Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2964/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: REGIME DE BENS DO CASAMENTO
ALTERAÇÃO
CONCURSO DE LEIS ABSTRACTAMENTE APLICÁVEIS(CONFLITO DE LEIS NO ESPAÇO)
Data do Acordão: 01/25/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 52º, 53º, 54º E 1714º, Nº 1, DO C. CIV. .
Sumário: I – O artº 1714º, nº 1, do C. Civ. estabelece que, fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados .
II – Porém, o artº 54º, nº 1, do C. Civ. permite aos cônjuges modificar o regime de bens, legal ou convencional, se a tal forem autorizados pela lei competente, nos termos do artº 52º .

III – O artº 52º do C. Civ., para o qual remete o artº 54º, fixa um elemento de conexão móvel, já que, por um lado, a lei nacional comum dos cônjuges, a residência habitual comum e o país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa, podem mudar durante a vigência do casamento e, por outro lado, contrariamente ao que sucede no artº 53º, o legislador não aponta um marco fixo no tempo capaz de, conjugado com o elemento de conexão eleito, estabilizar a lei aplicável .

IV– Porém, se o que está em causa é a validade ou não da convenção modificativa do regime de bens, apresenta-se como razoável e lógico que a avaliação a fazer se reporte à lei, incluindo as normas de conflitos, vigente na data da celebração da convenção .

V – O primeiro elemento de conexão previsto na citada norma aponta para a lei nacional comum dos cônjuges .

VI – De seguida, como elemento de conexão, a lei da residência habitual comum do casal .

VII – Por força dos artºs 54º, nº 1, e 52º, nº 2, do C. Civ.(este na redacção anterior ao DL nº 496/77), é aplicável a lei alemã quando esta seja a lei pessoal do marido e, consequentemente, á válida uma convenção modificativa do regime de bens outorgada em 21/5/1969 .

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


1. RELATÓRIO
A..., casado, industrial, residente na Alemanha e com domicílio na Praça das Flores, 51, em Lisboa, intentou na comarca de Lisboa acção declarativa, com processo comum e forma ordinária contra B..., casada, doméstica, residente na Praça das Flores, 51, em Lisboa e C... e mulher, D..., casados, residentes na freguesia de Santa Maria, em Trancoso, pedindo a anulação da compra e venda formalizada através da escritura pública outorgada em 24 de Julho de 1996 no Cartório Notarial do Seixal, na qual a 1ª R. declarou vender aos 2ºs RR. o prédio urbano com lojas, quintal e uma dependência, sito na Rua Luís Ribeiro, freguesia de S. Pedro, Trancoso, descrito na Conservatória do Registo Predial de Trancoso sob o nº 373 e inscrito na respectiva matriz sob o nº 565, devendo os 2ºs RR. devolver o prédio à 1ª R. e esta devolver àqueles os recebidos 8.500 contos, ordenando-se o cancelamento registral na competente Conservatória da citada compra venda, com as legais consequências.
Para tanto, em brevíssima síntese, o A. alegou que é casado com a 1ª R. no regime de comunhão de bens adquiridos e que ela vendeu aos 2ºs RR. o imóvel identificado sem o seu consentimento.
A 1ª R., reunido o condicionalismo legal, foi citada editalmente e, não tendo contestado, foi citado o Ministério Público que igualmente não contestou.
Os 2ºs RR. contestaram por excepção arguindo a incompetência territorial do tribunal e a caducidade do direito de acção do A.. Contestaram ainda por impugnação alegando, em resumo, que o regime de bens em vigor no casamento do A. e da 1ª R. é o de separação de bens; e que fizeram benfeitorias no imóvel, gozando, no caso de procedência da acção, do direito de retenção. Concluíram pedindo a procedência das excepções, a improcedência da acção e a condenação do A. como litigante de má fé.
O A. replicou pugnando pela improcedência das excepções e os RR. treplicaram concluindo como na contestação.
Julgada procedente a excepção da incompetência territorial, foram os autos remetidos à comarca de Trancoso, onde prosseguiram os seus termos.
Julgada improcedente no despacho saneador a excepção da caducidade e condensada e instruída a acção, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferido o despacho de fls. 363 e 364, decidindo a matéria de facto controvertida.
Pela sentença de fls. 425 a 442 foi a acção julgada improcedente e os RR. absolvidos do pedido.
