Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
403/16.9GASEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VALORAÇÃO DA PROVA
IN DUBIO PRO REO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
TIPICIDADE DA CONDUTA
Data do Acordão: 10/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (J C GENÉRICA DE SEIA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 127.º, 412.º, 417.º E 430.º, DO CPP; ART. 152.º DO CP
Sumário: I - O recurso da matéria de facto ou, preferindo-se, a impugnação ampla da matéria de facto foi concebido como um remédio para sanar o que a lei tem por excepcional no julgamento feito pela 1.ª instância, o erro na definição do facto.

II - É precisamente por isso que a lei impõe ao recorrente, e apenas ao recorrente, a identificação precisa do erro [ou erros] que pretende corrigir pela via do recurso e a sua demonstração.

III - Não basta, porém, para a procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal.

IV - Não tendo o arguido, na argumentação deduzida, feito a relação entre o conteúdo de cada meio de prova que especificou com cada facto que considera incorrectamente julgado, por forma a permitir ao tribunal de recurso aferir da bondade da pretensão, face ao sentido e alcance de cada meio de prova, impossibilitou o efectivo conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto que deduziu.

V - A valoração da prova não é mero arbítrio, ela exige do juiz uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência, e na percepção [no que respeita à prova por declarações] da personalidade dos declarantes e depoentes, tendo sempre como horizonte a dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dubio pro reo.

VI - Se produzida a prova, subsiste na mente do julgador um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se-lhe proferir uma decisão favorável ao arguido. Se, pelo contrário, a incerteza não existe, se a convicção do julgador foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.

VII - Na fase de recurso, a demonstração da violação do pro reo passa pela sua notoriedade, aferida pelo texto da sentença, devendo, por isso, resultar dos termos desta, de forma clara e inequívoca, que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.

VIII - A dúvida relevante para este efeito não é, no entanto, a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, em conformidade com a apreciação que dela, por si [recorrente], foi feita, mas antes, a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada.

IX - O crime de violência doméstica tem como elementos constitutivos do respectivo tipo, na parte em que agora interessa:

[Tipo objectivo]

- A inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou ao ex-cônjuge;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência de que o mesmo é censurável.

X - Não definindo a lei o conceito de maus tratos físicos ou psíquicos, esclarecendo apenas que nele se integram castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, incluem-se neste conceito todas as condutas agressivas que visam atingir directamente o corpo do ofendido.

XI - A qualificação de uma determinada acção como mau trato não depende da sua aptidão para preencher um outro tipo de ilícito. Por outro lado, a aptidão de uma determinada acção para preencher o conceito de mau trato não significa, sem mais, a verificação do «crime de violência doméstica, tudo dependendo da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto» (Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, nº 12 Especial, Setembro/Dezembro, 2010, pág. 19).

XII - Embora seja média e baixa a intensidade da violência empregue em cada concreta conduta, quando consideradas em conjunto, o padrão de comportamento, a imagem global do facto – que é a que verdadeiramente importa na violência doméstica – que delas resulta caracteriza a relação de domínio do agente sobre a vítima, e tem aptidão para afectar, relevantemente, a dignidade da assistente enquanto ser humano, por via da afectação da sua saúde física, psíquica e moral.

Decisão Texto Integral:









Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Juízo de Competência Genérica de Seia – Juiz 1, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido A... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo, de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a) e d) e 2 do C. Penal.

            A assistente F... acompanhou a acusação pública e deduziu pedido de indemnização contra o arguido com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 10.000, por danos não patrimoniais sofridos.

            Por despacho proferido na audiência de julgamento de 8 de Junho de 2017 [acta de fls. 404 a 405], foi comunicada ao arguido uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nada tendo sido oposto ou requerido.

            Por sentença de 8 de Junho de 2017 foi o arguido absolvido da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, d) e 2 do C. Penal, e condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a) e 2 do C. Penal, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na respectiva execução por igual período, condicionada à entrega da quantia de € 850 à assistente, no prazo de um ano a contar do trânsito da sentença, quantia a integrar na indemnização arbitrada.

            Mais foi o arguido condenado no pagamento à assistente da quantia de € 850 para compensação dos danos não patrimoniais sofridos.


*

Inconformada com a decisão, recorreu a assistente, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

A) Foram considerados como provados, além de outros, os factos constantes do terceiro parágrafo da presente motivação recursória.

B) Na fixação dos valores indemnizatórios, deverão ser tidos em conta os critérios estabelecidos no artigo 496º do CC, bem como as tendências mais recentes da Jurisprudência relativamente a processos com o mesmo objecto.

C) Relativamente às lesões na saúde (bem jurídico complexo protegido pelo artigo 152º do CP), o qual abrange a saúde física, psíquica e mental, o julgador não se poderá abstrair do grau de culpa do arguido (dolo directo, como se provou), reflexo socioeconómico do crime na vida da assistente, devendo ainda ter em consideração a saúde no seu todo da assistente, bem como a sua idade, projectos de vida, qualificações profissionais e demais situação socioeconómica.

D) No caso concreto, os danos não patrimoniais da assistente ocorreram devido à acção do arguido, que, ao longo dos anos, praticou na pessoa da assistente diversos factos subsumíveis ao tipo legal de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º do CP.

E) Provocando na mesma o medo, ansiedade, vergonha, inquietação, desgosto, humilhação, tristeza e mágoa, afectando a sua reputação, honra e consideração.

F) Sendo a mesmo uma pessoa jovem, sem problemas na sua vida até ao casamento com o arguido, com poucas qualificações académicas e prosseguindo a sua actividade laboral como sócia e empregada da agência funerária explorada pelo arguido.

G) Não obstante, era obrigada a recorrer a Instituições de Solidariedade Social e ajuda de terceiros para obter géneros alimentícios e roupa, uma vez que o arguido se negava a ajudar a sua esposa, ora assistente, e filhas.

H) Estes danos foram exponenciados pelo facto de as filhas menores da assistente terem presenciado tais episódios de violência.

I) Ponderados estes factos, o quantum compensatório deverá sempre oscilar entre os 2.000 € a 4.000 €, atenta a desvalorização do dinheiro nos dias de hoje, repulsa da sociedade actual pela prática de violência doméstica, prossecução, por parte dos tribunais superiores, de valores indemnizatórios que efectivamente cumpram a função ressarcidora que a Lei lhes acomete, e que não revelem, apenas, uma compensação miserabilista ou meramente simbólica – o que não é de todo o escopo da Lei Civil.

J) A situação patrimonial do arguido, se bem que seja factor a ter em conta, não pode servir para desvalorizar o arbitramento de quantia superior a 850 €, pois o arguido, como agente funerário, sempre terá tempo suficiente para poupar o valor adequado a compensar a assistente.

K) De igual modo, a Lei Penal prevê que a suspensão do cumprimento da pena de prisão pode sempre ficar adstrita ao pagamento de parte da quantia à assistente, não obrigando juridicamente ao pagamento da totalidade até ao termo do prazo de suspensão da pena (moralmente já será outra questão).

L) A douta sentença recorrida violou, na decisão sobre o pedido de indemnização civil, o estatuído nos artigos 483º, 496º e 566º do CC e, ainda, o artigo 129º do CP.

Termos em que, concedendo provimento ao presente Recurso, e alterando-se a sentença recorrida na parte que respeita ao arbitramento de indemnização por danos não patrimoniais resultantes da prática do crime farão, Vossas Excelências, JUSTIÇA!


*

Igualmente inconformado com a decisão recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

I. Com o devido respeito pelo tribunal recorrido, outra deve ser a decisão absolvendo o arguido, no que concerne ao crime de que foi acusado e condenado.

II. Requer-se, pois, que o Tribunal Superior aprecie as provas, ouvindo as gravações, fato que em sede crítica das mesmas verificará que a apreciação da prova não fez o melhor e correto enquadramento das regras da experiencia.

III. Pelo que, e para que o tribunal consiga um juízo de ponderação integral, reproduzir-se-á, os depoimentos considerados preponderantes na decisão, para que duvida não reste, pelo que, para o efeito, indica-se início e termo da gravação, conforme consignação em ata, indicando as concretas passagens em que se funda a impugnação (atentos dos preceitos nos artigos 364º, nº 2 do CPP e artigo 412º, nº 2 do CPP).

