Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
397/06.9 PBFIG
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: REINCIDÊNCIA
CRIME CONTINUADO
BURLA
Data do Acordão: 01/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 30º, 2 ,75º ARTº 218º, Nº2, AL. B), DO CP
Sumário: 1. Para a verificação do requisito da reincidência de que a condenação anterior não constituiu suficiente prevenção contra o crime não basta a demonstração de factualismo concreto que estabeleça uma relação entre a falta de efeito de condenação anterior e o novo crime, designadamente que o arguido se vem dedicando à prática de crimes contra o património, sem ter dado provas de pretender abandonar essa actividade delituosa.
2. A natureza «material» e «não fáctica» deste pressuposto significa, por um lado, que integra inequivocamente questão de direito e, por outro, que a respectiva verificação carece da apreciação e prova de factos concretos e específicos de cada situação, necessariamente inscritos em impulso acusatório prévio
3. Emergindo a reiteração criminosa como resultado do desenvolvimento de um «estratagema» assumido como quotidiano, e não como efeito de uma pressão «exterior»,nessa medida, não se encontra diminuição da culpa, muito menos acentuada, como exige o artº 30º, nº2, do CP, antes o seu agravamento, o que, aliás, decorre da tipificação desse profissionalismo como circunstância qualificativa da burla (artº 218º, nº2, al. b), do CP)
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório

[1] Nos presentes autos com o nº 397/06.9 PBFIG do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, foi o arguido A..., condenado como autor material de um crime continuado de burla qualificada, sob a forma consumada, p. e p. nos arts. 217º,n.º 1 e 218º,n.º 2, al. b) C.P., na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; absolvido da autoria material de um crime de burla qualificada, sob a forma tentada, p. e p. nos arts. 22º, 23º,n.º 1, 217º, n.º 1 e 218º, n.º 2, al. b), todos C.P., condenado como autor material de um crime de roubo, p. e p. no art. 210º, n.º 1 C.P., na pena de 15 (quinze) meses de prisão; absolvido da autoria material de um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 C.P.; e condendo como autor material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos arts. 143º, n.º 1, 146º, n.º 2 e 132º, n.º 2, al. j), todos C.P., na pena de 8 (oito) meses de prisão. Em cúmulo jurídico, nos termos do art. 77º, nºs. 1 e 2 C.P., foi o arguido condenado na pena única de 3 (três) anos de prisão, cuja execução foi suspensa por 4 (quatro) anos, com regime de prova.
[2] Inconformado com essa decisão, veio o magistrado do Ministério Público interpor recurso, com a seguinte síntese conclusiva Transcrição.:

I) Discorda-se da não aplicação, contrariamente ao pugnado na acusação, do instituto da reincidência, uma vez que o Tribunal não indica quaisquer elementos que objectivamente fundamentem a conclusão da matéria não provada de que «não obstante a condenação em pena de prisão efectiva acima aludida no ponto 28 (da matéria de facto provada), não tenha o arguido interiorizado o "aviso" em tal condenação contido», não sendo admissível que o Acórdão se baste na fundamentação genérica de que "por fim os factos dados como não assentes resultaram da falta de produção dos elementos probatórios respectivos".
II) A fundamentação de uma sentença, na parte da matéria provada e não provada, deve indicar factos e enumerar os elementos de prova em que se socorreu para formar a sua convicção e não fórmulas imprecisas como "nada mais se provou", juízos de valor ou conceitos que não dão a indispensável garantia de que todos os factos relevantes que não surgem discriminados na decisão sobre a matéria de facto foram objecto de apreciação nos termos legais.
III) A nosso ver, mal iria a justiça que justificasse o afastamento da reincidência dos arguidos nos crimes patrimoniais apenas pela necessidade de satisfação de proventos económicos dos respectivos agregados familiares: mais valia então que legalmente se excepcionasse a reincidência para tal tipo de ilícitos!
IV) O A... vive essencialmente deste tipo de actividade ilícita, habituou-se à prática deste género de condutas e de certo modo especializou-se nelas (recorde-se que além das situações concretamente descritas, a factualidade fixada no art.7 e 12 da matéria de facto), passando a adoptá-las em circunstâncias de repetição e multiplicidade demonstrativas de que a sua prática é por ele olhada como" normal"e desculpabilizante. Se tal postura é relevante para agravar a conduta delituosa por habitualidade e torna difícil por si a contenção desse modo de vida, certo é também que a anterior condenação em prisão efectiva nem por isso o afastou ou dissuadiu do mesmo.
V) A reincidência não é automática e a mera falta de prova do que o requisito de que a condenação ou condenações anteriores não foram advertência suficiente para o arguido não continuar a delinquir, afastam a sua aplicação. Contudo, tendo em conta a prova produzida, documental e testemunhal, bem como a matéria dada como provada, a questão é, pelo contrário, a ausência de fundamentação convincente ou raciocino lógico e razoável que suporte a convicção do Tribunal recorrido no sentido de afastar a aplicação da reincidência.
VI) Da acusação resulta a expressa invocação da verificação concreta da reincidência, resultando da fundamentação de facto do Acórdão que o arguido tem vindo a praticar de forma reiterada factos descritos nos pontos 1 a 6, 9 e 10 (burlas com telemóveis) -art.21- que vive também deste tipo de actividade -art.25 — e que à data da prática dos factos o arguido havia já sido julgado e condenado em pena de treze meses de prisão que cumpriu até 24/11/03, pelos crimes de sequestro, roubo e burla-art.28.E compulsados os autos, verifica-se a fls.29 a 41, que tal condenação resultou de sentença proferida e transitada em julgado a 19/03/02 do 1°Juízo deste mesmo Tribunal e que posteriormente, para além deste processo, o arguido já respondeu e foi condenado em pena de multa pelo crime de burla simples no processo comum colectivo n°990/02.9 PBFIG do 3°Juízo (fls.508).
VII) Para a verificação do requisito da reincidência de que a condenação anterior não constituiu suficiente prevenção contra o crime basta a demonstração de factualismo concreto que estabeleça uma relação entre a falta de efeito de condenação anterior e o novo crime, designadamente que o arguido se vem dedicando à prática de crimes contra o património, sem ter dado provas de pretender abandonar essa actividade delituosa.
VIII) O Tribunal recorrido julgou de forma incorrecta a questão da reincidência porque de modo infundado e divergente com a matéria factual fixada, que tem de ser avaliada a partir dos dados factuais confirmados e não de juízos de valor ou mera enunciação dos próprios termos legais do referido instituto. Como, tal na medida da pena deveria ter sido levado em consideração o agravamento de um terço no limite mínimo da pena, nos termos dos art. 75 e 76 do C.Penal, pelo que não os aplicando violou o Tribunal a quo tais dispositivos legais.
IX) O mero aproveitamento de um cenário ou delineação de um plano de actuação de um arguido para levar a cabo uma certa actividade criminosa não é uma situação exterior a ele e reveladora de menor culpa, antes indicia e pelo contrário, o eclodir de factos criminosos por força de uma disposição interior para os praticar, que pode ou não questionar se existe uma única resolução criminosa ou concurso de crimes, mas não inculca de modo nenhum uma menor censurabilidade.
X) Para que exista crime continuado não basta uma pluralidade de acções violadoras do mesmo tipo de crime ou de várias que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico, sendo ainda necessário que o agente tenha sido influenciado por circunstâncias exteriores que facilitem a repetição dos actos criminosos, pois é este o condicionalismo legal que concorre para diminuir o grau de culpa, ao tomar menos exigível comportamento diverso e uma vez que envolve em si mesmo uma atenuação correspondente (pelo menos relativamente à situação derivada do concurso real).
XI) O arguido tem idade e condições para desempenhar actividade laboral ou comercial (que aliás de quando em quando executa com a venda de perfumes e roupas), sendo que demonstrou "engenho e arte", nalguns casos até empatia, no contacto com as pessoas que abordou e conseguiu ludibriar, o que evidencia a sua apetência para a actividade de venda comercial directa. Não foi aliás dado como provada qualquer situação preocupante ou de sério risco de sobrevivência financeira do agregado familiar respectivo que estabeleça uma relação causal com o cometimento dos crimes.
XII) Embora exista uma proximidade temporal entre as diversas condutas e uma repetição de actos criminosos, falta a solicitação exógena, não só facilitadora destes mas ainda significativamente diminuidora da culpa do agente. Tal não se confunde com o grau de ilicitude dos actos, o modo de execução destes e gravidade das suas consequências (a ponderar na medida da pena nos termos do art.71-n°2-alínea a) do CP), mas com a menor culpa unificadora e derivada da mesma situação exterior a sugerir e facilitar as subsequentes repetições.
XIII) A situação económico-familiar do arguido deve ser levada em conta na determinação da medida da pena (art.71-n°l e n°2-alínea d) do CP), mas não é uma solicitação exógena facilitadora da execução e diminuidora do grau de culpa para efeitos da verificação do crime de continuação criminosa, parecendo claro que dos factos descritos no acórdão resulta a verificação do circunstancialismo previsto no art.30-n°1 do CP e não pode ser afastado o concurso de crimes, como fez o Tribunal recorrido, de forma vaga e inconsistente.
XIV) No caso, o A...não só não foi "arrastado" para o crime, procurando sim em diversos locais desta cidade os possíveis "compradores" de telemóveis (sem qualquer ligação entre si) e renovando a sua conduta à medida das suas necessidades económicas. Importa aliás ter presente que quando aqueles não acediam ao"negócio" nem por isso o mesmo se inibiu da prática de roubo para obter dinheiro, como sucedeu com a ofendida Sandra Margarida da Cruz Queirós (art.16 a 18 da matéria provada), sendo assim claro que o aproveitamento das potenciais vítimas não se reduz sequer à maior ou menor "receptividade" com que estas aderiam ao "negócio" da aquisição barata de telemóveis.
XV) O arguido deve ser condenado pela prática de três crimes de burla qualificada, pp. art.217-n° 1 e 218 — n°2 — alínea b) CP e não de um único crime sob a forma continuada, uma vez que esta ultima interpretação viola a regra do disposto no art.30º n°1 do CP, aplicável ao caso em apreço.
XVI) Tendo-se em conta os critérios do art. 71 do CP e ainda o que se encontra destacado pelo Tribunal quanto às circunstâncias em que os crimes foram cometidos, as consequências pouco graves daqueles e situação pessoal do arguido, entende-se dever ser de aplicar pelo limite mínimo as penas concretas parcelares dos crimes de burla e roubo ou seja as penas de dois anos e oito meses de prisão por cada um dos crimes de burla, quinze meses de prisão pelo crime de roubo, mantendo-se a pena de oito meses de prisão pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.
XVII) Em cúmulo jurídico, nos termos do art.77-n°1 e 2 da CP, considerando-se o conjunto dos factos e seu circunstancialismo bem como a personalidade do arguido, deverá ser aplicado ao mesmo uma pena de prisão efectiva de quatro anos e dez meses, a que será descontado a final o período de prisão preventiva e domiciliária já sofrida.
Pelo que e consequentemente, deve ser dado provimento ao presente Recurso e alterada a decisão recorrida, condenando-se o arguido na pena unitária mencionada, assim fazendo Va Exas. a habitual JUSTIÇA!

[3] O arguido não apresentou resposta.
[4] Neste Tribunal, a Srª. Procurador-Geral adjunta tomou posição, no sentido do provimento parcial do recurso.
[5] Notificados os sujeitos processuais nos termos e para os efeitos do artº 417º, nº2 do CPP, não houve resposta.
[6] Foram colhidos os vistos e realizou-se audiência.

II. Fundamentação


2.1. Âmbito do recurso


[7] É pacífica a doutrina e jurisprudência Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 99/03/24, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso Cfr. artºs. 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP e acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95.. As questões colocadas no recurso reconduzem à apreciação da circunstância modificativa reincidência e da qualificação das condutas desenvolvidas pelo arguido como integrando um crime de burla qualificada, na forma continuada, ou, ao invés, três crimes de burla qualificada.