Irresignado, o A. interpôs recurso e, no final da sua alegação, formulou as conclusões seguintes:
1. Os conflitos de leis respeitantes aos efeitos do casamento, aos direitos dos cônjuges e às relações patrimoniais eram solucionados por aplicação da Convenção da Haia de 17 de Julho de 1905, a cujo dispositivo Portugal se vinculou até ao presente.
2. Essa Convenção deixou, porém, a partir de 1 de Janeiro de 1920 de ter aplicação aos cidadãos alemães nas respectivas relações com nacionais portugueses, em virtude do art° 282° do Tratado de Versailles, de 28 de Junho de 1919, ter feito cessar os efeitos e aplicações dessa Convenção nas relações entre a Alemanha e os Aliados, e Potências Associadas, a cujo número Portugal pertenceu.
3. O Tratado de Versailles ressalvava, no entanto, a possibilidade de qualquer desses Aliados e Potências Associadas notificar a Alemanha, no sentido de repor em vigor a mencionada Convenção da Haia entre os dois países, prerrogativa de que Portugal nunca lançou mão. Aliás,
4. Mesmo que assim não fosse, a regra do art° 2° da Convenção, que designa como lei competente para regular os efeitos do casamento sobre os bens dos cônjuges a da nacionalidade do marido, importaria violação da Constituição da República Federal da Alemanha (RFA), em virtude desta, que entrou em vigor em 31 de Março de 1953, ter consagrado no seu art° 3° a igualdade de tratamento dos sexos.
5. A circunstância de, segundo o Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros, in D° da República de 19/03/1988, ter denunciado a aludida Convenção a partir de Agosto de 1987 não invalida a conclusão 2., em virtude dessa Convenção da Haia abranger cidadãos de outros países, que não Portugal e os Aliados ou Potências Associadas, relativamente a cujas relações com nacionais alemães continuou a vigorar.
6. Também não tem aplicação à questão em apreço a norma constante do n° 2 do art° 52° CC (na redacção anterior ao Decreto-Lei n° 496/77, de 25/11), para que remete o art° 54° n° 1 CC, a qual aponta a lei pessoal do marido como própria para regular as relações entre os cônjuges.
7. Apesar de à data do casamento do recorrente com a 1a Ré essa norma não ofender a nossa lei fundamental então vigente (Constituição de 1933), o mesmo não sucedia quanto à Constituição de 1949 da RFA (“Grundgesetz”), entrada em vigor aos 31 de Março de 1953.
8. Com efeito, o art° 3° da Constituição da RFA passou, a partir desta última data, a garantir a igualdade de direitos entre homens e mulheres, dispondo: «(1) todos os seres humanos são iguais perante a lei; (2) homens e mulheres são iguais. O Estado promove a aplicação de direitos iguais entre mulheres e homens e diligenciará para a eliminação das discriminações existentes; (3) ninguém pode ser discriminado ou proferido em função do sexo, ascendência, raça, língua, nacionalidade e origem, fé, religião ou opiniões políticas, nem em função de incapacidade.».
9. De tal modo que, a partir de 31 de Março de 1953, os Tribunais alemães, e em especial o Tribunal Constitucional Federal, declararam inconstitucionais os preceitos legais que designam a lei aplicável em função da nacionalidade do marido.
10. É o que sucedeu com referência ao art° 2° da Convenção da Haia de 17 de Julho de 1905, que, na ausência de convenção nupcial, mandava reger os efeitos do casamento sobre os bens dos cônjuges pela lei nacional do marido, na altura do casamento, norma esta declarada inconstitucional pelo dito Tribunal (cf. BGH FamRZ 1986,1200 = IPRax 1987, 114).
11. E o que se verificou, designadamente, a respeito do segmento do §3 do art° 220 EGBGB que mandava regular os efeitos legais dos casamentos relativamente ao regime de bens, na falta dos elementos de conexão enunciados anteriormente, segundo a lei nacional do marido (cf. Supremo Tribunal Federal, BGH NJW 1987, 583 (584)); ou ainda
12. A respeito do §1 do art° 15° EGBGB (na sua versão antiga), o qual dispunha que ao regime de bens do casamento devia ser aplicada a lei alemã se o marido tivesse, na altura do casamento, nacionalidade alemã (cf. Bundesverfassungsgericht, decisão de 22 de Fevereiro de 1983 – in, BVerfG NJW 1983, 1968).
13. Pronunciando-se também neste sentido a doutrina alemã (v., entre outros, Palandt/Heldrich, 64a ed. Art. 15 EGBGB N° 10).