IV. Consta da Douta Sentença julgados como provados a matéria de fato constante nos pontos 4 (… foram varias as discussões que travou com a ofendida F... , discussões, essas que, por vezes, acabaram em agressões físicas e verbais.”; 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 20, 21, 22, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31 e do pedido de indemnização civil: os pontos 32, 33, 34, 35.

V. Factos que, entende o ora recorrente não deviam ter sido dado como provados, atento a que não existe prova suficiente e a existente é deficitária e contraditória, pelo que, se impugna a decisão proferida sobre a matéria de fato e de direito.

VI. Não podemos deixar de salientar, a título de questão prévia, que o Tribunal a quo, deveria ter sempre, na formação da sua convição, o disposto no art. 32º, nº 2 da Constituição da Republica Portuguesa, “todo o arguido se presume inocente até trânsito em julgado da sentença de condenação…” e que deste princípio da presunção de inocência decorre, como é referido por José M. Zugaldia Espinar: “que partindo ele da ideia que o acusado é, em princípio inocente, a sentença condenatória contra o mesmo só pode pronunciar-se se da audiência de julgamento resultar a existência de prova que racionalmente possa considerar-se suficiente para desvirtuar tal ponto de partida.”

VII. Ora, tal só acontecerá se a prova produzida em sede de audiência e julgamento, permita afirmar lógica e racionalmente, de forma concreta e sem dúvida, a existência e o preenchimento de todos os elementos do tipo dos crimes em apreço.

VIII. E por outro lado que leve a concluir, sem dúvida, que foi o arguido/recorrente o responsável pela sua ocorrência.

IX. Refere a propósito Mercedes Lopez – “Prova e presunção de inocência” – 2005, pg 143. “… só se pode condenar alguém se for possível imputar-lhe a realização de todos os pressupostos e condições legais exigidos para o efeito, devendo ditar-se uma absolvição se se provarem fatos que neguem a possibilidade dessa imputação ou se aqueles pressupostos e condições se não verificarem no caso concreto.”

X. E neste caso, face à prova produzida, deveria ter sido ditada ao arguido A... a, absolvição de todos os crimes de que veio acusado e em particular do crime de que foi condenado.

XI. Uma vez que foi dado erradamente como provado os pontos nos exatos termos supra referidos e que aqui se dão como reproduzidos para todos os efeitos legais.

XII. Importa ainda referir, como nota prévia que os presentes autos “nasceram” de sequência de queixas apresentadas pela assistente, queixas, essas, que diga-se não consubstanciaram de imediato os factos constantes da acusação.

XIII.    Aliás diga-se que a queixa inicial refere apenas e tão só que o arguido não dá sustento à filha comum do casal, posteriormente, é que a assistente, “se lembra” dos factos que deram “corpo” à acusação.

XIV. O que se estranha atendendo a que a mesma diz que já havia sido vítima de violência doméstica durante anos, e que meses antes de sair de casa contatou autoridades e se aconselhou de como fazer …

XV. Depois sempre se diga que a versão trazida aos autos pela assistente já não é a mesma que teve em sede de inquérito, levando o tribunal a efetuar alteração não substancial dos factos.

XVI. Ora, atendendo ao descrito, bem como ao comportamento claramente teatral da assistente, outra deveria ter sido a interpretação das declarações de parte.

XVII. Uma vez que, para além de declarações diferentes em diferentes momentos do processo, as mesmas não foram confirmadas pelos restantes meios de prova nomeadamente prova testemunhal.

XVIII.  Assim sendo, e para que se possa racionalmente fundamentar os factos dados como provados com base nas declarações da assistente, devem as mesmas ser confirmadas por outros meios probatórios, e estes sejam credíveis, derivados de provas diretas ou indiretas, devidamente conjugados entre si e com as regras da experiência comum.

XIX. Ou seja, o que é necessário é que o meio de prova fundamentador da convicção seja credível e que o tribunal explique as razões que lhe determinaram a atribuição de credibilidade.

XX. Entende o recorrente que as declarações da assistente não tem a credibilidade que o tribunal lhe atribuiu, principalmente depois de conjugadas com os restantes meios de prova.

XXI. Prova que impõe decisão diversa de acordo com as próprias declarações da assistente B... e testemunhas por esta apresentadas: Declarações de F... – gravação nº 20170502154301_856753_2870924; (início de gravação 15.43.01, fim da gravação 18.09.29) – Veja-se que a versão dos factos altera a cada vez que é questionada.

XXII.   Relacionando ainda o seu depoimento com o depoimento da filha D... , claramente parciais, interessadas no resultado – CONDENAÇÃO – quase a roçar vingança (da filha) pelo mau relacionamento (segundo esta) vivido com o arguido.

XXIII.  Tenha-se em atenção as Declarações de D... – gravação nº 20170510145416_856753_2870924; (início de gravação 14.54.16, fim da gravação 15.37.49).

XXIV. Vejam-se agora as declarações da testemunha E... , que, na opinião do ora recorrente nenhuma credibilidade mereciam – Declarações de E... – gravação nº 20170510153930_856753_2870924; (início de gravação 15.39.30, fim da gravação 16.00.50).

XXV.   Já quanto às restantes testemunhas arroladas pela acusação, nada sabiam ou trouxeram aos autos.

XXVI. Os depoimentos revelaram-se expressamente contraditórios, pouco fundamentados, e parciais, interessados no resultado, não só no que diz respeito aos elementos objetivos como subjetivos do tipo legal de crime de que A... vem acusado, bem como aos elementos necessário para prova de violência doméstica e indemnização.

XXVII. Tudo conjugado com os documentos juntos aos autos, nomeadamente registos de mensagens que, não impugnadas pela assistente, aliás até aceites por esta, são bem demonstrativos que a mesma não sente ou sentiu qualquer receio do ora arguido.

XXVIII. Aliás as mesmas consubstanciam uma atitude completamente inversa áquilo que é a reação de uma vítima de violência doméstica.

XXIX. Para além disso, importa ainda dar atenção às mensagens trocadas com outra das filhas da assistente onde a mesma refere de forma clara e objetiva que, existiam muitas discussões entre o casal, mas que nunca viu agressões.

XXX.   Entende-se que os pressupostos do referido tipo legal de crime não estão preenchidos, uma vez que, não se provaram os demais factos constantes acusação, pedido de indemnização e contestação, designadamente que os factos praticados pelo arguido ou ocorridos entre o casal tenham tido outras motivações, desenvolvimento, extensão ou consequências que não as que se dão como provadas.

XXXI. E que o sofrimento da assistente seja diretamente causado por qualquer conduta delituosa do arguido ou motivado por outros factos que não os que se dão como provados.

XXXII. No caso concreto, contudo, os factos dados como provados, não revelam a prática pelo arguido do crime de que vem acusado, mas antes evidenciam uma situação de conflito.

XXXIII. Em nosso entender, embora não desprovidas de censura (moral), tais atuações não assumem a particular gravidade que se exige por forma a poder concluir-se que, por via delas o arguido atentou contra a dignidade da pessoa humana que é sua esposa., assim, e por tal motivo, importa concluir pela absolvição do arguido do crime de que vem acusado.

XXXIV. Bem como a factualidade provada não consubstancia a colocação da pessoa ofendida (a assistente) numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal, ou como se refere na sentença, que não se verifica a “perpetração de qualquer ato de violência que afete, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária”.

XXXV. As discussões entre o arguido e a assistente, presenciadas pelas filhas, as quais eram iniciadas por membro exato não apurado.

XXXVI. A assistente não se sentia amedrontada, nem humilhada, de forma grave, pois respondia e reagia à discussão, pois, por várias vezes por esta e sua filha D... foi dito que as discussões eram “fortes”.

XXXVII. Importa, pois ter em consideração o seguinte: Ac do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.02.2015: I) O tipo legal do artº 152º, do CP previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e actue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação. II) Este é, o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual. III) In casu, os factos assentes não são suficientes para integrarem o referido ilícito de violência doméstica, não se seguindo daí, sem mais, a absolvição do recorrente.

