Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
80/2002.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
LEGITIMIDADE ACTIVA
PROVEITO COMUM DO CASAL
Data do Acordão: 09/08/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGO 9.º, N.º 5 DO RAU; ARTIGO 28-A, N.º 1 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; ARTIGOS 260.º; 268.º; 464.º; 1691.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. É parte legítima qualquer dos cônjuges arrendatários que propõe acção de indemnização contra o senhorio, por alegado incumprimento contratual que não ponha em risco a validade e subsistência do arrendamento.
2. Determinar se uma dívida foi aplicada em proveito comum do casal implica, ao mesmo tempo, uma questão-de-facto (averiguar o destino dado ao dinheiro) e uma questão-de-direito (decidir sobre se, em face desse destino, a dívida foi ou não contraída em proveito do casal).
3. Sem a alegação e prova dos factos tendentes a demonstrar qual o destino que foi dado ao dinheiro, impossível se torna decidir se estamos em face de uma dívida contraída em proveito comum do casal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A.... propôs contra B....e mulher C...., residentes em 131 Avenue Berthelot, Lyon-França, a presente acção declarativa sob a forma ordinária, pedindo a condenação destes no pagamento da quantia de 13.384,61 € relativo a danos de natureza patrimonial e ainda numa coima referente a um ano de renda, nos termos do artigo 9º, nº. 5 do RAU.
Funda este pedido alegando que em finais do ano de 1995 efectuou diligência com o representante dos R.R., para tomar de arrendamento uma habitação para residência do seu agregado familiar, referentes a uma habitação pertença dos R.R. que se situava ….., designada pela letra D do prédio.
Alega que fez saber ao Procurador dos R.R. da necessidade da existência de contrato escrito e da licença de habitabilidade, uma vez que se iria candidatar junto do Instituto de Apoio ao Arrendamento por Jovens, a fim de receber o respectivo subsídio de renda. Mas a licença não lhe foi disponibilizada apesar das várias diligência que fez, pelo que perdeu o subsídio que atingiria 75% do valor da renda desde o início do contrato e até à resolução. Alega que teve dificuldades económicas e solicitou empréstimos que não teria de fazer se pudesse ter beneficiado do subsídio da renda, o que só aconteceu por falta dos R.R. na obtenção da licença de habitação da casa.

Contestaram os R.R., arguindo a nulidade da citação edital efectuada, com o fundamento em que os respectivos anúncios não foram publicados num jornal de Coimbra, nem deles consta a data da publicação e alegando que o A. aceitou o arrendamento sem a licença de habitabilidade; que esta demorou a obter devido à falta de operários da construção civil, para as obras necessárias e que o Autor nunca fez saber aos R.R. que pretendia candidatar-se a qualquer subsídio. Terminam com o pedido de absolvição da instância e do pedido.

No prosseguimento dos autos, foi dispensada a realização de audiência preliminar em consequência do que foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a invocada excepção de nulidade da citação edital e foi seleccionada a matéria de facto relevante tida por assente e a provar, de que não houve reclamação.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova testemunhal nela produzida, finda a qual foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, com indicação da respectiva fundamentação, tal como consta de fl.s 447 e 448, sem que lhe tenha sido formulada qualquer reclamação.
No seguimento do que foi proferida a sentença de fl.s 269 a 278, na qual se decidiu o seguinte:
Julgo parcialmente procedente a acção e, em consequência condeno os R.R. no pagamento ao A. da quantia de 13.384,61 € (treze mil trezentos e oitenta e quatro euros e sessenta e um cêntimos) de indemnização.
A esta quantia acrescem os juros de mora desde a data da citação para a presente acção (artº. 805-1 C.C.).
No demais pedido absolvo os R.R.
As custas são a cargo dos R.R. e A. na proporção de 1/5 para o autor e 4/5 para os R.R.”

Dela notificados, vieram os réus, cf. requerimento de fl.s 461 e 462, pedir a aclaração da mesma, com o fundamento em que o contrato de arrendamento sobre que versa os autos foi celebrado por um gestor de negócios dos réus e sem que tenha sido alegado que o autor os tenha interpelado para o ratificar, nem que o autor tenha exigido ao gestor que fizesse prova dos seus poderes, pelo que importava que o Tribunal a quo esclarecesse se entendia estarem em vigor os artigos 471,º, 268.º e 260.º do CC e se eram aplicáveis in casu e a serem-no que se alterasse a decisão, no sentido de se declarar o arrendamento ineficaz em relação aos réus.
De tal notificado, o autor defendeu o indeferimento de tal pedido, com o fundamento em que o mesmo não se enquadra no incidente de aclaração, mas sim que contendia com o fundo da questão, só atacável mediante recurso.
Por despacho de fl.s 471, já transitado em julgado, a M.ma Juiz a quo, indeferiu o requerido, com o fundamento em os autores manifestam a sua discordância relativamente à apreciação jurídica nela vertida, o que só podem atingir por via de recurso.

