Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4570/07.4TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
CONTRATO DE EMPREITADA
VALOR
Data do Acordão: 06/02/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 3º,4º E 7º D.L. 12/04-9/1
Sumário: Se o dono da obra, que usufrui vários licenciamentos de obra, adjudica todas elas a um só empreiteiro, por um determinado preço, é este valor global do contrato que se deverá ter em conta para efeitos de determinação de capacidade para a sua realização , que se encontra fixada na classe de habilitações que foi atribuída ao empreiteiro.
Decisão Texto Integral: Relatório

Por decisão do Instituto da Construção e do Imobiliário, de 21 de Agosto de 2007, a arguida
“JC & Filhos, Lda”, com sede Avenida …em Viseu, foi condenada pela prática de uma contra-ordenação p. e p. no artigo 4.º n.º1 do Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, numa coima de € 10.000,00.

Inconformada a arguida com a decisão administrativa do Instituto da Construção e do Imobiliário, dela interpôs recurso de impugnação judicial, para o Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, ao abrigo dos disposto no artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro e 244/95, de 14 de Setembro.

Admitida a impugnação judicial e realizada a audiência de julgamento, o 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu , por sentença proferida a 17 de Dezembro de 2008, decidiu julgar improcedente o recurso interposto pela arguida e, em consequência, manter na integra a decisão recorrida.

Inconformada com a douta sentença dela interpôs recurso a arguida “JC & Filhos, Lda”, concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1. A questão que se coloca em crise tem a ver com a interpretação incorrecta que quer a entidade autuante quer o Tribunal a quo fizeram do contrato junto aos autos, fazendo apelo a um critério global de apreciação do custo de uma única obra empreitada, de modo erróneo, porquanto haverá que considerar que se tratam de empreitadas perfeitamente distintas e delineadas no espaço, e que por razões a que poderemos chamar de economia formal, cingidas num único contrato.
2. Considerou o Tribunal a quo, assim como a entidade autuante, que a obra em questão se reduzia a uma única empreitada.
3. Foram adjudicadas diversas empreitadas, perfeitamente distintas entre si e que se reportam às seguintes obras, a edificar em 17 lotes de construção, vindo a ser fixado um valor global por tais obras que têm um valor de edificação próprio.
4. A douta sentença de que se recorre considerou foi que “o valor a ter em conta será sempre o valor global do contrato de empreitada pois só assim será possível fazer um juízo de idoneidade, capacidade técnica e capacidade económica e financeira do empreiteiro para a –realização”, mas não é este, claramente, o sentido da lei, o que torna a sentença de que se recorre absurda, injusta e ilegal.
5. Existe apenas um contrato de empreitada porque existe apenas um dono para os mesmos 17 lotes e o empreiteiro também é só um, e que é esta a única razão para a existência de um só contrato.
6. A idoneidade, capacidade técnica e capacidade económica e financeira do empreiteiro deve ser aferida, apreciada e controlada no momento em que se requer cada um dos alvarás de licença de construção para cada um dos lotes.
7. Pelo que, e para executar a totalidade das obras, a recorrente não carecia seguramente de um alvará de classe 06, nos termos da Portaria 17/2004, de 10 de Janeiro.
O Tribunal a quo deveria ter considerado o valor de cada uma das obras/trabalhos, a que correspondem alvarás de licença de construção distintos e autónomos.
8. Havendo pois, manifesto erro na apreciação dos factos, cada obra é um caso, com valor e licença de construção própria.
9. Sendo que nenhum desses trabalhos, avaliados unitariamente, excede o limiar da classe detida pela recorrente.
10. Não violando a recorrente o limiar da sua classe e os normativos ora factualmente rebatidos.
11. Se o alvará detido pela recorrente não lhe permitisse realizar os trabalhos em causa nos autos nunca a Câmara Municipal emitiria as respectivas licenças de construção.
12. Não pode a recorrente deixar de considerar que a sentença proferida no Tribunal a quo fez uma errada interpretação do caso em apreço e uma errada interpretação e aplicação do n.º 1 art. 4.º do DL 12/2004, de 9 de Janeiro.
Nestes termos e nos melhores de Direito, somos do entendimento que o presente recurso merece provimento, só assim se fazendo Justiça.