2.2. Apreciação

2.2.1. Da decisão recorrida
[8] Importa referir a decisão recorrida, na parte relativa aos fundamentos de facto. O seu teor foi o seguinte Transcrição.:

Após a audiência de julgamento, entende o Tribunal provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:
1 – No dia 18 de Abril de 2006, pelas 13 horas e 45 minutos, no parque de estacionamento do hipermercado “E’Leclerc”, sito na rotunda do Limonete, na Figueira da Foz, o arguido abordou C…, quando o mesmo se preparava para iniciar a marcha no seu automóvel, propondo-lhe a aquisição de um telefone móvel de marca “Nokia”, modelo “N70”, em estado novo e funcional, alegando que o valor real de tal aparelho será superior a € 530;
2 – O C....experimentou o telefone móvel e, vendo que o mesmo funcionava, aceitou o negócio, propondo-se, porém, pagar apenas € 50, com o que o arguido concordou, recebendo daquele tal quantia monetária;
3 – Entregou então o arguido ao C....uma bolsa em tecido, mas contendo no seu interior um taco em madeira, revestido a fita isoladora de cor preta, após o que se ausentou daquele local no veículo automóvel de matrícula JX-71-91;
4 – No dia 27 de Abril de 2006, pelas 19 horas e 30 minutos, junto das escadas de acesso à parte restauração do “Centro Comercial Foz Plaza”, sito na avenida Dr. Mário Soares, em Buarcos, Figueira da Foz, o arguido abordou …….. e, exibindo o referido telefone móvel de marca “Nokia”, modelo “N70”, propôs-lhe a aquisição do mesmo por € 250, sugerindo-lhe que experimentasse o mesmo;
5 – Perante a recusa do …., o arguido foi baixando o preço até pedir pelo mesmo apenas € 50;
6 – Acabou então o …. por aceder à realização do negócio proposto, pagando ele ao arguido, no entanto, somente a quantia de € 38 em dinheiro, altura em que o arguido lhe entregou um pequeno saco em tecido preto contendo no seu interior um taco em madeira, envolto em fita isoladora amarela, após o que se ausentou daquele local;
7 – No dia 7 de Maio de 2006, o arguido foi interceptado pelo agente da Polícia de Segurança Pública (P.S.P.) ….., na esplanada do “Centro Comercial Foz Plaza” (atrás melhor identificado), na posse de um taco de madeira revestido a fita-cola plástica de cor castanha, transportado num saco de nylon de cor preta, o qual lhe foi apreendido;
8 – O aludido agente deslocou-se àquele local na sequência de telefonema efectuado para a P.S.P. da Figueira da Foz, no qual se dizia que o arguido já havia abordado várias pessoas com o intuito de vender tal objecto como se de um telefone móvel se tratasse;
9 – No dia 18 de Maio de 2006, pelas 14 horas e 45 minutos, no “Centro Comercial Foz Plaza” (supra melhor identificado), o arguido abordou ……, ao qual propôs a aquisição do telefone móvel “Nokia N70”, já referido há pouco, que lhe exibiu, pelo preço de € 100, o que aquele aceitou;
10 – Acto contínuo, o arguido dirigiu-se até junto do automóvel de matrícula JX-71-91, ali estacionado, para embrulhar o aparelho, tendo regressado cerca de 10 minutos depois com um saco em nylon contendo no seu interior um taco de madeira revestido com uma fita isoladora de cor castanha, o qual entregou ao B...., dizendo-lhe que no seu interior se encontrava o aludido telefone móvel, tendo-lhe aquele mesmo B.... dado os € 100, ausentando-se o arguido de seguida daquele local;
11 – Pouco tempo depois, a P.S.P. veio a apreender ao arguido, no parque de estacionamento do Centro de Saúde de Buarcos, Figueira da Foz, a referida quantia de € 100, e ainda um taco de madeira e um taco de baseball, que se encontravam no interior do veículo de matrícula JX-71-91;
12 – No dia 22 de Junho de 2006, pelas 19 horas e 30 minutos, foram apreendidos no interior do veículo de matrícula JX-71-91, pertencente ao arguido, o telefone móvel “Nokia N70” acima identificado (com o IMEI 357.093.001.076.698), no valor de € 549 (adquirido que fora pelo arguido no estabelecimento comercial da “Worten”, mediante contrato de crédito ao consumo), 21 tacos de madeira de tamanho e peso idênticos ao referido telefone móvel (estando dois desses tacos já embalados em bolsas de pano), seis bolsas em tecido de cor preta (destinadas a embalar os aludidos tacos), um rolo de fita plástica isoladora castanha (utilizada para envolver os ditos tacos de madeira), uma bolsa plástica com dois martelos, vários pregos, bocados de madeira e dois xis-actos, e ainda um taco de baseball de metal, de cor vermelha;
13 – Algum tempo mais tarde, no mesmo dia 22 de Junho de 2006, nas instalações da P.S.P. da Figueira da Foz, apercebendo-se o arguido de que o bombeiro ……. ali se encontrava, por causa de desentendimentos que tiveram lugar entre o arguido e os bombeiros que se haviam deslocado ao local de um acidente de viação em que o arguido e seus familiares (filhos e sobrinho) estiveram envolvidos, dirigiu-se aquele mesmo arguido ao Paulo Antunes e desferiu-lhe um soco com a mão direita na face, provocando a sua queda no chão, pois que, no referido momento, o dito ….. se encontrava com as mãos nos bolsos, tendo sido surpreendido pela atitude do arguido;
14 – Em consequência da actuação do arguido, restou o ….. inconsciente durante alguns instantes, sofrendo ferimento linear, vertical, na região occipital, com dois centímetros de comprimento, carecendo de sutura, que lhe determinou 10 dias de doença com afectação da capacidade para o trabalho em geral, sendo um deles com afectação da capacidade para o trabalho profissional;
15 – Ao actuar da forma acabada de descrever, agiu o arguido debaixo de exacerbada emoção e nervosismo, por entender que os bombeiros não lhe haviam permitido, aquando da sua deslocação ao local do acidente de viação, inteirar-se do estado de saúde do seu sobrinho, transportado numa das ambulâncias, gerando-se então um princípio de altercação entre o arguido e o acima referido Paulo Antunes;
16 – No dia 15 de Agosto de 2006, pelas 14 horas e 30 minutos, na rua Afonso de Albuquerque, na Figueira da Foz, em frente ao supermercado “Pingo Doce”, o arguido abordou ….., que se encontrava acompanhada de ……, e propôs-lhe a aquisição de um telefone móvel de marca “Nokia”, modelo “N80”, por € 180;
17 – Perante a recusa da ……, o arguido foi insistindo, até ao ponto de propor a compra por € 100;
18 – Como a ….. continuava a não se mostrar interessada na aquisição do aparelho, o arguido, com um movimento brusco, retirou-lhe da mão direita duas notas de € 50, num total de € 100, após o que se colocou em fuga num veículo automóvel de matrícula não concretamente determinada em audiência;
19 – No dia 21 de Novembro de 2006, pelas 16 horas, a P.S.P. da Figueira da Foz apreendeu na mala do veículo automóvel de matrícula 56-68-AJ, conduzido pelo arguido, que se encontrava na oficina “Figueira Diesel”, sita na Estrada Nacional n.º 109, em Araújos, Brenha, Figueira da Foz, um taco de madeira envolvido em fita adesiva de cor preta, uma bolsa em tecido de cor preta contendo no seu interior um taco em madeira, um rolo de fita adesiva de cor preta, um xis-acto com o cabo de cor vermelha, um martelo e 160 gramas de pregos n.º 5, os quais se destinavam à prática de actos idênticos aos acima descritos;
20 – Agiu o arguido de modo livre ao praticar os factos acima descritos nos pontos 1 a 6 e 9 e 10 (desta factualidade provada), com o propósito, que logrou concretizar, de determinar os acima mencionados ….., ….. e ……. à aquisição de pedaços de madeira na convicção de se tratar de telefones móveis, assim obtendo dos mesmos as referidas quantias, a que sabia não ter direito, em prejuízo daqueles, o que representou;
21 – Tem vindo o arguido a praticar de forma reiterada factos da mesma natureza dos descritos nos pontos 1 a 6 e 9 e 10 (da presente matéria assente) para prover ao seu sustento e ao da sua família mais próxima (mulher e três filhos), economicamente carecidos e sem fontes de rendimento constantes;
22 – Ao praticar a factualidade constante dos pontos 13 a 15 (desta matéria provada), agiu também o arguido de modo livre e com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde do supra aludido ……. e de lhe produzir as lesões físicas verificadas, resultado este que representou;
23 – Por fim, actuou ainda o arguido de forma livre ao praticar os factos explicitados nos pontos 16 a 18 (desta factualidade provada), com o propósito de fazer sua tal quantia monetária, mediante o uso da violência descrita, contra a vontade e em prejuízo da acima mencionada …….., o que o arguido representou;
24 – Mais sabia o arguido que todas as condutas acabadas de mencionar eram proibidas e punidas por lei;
25 – Para além dos “negócios” acima descritos, de quando em vez vende o arguido alguns produtos de vestuário e perfumaria nas feiras, juntamente com a sua mulher, conseguindo desta actividade um rendimento mensal de pouco mais de € 250;
26 – Têm três filhos menores (com seis, cinco e um ano e meio de idade), e aguardam o nascimento de outro;
27 – Vão sendo auxiliados monetariamente pelos sogros do arguido;
28 – À data da prática dos factos acima descritos, já havia sido o arguido julgado e condenado pela prática de crimes de ofensa à integridade física, sequestro, roubo e burla, tendo cumprido a pena de 13 meses de prisão pelo crime de roubo, até 24 de Novembro de 2003, data em que saiu em liberdade.