XXXVIII. “Estes dois episódios ocorridos, um no mês de Julho, outro em Agosto de 2013 (sem se lograr saber ao certo se entre os dois mediaram muitos dias, alguns dias ou se até se ocorreram em dias seguidos) não têm, a nosso ver, a virtualidade de se poderem enquadrar na previsão desta norma. Desde logo porque não se trata de um comportamento repetido, reiterado, humilhante ou vexatório, depois não são factos de gravidade tal que prescindam dessa reiteração para serem qualificados como de maus tratos. O que se evidencia à saciedade é que na primeira situação o arguido comete um crime de ameaças, tal como se encontra prevenido pelas disposições conjugadas dos artigos 153º e 155º nº 1 alínea a) ambos do Código Penal Cfr. Acórdão de fixação de jurisprudência de 2/02/2013 e pesquisado em http://www.dgsi.pt/jstj.ns: «A ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no n.º 1 do artigo 153º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.º 1 do artigo 155º do mesmo diploma legal» e, na segunda situação provadamente ocorrida em agosto de 2013, os factos provados integram-se na previsão do artigo 143º do Código Penal, pois configuram, sem qualquer sombra de dúvida, uma ofensa a integridade física.

XXXIX. Considerando ainda: AC. Do Tribunal da Relação do Porto, de 07.08.2015: I – O processo penal, atenta a sua natureza acusatória e sendo regido pelos princípios da tipicidade e da legalidade, impõe particulares exigências ao nível da certeza, da clareza, da precisão e da completude dos atos imputados, de forma que o arguido deles se possa eficazmente defender. II – O crime de violência doméstica não é, nem pode ser, um crime que, no final da vivência em comum de duas pessoas, vistoriando retroativamente, vá julgar o modo como o casal viveu a vida em comum e puni-los como se fosse um crime de "regime”. III – Assim à luz do bem jurídico protegido (que legitima constitucionalmente a existência da incriminação) os factos devem apresentar-se para a vítima como dotados de um especial desvalor, pondo em causa a dignidade da pessoa enquanto tal nomeadamente pelo desejo de domínio da relação familiar existente.

XL. “Assim fundamental na apreciação de tal ilícito é que os factos em que se desdobra (ou o facto em que se traduz – pois que tanto pode ser um como vários – de modo reiterado ou não, infligir maus tratos – artº 152º 1 CP) signifiquem a afetação da dignidade pessoal da vítima através do seu desrespeito como pessoa traduzida a mais das vezes no desejo de sujeição/dominação sobre a mesma e a sua manipulação. Nos termos legais comete tal crime (artº 152º1 CP) “1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais… “ donde resulta que o conceito de violência doméstica podendo traduzir-se em actos reiterados ou não, deles tem de resultar “ maus tratos físicos ou psíquicos”, o resultado da actuação tem de traduzir uma gravidade que vá para além da simples ofensa em causa. Mau trato, traduz a nosso ver, uma ofensa à dignidade humana (em concreto da pessoa visada, e em toda a sua plenitude: física e mental), bem jurídico abrangente que (para além da saúde) está subjacente a toda a proteção legal (cfr. Comentário Conimbricense do Cód Penal, I, Coimbra, 1999, pág. 232), o que tem de ser entendido para além da integridade física ou da honra (objecto de protecção de outras normas penais, cf. ac RG.10/7/2014 www.dgsi.pt: “Essencial é que os comportamentos assumam uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar”), e se não necessita de uma reiteração (face à norma legal) não prescinde de uma gravidade que vá para além e ultrapasse a ofensa à integridade física ou à honra (sob pena de o crime de violência doméstica se traduzir apenas num crime familiar), ou seja é necessário que justifique a sua autonomia, pondo em causa a relação existente entre agressor e ofendido.

XLI. “Chegados aqui e em consequência do exposto e da alteração verificada na matéria de facto impõe-se apreciar o enquadramento jurídico dos factos provados. Em resultado dessa alteração verifica-se que como suporte à “qualificação jurídica da conduta do agente” (cf.supra) restam-nos duas situações: a ocorrida em Fev/2013 (nº 8 dos factos provados) em que o arguido lhe apertou o pescoço, e a ocorrida em 15/9/2013 discussão e agressão mútua com queda, aperto do pescoço e mordidela dos testículos. Apenas na relativa aos factos de 15/9/2013 temos o respectivo enquadramento fáctico (após a alteração da matéria de facto), do que aconteceu, como e porquê e em que circunstâncias e consequências; no facto de Fev/2013 nada sabemos. Nestas circunstâncias importa deslindar se os mesmos integram o tipo de crime de violência doméstica, em face do bem jurídico protegido.

XLII.   Ora, atendendo ao referido no supra identificado Acórdão, entende-se não existir verificação ou preenchimento dos pressupostos do crime de que o ora recorrente foi condenado.

XLIII.  Considerando, (mas sem conceder) que, tendo ocorrido fatos num quadro de relacionamento deteriorado, mas em que, apesar dessa degradação, os cônjuges se foram mantendo livremente no casamento (como foi o caso), interagindo sempre em condições de paridade, tais factos nunca seriam merecedores de censura penal, à luz do artigo 152º do CP.

XLIV.  A decisão proferida violou o preceituado nos artigos 14º e 152º do CP, e ainda art 32º da CRP.

Termos que,

Face ao exposto e sem prescindir, deve o recorrente ser absolvido pelo crime a que foi condenado, atenta a falta de prova no que diz respeito ao preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo de ilícito, fazendo-se JUSTIÇA.


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A Digna Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso do arguido, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

1) O Tribunal fez uma correcta valoração da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, firmando a sua convicção quanto à prática dos factos pelo arguido sobretudo nas declarações prestadas pela assistente e pelas testemunhas D... e H... , em conjugação com as regras da experiência comum.

2) Tais testemunhas prestaram depoimentos claros e revestidos de coerência que mereceram a credibilidade do Tribunal.

3) O Tribunal "a quo' fez uma apreciação criteriosa das provas produzidas em audiência de discussão e julgamento, patenteando a motivação da sua decisão, de modo a dar como provados os factos elencados na matéria assente, constitutivos da prática do crime pelo qual foi correctamente condenado.

4) O arguido agrediu física e verbalmente a assistente, durante a vida em comum do casal – pela sua gravidade e reiteração, a conduta do arguido pôs em causa a dignidade da sua mulher, afectou o seu bem-estar e saúde física e psíquica, motivo pelo qual se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de violência doméstica a cônjuge.

Em suma, afigura-se-nos que o recurso do arguido não merece provimento, devendo manter-se integralmente a douta decisão recorrida.

Porém, V. Exas. decidirão, fazendo a habitual JUSTIÇA.


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Também a assistente respondeu ao recurso do arguido, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

A) O arguido/recorrente, com o presente recurso, mais não pretende do que impor a sua visão e mundividência ao Tribunal de recurso, o que leva, em última instância, à criação de uma prova vinculada – vinculada ao que o arguido acha que deve ser a decisão – logo uma prova subjectivizada, porque adstrita ao argumento de um interessado no desfecho da causa.

B) No presente recurso procede-se a uma incorrecta especificação da matéria de facto impugnada, por contraponto ao artigo 412º nº 3 alínea b) do CPP, pois é insuficiente a indicação genérica de todo um depoimento gravado, exigindo-se que o arguido/recorrente refira o que é que nesse meio de prova não sustenta o facto dado como provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto que se considera incorrectamente julgado.

 C) Tal facto tem uma outra consequência, qual seja a de não permitir funcionar o artigo 431º alínea b) do CPP, pois a decisão do Tribunal de primeira instância sobre matéria de facto só pode ser modificada se tiver sido impugnada nos termos do artigo 412º nº 3, o que não sucedeu no presente caso.

D) De igual modo, inexistem no presente processo quaisquer provas que imponham decisão diversa da recorrida, pois o arguido/recorrente apenas alega que:

- a versão trazida aos autos pela assistente não é a mesma que teve em sede de inquérito, obrigando o Tribunal a efectuar uma alteração não substancial dos factos;

- as declarações prestadas pela assistente não foram confirmados por outros meios de prova;

- as restantes testemunhas arroladas pela acusação não sabem ou nada de relevante trouxeram aos autos;

- os depoimentos se revelaram expressamente contraditórios, pouco fundamentados, parciais e interessados no resultado;

- existem documentos juntos aos autos que demonstram que a assistente nunca teve receio do arguido;

- existem mensagens trocadas com uma outra filha da assistente, nas quais a mesma refere que nunca viu agressões entre recorrente e recorrida.