O Ministério Público na Comarca de Viseu respondeu ao recurso interposto pela arguida pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da decisão recorrida.

A Ex.ma Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da integral confirmação da douta sentença impugnada , com a consequente declaração da total improcedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto apurada na sentença recorrida e respectiva motivação é a seguinte:
Factos provados
1- No dia 20 de Janeiro de 2004 uma equipa da Inspecção Geral de Trabalho encontrou um estaleiro de obra particular designado por Empreendimento …, sito na Quinta …. em Viseu, cujo dono da obra DS -, S.A.;
2- No procedimento de licenciamento camarário foi apresentado o alvará de industrial de construção civil n.º 16299, da empresa arguida;
3- A arguida obrigou-se para com o dono da obra referido em 1. a construir dois prédios destinados a habitação, dois prédios destinados a habitação/comércio/serviços, um prédio destinado a comércio/serviços/garagens e 12 moradias em banda, agrupadas em dois conjuntos de seis moradias, a edificar em 17 lotes de terreno destinados a construção, pelo preço de 600.000 contos/ € 2.992.780,00;
4- Para efectuar os trabalhos descritos a arguida carecia de ser titular de um alvará classe 06, nos termos da Portaria n.º 17/2004, de 10 de Janeiro;
5- A arguida detinha em 20 de Janeiro de 2004 o certificado ICC n.º 16299, em classe máxima 04, que lhe permitia efectuar trabalhos até € 1.120.000,00;
6- Ao agir do modo acima descrito, a arguida agiu de forma livre e consciente, com conhecimento de que violava as normas próprias da actividade de construção.
Facto não provados
Nada mais de provou com relevância para a decisão da causa
Motivação da matéria de facto
A convicção do Tribunal relativamente aos factos dados como provados resultou da apreciação critica, ponderada e global de toda a prova documental produzida, concretamente, documentos de fls. 2, 10 a 20, 23 a 32 e 49 a 84.
Teve-se ainda em consideração o depoimento isento e credível da testemunha B..., Inspector do IMOPPI, que instruiu o processo de contra-ordenação e que, de relevo frisou, quando ouvido em sede de audiência de julgamento, que o valor dos trabalhos excedia o montante permitido pelo alvará que a arguida detinha, sendo que é o contrato que delimita o âmbito do objecto da actividade das partes e como tal o valor a considerar é o constante do contrato, na sua totalidade.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos , face às conclusões da motivação da recorrente “JC & Filhos, Lda” a questão a decidir é a seguinte:
- se o Tribunal a quo fez uma errada interpretação do contrato junto aos autos ao fazer apelo a um critério global de apreciação do custo de uma única obra empreitada, quando haveria que considerar que se tratam de empreitadas distintas e delineadas no espaço cingidas num único contrato, e que cada um dos trabalhos, avaliados unitariamente não excede o limite da classe detida pela recorrente, pelo que não violou o disposto no art.4.º, n.º1 do DL n.º 12/2004, de 9 de Janeiro.
Passemos ao conhecimento da questão.
O Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, deixa claro no seu preâmbulo que tomou «…como objectivo essencial criar as condições para que o título habilitante para a actividade da construção passe a oferecer a credibilidade que o coloque como documento bastante para atestar a capacidade das empresas para o exercício da actividade.».
O alvará, documento habilitante para o exercício da actividade da construção, é concedido pelo Instituto dos Mercados de Obras Públicas e Particulares e do Imobiliário ( IMOPPI), tendo em conta a idoneidade, capacidade técnica, e capacidade económica e financeira – cfr. artigos 7.º a 20.º do DL n.º 12/2004.
Através do alvará fica o seu titular autorizado a executar os trabalhos enquadráveis nas habilitações no mesmo relacionadas – cfr. artigos 3.º, al. j) e 4.º, n.º 1 , do DL n.º 12/2004.
