Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
29/21.5T8LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
RESPONSABILIDADE DOS LEGATÁRIOS
TOTALIDADE DA HERANÇA DISTRIBUÍDA EM LEGADOS
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA, COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 262.º E 351.º DO CPC
ARTIGOS 2024.º, 2030.º, 2068.º, 2276.º E 2277.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – Através do incidente de habilitação determina-se quem assume a qualidade jurídica ou a legitimidade substantiva, e não, em rigor, a sua legitimidade ad causam para ingressar na lide na posição da parte falecida ou extinta.

II – Resulta do disposto no art. 2276º do C.Civil que a regra, relativamente à responsabilidade dos “legatários”, é a de que respondem pelo encargos, dentro dos limites da coisa legada.

III – Mas, por força do disposto no art. 2277º do mesmo C.Civil, se a parte falecida (Ré na ação) tiver distribuído toda a sua herança em legados, são os encargos da herança suportados pelos legatários como tal instituídos, na proporção dos seus legados, desde que a testadora (dita Ré na ação) nada tenha disposto em contrário.

IV – Assim, tendo toda a herança sido distribuída em legados, foram os “legatários” que sucederam nas relações creditórias de que a de cujus era titular passivo, donde, por serem eles sucessores da falecida Ré para os efeitos da ação proposta, devem ser habilitados como tal.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

AA, autora em ação de processo comum, deduziu, por apenso à mesma, incidente de Habilitação de Herdeiros contra,

BB, NIF ..., residente na Rua ..., Bairro ..., ... ...; e

CC, NIF ..., residente na Rua ..., ..., ... ...,

Termina no sentido de que «deve o presente incidente ser admitido, julgado procedente, por provado, e os Requeridos, habilitados no lugar da R., para contra eles prosseguir a acção».

Na sequência de despacho, foram também notificadas as primitivas partes não requerentes.

Nenhuma contestou.

                                                           *

Na imediata sequência, foi proferida decisão final do incidente, a qual, para o que ora releva, foi do seguinte teor:

«(…)  

 Os factos, relevantes são os seguintes:

1. No âmbito das diligências desenvolvidas, com vista à citação, verificou-se que a 7.ª R., DD, faleceu em .../.../2016.

2. No dia 17.9.2015 DD celebrou testamento em que instituiu legatários BB e CC e fez os seguintes legados:

i. À BB a fração autónoma do prédio sito na Avenida ..., ..., inscrito na matriz sob o n. ...40, incluindo todo o recheio;

ii. Aos BB e CC todo o dinheiro e aplicações financeiras que tiver depositado em quaisquer bancos ou instituições financeiras.

Fundamentação de facto.

Os factos mostram-se assentes por documento, em concreto pelo testamento.

Fundamentação de direito.

A habilitação de herdeiros tem em vista habilitar os sucessores da parte falecida para prosseguirem os termos da demanda.

Assume a qualidade de herdeiro aquele que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido (artigo 2030.º, n.º 1, do Código Civil).

O legatário é herdeiro (cf. o referido artigo 2030.º, n.º 1, do Código Civil)

Os factos provados demonstram que os requeridos são os únicos herdeiro, tal como consta do testamento.

Contudo, atendendo aos legados entendemos que o segundo requerido não é sucessor da falecida para os termos da presente ação.

Segundo a autora, a falecida foi demandada porque adquiriu o “prédio referenciado no ponto 34 (v)/(vi)” e posteriormente transmitiu-o ao 3º réu (cf. arts. 37.ºe 38.º da petição.

Ora, este prédio (o “referenciado no ponto 34 (v)/(vi))” não é aquele que foi transmitido por herança à primeira das requeridas. Sendo que o segundo requerido apenas herdou parte do dinheiro e aplicações financeiras que a falecida tiver depositado em quaisquer bancos ou instituições financeiras.

Na verdade, do doc. ...1 junto pela autora, tal imóvel encontra-se inscrito na matriz sob o n. ...88... legado respeita ao imóvel inscrito na matriz sob o n. ...40.