E) Significa isto que as razões da discordância, apresentadas pelo recorrente, se prendem apenas com a forma como o Tribunal a quo formou a sua convicção e decidiu a factualidade em causa.

F) E já não com qualquer discrepância entre o que foi dito pelos declarantes (assistente e duas testemunhas) e o que foi considerado provado.

G) O que o arguido/recorrente faz é uma leitura, que é a sua, de partes selecionadas de meios de prova para, a partir de tais elementos selecionados, substituir a convicção do Tribunal a quo pela sua própria e que lhe é mais conveniente, concluindo assim pela inexistência de prova dos factos narrados na acusação.

H) Trata-se de um mero ataque da decisão de facto pela via da credibilidade ou incredibilidade atribuída aos concretos meios de prova de que o arguido se socorre, não apontando o mesmo um único erro de julgamento.

I) O arguido/recorrente labora numa tremenda confusão em toda a sua tese, pois o mesmo confunde provas que impõem decisão diversa com provas que permitem uma decisão diversa.

J) A decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzem a ela, já não o devendo ser quando, perante duas versões, a Meritíssima. Juiz a quo optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente, ou seja, o Tribunal da Relação só pode e deve determinar uma modificação da matéria de facto quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas que permitem uma outra decisão mais conveniente aos propósitos do arguido/recorrente.

K) E, no caso presente, não existem duas versões, pelo contrário, existe apenas uma, a que foi trazida pela assistente e corroborada, em maior ou menor grau, pelas diferentes testemunhas arroladas pelo Ministério Público.

L) O que existe, também, é um singelo e simples negar dos factos por parte do arguido e não uma qualquer outra versão aduzida por este.

M) Resumindo, o que existe é um mero ataque do recorrente às ilações retiradas pelo julgador da prova produzida, visando impor o seu ponto de vista e a sua subjectiva leitura da prova, mencionando os factos impugnados na sua generalidade, sem apontar a forma diversa em que deveriam ter sido julgados, não existindo, por conseguinte, na decisão recorrida, qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova ou das regras da experiência, previstas no artigo 127º do CPP.

 N) O direito aplicado aos factos dados como provados também não merece qualquer censura.

O) Conseguindo o arguido/recorrente entrar em contradição entre aquilo que defende na impugnação da matéria de facto com a impugnação da matéria de direito.

P) Pois ou os factos provados não o deviam ter sido, ou, coisa diferente, os factos deveriam ter sido dados como provados errando o Tribunal a quo, todavia, ao subsumi-los ao artigo 152º nº 2 do CP.

Q) O arguido/recorrente socorre-se de Jurisprudência de Tribunais Superiores para defender que o caso dos autos não consubstancia um crime de violência doméstica, pese embora o raciocínio seguido, após transcrever parte da fundamentação, o arguido/recorrente não se maça em explicar e nem convencer o Tribunal ad quem, talvez esperando que os Venerandos Desembargadores procedam à leitura dos referidos Acórdãos a fim de lograrem a boa decisão da causa.

Nestes termos e nos mais de direito, deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão que condenou o arguido A... pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da assistente F... , assim fazendo v. Exas. a costumada JUSTIÇA!


*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando os argumentos levados à resposta do Ministério Público.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.


*

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

A) Recurso do arguido

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto;

- A atipicidade da conduta.

B) Recurso da assistente

- A incorrecta fixação do montante da indemnização.


*

            Para a resolução destas questões, importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

[Da acusação pública:]

1 - O arguido A... e a ofendida F... estão casados entre si desde o dia 14 de Fevereiro de 2009.

2 - Desta relação nasceu uma filha, G... , a 20 de Janeiro de 2010.

3 - Para além da filha de ambos, a ofendida tem quatro filhos, H... , nascida a 26 de Abril de 2004, consigo residente, D... , nascida a 14-03-1996, I... e J... , maiores.

4 - Na constância da vida em comum do casal, foram várias as discussões que travou com a ofendida F... , discussões essas que, por vezes, acabaram em agressões físicas e verbais, o que aconteceu em regra na residência comum de ambos, que primeiro se situou na Urbanização (...) , em x(...) , e, posteriormente, em data não concretamente apurada mas que se sabe ter sido no decurso dos anos de 2013 ou de 2014, se alterou para a Rua (...) , x(...) , área desta Instância Local.

5 - Com efeito, a ofendida foi funcionária e sócia da agência funerária e florista que é explorada pelo arguido.

6 - Deste modo, a ofendida F... encontrava-se dependente das quantias monetárias que lhe eram entregues pelo arguido, a quem competia exclusivamente gerir os proventos do negócio de ambos.

7 - Em diversas ocasiões, em datas não concretamente apuradas, mas que se sabe ter sido no decurso dos anos de 2012 e 2013, em duas ou três ocasiões distintas, o arguido entregou um cheque à ofendida F... para que esta o fosse depositar em conta aberta e titulada unicamente por esta.

8 - No entanto, o arguido obrigava-a posteriormente a devolver-lhe várias quantias em dinheiro.

9 - Em data não concretamente apurada do ano de 2012 ou de 2013, o arguido, na sequência de uma discussão com a ofendida F... , disse a esta que levava com a santa, referindo-se a uma imagem de Nossa Senhora de Fátima que tinham na residência de ambos.

10 - Em data não concretamente apurada do ano de 2012 ou de 2013, o arguido agrediu a

ofendida F... por uma vez, desferindo-lhe um murro num braço, tendo posteriormente saído de casa e ido queixar-se à Guarda Nacional Republicana que tinha sido agredido.

11 - Em consequência da conduta do arguido, a ofendida F... não recebeu assistência médica, mas sentiu dores e mal-estar físico.

12 - Durante os anos seguintes, o arguido continuou a obrigar a ofendida F... a

devolver-lhe várias quantias em dinheiro, sob pena de, não o fazendo, lhe bater.

13 - Numa ocasião, em data indeterminada, mas que se sabe ter sido antes de Junho ou Julho de 2014, o arguido disse, dirigindo-se à ofendida F... , em tom sério: “ou me dás o cheque ou eu mato-te”.

14 - Pelo menos uma vez por mês, desde o ano de 2013 até ao ano de 2016 e, sempre que o arguido obrigava a ofendida F... a devolver-lhe quantias de dinheiro do salário, este

acusava-a de ter um amante, dizendo-lhe “puta”, “vaca”, “andas metida com o L... ”, “se não lhe pagas é porque pagas com o corpo” (referindo-se a um caseiro de uma quinta que foi emprestada à ofendida e que não recebia dinheiro mas tinha direito a ficar com parte da plantação e dos animais).

15 - Desde o ano 2013 e até à presente data, o arguido não contribuía para todas as despesas necessárias da casa, tendo a ofendida F... que recorrer à ajuda de instituições como a Cruz Vermelha, ou de pessoas que lhe entregam roupas ou géneros alimentícios.

16 - Em diversas ocasiões, cujas datas não se lograram apurar, o arguido retirava a botija de gás do esquentador da água quente, impedindo que as ofendidas tomassem banho.

17 - A determinada altura, cuja data não se logrou determinar, mas que se sabe ter sido no

decurso do ano de 2016, na residência do casal, a ofendida encontrava-se na casa de banho a vestir a filha G... quando o arguido chegou junto de si e desferiu-lhe um murro nas costas, provocando-lhe dores e mal-estar físico.

18 - Em data não concretamente apurada, mas que se sabe ter sido entre o dia 20 e o dia 31 de Agosto de 2016, o arguido começou a discutir com a ofendida F... porque queria

que esta lhe devolvesse quantias de dinheiro do salário. No decorrer da discussão, o arguido desferiu uma cabeçada na cabeça da ofendida F... , na presença da sua filha, G... .

19 - Em consequência da actuação do arguido, nessa data, a ofendida sofreu dores e mal-estar físico, mas não recebeu assistência médica.

20 - Ainda nessa ocasião, na residência do casal, o ofendido disse para a ofendida e para as suas filhas saírem de casa, tendo empurrado a ofendida para a porta, fazendo pressão no seu

tronco com as mãos.

21 - Acto contínuo, a ofendida saiu para o exterior com a sua filha G... para acalmar a

mesma, tendo a porta se fechado de forma não concretamente apurada.