Inconformados com a mesma, interpuseram recurso os réus, recurso, esse, admitido como de apelação e com efeito devolutivo (cf. despacho de fl.s 477), concluindo as respectivas motivações, com as seguintes conclusões (resumidas):
1. O contrato de arrendamento referido nos autos foi apenas celebrado pelo autor, como inquilino, não obstante estar já á época casado, no regime da comunhão de adquiridos, figurando como causa de pedir o direito a indemnização a que se arroga aquele e sua mulher.
2. Pelo que se tratava de direitos que só por ambos podiam ser exercidos, nos termos do artigo 28.º A, CPC, ou por um deles com o consentimento do outro.
3. Pelo que se verifica a ilegitimidade do autor, que era de conhecimento oficioso e determina a absolvição dos réus da instância.
4. O contrato de arrendamento dos autos foi celebrado entre o autor e um terceiro, que se assumiu como gestor dos réus, sem que aparecesse qualquer procuração a seu favor e em conformidade.
5. O autor, enquanto inquilino, tendo negociado e contratado tão só com o gestor de negócios, não curou, uma vez celebrado o contrato de arrendamento, que o dono homologasse, por ratificação, a intervenção do gestor, o que estava sujeito à forma escrita.
6. Pelo que tal contrato é ineficaz em relação aos réus, o que acarreta a improcedência da acção.
7. Não se podia retirar das declarações da testemunha José Augusto Dias, a demonstração dos factos constantes dos quesitos 1.º a 4.º, 7.º, 11.º e 12.º da base instrutória, pelo que os mesmos não podem ser dados como provados.
8. A ré sempre deveria ter sido absolvida do pedido, porque além de não estar provado o regime de bens dos réus, que apenas poderá ser documentalmente provado, não foi alegado o proveito comum do casal, que legitimasse que a ré fosse demandada e condenada.
10. O proveito comum do casal não se presume e tem de se determinar dos factos para tal alegados.
11. De igual forma, não foi alegado consentimento da ré para a celebração do contrato de arrendamento.
12. A decisão recorrida viola, além do mais, todas as disposições legais referidas nas alegações de recurso.
Terminam, peticionando a revogação da sentença recorrida, com a consequente absolvição dos réus da instância ou do pedido, ou a ré do pedido.

Contra-alegando, o autor, pugna pela manutenção da decisão recorrida, com o fundamento em que, relativamente à alegada gestão de negócios sem poderes de representação, se demonstrou que o contrato de arrendamento foi celebrado pelos réus, por intermédio do seu representante e sem que, ao longo do processo, os réus o não tenham aceite, pelo que sempre estaria ratificado, para além de que se trata de uma questão nova, nunca invocada em sede de articulados.
No que concerne à invocada ilegitimidade activa, que a mesma não se verifica, porque o contrato de arrendamento já se encontrava resolvido, pelo que já não constituía (o respectivo objecto), a casa de morada de família.
Quanto à ilegitimidade passiva, refere que alegou que os réus eram casados sob o regime da comunhão geral de bens, sem que estes o tenham impugnado e nem o casamento exige, no caso, a prova documental, dado que o objecto da presente acção não é o casamento em si mesmo.
Por último, quanto à impugnação da matéria de facto, defende que a prova foi bem apreciada, pelo que é de manter, tal como foi fixada em 1.ª instância.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.
Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:
A. Se o autor é parte ilegítima para a presente acção, por a ter proposto desacompanhado da mulher, dado que era casado e a mesma versa sobre a casa de morada de família;
B. Se o contrato de arrendamento deve ser considerado ineficaz em relação aos réus, por ter sido celebrado por um representante destes, a título de gestão de negócios, sem que tenha sido alegada nem provada a ratificação da dita gestão pelos réus;
C. Se a ré deve ser absolvida do pedido, quer porque não se encontra provado o regime de bens do casamento dos réus, que apenas o pode ser documentalmente, quer porque não foi alegado o proveito comum e;
D. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente aos quesitos 1.º a 4.º, 7.º, 11.º e 12.º da base instrutória;

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:
Da matéria relativa aos factos Assentes:

A)

Em finais do ano de 1995, o A. efectuou diligências no sentido de tomar de arrendamento uma habitação para o seu agregado familiar.

B)

Na sequência dessas diligências, o A. conheceu o representante do R., Sr. José Augusto Dias.

C)

O A. informou ao referido representante que pretendia celebrar um contrato, por escrito, de arrendamento para habitação.

D)

Tendo por objecto um apartamento tipo T1, o mais próximo possível da Universidade de Coimbra.

E)

O A., em 9 de Janeiro de 1996, celebrou com o R., através do seu referido representante, um contrato de arrendamento para habitação de duração limitada, pelo período de 5 anos (cfr. doc. n.° 1)

F)

O referido contrato de arrendamento teve por objecto a fracção autónoma, sita no rés do chão, direito, identificada com a letra “D”, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua Antero de Quental nº. 83, em Coimbra (cfr. doc. n.°1)

G)

Tendo o referido contrato sido renovado, automaticamente, em 9 de Janeiro de 2001, por não ter sido denunciado por qualquer uma das partes, no fim do prazo, por um período mínimo de três anos.

H)

As partes estipularam um regime de renda convencionada (cfr. doc. n.° 1).

I)

Tendo sido fixado uma renda inicial no valor de 55.000$00 (cfr. doc. nº. 1).

J)

A renda mensal, por força das várias actualizações que sofreu desde o início do referido contrato, atingiu no ano de 2001 a quantia de 60.473$00 (cfr. doc. n.° 2).

Da matéria da Base Instrutória.

1º.

O A. necessitava da minuta do referido contrato, assim como da respectiva licença de habitabilidade, para instruir a sua candidatura junto do Instituto de Apoio ao Arrendamento por Jovens, a fim de receber o respectivo subsídio de renda.

2º.

O referido representante do R. disse ao A. que tinha o apartamento que este desejava, e não havia qualquer problema em celebrar o respectivo contrato de arrendamento por escrito, assim como, facultar de imediato a respectiva licença de utilização.

3º.

Acontece que o R. não disponibilizou ao A. a solicitada licença de habitabilidade pelo que, o A. veio de seguida reiterar ao representante do R. a extrema necessidade da referida licença.

4º.

Informando ao representante do R. que a falta daquela licença impossibilitava o A. e sua esposa de apresentarem a candidatura ao Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado — Incentivo ao Arrendamento por Jovens, para obtenção do correspondente subsídio.