O que, de resto, também aparenta resultar da simples lógica: se a primitiva ré praticou os factos alegados pela autora, este legado já não existia à data da abertura da sucessão. De outro modo, se o transmitiu ao 3º réu, como alega a autora, já não era de sua propriedade à data do óbito.

Pelo exposto, os factos alegados e provados não demonstram que os requeridos sejam os sucessores da falecida ré para os efeitos da ação proposta.

Assim, pelo exposto, julgo totalmente improcedente a habilitação de herdeiros requerida.

Custas pela requerente, com taxa de justiça que fixo em 1 UC, nos termos do disposto nos artigos 527.º, n.º 1, e 539.º, n.º 1, do Código do Processo Civil e 7.º, n.º 4, e Tabela II do Regulamento das Custas Processuais.

Registe e notifique.

Valor: o da ação.».  

                                                           *

            Inconformada com a dita decisão final apresentou a Requerente AA recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«a) A herança da falecida Ré foi integralmente distribuída em legados.

b) Os legatários dela, Ré, regularmnete citados, não contestaram.

c) Sendo eles, os Recorridos, os únicos sucessores da falecida Ré.

d) E únicos beneficiários dos bens por esta deixados e susceptíveis de responder pelos encargos das obrigações dos atos praticados pela ré em vida.

e) As obrigações que para a Ré ou seus sucessores podem decorrer dos autos da ação principal são creditícias, e não reais.

f) Os legatários respondem pelos encargos da herança, até ao limite e na proporção dos legados, uma vez que a testadora nada dispôs em sentido inverso.

g) Ao decidir, como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto nos art.ºs 2276.º e 2277.º, ambos do C.C..

h) Deve, pois, a sentença recorrida ser revogada e substituída por douto acórdão que julgue procedente a habilitação de herdeiros, apresentada pela recorrente, para que se faça

JUSTIÇA!»      

                                                                       *

            Por sua vez, apresentou o Requerido EE contra-alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:

«1 - DD, 7ª R. no processo principal, faleceu em .../.../2016;

2 - No dia 17 de Setembro de 2015 DD celebrou testamento em que instituiu legatários BB e CC e fez os seguintes legados:

i . a BB a fração autónoma do prédio sito na Avenida ..., ..., inscrito na matriz sob o n. ...40, incluindo todo o recheio;

ii . Aos BB e CC todo o dinheiro e aplicações financeiras que tiver depositado em quaisquer bancos ou instituições financeiras;

3 – A A., ora Recorrente, veio requerer a habilitação de herdeiros contra BB e CC, na qualidade de herdeiros de DD;

4 – A Meritíssima Juiz julgou totalmente improcedente a habilitação de herdeiros, com base nos fundamentos acima descritos e que se dão por integralmente reproduzidos;

5 – Inconformada com a decisão, a A. interpôs o presente recurso;

6 – Entendem os Recorrentes que a Meritísisma Juiz decidiu de forma correcta;

7 – Efectivamente, não obstante o artigo 2030º, nº 1, considerar eu o legatário é herdeiro, não é menos verdade que o artigo 2276º, nº 1, ambos do Código Civil, refere o seguinte:

O legatário responde pelo cumprimento dos legados e dos outros encargos que lhe sejam impostos, mas só dentro dos limites do valor da coisa legada.”;

8 – A CC foram legados, em conjunto com BB, todo o dinheiro e aplicações financeiras que tiver depositado em quaisquer bancos ou instituições financeiras;

9 – A BB foi legada a fração autónoma do prédio sito na Avenida ..., ..., inscrito na matriz sob o n. ...40, incluindo todo o recheio;

10 – No processo principal está em causa o prédio identificado no ponto 34 (v) / (vi) da p.i., o qual, conforme o documento nº ...1 junto pela Recorrente, se encontra inscrito na matriz sob o artigo ...88º;