22 - Ainda assim, a ofendida F... logrou regressar novamente a casa, tendo-se refugiado num quarto, juntamente com as suas filhas, onde permaneceu toda a noite.

23 - No dia seguinte, a ofendida F... saiu de casa, tendo o arguido e a ofendida

passado a residir separadamente.

24 - Não obstante, o arguido continuou a enviar mensagens escritas à ofendida F... , através do telemóvel, insinuando que esta mantinha um relacionamento com o L... .

25 - Em data não concretamente apurada, mas que se sabe ter sido posterior a 21 de Agosto de 2016 e anterior a 1 de Novembro do mesmo ano, o arguido quando se encontrava no interior da florista “ (...) ”, sita na Rua (...) , onde a ofendida F...

trabalhava, disse, dirigindo-se a esta: “andas lá metida com o L... , não sei se a filha é minha ou não”, “puta”, “vaca”, “és uma porca”, “sua caloteira, roubas-me o dinheiro da caixa”.

26 - Com a conduta supra descrita quis o arguido infligir maus-tratos físicos e psíquicos à sua esposa.

27 - Ao dirigir tais palavras à queixosa, o arguido ofendeu a sua honra, atentando contra o

bom-nome e sensibilidade da ofendida F... , o que quis fazer.

28 - O arguido, ao actuar da forma descrita fê-lo ainda com o propósito de provocar medo e inquietação a F... , bem como de lhe prejudicar a sua liberdade de determinação, o que conseguiu.

29 - O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que ao comportar-se da forma descrita relativamente ao seu cônjuge, submetia a ofendida F... a um grande sofrimento físico e psíquico e a humilhação, resultado esse que o arguido quis produzir e que efectivamente se verificou.

30 - Mais sabia que, ao actuar dentro da casa de habitação da ofendida F... , ampliava o sentimento de receio desta, visto que violava o espaço reservado da vida privada familiar e o seu carácter securitário. Sabia ainda que, ao fazê-lo na presença de menor, colocava em causa o seu crescimento harmonioso e sadio, e diminuía as possibilidades de defesa da ofendida.

31 - O arguido agiu sempre de vontade deliberada, livre e consciente, bem sabendo que tais condutas são proibidas e punidas por lei penal.

[Do pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante F... :]

32 - Com a conduta descrita, o arguido revelou uma indiferença à relação familiar que o unia à assistente e aos deveres que dela advinham.

33 - Em virtude da actuação do arguido, a assistente sentiu medo, ansiedade, vergonha, inquietação, desgosto, humilhação e tristeza, tendo-se sentido angustiada e magoada na sua honra, reputação e consideração.

34 - A actuação do arguido deixou a assistente envergonhada e deixou-lhe mágoa e desgosto e mais ainda pelo facto de a sua filha com apenas seis anos de idade ter presenciado episódio de violência contra a mãe.

35 - Em virtude da conduta do arguido a assistente abandonou a casa de família sita em (...) , com as duas filhas menores, e passou a residir na casa pertença de sua mãe em (...) .

36 - Acresce ainda o facto de ter deixado de exercer a actividade profissional que então exercia, pois a sua antiga entidade patronal tem como sócio maioritário o arguido.

[Da contestação:]

37 - Aquando da vida em comum o arguido e a assistente adquiriram um apartamento em x(...) onde viveram durante algum tempo, adquiriram uma viatura que era conduzida pela ofendida e o arguido deu-lhe 1% na empresa que sempre fora negócio de família do arguido.

38 -. Para além disso, o arguido proporcionou-lhe formação na área profissional de agente

funerário.

39 - Trabalhando em estabelecimento/florista e funerária sempre a arguida teve pagamento de salário e demais retribuições.

40 - Tudo titulado por cheque ou entregue em dinheiro.

41 - Na sequência da agressão referida em 10), a assistente empurrou o arguido, tendo o mesmo ido queixar-se à Guarda Nacional Republicana e tendo sido transportado pelas autoridades ao hospital.

42 - Tal ocorreu enquanto viviam no apartamento em x(...) .

43 - Dando origem ao processo n.º 559/12.0GBSEI, que correu termos no Ministério Público de x(...) , tendo sido arquivado quanto aos crimes de violência doméstica, denunciados pelo arguido contra a ora assistente e pela assistente contra o arguido, por os indícios recolhidos

não terem apetência para integrar tais ilícitos, e arquivado por desistência de queixa pelos aí arguidos/ofendidos quanto aos crimes de ofensa à integridade física e perturbação da vida privada.

44 - A arguida e as filhas saíram de casa sem que tivessem dito nada, sendo que, a assistente mandou mensagem referindo que havia saído de casa e que estaria em casa da mãe.

45 - Casa que o arguido ajudou a restaurar com trabalhos feitos também por si e pagando

também materiais de construção.

46 - O arguido e a assistente almoçavam muitas vezes fora, sendo que quando não se encontravam chateados era o arguido A... que pagava.

47 - Após a saída de casa, a assistente vedou por diversas vezes o contacto do arguido com a filha G..., pressionando-o para que este contribuísse para o sustento desta.

48 - A 4 de Janeiro de 2017 o arguido teve crise de pânico, tendo sido assistido no hospital.

49 - Tendo no dia seguinte sido assistido em consulta em médico particular em Viseu.

50 - O arguido é uma pessoa reputada em (...) , local onde vive, bem como em (...) onde tem estabelecimento/funerária.

51 - O arguido ainda hoje mantém bom relacionamento com uma das filhas mais velhas da ora assistente.

52 - Tendo recentemente trocado com a mesma algumas mensagens.

[Condições pessoais do arguido:]

53 - O arguido é agente funerário por conta própria, auferindo mensalmente cerca de 615,00 € a 620,00 €. Reside sozinho em casa própria. Suporta mensalmente o pagamento de uma

prestação de 300,00 € referente a empréstimo contraído. O arguido tem dois filhos maiores e uma filha menor com 7 anos de idade. O arguido encontra-se a pagar a quantia de 50,00 € por mês a título de pensão de alimentos devida à sua filha menor.

54 - O arguido estudou até à 4.ª classe.

55 - O arguido não tem antecedentes criminais.

(…)”.

B) Nela foram considerados não provados os seguintes factos:

            “ (…).

a) Durante o ano de 2013, o arguido deixou de entregar qualquer quantia à ofendida F... , a título de remuneração (correspondente ao salário mínimo nacional), alegando não ter feito dinheiro nesse mês para lhe pagar, o que não era verdade.

b) Nas ocasiões referidas em 7) e 8) o arguido dizia à ofendida F... “ou me dás o dinheiro ou levas com a Nossa Senhora na cabeça”, referindo-se a uma imagem de Nossa Senhora de Fátima que tinham na residência de ambos.

c) Durante os anos seguintes, o arguido continuou a não pagar o salário à ofendida F... .

d) Em datas não concretamente apuradas, mas que se sabe ter sido entre os anos de 2013 e 2014, na residência do casal sita em (...) , em quatro ocasiões distintas, o arguido desferiu estaladas, murros, pontapés e cabeçadas no corpo da ofendida F... , após lhe exigir que esta lhe entregasse o dinheiro, e ao mesmo tempo que a acusava de ter amantes.

e) Nas ocasiões referidas em 14) o arguido acusava a ofendida de “andar a governar amantes”.

f) Nas mesmas ocasiões referidas em 14), o arguido ainda dizia à ofendida F... em tom de voz sério “olha que levas”.

g) Nas situações referidas em 15) o arguido tinha dinheiro mais que suficiente para o fazer.

h) Em data que não se logrou apurar, mas que se sabe ter sido durante o ano de 2015, no

início do verão, na residência do casal, durante uma discussão ente o arguido e a ofendida F... motivada por dinheiro, o arguido desferiu um murro no braço da ofendida, provocando-lhe dores e mal-estar físico.

i) Em data que não se logrou determinar, mas que se sabe ter sido no mês de Agosto de 2016, antes do dia 20, na residência de ambos, o arguido disse, dirigindo-se para a ofendida F... : “andas lá metida com o L... , não sei se a filha é minha”.

j) A cabeçada referida em 18) foi desferida na presença da filha da ofendida H... .