Nos termos do art.4.º, n.º5 do DL n.º 12/2004, « O Ministro das Obras Públicas Transportes e Habitação, sob proposta do IMOPPI, fixará igualmente, por portaria a publicar anualmente até 31 de Outubro, para vigorar durante 12 meses a partir de 1 de Fevereiro do ano seguinte, a correspondência entre as classes referidas na alínea g) do artigo 3.º do presente diploma e os valores das obras.».
A “ Classe” é definida na al. g), do art.3.º , do DL n.º 12/2004, como « o escalão de valores das obras que, em cada tipo de trabalhos, as empresas estão autorizadas a executar.».
Do exposto resulta que as habilitações concedidas para o exercício da actividade de construção são atribuídas em classes, e que a correspondência entre as classes e os valores das obras que os seus titulares ficam autorizados a executar é fixada por Portaria do Ministro das Obras Públicas Transportes e Habitação.
Ao abrigo deste art.4.º, n.º5 do DL n.º 12/2004, foi publicada a Portaria n.º 17/2004, de 10 de Janeiro, estabelecendo, designadamente, que à classe da habilitações 4 corresponde valores das obras até € 1 120 000,00.
No caso em apreciação resultou provado que a sociedade “DS - , S.A.” é dona de uma obra particular designada por Empreendimento Bela Vista, sito na Quinta do Arco, Repeses, em Viseu.
Por “Contrato de Empreitada” celebrado entre a “DS - , S.A.” e arguida a “JC & Filhos, Lda”, foi acordado que esta se compromete a construir dois prédios destinados a habitação, dois prédios destinados a habitação/comércio/serviços, um prédio destinado a comércio/serviços/garagens e 12 moradias em banda, agrupadas em dois conjuntos de seis moradias, a edificar em 17 lotes de terreno destinados a construção, sendo que « o preço total da empreitada objecto deste contrato é de 600.000.000,00 ( seiscentos milhões de escudos)» , ou seja, € 2.992.780,00.
O prazo “ para conclusão da presente empreitada é de 30 meses, com início em 1/10/01 e termo em 31/03/04 – pontos n.ºs 1 e 3 dos factos provados e contrato de folhas 15 a 17, a que se alude na motivação da matéria de facto.
No âmbito de uma fiscalização ao estaleiro da obra no “Empreendimento …”, realizada em 20 de Janeiro de 2004, a IGT verificou que a arguida detinha um alvará da classe 04.
Sendo a arguida “JC & Filhos, Lda” titular de um alvará de construção da classe 04, é permitido à mesma a realização de obras até € 1 120 000,00, como resulta da Portaria n.º 17/2004, de 10 de Janeiro.
Uma vez que o valor do contrato de empreitada para realização do “Empreendimento …”, em que se inclui a construção de dois prédios destinados a habitação, dois prédios destinados a habitação/comércio/serviços, um prédio destinado a comércio/serviços/garagens e 12 moradias em banda, agrupadas em dois conjuntos de seis moradias, foi acordada pelo preço de 600.000.000,00, ou seja, € 2.992.780,00, é evidente, considerando este valor, que a arguida não tem alvará de classe suficiente à realização da obra a que se comprometeu perante a dona da obra.
A arguida vem defender, porém, que o Tribunal a quo fez uma correcta interpretação quer do contrato de empreitada, quer do disposto no art.4.º, n.º1 do DL n.º 12/2004 , alegando, no essencial, começando por realçar que do contrato resulta que lhe foram adjudicadas diversas empreitadas, perfeitamente distintas entre si, que se reportam a obras a edificar em 17 lotes de construção, que têm um valor de edificação próprio.
Por sua vez, a idoneidade, capacidade técnica e capacidade económica e financeira do empreiteiro deve ser aferida, apreciada e controlada no momento em que se requer cada um dos alvarás de licença de construção para cada um dos lotes, e cada obra é um caso, com valor e licença de construção própria, pelo que para executar a totalidade das obras, a arguida não necessitava de um alvará da classe 06.
Vejamos.
A empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço ( art.1027.º do Código Civil).