14. O Tribunal português pode e deve exercer o controlo da constitucionalidade das normas materiais estrangeiras face à lei fundamental estrangeira (v. Prof. Luís de Lima Pinheiro, in “Direito Internacional Privado”, vol. I, pág. 451).
15. A própria lei alemã (art° 6°/2a parte EGBGB configura aliás a incompatibilidade da lei estrangeira com os direitos fundamentais como um caso de aplicação da ordem pública internacional (v. Lima Pinheiro, obra citada, pág. 480).
16. Sendo certo, ademais, que não faria sentido a norma de conflitos portuguesa proceder a uma remissão (para a lei nacional do cônjuge varão) que contraria as disposições da própria Constituição da RFA.
17. Por outro lado, a lei alemã (§1° do art° 15° e §1° do art° 14°, ambos do EGBGB), na falta de nacionalidade comum ou de residência habitual dos cônjuges, manda aplicar o direito do Estado com o qual os cônjuges têm mais estreita ligação.
18. Essa lei é, como resulta dos autos, a lei material portuguesa.
19. É de perfilhar o entendimento defendido por Baptista Machado (Lições de Direito Internacional Privado, ano 1971/72 Fac. Direito de Coimbra, 2a ed.) segundo o qual o dispositivo do art° 16° CC não expressa um princípio geral mas tão só uma “regra pragmática”, admitindo como regra a devolução para o direito material português. Ademais,
20. Mesmo que assim não seja entendido, a devolução para a lei material portuguesa deve ser admitida como mecanismo de correcção do resultado a que em concreto conduz a aplicação da norma de conflitos do foro, quando isso seja exigido pela justiça conflitual e, especialmente, pela harmonia internacional de soluções (v. Lima Pinheiro, obra citada, pág. 369). Pelo que,
21. Tendo-se os sistemas de conflito português e alemão (este último a partir de Março de 1953) orientado no sentido de abandonarem a remissão com vista à regulação do regime de bens do casamento para a lei nacional do marido à data do casamento, não é possível aceitar a remissão para a lei material alemã no caso dos autos, tanto mais quanto, como se demonstrou, essa remissão faz uso de uma conexão que, na altura do casamento dos cônjuges, já violava a lei fundamental alemã.
22. É, aliás, o que resulta do disposto no §3° do art° 220° EGBGB, expurgado do segmento ofensivo da lei fundamental alemã, que na falta de lei nacional comum aponta para a lei escolhida pelos cônjuges ou cuja aplicabilidade estes presumiram na data do casamento.
23. Sendo que esta lei, provado que os cônjuges contraíram casamento católico em Portugal e que declararam expressamente pretenderem casar sem convenção antenupcial, só pode ser a portuguesa.
24. Esta devolução é admitida pelo art° 18°, n° 1 CC. Acresce que,
25. Ficou demonstrado nos autos que o apelante e a 1a Ré tiveram a sua residência habitual comum em Portugal, pelo que a sentença deveria ter aplicado o primeiro segmento do n° 2 do art° 52° CC (redacção anterior ao D. Lei n° 496/77) em vez de lançar mão do segundo segmento desta norma.
26. De acordo com esta solução a lei designada como competente para regulação do caso é também a portuguesa.
27. Se bem que a questão sub judice esteja relacionada com a questão do regime de bens decorrente da relação conjugal entre o recorrente e a sua mulher, também tem repercussão a nível do art° 46° CC.
28. Estando este informado, além do mais, por princípios de soberania e de interesse e ordem pública, deve o mesmo sobrelevar as disposições do art° 54° CC e ter aplicação ao caso vertente.
29. Destarte, qualquer que seja a solução considerada pertinente, a mesma aponta sempre, quer mercê do reenvio para a lei material portuguesa quer ainda por força da aplicação do primeiro segmento do n° 2 do art° 52° CC, ou por último por aplicação da lex rei sitae, para a lei portuguesa.
30. Determinando esta (artº 1714o nº 1 CC) a imutabilidade, após a celebração do casamento, das convenções antenupciais e dos regimes de bens legalmente fixados, não pode ter aplicação ao caso em apreço a escritura de convenção pósnupcial celebrada pelos cônjuges na Alemanha, algum tempo depois do seu casamento.
31. Segundo a lei supletiva vigente em Portugal, não tendo havido convenção antenupcial, o regime de bens do casamento dos cônjuges (recorrente e 1a Ré) era o da comunhão de adquiridos.
32. Segundo este regime a alienação de direitos pessoais de gozo sobre imóveis, próprios ou comuns, carece do consentimento do cônjuge não alienante (art° 1682°-A CC).