k) Na situação referida em 20) o arguido obrigou a assistente a sair para o exterior.

l) A assistente procedeu do modo descrito em 22) com receio do que o arguido lhe pudesse fazer.

m) No dia 23 de Setembro de 2016, o arguido enviou uma mensagem escrita, através do

telemóvel, para a ofendida, onde lhe disse, pelas 21.26h: “sabes o que tu amas são os meus chifres” e, pelas 23.52h, “eu tenho as duas fotos aqui apagaste no meu perfil o U... já as

viu”.

n) Na ocasião referida em 25) o arguido dirigindo-se à ofendida disse: “ladra”, “vai para o caralho”.

o) Desde data não concretamente apurada do ano de 2014, o arguido passou a dirigir-se à

menor H... , com uma frequência quase diária, culpando-a de estar na origem das discussões que mantinha com a sua mãe, e invocando que a culpa da sua mãe não lhe dar dinheiro era dela.

p) Em determinadas ocasiões, cujas datas não se logrou apurar, mas que se sabe ter sido com uma frequência quase diária, aproveitando a ausência da progenitora, quando a H... se encontrava no quarto, o arguido desferiu estaladas nos seus braços e na sua cabeça, ao mesmo tempo que lhe dizia que era a responsável por a sua mãe não lhe dar dinheiro e discutir com este.

q) Em consequência da actuação do arguido, nessa data, a menor sentiu dores e mal-estar

físico, mas não recebeu assistência médica.

r) Com a conduta supra descrita quis o arguido infligir maus-tratos físicos e psíquicos à filha menor desta.

s) O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que ao comportar-se da forma descrita relativamente à sua enteada, submetia a mesma a um grande sofrimento físico e psíquico e a humilhação, resultado esse que o arguido quis produzir e que efectivamente se verificou. O arguido sabia que a sua enteada, consigo residente, tinha apenas doze anos de idade, tendo abusado da sua menor capacidade de reacção para levar avante os seus intentos.

t) Em virtude da actuação do arguido a assistente F... passou a sofrer de baixa auto-estima e de depressão nervosa (medicamente diagnosticada).

u) A assistente, que era uma pessoal alegre, bem-disposta e divertida, transformou-se numa pessoa triste, inquieta, nervosa com tudo o que possa acontecer, principalmente com a possibilidade de que o arguido possa atentar novamente contra o seu corpo, saúde e vida, vivendo em permanente estado de alerta.

v) De modo que a assistente ainda hoje dorme mal, acordando muitas vezes durante a noite porquanto tem pesadelos com as situações que vivenciou.

x) Quem efectivamente sempre fez exigências ao arguido foi a ofendida.

z) Nunca estava satisfeita com o que o arguido fizesse ou desse.

aa) O arguido fez sempre todas as vontades à ofendida.

bb) O arguido sempre tratou e cuidou de todos os filhos da assistente, os mais velhos enquanto estiveram consigo a viver como se seus fossem.

cc) Auxiliando-os no que fosse necessário.

dd) Mas tudo isto nunca satisfez a ora assistente.

ee) A arguida geria todo o salário como bem entendia.

ff) Fazia sempre os horários que bem entendia, sendo que, se necessitasse de alguma coisa para si ou para os seus filhos, saia do estabelecimento e voltava sem que tais períodos fossem descontados.

gg) Fazia pausas de manhã e de tarde e ia ao café na hora de expediente.

hh) A assistente agrediu por diversas vezes o arguido, para além da situação descrita em 41).

ii) A assistente sempre aproveitou a diferença de idades, bem como a diferença de estatura para o ameaçar/amedrontar e até agredir.

jj) A assistente em público (café de (...) ) referiu que o arguido talvez não fosse o pai da filha.

kk) A assistente preparou a casa da mãe porque preparava a saída da casa de morada de família.

ll) Foi o aludido em 47) que levou o arguido a ter crise de pânico referida em 48).

mm) Já depois da separação, entre Dezembro e Fevereiro de 2017, é a assistente que aborda o arguido junto à escola, e junto do café em (...) , e grita com o mesmo ameaçando-o que enquanto não houvesse decisão do Tribunal não poderia ver a filha G....

nn) O arguido sempre fez tudo para ajudar a educar os filhos da assistente, proporcionando-lhe o que era permitido.

oo) O telemóvel do arguido tem o número (...)

(…)”.

C) E dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade dada como provada, na análise critica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, com apelo a juízos de lógica e de experiência comum.

Desde logo, prestando declarações, o arguido referiu que passou a viver com a assistente desde o casamento, inicialmente em x(...) e após em (...) . Começou por negar que existissem discussões entre o casal, tendo no decorrer das suas declarações declarado que a assistente é que discutia consigo sem razão aparente. Negou ter agredido a assistente ou lhe chamado nomes, assim como também referiu que não insinuava que a mesma andava a relacionar-se com outros homens. Referiu que não retirava a botija de gás para a assistente ou a sua filha H... não poderem tomar banho e que inclusivamente repreendia a H... quando não fazia a higiene ou a cama. Negou ainda ter agredido por qualquer forma a menor H... . Por outro lado, referiu que nunca usufruiu da ajuda de instituições de solidariedade social e que a assistente terá recorrido a essa ajuda quando se encontravam separados, declarando ainda que durante o tempo em que viveram juntos não faltava nada em casa.

Referiu que a partir de 29 de Agosto de 2016 o mesmo e a assistente passaram a fazer vidas separadas, tendo esta saído de casa com as duas filhas menores sem avisar. Declarou que o

negócio da agência funerária era dos seus pais e que lhe deu uma quota de 1% na empresa e lhe pagou formação, referindo que sempre pagou o salário à assistente, a qual o depositava numa conta própria.

Valoraram-se, no entanto, as declarações prestadas pela assistente, a qual começou por esclarecer o período de tempo em que viveu com o arguido e os locais onde residiram. Referiu que no início a relação era mais ou menos pacífica e que as discussões começaram a surgir depois de terem adquirido um apartamento em x(...) e o arguido ter retirado dinheiro da funerária para pagar o valor do sinal. Esclareceu que o arguido sempre lhe pagou o salário, embora por vezes com atrasos, mas a partir daí começaram a ser frequentes as discussões porque o arguido pretendia que a mesma lhe entregasse quantias do salário que recebia enquanto trabalhadora da florista e funerária, dizendo que tinha um “buraco” para tapar. Deu conta do número de vezes que tal ocorreu nos anos de 2012 e 2013, referindo, no entanto, que quando alteraram a sua residência para a (...) a situação piorou, continuando o arguido a exigir que lhe entregasse quantias em dinheiro, sob pena de lhe bater.

A assistente descreveu ainda, com coerência e clareza, os episódios em que o arguido a atingiu fisicamente, localizando-os no tempo, referindo que não ter recebido assistência médica. Salientou que as discussões tinham quase sempre a mesma causa, que era o facto de o arguido pretender que a mesma lhe devolvesse quantias de dinheiro do salário, tendo numa das situações lhe dito “ou me dás o cheque ou mato-te”. Relatou, no entanto, um episódio em que o arguido ameaçou que lhe batia com uma estatueta da Nossa Senhora de Fátima que tinham em casa, salientando que tal sucedeu após uma discussão por causa da sua filha D... . Descreveu ainda os nomes injuriosos de que o arguido a apelidava e as expressões concretas que proferia quando a acusava de andar relacionada com o L... (caseiro de uma quinta que a assistente cultivava), referindo ainda a frequência com que tal sucedia. A assistente referiu ainda que o arguido não contribuía para todas as despesas necessárias de casa, o que a levou a recorrer à Cruz Vermelha e à ajuda de terceiras pessoas (designadamente, V... e E... ), ainda no período que residiam juntos.

Deu ainda conta de que em determinadas ocasiões o arguido retirava a botija de gás, impedindo a mesma e a menor H... de tomarem banho. Esclareceu ainda o contexto em que saiu de casa com as suas filhas menores, relatando com convicção e segurança o sucedido na noite anterior, designadamente a forma como foi agredida pelo arguido. Mais referiu que após a separação o arguido ainda continuou a enviar mensagens por telemóvel a insinuar que mantinha o relacionamento com o tal L... , tendo ainda relatado a forma como o arguido se dirigiu à mesma quando se encontravam na florista, já após a separação e antes do dia 1 de Novembro de 2016, na presença de E... e do Sr. U... .