5º.

Efectivamente, a candidatura ao respectivo subsídio deve ser instruída de acordo e pela ordem de procedimentos exigidos, taxativamente, por aquele Instituto, nomeadamente:

requerimento de candidatura; fotocópia do contrato de arrendamento; fotocópias das últimas declarações do IRS de todos os elementos do agregado familiar que tenham rendimentos; fotocópia do último recibo relativo ao pagamento da renda ou de outro documento comprovativo do seu pagamento; fotocópias dos B.I. de todos os elementos do agregado familiar e ainda da respectiva licença de utilização.

6º.

Por conseguinte, a falta de um dos documentos, nomeadamente, a licença de utilização, impossibilitaria o A. de apresentar, como impossibilitou sempre, a sua candidatura àquele Instituto de Apoio.

7º.

Consequentemente, o A. veio reiterar os pedidos de licença de habitabilidade ao representante do R..

8º.

Mas o R. continuou a não disponibilizar a referida licença.

9º.

O A. apesar das suas inúmeras diligências, não conseguiu lograr tomar de arrendamento uma outra fracção daquele género e localização, uma vez que estavam todas ocupadas.

10º.

Mais tarde, o referido representante do R., em resposta a uma carta endereçada pelo A. veio desresponsabilizar o R., no adiamento da obtenção da licença de utilização, delegando a responsabilidade, nos pedreiros e canalizadores.

11º.

Por diversas vezes, em conversa havida com o referido representante do R., o mesmo afirmou ao A., o receio do R. em requerer a referida licença, visto que o referido contrato de arrendamento nunca tinha sido declarado ao Fisco.

12º.

Porém, o R., finalmente, decidiu apresentar, em 19/10/1999, o respectivo requerimento de licença de utilização à Câmara Municipal de Coimbra.

13º.

A referida fracção foi vistoriada pelos funcionários do departamento de administração urbanística da C.M.C., na sequência do referido requerimento de licença de habitabilidade.

14º.

Todavia, a emissão da requerida licença de utilização não foi emitida.

15º.

O A. foi, exclusivamente, estudante universitário desde 1994 até 1999.

16º.

É casado desde 15 de Outubro de 1994.

17º.

A mulher do A. foi durante a vigência do contrato de arrendamento empregada de balcão num centro comercial, vindo a auferir, desde a data da celebração do referido contrato de arrendamento até à presente data, de um vencimento base, mensal, aproximadamente, de 65.000$00.

18º.

O A. logo após a conclusão da sua licenciatura, em 20/07/99, inscreveu-se como Advogado Estagiário na Ordem dos Advogados, não exercendo qualquer outra profissão.

19º.

Consequentemente, o valor do subsídio que seria atribuído por aquele Instituto de Apoio ao Arrendamento efectuado por Jovens, atendendo à manifesta insuficiência económica do A. e da sua mulher, atingiria o índice mais elevado.

20º.

O que corresponde a 75 % do valor da renda paga ao longo da vigência do contrato.

21º.

Como o A. pagou , desde o inicio do arrendamento até à resolução do mesmo, rendas na quantia global de 3.577.831$00 o montante do subsídio que o A. ficou privado, por falta de licença de habitabilidade, foi de 1.683.373$00 (17.846,15 euros x 75% =).

22º.

O R., através do seu representante, frisou, no dia da celebração do referido contrato de arrendamento, da necessidade de o A. comprar estampilhas fiscais no valor de 5.335$00, para que aquele pudesse declara-lo ao fisco.

23º.

As rendas foram com grande sacrifício, integral e prontamente pagas pela esposa do A..

24º.

Tendo o A. contraído, por inúmeras vezes, empréstimos de dinheiro a amigos e seus familiares.

25º.

Montantes que até hoje, face a manifesta insuficiência económica do A. agravada pela ausência da referida licença, ainda não foram liquidados.

26º.

O R. reconheceu o seu incumprimento encetando, através do seu representante, negociações com o A., oferecendo como contraproposta, entretanto não aceite, a quantia de 1.000.000$00 (Cfr. doc.n.°14).

27º.

Posteriormente, no dia agendado para a entrega da indemnização entretanto acordada em 1.500.000$00, o R. quebrou injustificadamente o acordo.


A. Se o autor é parte ilegítima para a presente acção, por a ter proposto desacompanhado da mulher, dado que era casado e a mesma versa sobre a casa de morada de família.
Alegam os recorrentes que assim tem de ser, com o fundamento em que o autor já era casado, tanto quando celebrou o contrato arrendamento que motivou os presentes autos, quer quando intentou a presente acção, pelo que, nos termos do disposto no artigo 28.º-A, n.º 1 do CPC, se impunha que o fizesse acompanhado da sua esposa.
Defende o recorrido que assim não é porque aquando da propositura da acção, o contrato de arrendamento já se encontrava resolvido, pelo que a fracção que tinha por objecto já não constituía a casa de morada de família.