33.0 acto de alienação do imóvel referido na alínea a) dos Factos Assentes foi feito sem consentimento nem conhecimento do ora recorrente.
34. Pelo que esse acto de alienação, bem como o registo a que deu causa, são anuláveis.
35. Decidindo de forma diversa a sentença recorrida violou as disposições legais atrás invocadas e as demais que o douto suprimento de V. Exas. entender.
36. Pelo que deve a referida sentença ser revogada, declarando-se procedente a presente apelação, com as consequências legais.
Os apelados responderam, defendendo a improcedência da apelação.
Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.
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2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi essencialmente colocada a questão de saber qual o regime de bens em vigor no casamento que liga o A. à 1ª R. e, consequentemente, se a venda feita por esta aos 2ºs RR. carecia ou não do consentimento daquele.
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3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
Não tendo sido impugnada a decisão de facto e não havendo fundamento para oficiosamente a alterar, considera-se definitivamente assente a factualidade dada como provada na 1ª instância e que é a seguinte:
a) Por escritura pública exarada em 24 de Julho de 1996 no Cartório Notarial do Seixal, a primeira ré declarou vender ao segundo réu, pelo preço de Esc. 8.500.000$00, o prédio urbano, com lojas, quintal e uma dependência, sito na Rua Luís Ribeiro, freguesia de São Pedro, concelho de Trancoso, descrito na Conservatória do Registo Predial de Trancoso sob o nº 373 que se encontrava registado em favor da vendedora pela inscrição G um e inscrito na matriz sob o art. 565º.
b) Na mesma escritura a 1ª ré é identificada como sendo casada no regime da separação de bens.
c) Na data da realização da escritura referida em a), aquele imóvel encontrava-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de Trancoso sob o nº 00373/191089, a favor da 1ª ré, identificada como sendo casada com o autor no regime da separação de bens.
d) O imóvel referido em a) encontra-se inscrito a favor dos 2ºs réus desde 25/7/1996.
e) Com data de 7 de Abril de 1969, encontra-se registado o casamento entre o autor e a 1ª ré, constando do referido assento que os nubentes declararam previamente que o celebravam sem convenção antenupcial.
f) O autor é de nacionalidade alemã e, à data do casamento residia em Gonzagagasse 15/7 – Áustria.
g) Encontra-se averbado ao assento de casamento do autor com a primeira ré que esta mantém a nacionalidade portuguesa por ter feito declaração nesse sentido e nos termos da al. c) da base dezoito da Lei nº 2098 de 29 de Julho de 1959.
h) O autor e a primeira ré, no ano de 1969, já casados entre si, mediante o acto nº 1065/69 lavrado pelo Notário Dr. Hans Contzen celebraram convenção pela qual estabeleceram o regime de separação de bens (resposta aos quesitos 5º e 6º).
i) A primeira residência conjugal do autor e da primeira ré foi em Portugal e algum tempo após o casamento, autor e primeira ré passaram a ter também residência conjugal na Alemanha em casa dos pais do autor e, algum tempo depois, em 516 Durem Valencienner Strabe 3 na Alemanha, mantendo sempre a residência de Portugal (resposta ao quesito 7º).
j) O autor e a primeira ré comiam, dormiam, recebiam visitas e correspondência até, pelo menos, 1984 na residência que tinham em 516 Durem Valencienner Strabe 3 na Alemanha (resposta aos quesitos 8º e 9º).
k) O autor era proprietário de uma fábrica de tela de metal em Gurzenmicher, STR 39, Duren 3416 (resposta ao quesito 10º).
l) Para a qual, a 1ª ré solicitou a familiares e amigos o recrutamento de empregados, a fim de ali trabalharem (resposta ao quesito 11º).
m) O imóvel referido em a), na data da celebração da escritura, encontrava-se degradado (resposta ao quesito 15º).
n) Desde 1984, o referido imóvel não era habitado e até 1996 não foram feitas quaisquer obras de manutenção ou de reparação (resposta ao quesito 16º).
o) Os 2ºs réus realizaram obras no imóvel referido em a) (resposta ao quesito 17º).
p) A 1ª ré propôs a venda do imóvel a um tio dos 2ºs réus, em carta datada de 03.07.1996, pelo valor de Esc. 8.500.000$00 (resposta ao quesito 19º).
q) A 1ª ré fez idêntica proposta à mãe da 2ª ré, mediante carta datada de 4/7/1996 (resposta ao quesito 20º).
r) A 1ª ré sempre se identificou, em escrituras de compra e venda de imóveis e outorga de procurações públicas com poderes de administração ordinária e extraordinária como sendo casada no regime da separação de bens (resposta ao quesito 21º).