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão a proferir.
Assim, não se provou:
- Que na ocasião supra referida no ponto 6 (dos factos provados) o acima identificado ….. haja entregue ao arguido a quantia de € 38 porque se sentiu receoso pela sua integridade física após lhe ter sido dito pelo arguido, em tom sério, que lhe dava uma facada se não acedesse na realização do negócio do telefone móvel;
- Que alguns instantes antes da ocasião supra mencionada nos pontos 7 e 8 (dos factos assentes) houvesse o arguido abordado diverso pessoas com o intuito de vender o taco de madeira revestido a fita-cola plástica de cor castanha, transportado num saco de nylon de cor preto, como se de um telefone móvel verdadeiro se tratasse;
- Que no dia 19 de Junho de 2006, pelas 17 horas e 30 minutos, haja o arguido abordado …….., no interior do “Centro Comercial Foz Center”, sito na rua da República, na Figueira da Foz, a quem propôs a aquisição de um telefone móvel de última geração e com o valor de € 500 por € 70 a € 80;
- Que como não possuísse aquela quantia, haja a …… oferecido ao arguido € 40 pelo telefone móvel, o que este aceitou, entregando-lhe então uma bolsa de cor preta que disse conter o aludido telefone móvel e recebido os € 40 em dinheiro e ausentando-se de seguida do local, contendo a dita bolsa um pedaço de madeira com vários pregos, envolvido em fita plástica de cor castanha;
- Que não obstante a condenação em pena de prisão efectiva acima aludida no ponto 28 (da matéria factual provada), não tenha o arguido interiorizado o “aviso” em tal condenação contido.

