Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2903/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO TRINDADE
Descritores: CRIME DE FURTO
CARACTERIZAÇÃO DO ELEMENTO "SUBTRRACÇÃO" - SUBTRACÇÃO INDIRECTA
Data do Acordão: 11/24/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PORTO DE MÓS - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 203º DO CP
Sumário: I- A subtracção no crime de furto pode ser concretizada sem o contacto directo com a coisa móvel alheia.

II- Assim preenche este elemento do tipo o agente que intitulando-se dono da coisa alheia celebra um contrato de compra e venda com terceiro.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal desta Relação:

O Digno Magistrado do Ministério Público proferiu despacho de arquivamento em relação ao arguido

A..., melhor identificado nos autos, a quem era imputado a prática além doutros de três crimes de furto p. e p. pelo artº 203º do Código Penal(CP).

Por, na sua perspectiva, o arguido “ em momento algum ,subtraiu a coisa do condomínio de facto anteriormente exercido sobre ela e a colocou à sua disposição , somente se arrogando proprietário de uma coisa que não lhe pertencia, a vendeu.

Inexistem actos materiais de apropriação.

Não podemos olvidar que a tutela jurídico-penal assume a feição de extrema ou última ratio pelo que o direito penal só deve ser chamado a intervir quando se mostrem excutidas todas as formas de protecção dos bens jurídicos e da paz social..

A instância própria para a discussão destas questões é a civil.”

As assistentes B... e C... requereram, então, a abertura da instrução pedindo a pronúncia do arguido pela prática de um crime de furto p. e p. pelo artº 203º do CP, um crime de alteração de marcos p. e p. no artº 216º do CP e um crime de dano p. e p. no artº 212º todos do CP.

Após a realização da instrução e respectivo debate foi proferida decisão de pronúncia do arguido pela prática de um crime de furto p. e p. pelo artº 203º, nº 1 do CP.

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Inconformado, recorreu o arguido concluindo a sua motivação do seguinte modo:

1º-O arguido não mandou retirar do prédio rústico as árvores pertencentes às assistentes.

2º- O arguido celebrou um contrato de compra e venda de árvores que eram sua propriedade, com Joaquim José da Silva Leirião.

3º- A testemunha José António da Mota Leal, inquirida em sede de instrução, declarou que Joaquim Leirião comprou a madeira ao arguido.

4º- Parte do preço da venda celebrada foi pago por Joaquim Leirião, faltando apenas pagar 20.000$00.

5º - A titularidade do direito de propriedade não é matéria que possa ser apreciada pelos tribunais penais.

6º - A eventualidade de uma venda a non domino à matéria que apenas poderá ser apreciada pelos tribunais civis.

7º- Em momento algum foi preenchido o tipo objectivo do ilícito do crime de furto.

8º - A instância própria para dirimir diferendos sobre a propriedade das coisas é a instância cível.

9º- Foram violadas as disposições legais constantes dos artigos 8º, 16º, nº 1 e 308º, nº 1 do CPP e 203º,. Nº 1 do CP(por não preenchimento do tipo de ilícito)

O MºPº veio responder defendendo a procedência do recurso para tal concluindo:

1- O arguido conhecia os limites do prédio rústico que se havia proposto adquirir, que lhe foram mostrados pelas assistentes.

2-Não releva, para o preenchimento do tipo criminal em causa, a invocada diferença entre se o arguido mandou retirar as árvores ou se celebrou qualquer tipo de contrato com quem cortou as árvores.

3- Em processo penal vigora o princípio da suficiência do processo penal.

4- Não se trata de qualquer questão prejudicial, que não possa ser clara e objectivamente solucionada com os elementos dos autos.

5- O arguido não veio requerer a suspensão do processo para decidir uma tal questão.

6- Não foram violadas quaisquer normas legais.

Nesta Relação o Exmo. Procurador –Geral Adjunto entende que os elementos indiciários reunidos, pela via da respectiva valoração sustentam a possibilidade de subsequente julgamento com relação à conduta apurada e correspondente inserção jurídico-criminal enunciado no despacho de pronúncias impugnado..

Parecer que notificado não mereceu resposta .

