Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6681/14.0T8CBR-P.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
VENDA
CONSENTIMENTO
ASSEMBLEIA DE CREDORES
ACTO DE ESPECIAL RELEVO
Data do Acordão: 02/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.161, 164, 165 CIRE, 815 CPC
Sumário: I – A venda/cessão de créditos de valor relevante que constituem uma parte significativa dos bens integrados na massa insolvente corresponde a acto de especial relevo para os efeitos previstos no artigo 161º do CIRE e como tal depende de consentimento da comissão de credores ou da assembleia de credores, uma vez que a decisão de optar pela cessão dos créditos – ao invés de proceder à respectiva cobrança – envolve riscos com repercussões nas perspectivas de satisfação dos credores da insolvência.

II – Uma vez que os riscos envolvidos na operação – que dão ao acto um carácter de especial relevo – estão associados ao valor pelo qual se perspectiva proceder à venda dos créditos e ao valor que se perspectiva ser possível recuperar por via da respectiva cobrança judicial, a autorização da comissão de credores – ou da assembleia de credores – há-de abranger o preço pelo qual o negócio será efectuado, devendo ainda abranger outras condições do negócio que envolvam algum risco ou prejuízo para a massa insolvente e para a satisfação dos direitos dos credores.

III – Mas já não dependem de consentimento da Comissão de Credores as concretas condições do negócio que não têm aptidão para gerar qualquer risco ou prejuízo para a massa e para a satisfação dos direitos dos credores, como acontece nos casos em que se pretende efectuar a venda em termos que coincidem, no essencial, com os termos previstos na lei para a venda em processo executivo (aplicáveis à venda no âmbito do processo de insolvência).

Decisão Texto Integral:




Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

No âmbito do processo de insolvência referente a E (…), Lda., a credora V (…), Ldª, requereu a convocação da assembleia de credores para que o Sr. AI informasse o estado da liquidação e juntasse uma série de documentos, designadamente o relatório das diligências efectuadas relativamente a cada crédito da insolvente.

Na sequência, o Sr. Administrador veio apresentar requerimento onde alude à especial complexidade da cobrança dos créditos da Insolvente (de valor superior a 300.000,00€), dizendo que os devedores são Juntas de Freguesia e Conselhos Directivos de Baldios e que, como tal, a cobrança das dívidas só pode ser efectuada na jurisdição administrativa que, além de mais lenta, tem custos mais dispendiosos ao nível, designadamente, dos honorários dos mandatários. Além do mais – diz – os devedores em questão não responderam às suas interpelações e alguns deles negam a existência da dívida, sendo certo que esses créditos assentam em relações contratuais especialmente complexas sem que disponha dos documentos que titulem os respectivos contratos.

Nessas circunstâncias, pediu a convocação da assembleia de credores para que deliberasse sobre a eventual instauração das acções e constituição de mandatários para o efeito ou para que deliberasse sobre a liquidação dos próprios créditos através da sua transmissão com fixação do valor para essa transmissão que contemplasse o risco, custo, morosidade e incerteza das cobranças.

Na sequência desses factos, foi realizada assembleia de credores – em 07/03/2018 – onde, após debate e sob proposta do Sr. Administrador da Insolvência – foi deliberado “que o Sr. Administrador apresentará no processo requerimento no qual detalhará a forma como se propõe proceder à transmissão dos créditos litigiosos, concedendo-se então prazo aos credores para se pronunciarem sobre tal proposta”.

Na sequência de proposta apresentada pelo Sr. Administrador com vista à venda dos créditos de que a Insolvente é titular, a credora C (…), S.A. veio informar que dava o seu acordo à proposta.

