanhamento, e pretende que o tribunal se substitua ao seu pai na emissão da autorização.

Na decisão recorrida, a decisão sobre esta questão foi relegada para momento mais oportuno, nos termos acima transcritos.

Vejamos então se deve ser suprida a autorização do beneficiário para a medida de acompanhamento.

Afigura-se que existiam já elementos nos autos que habilitavam o tribunal a decidir já esta questão.

Com efeito, as conclusões do relatório da perícia médico-legal psiquiátrica, elaborado em 24 de maio de 2021, relativo ao Requerido, dizem que este era «…portador de Perturbação Neurocognitiva Major e que não se suscitam quaisquer dúvidas médicas razoáveis quanto à necessidade de acompanhamento na actualidade.»

Ou seja, à data da elaboração do relatório médico-legal, em 24 de maio de 2021, era claro que o Requerido necessitava de ser acompanhado.

Quanto à data em que esta necessidade se teria instalado na pessoa do Requerido, o relatório não é perentório, referindo apenas que existiam sérias dúvidas de que na data da contestação o Requerido mantivesse a «…capacidade para expressar de forma livre e conscientemente a sua vontade quanto ao prosseguimento (ou não) da presente acção, face aos défices cognitivos que já apresentaria.»

Para decidir esta questão não se afigura decisivo saber se à data da instauração da ação, ou da apresentação da contestação, o Requerido já padecia de incapacidades que requeriam o acompanhamento.

Diz-se isto porque nos termos do n.º 2 do artigo 141.º do Código Civil a autorização do beneficiário pode ser suprida não só quando este não a possa livre e conscientemente dar, mas também quando o tribunal considere existir um fundamento atendível para tal («O tribunal pode suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível»).

A perda de capacidades nem sempre é abrupta e em regra resulta de um processo progressivo, prolongado no tempo, sendo difícil determinar, por se tratar de um continuum, no qual não é possível colocar pontos fixos para o início ou termo de uma dada factualidade.

O artigo 891.º do Código de Processo Civil dispõe que ao processo especial de acompanhamento de maior se aplicam as normas dos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes e que «Em qualquer altura do processo, podem ser requeridas ou decretadas oficiosamente as medidas cautelares que a situação justificar.»

No que respeita aos «critérios de julgamento», o artigo 987.º do Código de Processo Civil dispõe que nas providências a tomar no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, «…o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.»

Ora, se a finalidade tida em consideração pela medida de acompanhamento é a de procurar a solução mais conveniente e oportuna para o caso, isso implica que o «caso» não possa ser objeto de limitações desproporcionadas, quer de natureza processual, quer substantiva.

Quer-se com isto dizer que não é exigível demonstrar positivamente que à data da instauração da ação se verificavam os factos necessários para a procedência do pedido, ou seja, que o Requerido já estava carecido nesse momento da media de acompanhamento.

O que releva é a circunstância da medida se revelar necessária no decurso do processo, enquanto o processo estiver pendente.

Faz-se esta afirmação considerando a natureza dos interesses que aqui se visam tutelar, os quais respeitam ao estado da pessoa (interesses pessoais e indisponíveis).

A salvaguarda destes interesses implica que as regras rígidas próprias da ação declarativa comum, em matéria de alegação da causa de pedir e pedido e respetiva modificação, não sejam aplicadas aqui com o mesmo rigor.

Tais regras, mais rígidas, são adequadas a disciplinar litígios em que se confrontam interesses particulares disponíveis, mas não é esse o caso dos autos.

Concluindo, o que releva apara decidir se o tribunal deve suprir a autorização do Requerido é a situação factual existente na data em que se toma essa decisão.

Ora, como se disse, o relatório médico-legal, datado de 24 de maio de 2021, é claro na conclusão de que o Requerido necessitava já nessa altura de ser acompanhado.

Sendo assim, não existe razão para protelar a decisão se suprimento da autorização do Requerido.

E, como já se referiu, no n.º 2 do artigo 141.º do Código Civil dispõe que a autorização do beneficiário pode ser suprida «quando o tribunal considere existir um fundamento atendível para tal».