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Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência há que decidir :

A questão que ora nos é submetida a apreciação e julgamento é de facto e de direito , consistindo em saber se no decurso do inquérito e da instrução , resultaram ou não elementos probatórios bastantes para a pronúncia do arguido, consabido que a lei adjectiva penal vigente, no seu artº 308º, nº 1, estabelece que o juiz deverá lavrar despacho de pronúncia, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

Como é sabido, indícios suficientes são as circunstâncias de facto que dão lugar ao reconhecimento de que existe ilícito e de que entre este e certa pessoa ou pessoas, ocorre uma conexão temporal tal que, pesando aquelas com imparcialidade, há verosimilhança de que o delito foi cometido por aquela ou aqueles pessoas

Tratando-se de “ indícios suficientes” o critério consagrado pelo novo CPP apresenta-se menos rigoroso que o subjacente ao sistema processual penal anterior. Com efeito , à consideração de poder ser altamente provável a futura condenação do CPP(1929), contrapõe a perspectiva de possibilidade razoável de aplicação de uma sanção penal em sede de julgamento, para suficiência daqueles indícios, conforme decorre do artº 283º,nº 2 do CPP de 1987.

Perante essa “possibilidade razoável” de condenação, aferida através dos indícios recolhidos no inquérito, o MºPº tem o dever funcional de deduzir a acusação, por obediência ao princípio da legalidade e aos critérios de estrita objectividade a que está vinculado, com ressalva dos casos em que o pode obter por critérios de oportunidade e designadamente os previstos nos artºs 280º e 281º do CPP.

Dada esta responsabilidade do Mº Pº , o CPP somente concedeu ao juiz de julgamento o poder de rejeitar a acusação apenas quando esta se revela manifestamente infundada, por indiscutível ou por ausência evidente de prova indiciária.( - Ac. da Rel. de Lisboa de 90-3-14, BMJ 395-656)

Feitas estas breves considerações vejamos, pois, se a matéria indiciária recolhida aponta ou não no sentido do despacho recorrido.

Do exame e análise da prova produzida no decurso do inquérito e da instrução , podemos e devemos considerar provados e/ou suficientemente indiciados os seguintes factos:

1- Encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de porto de Mós, a favor das assistentes, a aquisição do prédio descrito sob o nº 01848/020415,denominado de Patinha , com 320 m2 , composto de terreno de olival , confrontando de norte com Maria Piedade Rosa , de sul com João Cordeiro e de nascente e de poente com José Vieira da Sousa.

2- Em data não concretamente apurada, mas entre Dezembro de 2001 e 11 de Março de 2002,cedeu a José da Silva Leirião de 32 carvalhos e 4 pinheiros grandes e um pinheiro médio propriedade das assistentes, pelo valor de 1.000 €.

3- O José Leirião na sequência deste contrato cortou e fez suas as referidas árvores pagando ao arguido a quantia de 750 €

3-O arguido agiu com intuito de fazer seus os proventos das referidas árvores.

4- Agiu voluntária e conscientemente sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Vejamos as razões pelas quais entendemos que tais factos se encontram provados e/ou suficientemente indiciados:

Temos as declarações do arguido que confessa a materialidade dos factos, o depoimento as testemunhas bem como os documentos juntos aos autos.

O arguido inclusive nas alegações de recurso afirma que celebrou o referido contrato de compra e venda acrescentando ainda que “eventualmente alguma dessa madeira poderia ser propriedade de outras pessoas.”

Defende ,no entanto, que estamos perante uma questão do foro civil e que não se preencheu o tipo de ilícito do crime de fruto porquanto não existiram actos materiais de apropriação, tão só existindo eventualmente a possibilidade de se ter vendido coisa pertencente a outrem.

Afigura-se-nos que a sua conduta não nos permite concluir duma forma tão simples e linear como transparece da sua argumentação.

Na verdade resulta dos autos que lhe foi dado conhecimento preciso das estremas do prédio das assistentes e o arguido ficou consciente das mesmas, conforme se depreende das declarações da assistente B...: “ Que no final do ano de 2001,o sr. António Mateus, dirigiu-se a casa da sua mãe, onde a agora denunciante estava ,tendo o mesmo perguntado se estavam interessados em vender o terreno, tendo o marido da denunciante dito que talvez um dia calhasse a vender” Que o marido da Denunciante se deslocou com um cunhado ao terreno onde indicaram ao sr. António ,qual era a localização do terreno”. Esta versão encontra apoio igualmente no depoimento de António Carvalho Marques marido da assistente e de José António Mota Leal, genro da assistente Maria da Conceição.