A credora V (…), Ldª veio, por seu turno, manifestar a sua discordância relativamente à proposta apresentada (venda dos referidos créditos, na modalidade de negociação particular, podendo a ela concorrer quaisquer interessados, incluindo os próprios credores, sendo que neste aspecto, se adquiridos por credor já reconhecido nos autos (de natureza comum ou privilegiada), liquidará 20% do preço da proposta efectuada, considerando-se pago o crédito sobre a insolvência, na parte que ficar dispensado do pagamento), propondo que a cessão dos créditos seja efectuada nos seguintes termos:

“a) Venda por negociação particular, podendo a ela concorrer quaisquer interessados, incluindo os próprios credores, já reconhecidos nos autos, de natureza comum ou privilegiada;

b) A venda decorrerá por um período de 20 dias;

c) Decorridos 5 dias após o términus do período da venda, o Exmo. Sr. Administrador da Insolvência, informa todos os credores reconhecidos, verificados e graduados (de natureza comum e privilegiada), acerca das propostas apresentadas;

d) Após estes credores terem conhecimento das propostas, estes, no prazo de 5 dias, têm o direito, assim o querendo, de apresentar proposta para o Exmo. Sr. Administrador, que iguale a proposta mais elevada apresentada;

e) No caso de empate, isto é, vários credores reconhecidos, verificados e graduados igualarem a proposta mais elevada apresentada, a escolha recairá sobre o credor que tiver o maior crédito reconhecido, verificado e graduado;

f) Caso a venda seja adjudicada a interessado alheio ao processo, o mesmo deverá efetuar o pagamento da quantia devida, após interpelação para o efeito e contra a assinatura do documento que titule a transmissão dos créditos, sendo este procedimento realizado num prazo nunca superior a 20 dias;

g) Caso a venda seja adjudicada a credor reconhecido, verificado e graduado no processo:

i. Se o valor adjudicado for inferior ao valor do crédito reconhecido – esse credor será dispensado do pagamento de qualquer quantia, abatendo-se aquele valor ao montante do crédito reconhecido e considerando-se como paga a parte do crédito correspondente aquele valor, sendo que a assinatura do documento que titule a transmissão dos créditos, será realizada num prazo nunca superior a 20 dias;

ii. Se o valor adjudicado for superior ao valor do crédito reconhecido – esse credor deverá efetuar o pagamento da quantia diferencial, após interpelação para o efeito e contra a assinatura do documento que titule a transmissão dos créditos, sendo este procedimento realizado num prazo nunca superior a 20 dias.

h) E ainda,

i) Caso se verifiquem situações anómalas na apresentação de propostas, bem como no desenrolar de todo o processo de venda (p.ex., concertação de valores, concertação de interessados), que possam aferir da legalidade e do real propósito das mesmas, o processo poderá ser anulado e

j) Para tal, será convocada Assembleia de Credores, a propósito, para deliberar o que tiver por conveniente, no real e maior interesse dos credores do presente processo”.

Em resposta, o Sr. Administrador veio dizer que não se opõe à proposta apresentada pela credora V (…), com excepção do proposto em caso de empate, uma vez que tal aproveitaria sempre à própria credora V (…). Propõe o Sr. Administrador que, em caso de empate e com vista a garantir a legalidade e transparência, seja efectuada licitação entre os proponentes, adjudicando-se os créditos ao valor do lance mais elevado.

A C (…) apresentou requerimento, dizendo que a pretensão do credor “V (…)” privilegia os interesses, em exclusivo, deste credor, em detrimento de todos os outros e chamando a atenção para o facto de caber ao AI a escolha da modalidade de alienação dos bens, podendo optar por qualquer das formas admitidas em processo executivo ou por alguma que tenha por mais conveniente – cfr. artigo 164.º, n.º 1 do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

Conclui pedindo que se promova a venda judicial dos créditos em questão, devendo para o efeito qualquer interessado, independentemente de ser credor ou não, concorrer à venda, e consequentemente, proceder ao pagamento da totalidade do preço, seguindo-se toda a tramitação prevista no CIRE e, por aplicação subsidiária, no CPC, evitando-se assim mais delongas na liquidação do activo, sob pena de se estar a privilegiar um só credor em prejuízo dos restantes.

Em resposta, a credora V (…) veio apresentar novo requerimento pedindo que:

- O requerimento apresentado pela C (…), SA – requerimento refª: 29509340 de 22/06/2018 – seja desentranhado por ilegítimo, desapropriado e extemporâneo ou não seja tido em consideração e

- Que as alterações propostas no anterior requerimento pela credora V (…), Lda., sejam consideradas – mormente no que tange ao empate de vários credores reconhecidos, verificados e graduados ao igualarem a proposta mais elevada apresentada, sendo que neste caso, a escolha recairá sobre o credor que tiver o maior crédito reconhecido, verificado e graduado – uma vez que as demais alterações foram aceites pelo Exmo. Sr. Administrador da Insolvência.