Neste caso há, pois, os autos já mostram que o requerido carece de acompanhamento.

Procede o recurso nesta parte.

Declarar-se-á, no dispositivo do presente acórdão, o seguinte:

«Supre-se a vontade do Requerido, ao abrigo do disposto no artigo 141.º do Código Civil, e declara-se autorizada a instauração da presente ação».

2 – Em segundo lugar, coloca-se a questão de saber se se justifica ou não justifica decretar o acompanhamento provisório do Requerido.

O Recorrido argumenta que o decretamento de tal medida não se justifica, mesmo provisoriamente, sendo certo que tal medida implica a prévia audição do beneficiário, o que ainda não foi feito.

(a) Começando por esta última questão.

Como se disse, o relatório médico-legal, datado de 24 de maio de 2021, é claro na conclusão de que o Requerido necessitava, já nessa altura, de ser acompanhado.

O n.º 1 do artigo 139.º do Código Civil, dispõe que «O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas.»

O n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, determina, em conformidade com o artigo do Código Civil, que «Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre.»

Não há qualquer dúvida no sentido de que é obrigatória a audição pessoal do acompanhado antes de ser proferida a decisão final [Neste sentido, deste mesmo coletivo, o acórdão proferido no processo n.º 647/18.9T8ACB.C1, disponível em www.dgsi.pt.].

A questão suscitada no recurso não tem a ver com a esta situação (decisão final), mas sim com a obrigatoriedade ou não obrigatoriedade de audição do acompanhado relativamente a uma decisão provisória, tomada nas fases iniciais do processo.

Dir-se-á que, à primeira vista, a solução deverá ser a mesma para ambas as situações, mas não tem de ser assim porque as situações factuais não são semelhantes e não sendo semelhantes não terão de obedecer aos mesmos pressupostos.

Por conseguinte, não se afigura que exista impossibilidade de proferir decisão provisória a decretar o acompanhamento sem prévia audição do beneficiário.

Pelas seguintes razões:

 (I) Cumpre começar por referir que a audição do acompanhado antes da decisão provisoria constitui uma formalidade que assegura, perante o beneficiário, o reconhecimento da sua dignidade por parte do poder público, do tribunal, e, ao mesmo, tempo faculta ao tribunal um acréscimo de conhecimento sobre a situação factual que dá corpo ao processo.

Estas duas razões, entre outras, fundamentam a necessidade de audição prévia do beneficiário antes de ser proferida decisão definitiva.

(II) No entanto, podem existir casos em que é notória a necessidade de nomear provisoriamente acompanhante ao beneficiário e não se mostra viável a sua prévia audição.

Nestes casos, a exigência de audição prévia seria prejudicial aos interesses do beneficiário.

Quando assim for, as razões que fundamentam a audição devem ceder lugar à tutela real dos interesses do beneficiário, que deverá ser ouvido depois tão depressa quanto possível.

Esta impossibilidade ocorre quando, existindo urgência, não é fisicamente possível a audição do beneficiário devido ao facto deste se encontrar incontactável, por razões de saúde ou outras.

Ou, então, quando o Tribunal da Relação é chamado a decidir sobre o acompanhamento provisório, como ocorre no presente caso.

Nesta situação, não tendo o tribunal de 1.ª instância ouvido o beneficiário, não se afigura viável que o Tribunal da Relação proceda motu proprio à audição prévia do acompanhado, caso entenda que deve ser decretado o acompanhamento.

Com efeito, a audição do beneficiário é uma formalidade a cumprir exclusivamente pelo juiz de 1.ª instância.

Os casos em que o Tribunal da Relação pode levar a cabo diligências próprias da 1.ª instância são aqueles em que há necessidade de produzir prova no âmbito do recurso que teve por objeto a impugnação da matéria de facto, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 662.º (Modificabilidade da decisão de facto) do Código Processo Civil.

Não é o caso.

No caso dos autos não estamos perante uma impugnação da matéria de facto, não sendo, por isso, possível levar a cabo tal audição.