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3.2. De direito
Sendo o A. de nacionalidade alemã e a 1ª R. de nacionalidade portuguesa e tendo o casamento entre eles sido realizado em Portugal, haveria uma primeira indagação a fazer, qual seja, a do regime de bens que, logo nessa altura, entrou em vigor.
No entanto, sobre esse concreto ponto não há dúvidas ou litígio nos autos: não tendo sido celebrada qualquer convenção antenupcial, recorra-se às normas de conflitos que se recorra (Convenção Concernente aos Conflitos de Leis Relativos aos Efeitos do Casamento sobre os Direitos e Deveres dos Cônjuges nas suas Relações Pessoais e sobre os Bens dos Cônjuges assinada na Haia em 17/07/1905, normas de conflitos portuguesas ou normas de conflitos alemãs) e conclua-se pela aplicação da lei portuguesa ou da lei alemã, sempre o regime de bens seria o da comunhão de adquiridos e, consequentemente, sempre a validade da compra e venda que constitui o cerne do litígio dependeria do consentimento do A..
Porque assim é, a solução da contenda passa essencialmente por questão diferente, isto é, passa pela determinação da validade ou invalidade da convenção celebrada na Alemanha, entre o A. e a 1ª R., no ano de 1969, já casados entre si, pela qual modificaram aquele regime de comunhão de adquiridos, adoptando o de separação de bens.
Como o artº 1714º, nº 1 do Cód. Civil estabelece que, fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados, a validade daquela modificação depende de qual das duas leis abstractamente susceptíveis de aplicação seja efectivamente aplicável: se for a lei alemã, a convenção post-nupcial é válida, o regime de bens passou a ser, após a data da mesma, o de separação e a compra e venda não carecia do consentimento do A.; se for a lei portuguesa, a convenção é inválida, o regime de bens continua a ser o de comunhão de adquiridos e a compra e venda carecia do consentimento do A..
Nesta situação, desenhado como está um conflito de leis no espaço e correndo o processo perante os tribunais portugueses, há que recorrer às normas de conflitos constantes do nosso Código Civil (Como acertadamente se refere na sentença recorrida, nunca tendo o A. e a 1ª R. tido nacionalidade comum, nunca tiveram lei nacional comum, razão pela qual, (independentemente da sua aplicabilidade ou não), face aos respectivos artºs 4º e 9º, a Convenção da Haia, de 17/07/1905, já atrás referida, não elege, para o caso dos autos, qualquer elemento de conexão.), nomeadamente ao artº 54º que assim preceitua:
1. Aos cônjuges é permitido modificar o regime de bens, legal ou convencional, se a tal forem autorizados pela lei competente nos termos do artigo 52.°.
2. A nova convenção em caso nenhum terá efeito retroactivo em prejuízo de terceiro.
Por sua vez, o artº 52º, na redacção actual, conferida pelo Dec. Lei nº 496/77, de 25/11, estatui:
1. Salvo o disposto no artigo seguinte, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei nacional comum.
2. Não tendo os cônjuges a mesma nacionalidade, é aplicável a lei da sua residência habitual comum e, na falta desta, a lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.
Contudo, na redacção anterior, que era a vigente na data em que a convenção modificativa do regime de bens foi celebrada, o nº 2 do artº 52º tinha redacção diferente, prevendo que “não tendo os cônjuges a mesma nacionalidade, é aplicável a lei da sua residência habitual comum e, na falta desta, a lei pessoal do marido”.

É seguro que o artº 52º, para o qual remete o artº 54º, fixa um elemento de conexão móvel, já que, por um lado, a lei nacional comum dos cônjuges, a residência habitual comum e o país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa (ou, na versão anterior, a lei pessoal do marido), podem mudar durante a vigência do casamento e, por outro, contrariamente ao que sucede no artº 53º, o legislador não aponta um marco fixo no tempo, como seja, no caso, a data do casamento, capaz de, conjugado com o elemento de conexão eleito, estabilizar a lei aplicável.
Porém, se o que está em causa é a validade ou não da convenção modificativa do regime de bens, apresenta-se-nos com razoável e lógico que a avaliação a fazer se reporte à lei, incluindo as normas de conflitos, vigente na data da celebração da convenção. Ou seja, “in casu”, o artº 52º do Cód. Civil, com a redacção original, anterior à que, face à Constituição de 1976, lhe foi dada pelo Dec. Lei nº 496/77.