O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida, concatenada e “peneirada” à luz das regras normais da experiência da vida.
Assim, as declarações do arguido foram no sentido de confessar parte da factualidade ao mesmo assestada na acusação pública, mormente no que toca aos embustes repetidamente feitos nas vendas dos “telefones móveis” fictícios. Manteve sempre a preocupação de dizer que “enganou, mas nunca com violência”, aproveitando a “vontade” das pessoas de serem enganadas. Por outro lado, esclareceu – de um modo que ao Tribunal pareceu minimamente credível e coerente – o contexto que conduziu à altercação e à sua posterior agressão ao bombeiro Paulo Jorge Antunes.
Os depoimentos das testemunhas …… (este, há que o dizer, de uma forma algo estranha, incoerente e mesmo atabalhoada…), …… e …… descreveram o modo como foram abordados pelo arguido para as vendas dos (supostos) telefones móveis.
Por seu turno, o depoimento da testemunha ……. revelou-se de uma total inutilidade probatória, já que acabou por asseverar não ter a ideia de quem lhe entregou um taco de madeira “disfarçado” de telefone móvel e, muito menos, que tivesse sido o arguido a fazê-lo…
Quanto ao episódio da agressão ao bombeiro ……., para além do depoimento deste (que, compreende-se, surgiu algo parcial e “militante”), valeram também os depoimentos dos seus colegas de corporação ……. e ……., pois deram a perceber (ainda que porventura o não quisessem de modo muito veemente…) ter havido um tumulto prévio, no local do acidente de viação, entre o arguido e o queixoso ……., sobretudo motivado pela emoção exacerbada de que o arguido dava mostra, ao querer acompanhar, no interior da ambulância do Instituto Nacional de Emergência Médica (I.N.E.M.), o exacto estado de saúde do seu familiar, e a negação dessa pretensão pelos bombeiros (maxime, pelo queixoso …..). Neste ponto, aliás, o depoimento da testemunha ………. (enfermeiro que se encontrava no interior da dita ambulância do I.N.E.M.) apresentou-se exemplar e perfeitamente genuíno e isento, relatando a forma como, grosso modo, as coisas se passaram.
Já quanto à agressão propriamente dita, ocorrida nas instalações da P.S.P., foi também relevante o teor dos depoimentos de ……, ……. e …… (agentes de tal corpo policial da Figueira da Foz).
Dos depoimentos dos também agentes policiais ….. e …… retira-se a ideia da permanência da actuação do arguido nas “vendas” acima descritas.
Por seu turno, os depoimentos das testemunhas ….. e ….. surgiram claros e convincentes no sentido de que, afinal, por vezes, o arguido também “engana” (ou tenta “enganar”) com, se necessário, o recurso à violência…
No tocante à personalidade e às condições vivenciais do arguido, valeram as declarações do próprio, auxiliadas pelo depoimento da testemunha …… (assistente social que conhece parte da história de vida pessoal do arguido, inclusivamente os problemas de toxicodependência com que se viu confrontado no passado, mais assegurando parecer estar ele actualmente numa fase segura de abstinência). Teve ainda interesse, neste capítulo, o teor da informação (também de cariz social) de fls. 302 a 305 dos presentes autos.
Tomou-se igualmente em conta o conteúdo dos documentos dos autos de apreensão, de reconhecimento fotográfico e de exame e avaliação de objectos de fls. 4, 6 a 8 e 23 do processo apenso n.º 366/06.9PBFIG; dos autos de apreensão, de exame e avaliação de objectos e de reconhecimento fotográfico de fls. 3, 20 e 21, 73 e 75 do presente processo; dos autos de apreensão de fls. 3 e 6 e do documento (factura) de fls. 20 do processo apenso n.º 568/06.8PBFIG; dos relatórios hospitalares e médico-legais de fls. 15 a 21, 27 e 41 a 43 do processo apenso n.º 586/06.6PBFIG; dos autos de reconhecimento fotográfico de fls. 7 a 9 e 11 a 13 do processo apenso n.º 859/06.8PBFIG; e dos autos de apreensão e de entrega fls. 3 e 4 do processo apenso n.º 476/06.2TAFIG, tudo devidamente maturado e analisado à luz dos demais elementos de prova produzidos em audiência.
Valeu também o conteúdo da certidão da decisão condenatória (e cumprimento de pena pelo arguido) constante de fls. 29 a 41, bem como do teor do certificado do registo criminal junto de fls. 506 a 508 dos presentes autos.
Por fim, diga-se que os factos dados como não assentes resultaram da falta de produção dos elementos probatórios respectivos.