Pois bem, nestes casos, se o beneficiário ainda não tivesse sido ouvido, não teria viabilidade prática o recurso do despacho que relegasse para momento ulterior a aplicação provisória de medida de acompanhamento.

Porquanto, mesmo que se verificassem os requisitos da aplicação da medida de acompanhamento, como o beneficiário ainda não tinha sido ouvido, o tribunal de recurso nunca podia determinar o acompanhamento e por conseguinte, o recurso com esse fundamento era um ato inútil.

Afigura-se, por conseguinte, que é viável proferir decisão provisória a instituir o acompanhamento antes do beneficiário ter sido ouvido pelo juiz, desde que a medida se justifique e a audição seja inviável.

 No caso dos autos, a audição do beneficiário é inviável porque o Tribunal da Relação não a pode levar a cabo, como se disse, por sua iniciativa.

Conclui-se este ponto no sentido de que o Tribunal da Relação pode decretar provisoriamente o acompanhamento do Requerido apesar de este não ter sido ainda ouvido no processo.

(b) Vejamos então se se justifica ou não decretar o acompanhamento provisório do Requerido.

A resposta é afirmativa.

O relatório da perícia médico-legal psiquiátrica, elaborado em 24 de maio de 2021, concluiu, como já se referiu, que «…o Requerido é portador de Perturbação Neurocognitiva Major e que não se suscitam quaisquer dúvidas médicas razoáveis quanto à necessidade de acompanhamento na actualidade. Da mesma forma, dúvidas não subsistem que à data da manifestação da oposição do Requerido ao presente processo, o mesmo já se encontrava limitado na sua capacidade intelectual, estando já medicado com fármaco antidemencial.

Apesar da discrepância do relato de familiares (não técnicos) relativamente ao seu estado de saúde à data da contestação, com base na prova documental a que tivemos acesso, temos sérias dúvidas que nessa data tivesse mantida a capacidade para expressar de forma livre e conscientemente a sua vontade quanto ao prosseguimento (ou não) da presente acção, face aos défices cognitivos que já apresentaria.»

Ou seja, face a este parecer qualificado, não se suscitam duvidas relevantes sobre a necessidade de instituir a medida de acompanhamento.

Aliás, o teor do exame direto feito à pessoa do Requerido no Instituto de Medicina Legal também é esclarecedor quanto à necessidade de decretar esta medida, pois mostra que o Requerido não tem capacidade para gerir a sua pessoa e os seus bens, dado que já não possui uma representação exata da realidade.

Leia-se a este respeito o que consta do ponto 3 dos factos provados acima indicados, de onde resulta que o requerido nesse dia não soube indicar onde se encontrava; a sua idade (ainda que aproximada); disse que tinha vindo da sua residência, quando é certo que estava no estabelecimento prisional, que era solteiro, etc.

Além disso, verifica-se que consta do relatório que o «…Examinando apresenta incontinência de esfíncteres, pelo que usava fralda. Necessitava de ajuda na higiene e no vestuário, que aparentemente lhe seria prestada pelo filho P…» e «Aparentemente ainda conseguia ler e escrever, mas já tinha dificuldade no cálculo. Aparentemente já não conseguia fazer uso de meios de comunicação, como telefone, de forma autónoma, e desconhece-se se ainda seria capaz de utilizar computador pessoal e/ou aceder à internet.»

«À data da avaliação pericial encontrava-se a ser acompanhado pelos serviços médicos do E.P. da ...., nomeadamente em consulta de Psiquiatria, e estava medicado com rivastigmina 9.5mg/dia, risperidona 1mg/dia e quetiapina 50mg/dia, bisoprolol, abastina e lercanidipina (…).»

Esta factualidade mostra que o Requerido carece de proteção imediata no que respeita à sua saúde, bem-estar e aos seus bens, o que passa pela nomeação de acompanhante.

A circunstância do Requerente não ter indicado medidas concretas não impede que elas sejam decretadas pelo tribunal se o interesse do requerido o reclamar.