De referir que a assistente prestou declarações de forma coerente, clara, espontânea e sentida, denotando o Tribunal que a mesma mostrou preocupação em não imputar ao arguido factos para além daqueles que efectivamente se recordava. Por outro lado, as declarações da assistente foram corroboradas, em maior ou menor medida, pelo depoimento das testemunhas arroladas na acusação.

Desde logo, a testemunha D... , filha da assistente, esclareceu o período temporal em que viveu com a assistente e o arguido, dando conta das frequentes discussões do casal, quase sempre motivadas por dinheiro, tendo ouvido uma vez o arguido dizer à assistente “ou me dás o cheque ou eu mato-te”. Referiu os nomes que ouviu o arguido chamar à sua mãe, quando as discussões eram mais acesas, e relatou ao tribunal as agressões físicas que presenciou, assim como uma situação em que o arguido ameaçou a sua mãe com uma estatueta da Nossa Senhora de Fátima. Referiu que em termos de bens alimentares o arguido nem sempre comprava o suficiente e dizia para a sua mãe se desenrascar, tendo a mesma chegado a recorrer à ajuda da Cruz Vermelha. Por fim, referiu que em Agosto de 2006 a sua mãe lhe ligou a chorar a dizer que o arguido as tinha posto fora de casa e que lhe tinha batido.

De referir que a testemunha D... , não obstante a relação familiar com a assistente, prestou um depoimento seguro, coerente e sereno, sem esconder do Tribunal o facto de nunca se ter dado bem com o arguido, o que afirmou espontaneamente, pelo que o seu depoimento nos mereceu credibilidade.

A testemunha H... , à data com 12 anos, prestou declarações para memória futura. No entanto, o seu depoimento revelou-se inseguro e hesitante, pelo que o mesmo foi apenas valorado na estrita medida em que foi corroborado por outros meios de prova.

A testemunha E... referiu ter assistido a discussões entre o arguido e a assistente quando estava a ajudar na funerária e florista e em casa da mãe da assistente, tendo relatado as expressões que por uma vez ouviu o arguido dizer à ofendida, no ano de 2016, na florista. Deu ainda conta de a assistente lhe ter pedido ajuda para comprar bens alimentares, em 2016, e que a mesma lhe chegou a emprestar 80 € para compras de supermercado.

A testemunha U... demonstrou visível desagrado por ter sido chamado a depor, referindo que a assistente o meteu em problemas. Afirmou não ter assistido a discussões entre o casal. No entanto, foi notória a forma comprometida com que depôs, tendo o Tribunal ficado com a convicção de que o mesmo sabia mais do que aquilo que adiantou.

Referiu, no entanto, ter conhecimento de que assistente chegou a ir buscar comida à associação em (...) , antes de estar separada do arguido.

Por outro lado, a testemunha B... , num depoimento objectivo e isento, asseverou que a pedido da assistente lhe deu umas roupas para a filha mais nova, o que sucedeu quando a assistente saiu de casa.

As testemunhas arroladas pelo arguido pouco ou nada esclareceram quanto à vivência do casal, designadamente por não terem mantido contacto com o mesmo no período a que se reportam os autos ( C... , ex-cônjuge do arguido, M... , nora do arguido, e N ... ) ou por terem mantido com o mesmo contactos esporádicos, designadamente no café ( O ... , P... , Q ... e R... ) ou na casa do casal ( S... , e T... ). De notar que o depoimento prestado pela testemunha C... , que referiu que em 28 anos de casamento nunca foi maltratada pelo arguido, não colocou em crise as declarações da assistente e das sobreditas testemunha da acusação, já que nenhum relacionamento é igual, e como resultou da prova produzida as discussões e situações de conflito do casal (arguido e assistente) estariam relacionadas com problemas financeiros, que a testemunha C... referiu que o arguido não tinha enquanto foi casado consigo.

No que concerne às mensagens juntas aos autos trocadas entre o arguido e J... (filha da arguida), desde já se adianta que, em nosso entendimento, nada obsta à sua valoração, assim se acompanhando o entendimento vertido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/05/2013, acessível in www.dgsi.pt, quando refere que “as mensagens, depois de recebidas, deixam de ter a essência de uma comunicação em transmissão para passarem a ser uma comunicação já recebida, (…) em nada se distinguindo de uma carta remetida por correio físico”. Não obstante, e apesar de nessa mensagem que terá sido enviada por aquela, a mesma referir nunca ter visto o arguido bater à sua mãe, tal não põe em causa as declarações da assistente e da testemunha D... , já que da prova produzida resultou que esta filha da arguida não terá vivido com o casal no período a que se reportam os factos.

Por fim, diga-se que as declarações do arguido, designadamente na parte em que negou ter agredido, ofendido e ameaçado a sua esposa, não mereceram credibilidade no cotejo com toda a prova produzida.

Quanto aos factos referentes ao elemento subjectivo do ilícito, os mesmos resultaram provados da conjugação da restante factualidade objectiva dada como provada com regras da experiência e do normal acontecer, em face das quais não se duvidou da intencionalidade e voluntariedade da conduta do arguido.

No que respeita aos factos referentes ao pedido de indemnização civil, o Tribunal valorou as declarações da assistente – conjugadas com o depoimento da testemunha D... – à luz das regras da experiência comum e do normal acontecer.

Quanto aos factos da contestação, o Tribunal valorou conjugadamente as declarações do arguido e da assistente, em conjugação com a prova documental junta aos autos, designadamente as cópias extraídas do inquérito n.º 559/12.0GASEI, o teor das mensagens transcritas, juntas aos autos pelo arguido com a contestação, assim como a documentação clínica junta pelo mesmo e a declaração de fls. 279.

No que concerne às condições pessoais e económicas do arguido, valoraram-se as suas declarações que, porque prestadas, neste particular, de forma espontânea e coerente, não viu o Tribunal razões para nelas não fazer fé. Quanto à forma como o arguido é visto na comunidade onde reside e trabalha, o Tribunal atendeu ao depoimento das testemunhas arroladas pelo mesmo, o que foi conjugado com o teor da declaração de fls. 279.

Quanto aos antecedentes criminais, valorou-se o teor do CRC junto aos autos a fls. 320.

Relativamente à factualidade dada como não provada, de referir que a mesma resultou ora de ter sido infirmada pela prova produzida, ora de não ter sido feita prova com suficiente consistência que permitisse ao Tribunal assentar na sua veracidade. De salientar que, quanto à factualidade que ao arguido vinha imputada quanto à menor H... , a mesma apenas foi referida pela menor, sendo que, conforme já se aflorou supra, as declarações desta foram marcadas por hesitações, avanços e recuos e, inclusivamente, algumas contradições. Não foi efectivamente corroborada por qualquer outro meio de prova, designadamente a assistente e a testemunha D... , que referiram nunca terem visto o arguido bater na menor e que esta nunca lhes tinha anteriormente referido isso. Assim, por o Tribunal ter entendido que as declarações prestadas pela menor não tiveram a consistência suficiente para, por si só, dar como provados tais factos, à luz do princípio do in dúbio pro reu, foram os mesmos dados como não provados.

Concretamente quanto ao vertido em l), saliente-se que foi a própria assistente que referiu que quando voltou para dentro de casa já o arguido se encontrava no quarto com a porta trancada, pelo que se desconhece se terá sido por esta razão que a mesma foi dormir num outro quarto com as menores.

Quanto à restante factualidade do pedido de indemnização civil que foi dada como não provada, designadamente quanto ao estado depressivo da assistente em consequência da conduta do arguido, de referir que a mesma não se mostra alicerçada em prova documental bastante, já que apenas consta dos autos um documento referente a uma situação de baixa médica da assistente por doença natural, do qual não se pode inferir tal estado. Por outro lado, o Tribunal não olvidou o teor das mensagens trocadas com o arguido após a separação e juntas aos autos pelo mesmo, as quais lançaram a dúvida quanto ao facto da assistente ainda hoje sentir receio de que o arguido possa atentar contra a sua integridade física.

Quanto aos factos da contestação dados como não provados, de referir apenas que não se se produziu em audiência qualquer outra prova que permitisse ao Tribunal dar como provados outros factos para além daqueles que, nessa qualidade, se descreveram.