Também o depoimento do comprador e cortador da madeira, Joaquim Leirião, é elucidativo no esmo sentindo : Que durante o corte o Sr. Mateus esteve sempre presente. Quem andou sempre com um mapa ou caderneta e uma fita métrica foi sempre o Sr. Mateus.

O arguido, por sua vez, apresenta uma versão na qual, como soi dizer-se, atira as culpas para cima do comprador da madeira Joaquim Leirião. No entanto as suas explicações, não encontram apoio na enquadramento lógico da realidade factual que nos é transmitida por ele próprio e pelas restantes testemunhas, sendo certo que aceita a factualidade dada como indiciada, transpondo para o enquadramento jurídico que faz da situação a razão de ser da argumentação em que sustenta a sua tese. “Não mandou retirar do prédio rústico as árvores pertencentes à assistentes”,” celebrou um contrato de compra e venda de árvores “.

Debruçando-nos agora sobre o enquadramento jurídico diremos que são elementos constitutivos do crime de furto a subtracção, a coisa alheia móvel e a ilegítima intenção de apropriação.

A nossa lei (artº 203º do CP) continua a exigir que para que haja furto se verifique a subtracção da coisa móvel alheia.

É neste ponto que reside divergência entre o despacho de arquivamento, a tese do arguido/recorrente e o despacho recorrido.

Segundo aqueles inexistem, por parte do arguido /recorrente, actos materiais de apropriação pelo que não se verifica a subtracção. ( o arguido em momento algum subtraiu a coisa do domínio de facto anteriormente exercido sobre ela e a colocou à sua disposição, somente se arrogando proprietário de uma coisa que não lhe pertencia a vendeu - despacho de arquivamento, o arguido não mandou retirar do prédio rústico as árvores pertencentes ás assistentes. O arguido celebrou um contrato de compra e venda” – conclusões de recurso.

Parecem no entanto esquecer que a subtracção, a apreensão da coisa pode não ser efectuada pelo agente, o que releva é que a coisa saia da posse do proprietário e ela em si mesma ou as suas utilidades ou proventos fiquem à disposição do agente.

“ A subtracção caracteriza-se ,assim e sobretudo , pela finalidade prosseguida, a qual consiste, repete-se , no fazer entrar no domínio de facto do agente da infracção as utilidades da coisa que estavam anteriormente no sujeito que a detinha. No entanto para que se consiga aquele resultado final, são absolutamente indiferentes e irrelevantes as modalidades e os meios de realização da conduta. Neste sentido, pode dizer-se, então, que o comportamento de subtracção é indesmentivelmente de realização livre. Consideramos mesmo , a esta luz, que o “desapossamento” e o consequente “ apossamento ”, com o sentido que lhe damos, possa ser feito sem apreensão manual ou mesmo sem dispêndio de energias físicas pessoas. Ilustrações do que se acaba de afirmar, se bem que sem representação estatística com forte valor heurístico, são as subtracções levadas a cabo por animais amestrados e aquelas outras prosseguidas por meios mecânicos , nomeadamente , os utilizados na apropriação ilícita de electricidade e de gás (Fiandaca/Musco Diritto penal. I delitti contro il patrimonio-pag. 61)( - José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II,pag. 44.)

O modo pelo qual a subtracção tem lugar é indiferente . Os meios mediatos podem ser pessoais ou não. Os meios pessoais mediatos consistem na intervenção de outra pessoa que consciente ou inconscientemente pratique a subtracção. Basta qualquer acto por meio do qual a coisa passe da posse legítima à ilegítima: o contacto corporal, material e imediato da coisa não é elemento essencial à posse a ao furto.( - Luís Osório, Código Penal Português Vol. IV- Pag. 40)

Além destes exemplos podemos também apontar o caso em apreço e deste modo considerar que bem andou o Mº Juiz a quo ao pronunciar o arguido.

Tal pronúncia deverá fazer-se pela factualidade supra descrita.


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Nestes termos se decide:
- Julgar por não provido o recurso .

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O recorrente pagará 8(oito) Ucs de taxa de justiça

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Coimbra, 2004-11-24