Na sequência desses factos, o Sr. Administrador veio juntar aos autos o anúncio com vista à venda dos aludidos créditos, por negociação particular e com recepção de propostas reduzidas a escrito, onde se indicaram as seguintes condições de venda:

1. São da responsabilidade do proponente os custos inerentes à cedência dos créditos, nomeadamente o cumprimento e pagamento das obrigações fiscais, se a elas houver lugar, bem como do pagamento da escritura ou contrato de cessão de créditos.

2. Através da apresentação das propostas, os interessados assumem ter conhecimento e aceitação do regulamento integral de venda - condições de venda.

3. Os interessados deverão remeter as propostas, reduzidas a escrito, até ao dia 31/08/2018, dirigidas ao Administrador da Insolvência, via correio registado, contendo a referência "Proposta Insolvência E (…) Lda.", para a Rua (…) ou entregues em mão, até às 18h00 do dia 31/08/2018.

4. As propostas remetidas por correio registado, apenas serão aceites com registo dos CTT até dia 31/08/2018 e que tenham sido entregues na morada indicada, até ao dia 06/09/2018.

5. Sob pena de exclusão, as propostas deverão conter os seguintes elementos: identificação do proponente (nome ou denominação social, morada, número de identificação fiscal, telefone, fax), identificação do processo e valor proposto por extenso, expresso em euros.

6. A adjudicação dos direitos será feita à proposta de maior valor, após auscultação dos membros da Comissão de Credores.

7. Em caso de aceitação da adjudicação dos direitos, o respetivo proponente será notificado para proceder, no prazo de 15 (quinze) dias, ao pagamento de 20 % do valor proposto, através de cheque à ordem da "Massa insolvente de E (…) Lda". Os restantes 80 % devem ser liquidados, através de cheque visado ou bancário à ordem da referida massa insolvente, até ao momento da celebração da escritura ou do contrato de cessão de créditos.

13. A escritura ou contrato de cessão de créditos será celebrada no prazo de 90 (noventa) dias, ou logo que se encontre reunida toda a documentação necessária para o efeito, em data, hora e local a notificar ao proponente, com a antecedência mínima de 15 (quinze) dias

14. O proponente obriga-se, logo que lhe sejam solicitados, a fornecer todos os elementos necessários à realização dos atos de transmissão, nomeadamente os comprovativos da liquidação das obrigações fiscais, se a elas houver lugar.

15. Qualquer situação de incumprimento, imputável ao proponente, motivará a perda dos montantes já pagos, seja a que título for.

16. Se por motivos alheios à massa insolvente, a venda for considerada sem efeito, por quem de direito, as quantias recebidas serão devolvidas em singelo, não havendo lugar à responsabilização da massa insolvente, por qualquer prejuízo ou dano, em qualquer circunstância ou por qualquer valor.

17. Para a resolução de qualquer litígio emergente da anunciada venda, fixa-se o foro da Comarca de Coimbra.

A credora V (…), Ldª veio, então, requerer a declaração de nulidade da publicidade da venda por omissão das formalidades previstas nos art.º 811.º e seguintes do CPC, com a consequente anulação da venda, por violação dos art.º 195.º e seguintes, e 839.º, ambos do CPC, (aplicável ex. vi do art.º 17 do CIRE) e do art.º 161º, do CIRE.