Com efeito, como se disse já, o artigo 891.º do Código de Processo Civil dispõe que ao processo especial de acompanhamento de maior se aplicam as normas dos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes e que «Em qualquer altura do processo, podem ser requeridas ou decretadas oficiosamente as medidas cautelares que a situação justificar.»

No que respeita aos «critérios de julgamento», o artigo 987.º do Código de Processo Civil, dispõe que nas providências a tomar no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, «…o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.»

Vejamos, então, no que respeita às medidas em concreto.

É certo que o acompanhamento deve «limita-se ao necessário», ou seja, ao mínimo, àquilo que o representado não consiga fazer sozinho e em termos considerados socialmente aceitáveis.

Porém, face ao teor dos autos, em especial do relatório da medicina-legal, afigura-se que o Requerido já não tem autonomia, capacidade de decidir por si mesmo o que é mais adequado para si, quanto à saúde, bem-estar e bens.

No que respeita aos bens, resulta dos autos que o Requerido receberá uma reforma elevada e, sendo assim, é de presumir que tenha quantias depositadas que cumpre proteger de terceiros.

Com efeito, quando alguém está debilitado pela idade e pela doença e carece permanentemente de terceiros para levar a cabo as tarefas quotidianas, pode ser facilmente convencido a dispor dos seus bens ou a assinar documentos, com prejuízo para si, cujo conteúdo e alcance já não compreende.

Face a esta situação, o acompanhante deve ter poderes para evitar que terceiros se apropriem de parcelas do património do Requerido e deve ter também poderes para determinar o que deve ser feito em prol da saúde e bem-estar do Requerido, de modo a que não existam dúvidas sobre quem tem poderes nesta matéria para ordenar o que for conveniente, evitando-se orientações contraditórias, conflitos e impasses resultantes da intervenção de diversos familiares ou outras pessoas.

Para o efeito, afigura-se que a medida deve ser a de «representação geral» no que respeita aos ativos bancários e valores mobiliários do Requerido e autorização prévia para a prática de atos de oneração ou alienação de bens imóveis ou móveis sujeitos a registo.

No que respeita à saúde e bem-estar do Requerido deverá incumbir ao acompanhante decidir quotidianamente o que deve ser feito.

Face ao que fica referido, a tutela dos interesses do Requerido não se alcançaria através do exercício dos deveres gerais de cooperação e assistência por parte dos seus familiares, porque a situação do Requerido, pelo menos tanto quanto os autos mostram neste momento, é a de alguém que já não está na posse de faculdades mentais que lhe permitam ser autónomo ao nível da tomada de decisões e outros terão de as tomar por si.

Se tivesse essa autonomia, o Requerido careceria apenas do auxílio físico de terceiros para as executar, mas não é esse o caso.

3 - Cumpre agora ponderar se deverá ser nomeado como acompanhante do Requerido o ora recorrente F..., seu filho.

A resposta é afirmativa porquanto neste momento é a pessoa melhor colocada para exercer o acompanhamento, por duas razões:

Por um lado, porque é filho do Requerido e nada evidencia nos autos que não tenha condições morais e disponibilidade física para acompanhar o pai e, por outro, porque o outro filho (Paulo) do Requerido se encontra impossibilitado de acompanhar o pai, não existindo outros filhos.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida e, em consequência:

1 - Supre-se a vontade do Requerido, ao abrigo do disposto no artigo 141.º do Código Civil, e declara-se autorizada a instauração da presente ação.

2 – Nomeia-se como acompanhante do requerido J... o seu filho F..., ao qual se atribuem poderes de representação do acompanhado no que respeita aos ativos bancários e valores mobiliários do Requerido e dependendo de autorização do seu filho F... a prática de atos de oneração ou alienação de bens imóveis ou móveis sujeitos a registo pertencentes ao Requerido.

No que respeita à saúde e bem-estar do Requerido incumbe ao seu filho F... decidir quotidianamente o que deve ser feito.

Custas pelo Requerido.

(Na 1.ª instância ordenar-se-ão as comunicações que houver a fazer às entidades que devam conhecer desta decisão - registo civil…)


Coimbra, 12/10/2021