De acordo com o disposto no artigo 28.º-A, n.º 1, in fine, CPC, “Devem ser propostas por marido e mulher, ou por um deles com consentimento do outro, as acções de que possa resultar a perda ou oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as acções que tenham por objecto, directa ou indirectamente, a casa de morada de família”.
Como é bom de ver, a intenção que subjaz a este preceito é a de que sempre que esteja em perigo tal relação locatícia, a acção deve ser proposta por ambos os cônjuges ou tem de ser proposta contra ambos os cônjuges (cf. n.º 3, in fine, do artigo em referência).
Ou seja, visa-se impedir que as acções em que se discuta, entre outros, o direito ao arrendamento que verse sobre a casa de morada de família, não sejam propostas por ou contra ambos os cônjuges, de forma a que tal direito seja discutido e defendido por ambos os cônjuges que, em regra, constituem o suporte financeiro e social do agregado familiar e, para além do mais, visando-se a estabilidade do lar conjugal e familiar, daí a exigência que ambos cônjuges figurem nos autos, quando se discute tal direito, designadamente quando se discute a manutenção do contrato de arrendamento que verse sobre a casa de morada de família.
Daqui resulta, pois, que tal preceito só é aplicável quando, com a acção a propor, se ponha em perigo a subsistência ou manutenção de tal contrato de arrendamento, já não se justificando que assim seja quando o objecto da acção não ponha em perigo a validade e/ou subsistência do contrato de arrendamento que tenha por objecto a casa de morada de família.
Ora, no caso dos autos, não está em causa o direito ao arrendamento sobre a casa de morada de família, mas tão só um direito a uma indemnização motivado em alegado incumprimento contratual por parte dos réus e quando já se mostrava resolvido o contrato de arrendamento referido nos autos.
Isto é, o desfecho da presente acção em nada contende com a manutenção ou cessação de tal contrato de arrendamento, pelo que não coloca em perigo a habitação conjugal e/ou familiar, já que apenas se discute se o autor tem ou não direito a haver à custa dos réus a peticionada indemnização, numa altura, reitera-se, em que o contrato de arrendamento já não subsistia, pelo que não se pode falar em casa de morada de família.
Assim sendo, não tem aplicação o disposto no artigo 28.º-A, n.º 1, in fine, do CPC, sendo o autor parte legítima para, desacompanhado do seu cônjuge, intentar a presente acção.
Consequentemente, quanto a esta questão, improcede o presente recurso.

B. Se o contrato de arrendamento deve ser considerado ineficaz em relação aos réus, por ter sido celebrado por um representante destes, a título de gestão de negócios, sem que tenha sido alegada nem provada a ratificação da dita gestão pelos réus.
Para tal, aduzem os ora recorrentes que nestas condições, o contrato de arrendamento em causa nãos os vincula, porque necessitaria de ser ratificado por eles, em conformidade com o disposto nos artigos 464.º, 268.º e 260.º, todos do Código Civil.
Por seu turno, o recorrido defende que, já na contestação, os réus aceitam a existência de tal contrato, pelo que o mesmo tem de se considerar como válido, que sempre se trataria de uma ineficácia relativa que não é de conhecimento oficioso e que não foi alegada nos articulados, pelo que dela não se pode conhecer.

Efectivamente, compulsada a contestação deduzida pelos réus, estes reconhecem a existência e validade do contrato de arrendamento em causa (v.g. artigos 4.º a 8.º da mesma).
Por outro lado (cf. factos provados – al.s I) e J) e resposta ao quesito 21.º) os réus sempre receberam as rendas, pelo que mal se compreenderia que, agora, venham arguir tal questão.
No entanto, porque dela não se conhece (dadas as razões que a seguir se explicitarão), nada mais nos oferece dizer acerca de tal matéria, pois de contrário, outras questões se colocariam, designadamente a nível sancionatório de tal conduta processual dos ora recorrentes.

Analisada a contestação deduzida pelos réus, estes nada, naquela sede, alegaram quanto a esta questão.
Não foi por estes deduzido qualquer outro articulado (superveniente).
Só depois de proferida e lhes ter sido notificada a sentença recorrida é que os réus, através do requerimento de fl.s 461 e 462, já acima referido, vieram arguir tal questão, nos termos acima já explicitados.
Como é consabido, os recursos não se destinam a apreciar questões novas, apenas constituindo um remédio jurídico para concretas situações, de direito ou de facto, já objecto da decisão recorrida.
Tal como se refere, entre muitos, no Acórdão do STJ, de 18/05/2006, Processo 06A1222, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj:
“Os recursos destinam-se à reapreciação, ou reexame das questões decididas, que não ao conhecimento de matéria nova, salvo casos de superveniência ou de conhecimento oficioso”.
No caso em apreço, não se trata nem de matéria superveniente, nem de conhecimento oficioso.
Assim, não se conhece desta questão, improcedendo, quanto a ela, o presente recurso.

C. Se a ré deve ser absolvida do pedido, quer porque não se encontra provado o regime de bens do casamento dos réus, que apenas o pode ser documentalmente, quer porque não foi alegado o proveito comum.
No que a tal respeita, alegam os recorrentes que não se encontra provado o regime de bens do casamento nem foi alegado o proveito comum do casal, pelo que apenas o réu pode ser responsabilizado no pagamento da indemnização peticionada pelo autor.
Contrapõem os recorridos que alegaram que os réus eram casados sob o regime da comunhão geral de bens, sem que estes o tenham contestado, pelo que tal se deve ter por admitido, para além de que o casamento não tem de ser provado documentalmente, desde que este (casamento) não seja o cerne da questão.