Alegou, em resumo: que as condições de venda constantes do anúncio não correspondem a nenhuma das propostas que haviam sido apresentadas nos autos; que o Sr. Administrador não obteve o consentimento da Comissão de Credores para promover a venda da forma que a efectuou; que o consentimento da Comissão de Credores é necessário para a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência; que o acto aqui em causa (venda de créditos que correspondem aos únicos bens da massa insolvente) é um acto de especial relevo que, como tal, apenas pode ser praticado com autorização da comissão de credores; que, além do mais, a publicidade da venda não refere dados essenciais para uma correcta apresentação de propostas, uma vez que omite o valor base para apresentação de propostas, bem como a identificação do local onde se possa consultar a documentação relativa aos créditos objecto de venda, violando o preceituado nos art.º 811.º, 812.º, 818.º, ambos do CPC, aplicáveis por força do art.º 17.º do CIRE e que tal omissão de informação, relevante no âmbito da publicitação da venda para que a credora pudesse formar correctamente a sua vontade com vista à apresentação da respectiva proposta, constitui nulidade com relevância, a que se reporta o artigo 195.º, do CPC.

Tal pretensão veio a ser indeferida por despacho proferido em 08/10/2018.

Inconformada com essa decisão, a credora V (…) Ldª, veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)


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II.

Questões a apreciar

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se foi praticada a nulidade que é invocada o que se reconduz a saber se a venda/cessão dos créditos da Insolvente por negociação particular constitui (ou não) acto de especial relevo para os efeitos previstos no artigo 161º do CIRE e se, como tal, depende de consentimento da comissão de credores.


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III.

Analisemos, então, o objecto do recurso.

A decisão recorrida indeferiu a arguição da nulidade – suscitada pela ora Apelante – com base nas seguintes considerações:

• A venda dos créditos da sociedade não constitui acto de especial relevo para os efeitos previstos 161º do CIRE, pelo que não depende de consentimento da comissão de credores;

• Nessas circunstâncias, a escolha da modalidade da venda dos aludidos créditos constitui acto próprio da liquidação da massa insolvente cuja decisão compete exclusivamente ao administrador da insolvência;

• Atenta a modalidade da venda escolhida – negociação particular – não era necessária a publicação de anúncios, nem os mesmos, a serem publicados, estariam sujeitos a qualquer formalidade; o administrador judicial procedeu à publicação de anúncios de moto próprio, a fim de assegurar maior publicidade da venda, pelo que a omissão da menção dos elementos a que se reporta a requerente não constitui causa de qualquer irregularidade ou nulidade.

Conclui, portanto, a decisão recorrida que a venda em causa não se encontra sujeita a consentimento da comissão de credores e que a sua publicidade não se encontra sujeita a qualquer formalidade específica, que tenha sido incumprida, razão pela qual as diligências destinadas à venda não estão afectadas de qualquer irregularidade susceptível de determinar a respectiva nulidade.

A Apelante discorda de tal decisão, sustentando, no essencial, que a venda em questão constitui um acto de especial relevo pelo que, nos termos do artigo 161º, carecia de consentimento da comissão de credores.

Argumenta, para o efeito: que os créditos a ceder são créditos da insolvente no montante de 310.643,82€ que representam 72,26% do valor da massa; que, na conta bancária da massa insolvente existia à data de 29/01/2018 o montante de 119.278,92€; que no processo de insolvência foram reconhecidos e graduados créditos no montante de 600.108,15€; que o seu crédito, no montante de 444.694,82€, representa cerca de 74% dos créditos reconhecidos e graduados, pelo que os credores não vão ser ressarcidos da totalidade do seu crédito reconhecido e graduado o que deve motivar especial atenção na escolha da forma como vai ser efectuada a venda; que o acto em questão deve ser qualificado como acto de especial relevo, tendo em conta o disposto no art.º 161.º, nº 2, e alínea g) do n.º 3, do mesmo art.º 161.º e tendo em conta os riscos envolvidos, as suas repercussões sobre a tramitação ulterior do processo e as perspectivas de satisfação dos credores do presente processo e que as alienações por negociação particular constituem por si, actos de especial relevo, sendo que, quando a venda seja de realizar por negociação particular, haverá que aplicar tão só o n.º 4 do art.º 161.º, disposição especial face ao n.° 1 do mesmo preceito.

Analisemos, então, a questão.

O artigo 161º do CIRE dispõe nos seguintes termos:

1 - Depende do consentimento da comissão de credores, ou, se esta não existir, da assembleia de credores, a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência.

2 - Na qualificação de um acto como de especial relevo atende-se aos riscos envolvidos e às suas repercussões sobre a tramitação ulterior do processo, às perspectivas de satisfação dos credores da insolvência e à susceptibilidade de recuperação da empresa.