O primeiro elemento de conexão previsto na citada norma aponta para a lei nacional comum dos cônjuges e, por conseguinte, tendo o A. a nacionalidade alemã e a 1ª R. a nacionalidade portuguesa, não resolve a questão.
Apresenta-se, em seguida, como elemento de conexão a lei da residência habitual comum do casal, o que, perante a factualidade provada, suscita algumas observações.
Com efeito, está, assente (cfr. factualidade provada e certidão de casamento junta a fls. 11 dos autos) que o A. e a 1ª R. casaram um com o outro no dia 7 de Abril de 1969, na Capela da Casa da Prebenda, da freguesia de Santa Maria, concelho e diocese de Viseu e, tendo estabelecido a primeira residência conjugal em Portugal, passaram, algum tempo após o casamento, a ter também residência na Alemanha, ainda que mantendo sempre a residência em Portugal; que, em 21 de Maio de 1969, quando, na Alemanha, celebraram a convenção modificativa do regime de bens, estabelecendo o regime de separação de bens, os cônjuges já se declararam residentes na Alemanha, em Mariaweiler, Gürzenicher Str. Nr. 39 (cfr. fls. 261/267); e que, pelos menos em 1984, o casal ainda continuava a ter residência naquele país.
Assim, a factualidade apurada não é inequívoca no que tange à residência habitual comum do casal na data em que convencionaram a alteração do regime de bens, sendo que os elementos existentes apontam quer para Portugal, quer para a Alemanha, ainda que, face ao texto da convenção, com mais insistência para o segundo país indicado.
Nas descritas circunstâncias, fixar a residência comum do casal como o elemento de conexão relevante apresenta-se-nos como equívoco e falível, afigurando-se-nos preferível o entendimento de que a existência de residência comum em ambos os países cujas leis se perfilam como potencialmente aplicáveis neutraliza esse eventual elemento de conexão, equivalendo à sua ausência.
Resta a lei pessoal do marido.

Mas, ao recorrer, como último elemento de conexão, à lei pessoal do marido, não se estará a violar o princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição, atribuindo, apenas em razão do sexo, um privilégio ao marido, com o correlativo desfavor, tão só pelo mesmo motivo, do elemento feminino da sociedade conjugal?
Salvo sempre o devido respeito, não se acompanha o entendimento, expresso na sentença recorrida, de que a adopção da lei nacional do marido como elemento de conexão não traduz inconstitucionalidade “pelo facto de não gerar qualquer desigualdade entre os cônjuges, uma vez que a eleição do elemento de conexão é valorativamente neutra, tudo dependendo da lei material que concretamente venha a ser aplicável”. O sentido da alteração dos artºs 52º, 53º, 56º e 57º do Cód. Civil, operada pelo Dec. Lei nº 496/77 na sequência da aprovação da Constituição de 1976, revela inequivocamente que o legislador não acreditou na neutralidade valorativa daquelas normas de conflitos, apressando-se a conformá-las aos novos princípios constitucionais, nomeadamente ao princípio da igualdade dos cidadãos em geral e dos cônjuges, em particular (Neste sentido, para além do Prof. Moura Ramos, citado na sentença recorrida, veja-se o Prof. Ferrer Correia, «A revisão do Código Civil e o Direito Internacional Privado», conferência proferida na sessão inaugural de «Trabalhos Judiciais», ocorrida em 18/01/1979, in BMJ, nº 283, págs. 17 e seguintes e Estudos Vários de Direito, Coimbra, 1982, págs. 279 e seguintes.).
Abstractamente, a resposta à questão acima formulada não poderia, portanto, deixar de ser positiva.
Mas, no caso concreto em apreciação a questão apresenta-se com outros contornos, já que a convenção modificativa do regime de bens de cuja validade se cuida foi celebrada em 1969, quando vigorava a Constituição de 1933, e a escolha da lei aplicável terá de reportar-se a essa data. O que introduz o tema da aplicação da lei constitucional no tempo.
A regra geral constante do artº 12º do Cód. Civil, de que a lei só dispõe para o futuro, parece-nos ter aplicação mesmo no que tange ao direito constitucional, já que, como foi afirmado no Ac. do STJ de 26/10/1976 (Citado no Acórdão nº 90/2003/T. Const., de 14/02/2003, publicado no DR, II Série, nº 73, de 27/03/2003.), as normas constitucionais não têm qualquer vocação de retroactividade.