2.2.2. Da reincidência
[9] Como já se referiu, o magistrado do Ministério Público recorrente cingiu o recurso a duas questões, a primeira das quais relativa à circunstância modificativa reincidência, com direcção da discordância à inclusão nos factos não provados do segmento «que não obstante a condenação em pena de prisão efectiva acima aludida no ponto 28 (da matéria factual provada), não tenha o arguido interiorizado o “aviso” em tal condenação contido» e afirmação de que «Para a verificação do requisito da reincidência de que a condenação anterior não constituiu suficiente prevenção contra o crime basta a demonstração de factualismo concreto que estabeleça uma relação entre a falta de efeito de condenação anterior e o novo crime, designadamente que o arguido se vem dedicando à prática de crimes contra o património, sem ter dado provas de pretender abandonar essa actividade delituosa» Conclusão VII..
[10] A Srª. Procuradora-Geral adjunta junto deste Tribunal da Relação de Coimbra alerta para que o arguido não pode ser condenado como reincidente pois a acusação não descreve factos concretos dos quais se possa inferir que desrepeitou a solene advertência contida na sentença anterior, não bastando a simples indicação das condenações e períodos de reclusão sofridos.
[11] O regime penal da circunstância modificativa reincidência Inalterado pela Lei nº 59/2007, de 4/9. envolve diversos pressupostos: vários de natureza formal e um de natureza material.
[12] Nos termos do artº 75º do Código Penal, constituem pressupostos formais atinentes à infracção relativamente à qual poderá ser modificada a moldura penal por efeito da reiteração criminal, o cometimento de crime doloso, a respectiva punição com pena de prisão efectiva superior a seis meses e ainda, agora relativamente ao passado criminal do agente, que a condenação anterior tenha sido igualmente por crime doloso e sancionado com prisão efectiva superior a seis meses, esteja transitado em julgado e haja sido cumprida, total ou parcialmente e, finalmente, que entre uma e outra tenha mediado não mais de cinco anos.
[13] A esses pressupostos formais junta-se, como decorre da parte final do nº1 daquele preceito, um pressuposto material: exige-se que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. Essa exigência responde ao próprio fundamento criminológico da punição reforçada do reincidente, o que afasta uma concepção puramente «fáctica» da reincidência. Como refere Figueiredo Dias Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, 268. «É no desrespeito ou desatenção do agente por esta advertência que o legislador vê fundamento para uma maior censura e portanto para uma culpa agravada relativa ao facto cometido pelo reincidente. É nele, por conseguinte, que reside o lídimo pressuposto material – no sentido de ‘substancial’ mas também no sentido de pressuposto de funcionamento ‘não automático’ - da reincidência».
[14] Assim, a natureza «material» e «não fáctica» deste pressuposto significa, por um lado, que integra inequivocamente questão de direito e, por outro, que a respectiva verificação carece da apreciação e prova de factos concretos e específicos de cada situação, necessariamente inscritos em impulso acusatório prévio.
[15] No caso em apreço, diz-se na acusação, a fls. 239 e 240: «O arguido foi condenado por crime de roubo na pena de 13 meses, em data anterior à dos factos descritos na acusação, conforme decorre do seu certificado de registo criminal e da certidão de fls. 29 a 40, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, tendo cumprido pena de prisão por tal crime até 24/11/2003, data em que saiu em liberdade. Não obstante tal condenação, à data destes factos não havia o arguido interiorizado a advertência nela contida, antes reincidindo na prática de crimes como os descritos». Depois da imputação dos crimes, referiu-se «Agrava a sua responsabilidade a reincidência, nos termos do artº 75º, nºs 1 e 2 do CP».
[16] Assim, e como refere a Srª. Procuradora-Geral adjunta, a acusação não ofereceu específicos factos de conexão material entre a reiteração criminosa e o fracasso do efeito admonitório do cumprimento de pena de prisão. Limita-se, aliás, a inscrever na acusação segmento praticamente coincidente com a previsão legal e, portanto, mera conclusão, sem conteúdo fáctico.
[17] Acresce que, ao contrário do pretendido pelo recorrente, a circunstância do arguido assumir constância na prática dos crimes de burla e deles retirar proventos para a fazer face à sua subsistência e da família não significa, por si só, que esteja demonstrado que o arguido agiu com culpa agravada e indiferente à admonição criminal, pois outras circunstâncias podem intervir, impedindo aquela advertência de actuar Escreve a este propósito Figueiredo Dias, op. cit. 269: «Uma tal conexão poderá, em princípio, afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução; se bem que ainda aqui possam intervir circunstâncias (v.g., o afecto, a degradação social e económica, a experiência especialmente criminógena da prisão, etc.) que sirvam para excluir a conexa, por terem impedido de actuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores.. Foi, esse, aliás, o entendimento do Tribunal ao considerar que a degradação social e económica «denotaram uma proeminência e uma predominância em detrimento da imagem repressiva e reprimidora que o cárcere deveria ter exercido na mente do mesmo arguido», explicitando o substrato lógico-racional que conduziu à menção constante dos factos não provados.
[18] Cumpre, então, considerar que não foram alegados e, por consequência, não se encontram provados elementos fácticos idóneos a suportar a afirmação do pressuposto material da reincidência, a qual, por isso, deve ser afastada, o que prejudica a apreciação dos seus pressupostos formais. É que, como refere a Srª. Procuradora-Geral adjunta, o acórdão recorrido omite a devida indicação da data de cometimento dos factos que fundaram as anteriores condenações assim como o início do cumprimento da pena de treze meses de prisão.
[19] Improcede o recurso nesta parte.

2.2.3. Do crime continuado
[20] Como se referiu, a segunda dissensão expressa no recurso dirige-se ao acerto da condenação por um crime continuado de burla agravada. Sustenta o magistrado recorrente, com concordância da Srª. Procuradora-Geral adjunta, que não estão verificados os pressupostos do artº 30º, nº2, do CP, segundo o qual:

2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executando por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.


[21] O crime continuado, como refere Figueiredo Dias Direito Penal Português, As consequências do crime, Aequitas, 1993, pág. 296., integra uma unidade jurídica construída por sobre uma pluralidade efectiva de crimes. Perante uma repetição de factos de significado penal equivalente, com um nexo de continuidade, a ordem jurídica estipula a consideração dessa continuação de delitos como um único facto, no sentido jurídico-penal, ou seja, como uma unidade jurídica de acção, a sancionar da mesma forma que o concurso ideal Sobre estas questões, Jakobs, Derecho Penal – Parte General, ed. Marcial Pons, 1995, págs 1090-1099.. As razões apontadas para esse tratamento normativo variam, não faltando quem descortine na figura a vontade de escapar à necessidade de comprovar todos os actos parcelares e de aplicar as regras do concurso real, com prejuízo da justiça material e das garantias de defesa Jescheck, Tratado de Derecho Penal, ed. Bosch, 1981 (tradução da edição original de 1978), pág. 1001. Sobre a recusa da figura na jurisprudência e doutrina alemã, Maria da Conceição Valdágua, As alterações ao código penal de 1995…, R.P.C.C., ano 16, nº4, 534-538..
[22] Entre nós, prevalecem ainda razões que derivam de uma menor culpa. Eduardo Correia refere Direito Criminal, vol. 2, págs. 210 e 211 que «pressuposto da continuação criminosa será verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito». Mais adiante, a propósito da exigência da conexão espaço temporal, volta a acentuar que a ideia fundamental e que legitima a figura é a da diminuição considerável da culpa e que a ligação entre as condutas relevante é a interior, podendo servir a conexão exterior para a afastar.
[23] No caso em presença, o tribunal a quo suportou a aplicação da figura nos seguintes termos:


(…)
Por diversas vezes, no espaço de dois meses, o arguido serviu-se sempre do mesmo estratagema para “negociar” a suposta venda de telefones móveis com diversas pessoas, cuja “ânsia” (como já dissemos) de “comprar bom e barato” lhe facilitou, cada vez mais, uma renovação constante e sem restrições da sua vontade criminosa. Como se intui, terá agido o arguido em obediência à “motivação” inerente às facilidades próprias de um eficaz modus faciendi de cariz homogéneo.
Mas, por outro lado – e talvez ainda mais importante –, como poderemos negar que a envolvente económico-familiar condicionou, de modo marcante, a actividade do arguido? A premência do sustento familiar (com várias “bocas” muito jovens a alimentar) não retira ao seu comportamento parte da censurabilidade em que a culpa, afinal, se traduz?
Crê-se que sim, sendo a necessidade de sustentar a sua família um pano de fundo contextual diminuidor da culpa a assacar ao arguido pela sua actuação.