3 - Constituem, designadamente, actos de especial relevo:

a) A venda da empresa, de estabelecimentos ou da totalidade das existências;

b) A alienação de bens necessários à continuação da exploração da empresa, anteriormente ao respectivo encerramento;

c) A alienação de participações noutras sociedades destinadas a garantir o estabelecimento com estas de uma relação duradoura;

d) A aquisição de imóveis;

e) A celebração de novos contratos de execução duradoura;

f) A assunção de obrigações de terceiros e a constituição de garantias;

g) A alienação de qualquer bem da empresa por preço igual ou superior a (euro) 10000 e que represente, pelo menos, 10% do valor da massa insolvente, tal como existente à data da declaração da insolvência, salvo se se tratar de bens do activo circulante ou for fácil a sua substituição por outro da mesma natureza.

4 - A intenção de efectuar alienações que constituam actos de especial relevo por negociação particular bem como a identidade do adquirente e todas as demais condições do negócio deverão ser comunicadas não só à comissão de credores, se existir, como ao devedor, com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data da transacção.

5 - O juiz manda sobrestar na alienação e convoca a assembleia de credores para prestar o seu consentimento à operação, se isso lhe for requerido pelo devedor ou por um credor ou grupo de credores cujos créditos representem, na estimativa do juiz, pelo menos um quinto do total dos créditos não subordinados, e o requerente demonstrar a plausibilidade de que a alienação a outro interessado seria mais vantajosa para a massa insolvente”.

Antes de mais, cabe dizer que não assiste qualquer razão à Apelante quando vem sustentar que as alienações por negociação particular constituem, por si, actos de especial relevo por aplicação do nº 4 da disposição legal supra citada.

Com efeito, nada na letra da lei sugere uma tal interpretação. Ao contrário do que diz a Apelante, o nº 4 da citada disposição legal nada dispõe a esse propósito, sendo certo que se limita a estabelecer as comunicações que devem ser efectuadas quando se pretenda efectuar, por negociação particular, uma alineação que constitua acto de especial de relevo. Mas nada se diz aí a propósito da qualificação dos actos como de especial relevo.

A qualificação de um acto como de especial relevo é feita à luz do disposto nos nºs 2 e 3 da citada disposição legal, consignando o nº 2 o critério geral que há-de presidir a tal qualificação e enunciando o nº 3 alguns actos que assim devem ser qualificados.

Na perspectiva da Apelante, a situação dos autos enquadrar-se-ia na alínea g) do nº 3 da disposição supra citada.

Mas, salvo o devido respeito, pensamos não ser assim, uma vez que os termos em que está redigida a citada alínea parecem pressupor que está em causa uma empresa em actividade, como parece resultar da alusão a bens do activo circulante ou bens que sejam facilmente substituídos por outros da mesma natureza. A especial relevância de actos de alienação relativamente a bens que não se integrem no activo circulante ou que não sejam facilmente substituídos por outros da mesma natureza resulta – pensamos nós – da circunstância de a falta desses bens (precisamente porque não se integram nas categorias supra mencionadas) ser susceptível de fazer perigar a viabilidade e recuperação da empresa e este perigo só existirá se estiver em causa uma empresa relativamente à qual ainda se perspectiva a sua recuperação e não quando – como aqui acontece – está em causa a liquidação/venda dos bens de uma empresa já encerrada. Aliás, a entender-se de outro modo, isso não poderia deixar de significar que praticamente todos os actos de liquidação/venda dos bens ficariam dependentes de consentimento da comissão de credores o que não corresponde, seguramente, ao pensamento e aos objectivos do legislador.

Mas ainda que a situação não possa ser enquadrada na citada alínea g), pensamos que o acto aqui em causa – cessão dos créditos da Insolvente – terá que ser qualificado como acto de especial relevo à luz do critério estabelecido no nº 2 da citada disposição legal.

Vejamos porquê.