Com efeito, tendo as partes convencionado a alteração do regime de bens em 1969, é com referência a essa data, com as normas de conflitos e com o quadro constitucional então vigentes, que tem de encontrar-se a lei aplicável, não fazendo sentido que, por exemplo, na altura fosse aplicável a lei alemã que considerava tal convenção válida e, decorridos alguns anos, mercê da mudança ou alteração da Constituição, passasse a ser aplicável a lei portuguesa que considera a mesma convenção inválida.
Como se refere no Acórdão nº 90/2003/T. Const., citado na anterior nota de rodapé, não se pode defender a aplicação de normas ou princípios vertidos na lei fundamental de 1976 a um preceito cujo resultado se esgotou num domínio temporal já transcorrido e no qual aquela lei ainda não pautava o ordenamento jurídico nacional.
O mesmo ensinamento transmite Luís de Lima Pinheiro (Direito Internacional Privado, Volume I, pág. 318.), que escreve o seguinte:
“A lei fundamental não obriga a uma revaloração de todas as situações já constituídas.
Por um lado, porque também as normas constitucionais conhecem limites temporais de aplicação. A menos que os comandos da lei fundamental reclamem aplicação retroactiva, o que, em princípio, não se verifica, não há que estender o império da lei fundamental a factos passados. (...).
Conclui-se, pois, que, no caso concreto em análise, a aplicação da norma de conflitos constante do artº 52º, nº 2, com a redacção originária, anterior à conferida pelo Dec. Lei nº 496/77, não estando temporalmente submetida à Constituição de 1976, não viola as disposições desta que consagram os princípio da igualdade (Aliás, entendendo-se que havia inconstitucionalidade, teria de aplicar-se retroactivamente a nova redacção do artº 52º, nº 2 que, à falta de lei nacional comum e de lei da residência habitual comum, manda aplicar a lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa. O que, face à factualidade provada, se bem vemos, conduziria à mesma solução: a aplicação da lei alemã.).

O recorrente, porém, aborda a questão da constitucionalidade numa perspectiva diferente e original.
Entende ele que, consagrando a Constituição alemã, vigente desde 1953, o princípio da igualdade dos cônjuges, o recurso à norma de conflitos portuguesa que instituía (ao tempo da convenção) a lei pessoal do marido como elemento de conexão, elegendo a lei alemã como aplicável, importa violação do quadro constitucional alemão. E que o tribunal português pode e deve efectuar esse controlo de constitucionalidade, recusando a aplicação da norma de conflitos portuguesa violadora do quadro constitucional alemão.
Como se nos apresenta claro, a lei constitucional alemã integra-se no e dirige-se ao ordenamento jurídico alemão, não tendo, nem podendo ter, qualquer repercussão no ordenamento jurídico português, sendo que a constitucionalidade das leis deste só pela Constituição portuguesa pode ser aferida. Ou seja, a constitucionalidade da norma de conflitos constante do artº 52º, nº 2 do Cód. Civil português (na redacção anterior ao Dec. Lei nº 496/77) tem de ser aferida face ao quadro constitucional português e, passando nesse exame, por ela se resolve o conflito, esgotando-se o respectivo efeito. Se dessa operação resulta ser aplicável uma lei estrangeira, nomeadamente, no caso, a alemã, não tem o tribunal de proceder a um segundo controlo de constitucionalidade face ao ordenamento jurídico alemão. O que, em certas circunstâncias, poderá controlar, porque a remessa é para o ordenamento jurídico e não para quaisquer normas específicas dele, é a conformidade das normas materiais estrangeiras aplicáveis, face à correspondente Constituição estrangeira (Ac. STJ de 06/11/2003 (Relator: Cons. Bettencourt de Faria), in www.dgsi.pt/jstj.), bem como, porque, em princípio, vai aplicá-las, face à ordem pública internacional do ordenamento jurídico do Estado do Foro (artº 22º do Cód. Civil) (O ensinamento de Luís de Lima Pinheiro, obra citada, pág. 451, invocado pelo apelante a favor da sua tese, antes parece contrariá-la. Com efeito, na parte com interesse para a questão em análise, aquele autor escreve o seguinte:
“Quanto ao controlo da constitucionalidade das normas materiais estrangeiras à face da Constituição estrangeira, é de entender que o tribunal português o pode exercer em dois casos:
- se a inconstitucionalidade foi declarada com força obrigatória e geral na ordem jurídica estrangeira;
- se, e nos termos em que, os tribunais do Estado estrangeiro possam exercer este controlo, como se verifica com o sistema de controlo difuso de constitucionalídade. Já não perante os sistemas de controlo concentrado de constitucionalidade em que este controlo está reservado a um órgão especial; assim, por exemplo, os tribunais franceses ou suíços não podem controlar a constitucionalidade das normas ordinárias.) .