Compulsada a petição inicial constata-se que o autor, identifica os réus como sendo casados entre si sob o regime da comunhão geral de bens, mas ao longo de tal articulado nada mais alegou quanto à responsabilidade dos réus, sob a perspectiva das consequências decorrentes do casamento e respectivo regime de bens, limitando-se a concluir pela responsabilidade de ambos os réus no incumprimento contratual e consequente condenação de ambos os réus no pedido que formula.
Ora, importa, quanto a tal, distinguir duas questões, quais sejam as de saber se a prova do casamento, neste tipo de acções, só se pode fazer através de prova documental e, não o sendo, qual é a abrangência da confissão ficta derivada de os réus não terem impugnado que são casados.
Embora a primeira de tais questões não venha a ser decidida de forma unânime nos nossos Tribunais Superiores, continua a ser maioritária a tese que entende que a falta de contestação implica a prova do casamento, desde que não se trate de uma acção de estado nem o estado civil integre o cerne da causa, entendendo-se, na tese minoritária que a prova do casamento só pode ser feita por documento autêntico, seja qual for o tipo de acção onde isso se discuta (para uma resenha desta questão pode ver-se o Acórdão desta Relação, de 20/01/2009, Processo 5924/06.9TVLSB.C1, disponível in http:///www.dgsi.pt/jtrc, no qual se defende a tese maioritária.
Também neste sentido, o Acórdão do STJ, de 12/01/2006, Processo 05B3427 (embora com um voto de vencido), disponível no mesmo site do anterior, por referência ao STJ.
Por nós e tal como decidido nos Arestos ora referidos, entendemos que, desde que regularmente citados, os réus não discutam o estado civil que lhes é atribuído e não se trate de uma acção de estado ou de que o estado civil seja o núcleo fundamental, é dispensável a prova documental para a demonstração do casamento.
Assim, em casos como o ora em apreço, não obstante a inexistência de documento autêntico nos termos em que é imposta pelo Código de Registo Civil, porque não se trata de uma acção de estado mas se reconduz a uma acção de dívida, deve dar-se por assente que os réus são casados entre si.
No entanto, nada mais se pode dar por assente para além disto, designadamente, não se pode ter por provada a data em que o casamento ocorreu, o regime de bens e as circunstâncias e finalidades que deram origem à peticionada dívida.
Como se refere no Acórdão do STJ, por último citado:
“…, para concluir pela comunicabilidade da dívida ajuizada, não chega aceitar que os ora recorridos são casados.
Não bastando para tanto que os réus sejam casados à data da propositura da acção, a comunicabilidade da dívida com fundamento em proveito comum pressupõe que seja contraída na constância do matrimónio”
Conforme dispõe o artigo 1691.º, n.º 1 do CC, a responsabilidade do cônjuge que não interveio no negócio em que se fundamenta a dívida, está limitada aos casos em que a dívida tenha sido contraída na constância do matrimónio ou antes, se devidamente autorizado, no proveito comum do casal e nos limites dos poderes de administração do cônjuge administrador.
Nos termos do seu n.º 3, o proveito comum não se presume.

Ora, in casu, nada se alegou quanto ao regime de bens do casamento, para além do acima referido, pelo que desde logo se desconhece qual o regime de bens do casamento dos réus.
Por outro lado, também nada se refere quanto à data em que foi celebrado nem quanto à autorização do cônjuge não interveniente, dado que na petição inicial apenas se refere a participação do cônjuge marido.
Por último, também nada foi alegado, em termos de matéria de facto, relativamente ao eventual proveito comum do casal.
Como ensina Pereira Coelho, in Curso De Direito Da Família, Lições Ao Curso de 1977/78, Coimbra, 1977, pág. 348, nota 1 “Determinar se uma dívida foi aplicada em proveito comum implica, ao mesmo tempo, uma questão-de-facto (averiguar o destino dado ao dinheiro) e uma questão-de-direito (decidir sobre se, em face desse destino, a dívida foi ou não contraída em proveito do casal). Por isso, em vez de se quesitar se a dívida foi ou não contraída em proveito comum do casal, deve antes perguntar-se a aplicação que teve a quantia proveniente da dívida”.
Ali se acrescentando (pág.s 348 e 349) que o proveito comum se afere, não pelo resultado mas pela aplicação da dívida, pelo fim visado pelo devedor que a contraiu: se foi ou não o interesse do casal, embora se possa tratar de um interesse material ou económico ou moral ou intelectual.
Por último, não releva a intenção objectiva do agente mas uma intenção objectiva de proveito comum, no sentido de que a dívida se possa considerar aplicada ao proveito comum aos olhos de uma pessoa média, à luz das regras da experiência e das probabilidades normais.
Por facto, podem considerar-se as ocorrências da vida real, os acontecimentos do mundo e que não necessitam do contributo da ordem jurídica para serem conhecidas e compreendidas – cf. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, Vol. II, pág. 80.
No caso do proveito comum do casal não estamos perante um facto stricto sensu, uma vez que este engloba a apreciação de matéria de facto na vertente do apuramento do destino dado ao dinheiro e uma questão de direito, tal como acima já referido.
Assim sendo, sem a alegação e prova dos factos tendentes a demonstrar qual o destino que foi dado ao dinheiro, impossível se torna decidir se estamos em face de uma dívida contraída em proveito comum do casal, incumbindo tal alegação e prova ao ora recorrente – cf. artigo 342.º, n.º 1 CC.
Ora, quanto a tal, como acima referido, o autor nada alegou, limitando-se a pedir a condenação de ambos os réus.
Tal é manifestamente insuficiente para se poder concluir estarmos em presença de proveito comum, dada a ausência da alegação de factos que tal sustentem, desde logo, reitera-se, porque nem sequer se acha alegado que os réus já fossem casados quando o réu marido, nas condições referidas, outorgou o contrato de arrendamento que deu origem aos presentes autos, se era o cônjuge administrador, nem qual o regime de bens do casamento, elementos essenciais – a par do destino dado ao dinheiro, correspondente às rendas recebidas – para que se pudesse concluir que a dívida contraída pelo réu marido o foi em proveito comum do casal.
Em suma, o autor, não alegou quaisquer factos dos quais se pudesse extrair o proveito comum, o que tem de acarretar a absolvição da ré mulher, ao contrário do decidido em 1.ª instância, já que a responsabilização desta pela dívida em causa assentava na existência do proveito comum, nos termos do disposto no artigo 1691.º, n.º 1, al. c), CC, o que não se demonstrou, nem se presume – n.º 3 deste preceito.
No sentido do aqui defendido, podem ver-se, por último, para além do acima citado, os Acórdãos do STJ, de 21/11/2006, Processo 06A3420; de 07/03/2006, Processo 06A038; e de 12/07/2005, Processo 05B1710, todos disponíveis in http://www.dgsi.pt/jstj.
Ainda o Acórdão desta Relação, de 15/03/2005, Processo 4026/04, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrc e o da Relação de Lisboa, de 19/09/2007, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrl.
Por força da total ausência de factos que permitam concluir que o réu marido actuou visando a satisfação do proveito comum do casal constituído por si e pela ré, impõe-se a absolvição desta, não podendo subsistir, nesta parte, a decisão recorrida.
Consequentemente, quanto a esta questão, tem o presente recurso de proceder.

D. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada – relativamente aos quesitos 1.º a 4.º, 7.º, 11.º e 12.º da base instrutória.
Alegam os recorrentes que não foi produzida prova para dar como demonstrados os factos constantes dos itens da base instrutória ora referidos, dado que a testemunha Francisco Carvalho reportou o seu depoimento à fase anterior ao início do contrato de arrendamento e o depoimento prestado pela testemunha José Augusto Dias, leva a que os mesmos sejam dados por não provados.
O recorrido pugna pela manutenção das respostas que os mesmos mereceram, por a prova produzida ter sido bem apreciada e conduzir à demonstração dos factos que deles constam.

Posto isto, e em tese geral, convém, desde já, deixar algumas notas acerca da produção da prova e definir os contornos em que a mesma deve ser apreciada em 2.ª instância.
Toda e qualquer decisão judicial em matéria de facto, como operação de reconstituição de factos ou acontecimento delituoso imputado a uma pessoa ou entidade, esta através dos seus representantes, dependente está da prova que em audiência pública, sob os princípios da investigação oficiosa (nos limites e termos em que esta é permitida ao julgador) e da verdade material, se processa e produz, bem como do juízo apreciativo que sobre a mesma recai por parte do julgador, nos moldes definidos nos artigos 653, n.º 2 e 655, n.º 1, CPC – as já supra mencionadas regras da experiência e o princípio da livre convicção.
Submetidas ao crivo do contraditório, as provas são pois elemento determinante da decisão de facto.
Ora, o valor da prova, isto é, a sua relevância enquanto elemento reconstituinte dos factos em apreço, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade.
Por outro lado, certo é que o juízo de credibilidade da prova por declarações, depende essencialmente do carácter e probidade moral de quem as presta, sendo que tais atributos e qualidades, como regra, não são apreensíveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto directo com as pessoas, razão pela qual o tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.
Quanto à apreciação da prova, actividade que se processa segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção, certo é que em matéria de prova testemunhal (em sentido amplo) quer directa quer indirecta, tendo em vista a carga subjectiva inerente, a mesma não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência e conhecimentos científicos, tudo se englobando na expressão legal “regras de experiência”.
Estando em discussão a matéria de facto nas duas instâncias, nada impede que o tribunal superior, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, conclua de forma diversa do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas.
Não se pode olvidar que existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em primeira instância e a efectuada em tribunal de recurso, ainda que com base nas transcrições dos depoimentos prestados, a qual, como é óbvio, decorre de que só quem o observa se pode aperceber da forma como o testemunho é produzido, cuja sensibilidade se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e observação directa dos comportamentos objectivados no momento em que tal depoimento é prestado, o que tudo só se logra obter através do princípio da imediação considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes de modo a que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da decisão.
As consequências concretas da aceitação de tal princípio definem o núcleo essencial do acto de julgar em que emerge o senso; a maturidade e a própria cultura daquele sobre quem recai tal responsabilidade. Estamos em crer que quando a opção do julgador se centre em elementos directamente interligados com o princípio da imediação (v. g. quando o julgador refere não foram (ou foram) convincentes num determinado sentido) o tribunal de recurso não tem possibilidades de sindicar a aplicação concreta de tal princípio.
Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, reacções imediatas, o contexto em que é prestado o depoimento e o ambiente gerado em torno de quem o presta, não sendo, ainda, despiciendo, o próprio modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo isso contribuindo para a convicção do julgador.
A comunicação vai muito para além das palavras e mesmo estas devem ser valoradas no contexto da mensagem em que se inserem, pois como informa Lair Ribeiro, as pesquisas neurolinguísticas numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder - “Comunicação Global, Lisboa, 1998, pág. 14.
Já Enriço Altavilla, in Psicologia Judiciaria, vol. II, Coimbra, 3.ª edição, pág. 12, refere que “o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras”.
Então, perguntar-se-á, qual o papel do tribunal de recurso no controle da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento?
Este tribunal poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Para além disso, admitido que é o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, o tribunal de recurso poderá sempre sindicar a formação da convicção do juiz ou seja o processo lógico. Porém, o tribunal de recurso encontra-se impedido de controlar tal processo lógico no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.
Como se refere no Acórdão desta Relação, de 3/10/2000, in CJ, 2000, 4, 27, “… a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, não pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas inserto no artigo 655, n.º 1 do CPCivil … E na formação dessa convicção entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova – seja áudio seja mesmo vídeo -, por mais fiel que ela seja das incidências concretas das audiência.
Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis …”.
No mesmo sentido, o Acórdão da Relação do Porto, de 19/9/200, mesmo tomo, pág. 186 e seg.s, de acordo com o qual (passa a transcrever-se o sumário):
“I – A reforma processual operada pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, dando nova redacção ao artigo 712.º do C.P. Civil, ampliou os poderes da Relação quanto à matéria de facto, mas não impõe a realização de um novo e integral julgamento nem admite recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto.
II – Porque se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados”.
No seguimento de tais princípios, tem entendido a nossa jurisprudência, maioritariamente, que só quando os elementos dos autos conduzam inequivocamente a uma resposta diversa da dada em 1.ª instância é que deve o tribunal superior alterar as respostas que ali foram dadas, situação em que estaremos perante erro de julgamento, que não ocorrerá perante elementos de prova contraditórios, caso em que deverá prevalecer a resposta dada em 1.ª instância, no domínio da convicção que formou com fundamento no princípio da sua livre convicção e liberdade de julgamento.
Tendo por base tais asserções, dado que se procedeu à gravação da prova produzida, passemos, então, à reapreciação da matéria de facto em causa, a fim de averiguar se a mesma é de manter ou de alterar, em conformidade com o disposto no artigo 712, n.º 1, al. a), do CPC., pelo que, nos termos expostos, nos compete apurar da razoabilidade da convicção probatória do tribunal de 1.ª instância, face aos elementos de prova considerados e não ir em busca de uma nova convicção.
Vejamos, então, as respostas postas em causa pelos ora recorrentes, nas respectivas alegações de recurso.