Estão em causa créditos da Insolvente de valor superior a 300.000,00€ que constituem uma parte significativa dos bens integrados na massa insolvente e relativamente aos quais se colocam duas opções: cobrar os créditos mediante instauração das necessárias acções judiciais (uma vez que, segundo o Sr. Administrador, não existiu cumprimento voluntário) ou proceder à respectiva cessão.

Ora, qualquer uma dessas opções envolve riscos com efectivas repercussões nas perspectivas de satisfação dos credores da insolvência. Com efeito, se é certo que a cessão de créditos será efectuada, com grande probabilidade, por preço bem inferior ao valor real dos créditos, não é menos certo que a sua cobrança judicial, além de implicar despesas que podem ser significativas e além de ser morosa, também apresenta riscos elevados uma vez que não há qualquer garantia de que venha a ser recuperado o valor total desses créditos ou uma parte significativa desse valor.

Assim, tendo em conta os riscos envolvidos que se reflectem necessariamente nas perspectivas de satisfação dos direitos dos credores, entendemos que a cobrança judicial dos referidos créditos ou a respectiva cessão correspondem a actos jurídicos de especial relevo que, como tal, dependem do consentimento da comissão de credores, em conformidade com o disposto no citado artigo 161º.

Sucede que – é a própria Apelante que o diz – a comissão de credores foi efectivamente convocada para se pronunciar sobre a matéria e a verdade é que nada deliberou por falta de quórum, já que apenas compareceu o respectivo presidente (a aqui Apelante).

É certo, no entanto, que a Assembleia de Credores já havia deliberado sobre essa matéria e, conforme dispõe o artigo 80º do CIRE, “…a existência de uma deliberação favorável da assembleia autoriza por si só a prática de qualquer acto para o qual neste Código se requeira a aprovação da comissão de credores”.

Com efeito, o Sr. Administrador requereu oportunamente a convocação da Assembleia de Credores para que deliberasse sobre a eventual instauração das acções e constituição de mandatários com vista à cobrança judicial dos créditos ou sobre a liquidação dos próprios créditos através da sua transmissão com fixação do valor para essa transmissão que contemplasse o risco, custo, morosidade e incerteza das cobranças.

A Assembleia de Credores foi convocada e deliberou “que o Sr. Administrador apresentará no processo requerimento no qual detalhará a forma como se propõe proceder à transmissão dos créditos litigiosos, concedendo-se então prazo aos credores para se pronunciarem sobre tal proposta”.

Poder-se-á dizer – é certo – que tal deliberação não corresponde a uma autorização expressa e definitiva no sentido de se proceder à venda/cessão dos créditos, até porque tal autorização há-de pressupor o conhecimento do preço pelo qual a cessão seria efectuada.  Com efeito, os riscos aqui envolvidos que dão ao acto um carácter de especial relevo estão associados ao valor pelo qual se perspectiva proceder à venda dos créditos e ao valor que se perspectiva ser possível recuperar por via da respectiva cobrança judicial e, portanto, o preço da venda a efectuar será um elemento essencial para que a assembleia de credores possa decidir e deliberar no sentido de autorizar a venda/cessão dos créditos ou no sentido de autorizar a instauração de acções com vista à sua cobrança. E, nessa perspectiva, a efectiva concretização da cessão dependeria ainda de consentimento a prestar pela Comissão de Credores ou Assembleia de Credores em face do concreto valor do negócio que o Sr. Administrador pretenda efectuar, importando notar que, em conformidade com o disposto nos nºs 4 e 5 do citado artigo 161º, e estando em causa uma alienação que, como se disse, constitui acto de especial relevo e que vai ser efectuada por negociação particular, a identidade do adquirente e as concretas condições do negócio sempre teriam que ser comunicadas à comissão de credores com a antecedência ali mencionada, podendo ser chamada a Assembleia de Credores, nas situações ali previstas, para autorizar a venda.

Mas a verdade é que o Sr. Administrador não concretizou ainda qualquer venda e, nos termos do anúncio que juntou aos autos – onde especifica as condições a observar nessa venda – prevê-se que a adjudicação só será efectuada após audição dos membros da Comissão de Credores.

Até ao momento, o Sr. Administrador limitou-se a efectuar diligências no sentido de encontrar uma proposta concreta de aquisição dos aludidos créditos – é nesse âmbito que se insere o anúncio que veio juntar aos autos – e essa actuação está em total conformidade com a posição assumida pela Assembleia de Credores.