Ora, da aplicação da lei alemã o que resulta é apenas a validade da convenção post-nupcial celebrada entre o A. e a 1ª R., com a consequente alteração do regime de bens. O que, parece claro, nem viola a Constituição alemã nem a ordem pública internacional portuguesa.

Por força dos artºs 54º, nº 1 e 52º, nº 2 (este com a redacção originária, anterior à alteração introduzida pelo Dec. Lei nº 496/77) do Cód. Civil, é aplicável a lei alemã, por ser a lei pessoal do marido (A.) e, consequentemente, é válida a convenção outorgada em 21/05/1969, pela qual o A. e a 1ª R. modificaram o regime de comunhão de adquiridos, decorrente da celebração do casamento sem convenção antenupcial, para o regime de separação de bens. E, porque à data da compra e venda feita pela 1ª R. (cônjuge mulher) continuava a vigorar tal regime – separação de bens – e o contrato teve por objecto um bem próprio dela, não havia necessidade do consentimento do A. (cônjuge marido), sendo válida tal compra e venda.

O apelante ainda ensaiou a defesa dum eventual reenvio das normas de conflitos alemãs para a lei portuguesa, a pretexto de que, na falta de nacionalidade comum e de residência habitual comum, aquelas normas mandam aplicar o direito do Estado com o qual os cônjuges têm mais estreita ligação e que tal Estado seria o Português.
Contudo, face à factualidade provada – cfr. pontos 3.1.8. a 3.1.12., supra – apesar de a primeira residência do casal ter sido em Portugal e de sempre a mesma ter sido mantida, não é inequívoco que seja com o nosso País a ligação mais estreita do A. e da 1ª R., antes se afigurando ser mais estreita a ligação ao Estado Alemão. Com efeito, escasso mês e meio após o casamento já o casal, ao convencionar a alteração do regime de bens, se declarava residente na Alemanha, estando provado que ali tiveram residência conjugal em casa dos pais do A. e, algum tempo depois, em 516 Durem Valencienner Starbe 3 onde, pelo menos até 1984, comiam, dormiam, recebiam visitas e correspondência, sendo o A. proprietário de uma fábrica de tela de metal em Gurzenmicher, STR 39, Duren 3416, para a qual a 1ª R. solicitou a familiares e amigos o recrutamento de empregados, a fim de ali trabalharem (De resto, como ele próprio declara na petição inicial, o A. reside na Alemanha. E a R., que o A., na mesma peça processual, diz residente em Portugal, nunca, apesar das diligências feitas, foi localizada a fim de ser citada, tendo sido o próprio A. que acabou por requerer a citação edital da mesma.).
Não se encontra, portanto, fundamento para a pretendida devolução, a qual igualmente se não justifica como mecanismo de correcção do resultado a que em concreto conduz a aplicação da norma de conflitos do foro, pois tal não é exigido quer pela justiça conflitual, quer pela harmonia internacional de soluções (Afigurando-se-nos, como foi já afirmado, contra a opinião do apelante, mais forte a ligação do casal à Alemanha, a aplicação da lei daquele País não comporta qualquer injustiça conflitual nem traduz qualquer desarmonia internacional de soluções que precise de correcção. ).
Acresce que do pretendido reenvio e da consequente aplicação do direito português resultaria a invalidade do contrato de compra e venda em que foram outorgantes, por um lado, a 1ª R. e, por outro, o 2º R. marido, contrato esse que, não havendo reenvio, terá de ser considerado válido. O que, como resulta do artº 19º, nº 1 do Cód. Civil, torna inadmissível o dito reenvio.

De quanto fica referido decorre também com segurança a inaplicabilidade da norma de conflitos do artº 46º do Cód. Civil, que remete para a lex rei sitae.
Com efeito, contrariamente ao que o apelante, ao arrepio da quase totalidade da sua alegação, defende no final da mesma, não está em causa o regime da posse, propriedade e demais direitos reais para que seja aplicável a lei da situação dos bens.
O conceito quadro é, como se viu, bem outro.

Soçobram, pois, todas as conclusões da alegação do apelante, motivo pelo qual improcede a apelação, sendo de manter a sentença recorrida.
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4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, em manter a sentença recorrida.
As custas são a cargo do apelante.
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Coimbra,