Alteração das respostas dadas aos quesitos 1.º a 4.º, 7.º, 11.º e 12.º da base instrutória.
Pretendem, como vimos, os ora recorrentes que tais quesitos passem a considera-se como “não provados”.
Para melhor esclarecimento e facilitar a decisão desta questão, passa-se a transcrever o teor de tais quesitos:
“1.º

O A. necessitava da minuta do referido contrato, assim como da respectiva licença de habitabilidade, para instruir a sua candidatura junto do Instituto de Apoio ao Arrendamento por Jovens, a fim de receber o respectivo subsídio de renda?

2º.

O referido representante do R. disse ao A. que tinha o apartamento que este desejava, e não havia qualquer problema em celebrar o respectivo contrato de arrendamento por escrito, assim como, facultar de imediato a respectiva licença de utilização?

3º.

Acontece que o R. não disponibilizou ao A. a solicitada licença de habitabilidade pelo que, o A. veio de seguida reiterar ao representante do R. a extrema necessidade da referida licença?

4º.

Informando ao representante do R. que a falta daquela licença impossibilitava o A. e sua esposa de apresentarem a candidatura ao Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado — Incentivo ao Arrendamento por Jovens, para obtenção do correspondente subsídio?

7º.

Por conseguinte, a falta de um dos documentos, nomeadamente, a licença de utilização, impossibilitaria o A. de apresentar, como impossibilitou sempre, a sua candidatura àquele Instituto de Apoio?

11º.

Consequentemente, o A. veio reiterar os pedidos de licença de habitabilidade ao representante do R.?

12º.

Mas o R. continuou a não disponibilizar a referida licença?


Como consta de fl.s 447, a M.ma Juiz a quo deu a resposta de “ Provado”, a todos eles.
Motivou tais respostas, resumidamente, no seguinte:
“As respostas positivas e a consequente convicção do tribunal tiveram por fundamento as provas produzidas, que de forma crítica o tribunal apreciou e fundamenta, nomeadamente:
O relato da peritagem, junto a fls. 209 a 211 dos autos, foi de principal relevo para a convicção do Tribunal quanto aos factos constantes dos pontos 1º, 5º, 25º e 26º, dada a sua especificidade que exigia conhecimentos especiais, que o Sr. Perito demonstrou. Também os documentos de fls.11 a 15, relativos à matéria e comprovativos da candidatura do autor ao subsídio ao arrendamento.
Os documentos de fls. 20 a 30 dos autos, relativos aos rendimentos auferidos pelo autor e esposa.
Os documentos de fls. 31 a 60, comprovativos do pagamento das rendas ao Réu, fundamentam a resposta do ponto 27.
Os documentos juntos à P.I. sob o nº. 7 e 8 fundamentam a resposta ao ponto 14; ao 18, o documento nº. 9 da P.I.; aos pontos 21,22, 23 fundamentam-se nos documentos juntos com a P.I. sob o nº. 10, 11 e 12.
A correspondência trocada entre o autor e o representante dos R.R., fundamentou também os pontos relacionados com o desenvolvimento dos contactos para o arrendamento e a obtenção e insistências sobre a licença de habitabilidade, a sua necessidade para a obtenção do subsídio pelo autor e posteriormente, os contactos para a resolução com indemnização do autor pelos prejuízos decorrentes da falta da licença. Demonstrativos ainda da falta de regularização perante o Fisco, do contrato de arrendamento.
Documentação esta não infirmada pelos R.R. e que veio a ser consonante com o depoimento prestado pela testemunha ….., que, enquanto encarregado da gestão dos bens dos R.R. em Portugal, teve intervenção directa em toda a situação, desde as negociações preparatórias do contrato, á realização deste e às diligências e contactos com o autor no sentido de obter a licença de habitabilidade do arrendado, a qual, em seu entender, existia desconhecendo que caducava e que era necessário a renovação.
A testemunha …… reportou o seu depoimento à fase anterior ao início do contrato de arrendamento, sendo quem indicou ao autor aquele local para arrendar, já que conhecia também os donos respectivos. Sobre as condições legais do arrendado alegou o seu desconhecimento.
Não se levantaram dúvidas sobre a isenção e a idoneidade probatória.
Notifique.”.