[24] Ora, não cremos que essas razões permitam unificar as condutas integradoras dos crimes de burla qualificada na figura do crime continuado. Existe, é certo, proximidade temporal nesses comportamentos As condutas ocorreram em 17/04, 27/04 e 18/05/06. e uma homogeneidade de procedimentos, na medida em o arguido repetiu a abordagem de indivíduos, a quem propôs a venda de telemóvel de última geração, que exibiu, culminando com a entrega de um pedaço de madeira após ter recebido o preço acordado. Inexiste, porém, solicitação exterior que diminua a culpa do arguido.
[25] Encontra-se na actuação do arguido a procura predatória de vítimas e não, como parece decorrer das considerações do Tribunal a quo, qualquer postura activa por parte dos indivíduos que pensaram negociar a compra de telemóvel, como sugere a alusão a «ânsia». Ou seja, a situação dos autos apresenta uma proficiência do arguido na criação e aproveitamento de quadro de vulnerabilidade dos visados pela conduta criminal e não qualquer arrastamento determinante de incapacidade ou redução da capacidade de agir conforme ao Direito.
[26] Ora, como refere uniformemente o Supremo Tribunal de Justiça, «…não existe continuação criminosa se a repetição não resultou de uma renovação de oportunidades para o agente que lhe facilitasse a reiteração da conduta anterior, antes a procura e a criação de situação nova» Ac. do STJ de 19/04/2007, relator Maia Costa, Processo nº 06P4701, www.dgsi.pt. Cfr. igualmente o muito recente aresto de 8/11/2007, relator Simas Santos, Process nº 07P3296..
[27] Adicionalmente, verifica-se que o arguido desenvolveu tais condutas como «modo de vida», com normalização da acção antijurídica, emergindo então a reiteração criminosa como resultado do desenvolvimento de um «estratagema» assumido como quotidiano, e não como efeito de uma pressão «exterior».
[28] Nessa medida, não se encontra diminuição da culpa, muito menos acentuada, como exige o artº 30º, nº2, do CP, antes o seu agravamento, o que, aliás, decorre da tipificação desse profissionalismo como circunstância qualificativa da burla (artº 218º, nº2, al. b), do CP) Importa assinalar que a norma não foi alterada pela Lei nº59/2007, de 4/9, mantendo a disparidade resultante da mesma circunstância determinar a agravamento da moldura sancionatória do furto e da burla em termos bem diversos: no primeiro a pena de prisão vai até cinco anos e no segundo pode atingir oito anos. .
[29] Importa referir, por fim, que as considerações formuladas pelo Tribunal a quo relativamente à premência do sustento familiar mostram-se irrelevantes para o preenchimento da figura do crime continuado, pois relevam aqui apenas as conexões derivadas do comportamento anterior e não razões endógenas, como ocorre com a plena assunção da dimensão providencial da paternidade.
[30] Afastado o crime continuado, cumpre tomar as três condutas que nele foram indevidamente absorvidas. Em cada uma encontram-se os elementos essenciais do crime de burla qualificada p. e p. pelo artº 217º, n.º 1 e 218º, nº 2, al. b) do C.P Normas inalteradas pela Lei 59/2007, de 4/9.., a saber:
i. Processo enganoso astucioso, conseguido através de actuação engenhosa, não susceptível de ser detectável pelo ofendido que tiver usado das cautelas exigíveis no caso concreto;
ii. Manipulação do intelecto da vítima, afectando a sua capacidade de determinação e levando-a desse modo a praticar actos que de outro modo não praticaria;
iii. A prática pela vítima de actos de espoliação do seu património, através da entrega de quantia monetária;
iv. Actuação voluntária, com intenção de obter enriquecimento ilegítimo;
v. Inscrição das condutas antijurídicas num autêntico sistema de vida, cujos consumos são dessa forma suportados, atingindo reiteração e dependência características de actividade profissional.
[31] Assim, cumpre afirmar a prática pelo arguido A... de três crimes de burla qualificada p. e p. pelo artº 217º, n.º 1 e 218º, nº 2, al. b) do C.P. nas condutas que vitimaram ......... (factos ocorridos em 18/04/2006, descritos em 1 a 3 dos factos provados), ........... (factos de 27/04/2006, descritos em 4 a 6 dos factos provados) e .......... (factos de 18 de Maio de 2006, descritos e 9 a 11 dos factos provados). A moldura penal aplicável é a de 2 a 8 anos de prisão.
[32] Na determinação concreta da pena deve atender-se aos critérios estipulados no artº 71º do CP, sem olvidar a limitação da culpa consagrada no artº 40º nº2 do mesmo código, cumprindo encontrar a moldura de prevenção, definida entre o mínimo indispensável à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente. Dentro desses limites, relevam as exigências de prevenção especial de socialização, procurando atingir contramotivação suficiente para evitar a recidiva por parte do agente e permitir a sua ressocialização Cfr., entre muitos, o Ac. do STJ de 11/07/07, recurso 1610/07..
[33] Os crimes de burla em apreço apresentam processo enganoso sem grande sofisticação, avultando a forma como provocou pulsão hedonista nas vítimas, levando-as a esquecer as mais elementares precauções – os telemóveis são alvos predilectos de crimes de furto e roubo e o valor pedido era anormalmente baixo – iludidos pelo apelo do «bom e barato».
[34] Por outro lado, a dimensão do prejuízo patrimonial atingido em cada um dos crimes é muito reduzida, oscilando entre 38,00€ (vítima Luís Silva), 50,00€ (vítima Hugo Gomes) e 100,00€ (vítima B...., montante recuperado por este), o que remete para o limiar inferior da moldura penal. Todos declararam nos autos pretender desistir da queixa, se permitido fosse.
[35] Ponderadas tais circunstâncias, mas também o passado criminal do arguido e a recidiva criminal pouco tempo depois do cumprimento de pena de prisão, entende-se adequada às finalidades da punição, sem exceder a culpa, a pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão relativamente a cada um dos crimes de burla.
[36] Aqui chegados, importa reformular o concurso de penas, o qual passa a absorver essas três penas e ainda as penas relativas aos crimes de roubo (1 ano e 3 meses de prisão) e de ofensa à integridade física qualificada (8 meses de prisão). De acordo com o disposto no artº 77º, nº1, do CP, a fixação da pena unitária considera, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
[37] Na avaliação da pena unitária «Tudo deve passar-se... como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes de verifique. Na avaliação da personalidade - unitária – do agente relevará, entretanto, a questão se saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)» Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências do Crime, Aequitas, 1993, págs. 291 e 292..
[38] A ilicitude global presente nos crimes em concurso não é elevada, como se denota, aliás, pela fixação das penas parcelares próximas dos mínimos. Já o percurso de socialização do arguido e a sua postura perante os factos apresentam sinais contraditórios.
[39] Refere a decisão recorrida que confessou parcialmente os factos mas não se afirma provada reflexão sobre a danosidade social da conduta e arrependimento. Por outro lado, indica-se como provado que o arguido cometeu os crimes de burla para «prover ao seu sustento e ao da sua família mais próxima (mulher e três filhos), economicamente carecidos e sem fontes de rendimento constantes» Facto provado nº21. mas, do mesmo passo, aponta-se que «de quando em vez vende o arguido alguns produtos de vestuário e perfumaria nas feiras, juntamente com a sua mulher, conseguindo desta actividade um rendimento mensal de pouco mais de € 250» Facto provado nº 25. e ainda que conta com o auxílio monetário dos sogros Facto provado nº 27.. Revela-se, então, que o arguido dispõe de valências profissionais que lhe permitem obter licitamente rendimentos e ainda de apoio familiar, ficando por compreender porque não se dedicou inteiramente à venda em feira e mercados.
[40] Atentos tais factores, e perante conjunto criminal que ultrapassa claramente a pluriocasionalidade, ainda que seja insuficiente para fundar a afirmação de tendência criminal, mostra-se adequada a pena unitária de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão.
[41] No regime penal vigente à data dos factos essa pena não comportava a escolha por pena de substituição. Porém, entraram entretanto em vigor as alterações que a Lei 59/2007, de 4/9, introduziu no regime da suspensão de execução da pena de prisão, mormente alargamento do respectivo limite até cinco anos de prisão. Impõe-se, então, o poder-dever de apreciação desse instituto, de acordo com o disposto no artº 2º, nº4 do CP.
[42] Dispõe o art.º 50°, n.º 1, do Cód. Penal:

O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida; à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.


[43] A propósito deste instituto, escreve-se no Ac. do STJ de 30/6/93 BMJ 428, pág. 353., citando Jescheck: «na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose favorável ao agente, baseada num risco prudencial. A suspensão da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença com o apelo, fortalecido pela ameaça de executar no futuro a pena, à vontade do condenado em se integrar na sociedade. O tribunal deve estar disposto a assumir um risco prudente; mas se existirem sérias dúvidas sobre a capacidade do condenado para compreender a oportunidade de ressocialização que se oferece, a prognose deve ser negativa».
[44] O Tribunal a quo fundamentou a aplicação de pena de substituição na avaliação das condições vivenciais do arguido no momento das condutas, consideradas precárias, e na evolução positiva até ao momento presente, mormente com assunção pelo arguido de que estava perante a sua derradeira oportunidade de mudança de vida em liberdade. Embora em termos não inteiramente explícitos, compreende-se que a responsabilidade por três filhos muito pequenos (seis, cinco e um ano de idade) e outro prestes a nascer Eventualmente já nascido. bem como a privação da liberdade no decurso de medidas de coacção impostas nos presentes autos estão na base dessa alteração e compunham base idónea a fundar o indispensável juízo de prognose positiva relativamente ao afastamento da criminalidade.
[45] Não se encontra razões para afastar esse entendimento, mesmo que perante pena única superior, sem que se possa com isso considerar postergadas as finalidades preventivas, mormente o papel da prevenção geral como princípio integrante do critério geral de substituição, sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 333..
[46] Decide-se, assim, pela suspensão da execução da pena de prisão, imperativamente com duração igual à da pena, ou seja, três anos e nove meses, a contar do trânsito em julgado da condenação (artº. 50º, nºs 1 e 5 do CP).
[47] De acordo com o artº 53º, nº1, do CP, o tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade. Foi nesse sentido o tribunal a quo e, com efeito, a pretendida sedimentação de projecto de vida afastado do lucro fácil e de condutas desviantes beneficia claramente com atenção institucional periódica e constante, contrabalançando os efeitos criminógenos que amiúde acompanham a passagem pelo sistema prisional e prevenindo recaídas aditivas Refere-se na decisão recorrida que o arguido teria sofrido toxicodependência mas estaria numa situação de abstinência. . Justifica-se, então, acompanhar a suspensão da execução da pena com regime de prova.
[48] Paralelamente, não se encontra razão para estabelecer condições para a suspensão, mormente de índole pecuniária, pois, como estabelece o artº 51º, nº2, do CP: Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir. Tendo ficado provado que o agregado familiar do arguido defronta carências económicas sérias, só a comprovação da alteração dessas condições e de que o arguido aufere rendimentos superiores ao mínimo de subsistência própria e do seu agregado familiar, o que não acontece, permitiria condicionar a suspensão ao pagamento de qualquer quantia.
[49] Procede, assim, nesta parte, o recurso.


III. Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
A) Conceder provimento parcial ao recurso;
B) Condenar o arguido A... pela prática em 17/04/06, 27/04/06 e 18/05/06 de três crimes de burla qualificada p. e p. pelo artº 217º, n.º 1 e 218º, nº 2, al. b) do C.P., na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão por cada um;
C) Proceder a cúmulo jurídico dessas três penas e ainda das penas de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão - crime de roubo - e de 8 (oito) meses de prisão - crime de ofensa à integridade física qualificada - e condenar o arguido A... na pena unitária de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão;
D) Suspender a execução dessa pena unitária, por 3 (três) anos e 9 (nove) meses, acompanhada de regime de prova, e determinar o cumprimento do disposto no artº 494º, nº3, do CPP;
E) Manter, no mais, a decisão recorrida;
F) Sem custas;
G) Notifique.



Texto elaborado em computador e revisto (artº 94º nº2 do CPP).
Recurso 397/06.6 PBFIG.C1.