11 – Assim, a 7ª Ré, não deixou (em legado) o imóvel objecto da relação em litígio, a nenhum dos legatários;

12 - Se o legatário só responde pelo cumprimento dos legados dentro dos limites do valor da coisa legada, nos termos do artigo 2276º, nº1, do CC, se o bem em litígio não lhe foi legado, então os legatários não respondem, na medida em que BB recebeu, em legado, o imóvel inscrito sob o artigo ...40º e não o 2288º; e CC recebeu, em legado, juntamente com BB, todo o dinheiro e aplicações financeiras que tiver depositado em quaisquer bancos ou instituições financeiras, pelo que não podem ser habilitados para efeitos da relação jurídica em litígio;

13 – E, nessa medida, a decisão proferida pelo Tribunal a quo fez uma correta interpretação e aplicação do Direito, devendo manter-se na íntegra;

14 – Não se mostrando violados os preceitos invocados, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.

           * * *

A finalizar ainda se impetra o douto suprimento de V. Exas. para as deficiências do nosso patrocínio, clamando-se

“JUSTIÇA”»

                                                                      *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Requerente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- desacerto da decisão recorrida que julgou totalmente improcedente a habilitação de herdeiros requerida [decisão que teve por fundamento não estar demonstrado que «os requeridos sejam os sucessores da falecida ré para os efeitos da ação proposta» enquanto “legatários” que eram de bens diversos dos em causa na ação].

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em consideração para a decisão são essencialmente os que decorrem do relatório supra.

                                                                       *

            4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

            Desacerto da decisão recorrida que julgou totalmente improcedente a habilitação de herdeiros requerida [decisão que teve por fundamento não estar demonstrado que «os requeridos sejam os sucessores da falecida ré para os efeitos da ação proposta» enquanto “legatários” que eram de bens diversos dos em causa na ação]:

Será que merece acolhimento a fundamentação da decisão recorrida mais concretamente assente no entendimento de os negócios celebrados pela Ré, e em discussão nos autos principais, respeitarem a prédio que não foi legado a nenhum dos Requeridos?

Cremos bem que não – e releve-se o juízo antecipatório! – como se vai passar a explicitar.

Consabidamente o incidente de habilitação de sucessores constitui o meio processual de operar a modificação subjetiva da instância, através da substituição da parte primitiva pelos respetivos sucessores na relação substantiva em litígio (art. 262º do n.C.P.Civil).

Trata-se, portanto, de uma exceção ao princípio da estabilidade da instância caraterizada pelo falecimento da parte e transmissão por via sucessória da posição que ela ocupava na relação substantiva.

Assim, a habilitação de sucessores tem como requisitos o falecimento de uma parte na acção e que a relação substantiva de que ele era titular não se tenha extinto com o respectivo óbito, sendo que os sucessores da parte falecida são chamados a substituir a parte falecida porque lhe sucederam na titularidade da relação substantiva em litígio e por isso têm interesse em ocupar a posição de parte.

Ora, sucessores, para efeitos da Lei, são os “herdeiros e os “legatários (cf. art. 2030° do C. Civil).[2]

De referir que a sentença do incidente de habilitação de sucessores apenas decreta a habilitação dos sucessores da parte falecida, isto é, verifica se as pessoas indicadas têm a qualidade de herdeiro ou a qualidade que os legitima a substituir a parte falecida e declara que essa qualidade existe, julgando, em consequência, as pessoas indicadas habilitadas para com elas prosseguirem os termos da demanda.

O pedido deduzido no requerimento do incidente é o de serem habilitados os sucessores, a decisão que a final é proferida é a de julgar as pessoas indicadas como sucessores habilitadas ou não.

Não cabe no objeto do incidente de habilitação de sucessores a determinação dos termos em que depois terá lugar a sua intervenção no processo, nem, tão pouco, qualquer delimitação ou cerceamento dessa intervenção, donde, quando a mesma ocorrer (e se ocorrer), caberá ao juiz do processo onde ela é feita decidir se a admite e em que termos.