A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal - medianamente instruído e diligente -, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele ( art. 236.º, n.º1 do Código Civil ).
A recorrente “JC & Filhos, Lda” alega que foram adjudicadas diversas empreitadas, perfeitamente distintas entre si, mas não se atreve a indicar o número concreto de empreitadas, o objecto, o preço e o prazo para o início e termo de cada uma delas.
Quer do texto do contrato de empreitada, quer do seu espírito, o Tribunal da Relação apenas consegue vislumbrar no documento de folhas 15 a 17, um único contrato de empreitada, uma vez que como tal é definido e tem um único objecto, um só preço e um só prazo para o início e termo.
Bem andou pois o Tribunal a quo ao considerar que entre a DS - , S.A, como dona da obra e a arguida “JC & Filhos, Lda”, como empreiteira, foi celebrado um contrato de empreitada.
Ainda no âmbito da defesa do seu ponto de vista, a arguida defende que a idoneidade, capacidade técnica e capacidade económica e financeira do empreiteiro deve ser aferida, apreciada e controlada no momento em que se requer cada um dos alvarás de licença de construção para cada um dos lotes e que cada obra é um caso, com valor e licença de construção própria.
Também nesta parte não tem razão o recorrente.
O alvará de licença de construção, ou licença de construção, a que se alude no DL n.º 455/91, de 15 de Outubro, alterado pelo DL n.º 250/94, de 15 de Outubro, é um documento legal emitido por uma autoridade municipal após avaliação técnica de um projecto de obra, que comprova o licenciamento para a execução da obra.
Relativamente a cada obra o dono da mesma tem de solicitar licenciamento para a sua execução, pois que concluída a mesma o Presidente da Câmara Municipal emite, a requerimento do interessado, uma licença e alvará de utilização para cada prédio objecto de obra.
Os alvarás de licença de construção constantes de folhas 157 a 172, são licenças de construção emitidas ao dono da obra, a sociedade “DS - , S.A.”.
Se o dono da obra, que usufrui vários licenciamentos de obra, adjudica todas elas a um só empreiteiro, por um determinado preço, é este valor global do contrato que se deverá ter em conta para efeitos de determinação de capacidade para a sua realização , que se encontra fixada na classe de habilitações que foi atribuída ao empreiteiro.
Para evitar fraude à lei, o art.31.º, do DL n.º 12/2004, inserido no capitulo VI , relativo às “obrigações dos donos das obras, das entidades licenciadoras e de outros”, estabelece no seu n.º 5, e de um modo claro, que « Nenhuma obra poderá ser dividida por fases tendo em vista subtraí-la à consideração do seu valor global para efeitos de determinação da classe de valor de trabalhos exigível.».
Resulta dos factos provados que o IMOPPI atribuiu à arguida idoneidade, capacidade técnica e capacidade económica e financeira para a realização de obras até ao valor de € 1 120 000,00, correspondente ao alvará de classe 4.
Sendo o valor das obras adjudicadas à arguida no contrato de empreitada superior a este limite, atingindo a empreitada o valor de € 2.992.780,00, dúvidas não restam que a arguida, com a sua conduta, praticou a contra-ordenação que lhe é imputada na decisão administrativa e que a sentença recorrida manteve.
Sendo correcta a interpretação que o Tribunal recorrido efectuou da lei, bem como a subsunção dos factos provados à mesma, não violou a sentença recorrida qualquer norma jurídica.
Impõe-se, deste modo, julgar improcedente o recurso.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela arguida “JC & Filhos, Lda” e manter a douta sentença recorrida.
Custas pela recorrente , fixando em 6 Ucs a taxa de justiça.

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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

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Coimbra,