Vejamos, então, se do depoimento invocado pelos recorrentes, e sem olvidar as considerações prévias, quanto a tal, já acima explanadas, existem motivos para que as supras mencionadas respostas sejam modificadas ou alteradas.
Referem os recorrentes que tal teor (no sentido das respostas de não provado que propõem) foi confirmado aquando da prestação do depoimento prestado pela testemunha José Augusto Dias.
Ora, do depoimento prestado pelo mesmo, em audiência de julgamento resulta, resumidamente, que o mesmo referiu tratar dos assuntos do réu (cf. acta de fl.s 446) e acerca da matéria em questão, começou por referir que não se recordava quem lhe apresentou o contrato para assinar nem quem o preencheu e que era ele quem tinha os documentos relativos à fracção arrendada.
Mais referiu que o Sr. …… é que lhe apresentou o autor e lhe pediu que guardasse o apartamento para este.
Igualmente referiu não se lembrar se levou ou não o contrato às Finanças e veio, mais tarde, quando pediram a vistoria, a descobrir que a licença de habitabilidade estava caducada.
Referiu que o autor só fez referência à exigência da licença de habitabilidade já na parte final do contrato, para poder aceder a um benefício do Estado na ajuda do pagamento da renda e que as obras que a Câmara exigiu ainda começaram a ser feitas com o autor no arrendado, mas atrasaram-se muito, por culpa das pessoas que contratou e só acabaram já depois de o autor ter saído.
Confirmou a autoria dos documentos juntos aos autos e enviados à Câmara para tratar da licença de habitabilidade, mais acrescentando que o autor se antecipou e se ofereceu para tratar do assunto da licença de habitabilidade junto da Câmara.
Referiu que o autor se queria candidatar à concessão do subsídio ao arrendamento e colaborou nisso, mas as obras atrasaram-se, bem como que o apartamento em questão já tinha sido arrendado várias vezes e nunca ninguém lhe tinha pedido a licença de habitabilidade.
Reafirmou que, quando celebraram o contrato, não lhe referiram nada quanto à candidatura ao subsídio de renda, só lho tendo o autor referido, na parte final do contrato.

Em primeiro lugar cumpre referir que o depoimento desta testemunha nos suscita reservas, desde logo porque, tratando dos assuntos do réu, relativamente ao arrendamento em causa, começou por referir desconhecer quem lhe apresentou o contrato e quem preencheu o respectivo formulário.
Por outro lado, não é crível que não se recorde se levou ou não o contrato às Finanças, quando o certo é que o mesmo não foi manifestado ao fisco.
Relativamente à questão da licença de habitabilidade, também se nos levantam sérias dúvidas em que o depoente só soubesse que a mesma estava caducada, quando pediram a vistoria à Câmara, sendo certo que no contrato de arrendamento se deixou em branco a parte relativa à existência de tal licença – cf. fl.s 9.
Sem esquecer que a vistoria já foi pedida à Câmara, porque inexistia tal licença de habitabilidade e com vista a obtê-la.
Não obstante no que toca à questão da licença de habitabilidade (existia mas estava caducada e momento em que o soube) e acerca da pretensão do autor em se candidatar ao subsídio de renda, o depoente já não revelar as dúvidas que acima se referiram, não o temos por assente.
Efectivamente, no que toca à licença de habitabilidade, pelas razões já expostas, designadamente a ausência de menção no contrato de arrendamento, nos leva a concluir que, logo aquando da celebração do contrato de arrendamento, o depoente sabia que a mesma inexistia.
O que se reforça do teor do doc. de fl.s 68 e 69 (pedido de emissão de tal licença à Câmara de Coimbra, datado de 11 de Outubro de 1999) e no qual se refere que a mesma se destina à celebração de um contrato de arrendamento, sendo que o contrato celebrado com o autor já o tinha sido em 02 de Janeiro de 1996, pelo prazo de cinco anos – cf. contrato junto a fl.s 9 e v.º.
Também não é plausível que as obras exigidas demorassem tanto tempo, sendo que esta foi a razão apresentada pelo depoente para a não emissão atempada da licença de habitabilidade.
Por outro lado, não é crível que o autor só tivesse pedido a licença de habitabilidade quase no fim do contrato, quando o mesmo a queria para se candidatar ao subsídio de renda, relativamente a um contrato que se tinha iniciado em Janeiro de 1996.
O normal é que o autor quisesse beneficiar de tal concessão o mais rapidamente possível e não no fim do contrato.
Também o teor da correspondência trocada entre o autor e o depoente, na qualidade de representante do réu, designadamente a junta de fl.s 61 a 66, inculca a ideia de que, desde há muito, que o autor pugnava pela disponibilização de cópia da licença de habitabilidade, para os assinalados fins.
No que se refere aos requisitos e documentação necessária para a candidatura a tal benefício, resultam os mesmos dos diplomas legais que regulamentam o designado “incentivo ao arrendamento por jovens” e Peritagem de fl.s 209 a 211.
Consequentemente, este depoimento não é de molde a infirmar a matéria vertida nos quesitos em análise.
Assim sendo, inexistem razões para alterar as respostas que lhes foram dadas, que se, assim, se mantêm.
Pelo que, improcede, na totalidade, o recurso interposto, relativamente à matéria de facto e consequentemente, mantém-se toda a factualidade dada por apurada em 1.ª instância.
Assim sendo, pelos fundamentos constantes da sentença recorrida, para que se remete, impõe-se a condenação do réu, nos moldes em que foi decretada, por incumprimento do contratado, o que originou a impossibilidade de o autor poder aceder aos benefícios do arrendamento a jovens.

Nestes termos se decide:
Julgar parcialmente procedente a presente apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, na parte em que condenou a ré, a qual se absolve do pedido e; mantendo-se a mesma, quanto ao mais.
Custas pelo apelante, na totalidade (uma vez que não obstante a absolvição da ré do pedido, o autor continua a ter ganho de causa, na parte da sentença sob recurso).
Coimbra, 08 de Setembro de 2009.