Com efeito, não obstante ter sido chamada a deliberar sobre a eventual instauração das acções e constituição de mandatários com vista à cobrança judicial dos créditos ou sobre a liquidação dos próprios créditos através da sua transmissão, a Assembleia nada deliberou no sentido da propositura de acções com vista à respectiva cobrança judicial e, atendendo ao teor da respectiva deliberação, ter-se-á que considerar que autorizou o Sr. Administrador a efectuar diligências com vista à obtenção de propostas concretas de transmissão desses créditos.

Ora o Sr. Administrador procedeu exactamente nos termos determinados pela aludida deliberação, apresentando proposta com vista à transmissão dos créditos e nenhum dos credores se manifestou contra essa opção e a favor da sua cobrança judicial, sendo que o desacordo manifestado pela Apelante relativamente a essa proposta não se prendia com essa opção, mas apenas com os termos da venda/cessão a efectuar e, mais especificamente, com as condições em que esses créditos poderiam ser adquiridos pelos credores da insolvência. Assim, perante a deliberação da Assembleia de Credores e porque nenhum credor se manifestou contra a cessão dos créditos e a favor da sua cobrança judicial, o Sr. Administrador poderia, legitimamente, prosseguir as diligências no sentido de encontrar uma proposta concreta de aquisição com vista à venda/cessão dos créditos e foi apenas isso que fez.

Sucede apenas – e é nesse ponto que se centra a discordância da Apelante – que as condições de venda que foram publicitadas não coincidem com as que constavam da proposta que o Sr. Administrador havia apresentado inicialmente aos credores no que toca, designadamente, às condições aplicáveis aos credores da insolvência que adquirissem os aludidos créditos. Na verdade, perante o desacordo manifestado pela Apelante relativamente a essas condições e perante o subsequente desacordo entre a Apelante e a C (…) sobre essa matéria, o Sr. Administrador eliminou essas condições e publicitou a venda em termos que correspondem, no essencial, às regras e formalidades previstas na lei e é apenas por essa razão que a Apelante sustenta ter sido cometida uma nulidade por não ter sido obtido o acordo da Comissão de Credores sobre essa matéria.

Mas, salvo o devido respeito, não tem razão.

De facto, a Comissão de Credores – ou a Assembleia de Credores – tem que autorizar a venda/cessão dos créditos e essa autorização há-de abranger – conforme dissemos – o preço pelo qual será efectuada, devendo ainda abranger outras condições do negócio que envolvam algum risco ou prejuízo para a massa insolvente e para a satisfação dos direitos dos credores, como seria o caso, por exemplo, de se contemplar um prazo dilatado para o pagamento do respectivo preço[1]. Mas já não dependem de consentimento da Comissão de Credores as concretas condições do negócio que não têm aptidão para gerar qualquer risco ou prejuízo para a massa e para a satisfação dos direitos dos credores, como acontece nos casos em que se pretende efectuar a venda em termos que coincidem, no essencial, com os termos previstos na lei para a venda em processo executivo (aplicáveis à venda no âmbito do processo de insolvência) e que já contemplam mecanismos adequados para salvaguardar os interesses dos credores que venham a adquirir esses créditos (cfr. artigo 815º do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 164º, nº 1 e 165º do CIRE).

Ora, conforme se referiu, o Sr. Administrador limitou-se a publicitar a venda em termos que coincidem, no essencial, com os termos previstos na lei e que não envolvem, só por si, qualquer risco com repercussão nas perspectivas da satisfação dos direitos dos credores porque não interferem com o valor que vai ser recebido e vai ser destinado a satisfazer os direitos dos credores. E, se é certo que tais condições não dependiam de especifico consentimento da comissão de credores, também nos parece certo que tal consentimento não era exigido para o efeito de eliminar as condições que constavam da proposta inicial e que são pretendidas pela Apelante (referentes aos termos aplicáveis à venda que viesse a ser efectuada a credores da insolvência), uma vez que a eliminação dessas condições apenas interferia com os interesses individuais dos credores que viessem a adquirir créditos e não apresentava qualquer risco para a massa insolvente e para a satisfação da generalidade dos credores.  