Ademais, recorde-se que é requisito do requerimento inicial do incidente a indicação dos fundamentos de facto que constituam a respetiva causa de pedir.

Na habilitação de sucessores, tratar-se-á dos factos jurídicos concretos em função dos quais as pessoas indicadas adquiriram a qualidade de sucessores do falecido, isto é, adquiriram por morte deste (sucederam) a titularidade da relação jurídica em função da qual ele era parte na ação.

Como existem direitos ou posições jurídicas que se extinguem com a morte do seu titular e outros que se transmitem, aqueles factos jurídicos dependem do que está efetivamente em causa.

Assim, a qualidade de sucessores cabe às pessoas que lhe sucederam nessa posição, o que em princípio sucede com os “herdeiros” e “legatários” (cf. artigos 2024º e 2030º do Código Civil)

Donde, é ao direito substantivo que devemos ir buscar a solução para se apurar quem substitui o de cujus na relação substantiva que integra o objeto do processo, sendo, por isso, em sede do incidente de habilitação que se deverá decidir a questão da legitimidade substantiva para se ingressar na posição da parte falecida.

No caso dos autos, sabemos que toda a herança da falecida DD foi distribuída em “legados” e os requeridos foram constituídos como (e únicos) “legatários”.

Temos presente que «através do incidente de habilitação determina-se quem assume a qualidade jurídica ou a legitimidade substantiva, e não, em rigor, a sua legitimidade ad causam para ingressar na lide na posição da parte falecida ou extinta»[3].

É por assim ser que «A limitação da responsabilidade do herdeiro pelas dívidas da herança, consequência, por sua vez, da ideia de que o credor deve continuar, para além da morte do devedor, a contar com a garantia patrimonial comum do crédito, mas o património pessoal do herdeiro não deve responder por dívidas de que o de cujus era o devedor, traduz-se em que, na execução contra ele movida, só se podem penhorar os bens recebidos do autor da herança (art. 744-1)»[4].

É o que resulta do disposto no art. 2276º do C.Civil, isto é, a regra, relativamente à responsabilidade dos “legatários” é a de que respondem pelo encargos, dentro dos limites da coisa legada.

Sem embargo do vindo de dizer, e como bem argumentou a Requerente/recorrente AA, por força do disposto no art. 2277º do C.Civil, na medida em que a falecida Ré distribuiu toda a sua herança em legados, são os encargos da herança suportados por ambos os legatários na proporção dos seus legados, uma vez que a testadora nada dispôs em contrário.

Sendo certo que são encargos da herança, de acordo com o art. 2068º do C.Civil, as despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, os encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, o pagamento das dívidas do falecido e o cumprimento dos legados.

Ora se assim é, isto é, tendo presente ser encargo da herança, nomeadamente, o “pagamento das dívidas do falecido”, está encontrada a solução para a questão recursiva: tendo toda a herança sido distribuída em legados, foram os “legatários” que sucederam nas relações creditórias de que a de cujus era titular passivo, donde, por serem eles sucessores da falecida ré para os efeitos da ação proposta, devem ser habilitados como tal.

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, procedem os argumentos recursivos e o recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 351º do n.C.P.Civil, declara os Requeridos BB e CC como sucessores da falecida DD, para com eles prosseguirem os termos da demanda.

Nestes termos procedendo o recurso.

(…)

                                               *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final julgar procedente o recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 351º do n.C.P.Civil, declara os Requeridos BB e CC como sucessores da falecida DD, para com eles prosseguirem os termos da demanda..

Custas do recurso pelo Requerido/recorrido EE.

                                                                       *

              Coimbra, 10 de Janeiro de 2023

Luís Filipe Cravo

Fernando Monteiro

Carlos Moreira



[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira

[2] Vide também neste sentido RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, in “Lições de Direito das Sucessões”, Vol. I, 4ª Edição Renovada, a págs. 81.