É certo, portanto, que o Sr. Administrador não tinha que obter o consentimento da Comissão de Credores para publicitar a venda nos termos em que o fez.

Nestes termos e ao contrário do que sustenta a Apelante, a circunstância de o Sr. Administrador ter publicitado a venda com condições diversas daquelas que havia proposto anteriormente ou daquelas que a Apelante pretendia não configura qualquer irregularidade ou nulidade, uma vez que a realização da venda nesses termos já não dependia do consentimento da comissão de credores ou da assembleia de credores.

Conclui-se, portanto, em face do exposto, que, à data em que foi arguida a nulidade e em que foi proferido o despacho recorrido, não estava configurada uma qualquer irregularidade, uma vez que:

- Não havia sido realizada a venda/cessão dos créditos e apenas estavam em curso as diligências no sentido de encontrar interessados na respectiva aquisição, com vista a concretizar a respectiva venda por negociação particular;

- A realização dessas diligências conformava-se com o teor da deliberação que havia sido tomada pela Assembleia e tinham como objectivo obter uma proposta concreta de aquisição que seria depois submetida à consideração da Comissão de Credores;

- O Sr. Administrador não tinha que obter o consentimento da Comissão de Credores para o efeito de publicitar a venda nos termos e nas condições em que o fez e sem considerar as condições que constavam da sua proposta inicial e relativamente às quais dois credores (a Apelante e a C (…)) haviam entrado em desacordo, uma vez que essas condições não apresentavam qualquer risco para a massa insolvente e para a satisfação da generalidade dos credores.

Refira-se, por último, que, na nossa perspectiva, também não tem fundamento a nulidade que a Apelante vem invocar, quando alega ter sido violado o princípio do contraditório pelo facto de não ter sido notificada da resposta do Sr. Administrador ao requerimento onde invocava a nulidade.

Com efeito, independentemente da questão de saber se tal nulidade poderia ser invocada no âmbito do recurso – tendo em conta o disposto no artigo 199º do CPC – pensamos não existir qualquer irregularidade que, por ser susceptível de influir no exame da causa, possa determinar nulidade (cfr. artigo 195º do CPC), uma vez que, como bem diz a Apelante, a peça processual que não lhe foi notificada não se destinou a formular qualquer pretensão e configurava apenas a resposta à pretensão (arguição de nulidade) que havia sido formulada pela Apelante.

Em face do exposto, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – A venda/cessão de créditos de valor relevante que constituem uma parte significativa dos bens integrados na massa insolvente corresponde a acto de especial relevo para os efeitos previstos no artigo 161º do CIRE e como tal depende de consentimento da comissão de credores ou da assembleia de credores, uma vez que a decisão de optar pela cessão dos créditos – ao invés de proceder à respectiva cobrança – envolve riscos com repercussões nas perspectivas de satisfação dos credores da insolvência;

II – Uma vez que os riscos envolvidos na operação – que dão ao acto um carácter de especial relevo – estão associados ao valor pelo qual se perspectiva proceder à venda dos créditos e ao valor que se perspectiva ser possível recuperar por via da respectiva cobrança judicial, a autorização da comissão de credores – ou da assembleia de credores – há-de abranger o preço pelo qual o negócio será efectuado, devendo ainda abranger outras condições do negócio que envolvam algum risco ou prejuízo para a massa insolvente e para a satisfação dos direitos dos credores;

III – Mas já não dependem de consentimento da Comissão de Credores as concretas condições do negócio que não têm aptidão para gerar qualquer risco ou prejuízo para a massa e para a satisfação dos direitos dos credores, como acontece nos casos em que se pretende efectuar a venda em termos que coincidem, no essencial, com os termos previstos na lei para a venda em processo executivo (aplicáveis à venda no âmbito do processo de insolvência).


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IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe seja concedido.
Notifique.

                              Coimbra, 2019/02/20

                                             Maria Catarina Gonçalves ( Relatora )

                                                    Ferreira Lopes

                                                     Freitas Neto                   


[1] Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris,2008, pág. 535