(…)”.


*

A) Recurso do arguido

Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto

1. Alega o recorrente – conclusões II a XXIX – que foram incorrectamente julgados os pontos 4, 7 a 18, 20 a 22 e 24 a 35 dos factos provados da sentença em crise, relativamente aos quais não foi produzida prova suficiente, sendo a existente, deficitária e contraditória, quer porque as queixas apresentadas não correspondem aos factos acusados, quer porque a versão da assistente no inquérito não é a mesma que resultou do julgamento onde esta assumiu uma conduta teatral, quer porque as suas declarações não foram corroboradas por outros meios de prova, sendo as provas que impõem decisão diversa as declarações da assistente, o depoimento da testemunha D... e os registos de mensagens juntos aos autos, constando do corpo da motivação a transcrição de longos segmentos de tais declarações e depoimento.

Sem prejuízo da existência de vícios decisórios e aplicação do respectivo regime [arts. 410º, nº 2 e 426º do C. Processo Penal], a modificabilidade da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só pode ter lugar, entre outras situações, se a prova tiver sido impugnada nos termos do nº 3 do art. 412º (art. 431º, b) do C. Processo Penal).

Vejamos então.

O recurso da matéria de facto ou, preferindo-se, a impugnação ampla da matéria de facto, cujo regime se encontra previsto, na parte essencial, no art. 412º, nºs 3 e 4 do C. Processo Penal, foi concebido como um remédio para sanar o que a lei tem por excepcional no julgamento feito pela 1ª instância, o erro na definição do facto. Portanto, não foi, nem pode ser perspectivado como um novo julgamento, como se o efectuado pelo tribunal a quo não tivesse acontecido.

É precisamente por isso que a lei impõe ao recorrente, e apenas ao recorrente, a identificação precisa do erro [ou erros] que pretende corrigir pela via do recurso e a sua demonstração. Com efeito, o art. 412º do C. Processo Penal, nos seus nºs 3 e 4, sujeita o recorrente a um ónus de especificação: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e; a especificação das provas que devem ser renovadas [esta, nos termos do art. 430º, nº 1 do C. Processo Penal, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio].

A este ónus acresce uma outra exigência legal quando as concretas provas especificadas sejam prova por declarações gravadas. Neste caso, as duas últimas especificações devem ser feitas por referência ao consignado na acta da audiência de julgamento, com a concreta indicação das passagens em que o recorrente funda a impugnação.

E devem todas estas especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (cfr. art. 417º, nº 3 do C. Processo Penal).

Não basta, porém, para a procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal. O tribunal decide, ressalvados os casos de prova tarifada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção [o que, não raras vezes, é ignorado pelos recorrentes], sendo por isso necessário que as provas especificadas, na observância do referido ónus, imponham decisão diversa da recorrida, recaindo a demonstração desta imposição também sobre o recorrente que, para tanto, deve relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 1135).

Pois bem.

O recorrente especificou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados identificando como tais, os pontos 4, 7 a 18, 20 a 22 e 24 a 35 dos factos provados da sentença recorrida, factos correspondem a toda a matéria susceptível de preencher o tipo, objectivo e subjectivo, do crime por cuja prática foi condenado.

No que respeita à especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o arguido indicou as declarações da assistente e o depoimento da testemunha D... [embora referia o depoimento da testemunhas E... , logo acrescenta que o mesmo, na sua opinião, nenhuma credibilidade merece] e os registos de mensagens mas, logo nas conclusões II e III deixou clara a sua concepção do recurso da matéria de facto, aí fazendo constar que requeria à Relação a apreciação da prova, com audição das gravações, a fim de poder verificar que a 1ª instância não fez o melhor e correcto enquadramento das regras da experiência e que, para que o tribunal ad quem pudesse efectuar um juízo de ponderação integral, seria feita a reprodução dos depoimentos considerados preponderantes na decisão. Nesta decorrência, agora no corpo da motivação, o arguido procedeu à transcrição de vários segmentos [doze, no total] das declarações da assistente, que intercalou com comentários, à transcrição de vários segmentos [seis, no total] do depoimento da testemunha D... , que também intercalou com comentários, e à transcrição de um segmento do depoimento da testemunha E... , apesar de, como referido, considerar a testemunha carecida de credibilidade. Porém, em lado algum da motivação – corpo ou conclusões – o arguido estabeleceu a relação entre cada meio de prova por declarações – referido ao concreto segmento transcrito – e o ponto ou pontos de facto que, por via daquele, pretende modificar ou seja, tendo impugnado praticamente todos os factos provados da sentença resultantes dos que, na acusação, lhe eram imputados, a todos opõe os mesmos meios de prova, pretendendo que a Relação leia os segmentos transcritos e/ou os oiça e, sem mais, porque mais o recorrente não disse, conclua pela modificação da decisão de facto, com a passagem de todos os pontos sindicados a pontos de facto não provados.

Como se vê, esta perspectiva redunda no que a lei não admite, que o recurso de transforme num novo julgamento, feito agora na Relação, com a dificuldade acrescida de que, aqui, a imediação da prova sobre as limitações, grandes, seguramente, da mera audição de registos gravados.

Em suma, não tendo o arguido, na argumentação deduzida, feito a relação entre o conteúdo de cada meio de prova que especificou com cada facto que considera incorrectamente julgado, por forma a permitir ao tribunal de recurso aferir da bondade da pretensão, face ao sentido e alcance de cada meio de prova, impossibilitou o efectivo conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto que deduziu. 

2. Ainda assim, dando por adquirido que é correcta a transcrição dos segmentos das declarações e dos depoimentos, feita no corpo da motivação, sempre diremos o que segue, sob o ponto de vista da apreciação da prova. 

No julgamento da matéria de facto vigora o princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 127º do C. Processo Penal, segundo o qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

A lei dispõe diferentemente, nos casos de prova legal, como sucede, designadamente, com a prova pericial (cfr. art. 163º, nº 1 do C. Processo Penal). Por outro lado, as regras da experiência, na lição de Cavaleiro de Ferreira (Curso de Processo Penal, II, pág. 30), são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade ou, dito de outra forma, são regras que exprimem aquilo que sucede na maior parte dos casos semelhantes (cfr. Santos Cabral, Prova indiciária e as novas formas de criminalidade, Julgar, 17, Maio – Agosto de 2012, pág. 24).

A apreciação da prova é tarefa da competência exclusiva da entidade que julga. Porém, a livre convicção que constitui o seu elemento nuclear, não significa que o julgador a possa valorar orientado por um convencimento exclusivamente subjectivo. A valoração da prova não é mero arbítrio, ela exige do juiz uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência, e na percepção [no que respeita à prova por declarações] da personalidade dos declarantes e depoentes, tendo sempre como horizonte a dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dubio pro reo.

Na execução desta tarefa, para além da actividade meramente cognitiva, concorrem elementos subjectivos, v.g., intuição do julgador (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, 2004, Coimbra Editora, pág. 205), devendo resultar da sua conjugação uma convicção, ainda assim, objectivável e motivável, únicas características que permitem que a decisão se imponha, dentro e fora do processo. A convicção probatória será então o fruto da conjugação dos dados objectivos consubstanciados nos documentos e em outras provas constituídas, com as impressões proporcionadas pela prova por declarações, tendo em conta a forma como esta foi produzida perante o tribunal [relevando quanto a ela, designadamente, a razão de ciência de declarantes e depoentes, a sua serenidade e distanciamento, as suas certezas, hesitações e contradições, a sua linguagem e cultura, os sinais e reacções comportamentais revelados, e a coerência do seu raciocínio].

A conjugação dos meios de prova, especialmente, dos meios de prova por declarações, só pode ser realizada, no grau desejável, através da imediação e da oralidade da prova. Somente o contacto directo do julgador com a prova, o coloca nas condições ideais para proceder, primeiro, à sua avaliação individual, e depois, à sua avaliação global e daí retirar a sua convicção.

Vigorando o princípio da livre apreciação da prova em todas as instâncias que conhecem de facto, na fase do recurso, a sua aplicação depara-se com dificuldades acrescidas, dada a substancial diferença entre a valoração da prova por declarações efectuada na 1ª instância e a apreciação que sobre ela pode ser feita pelo tribunal de recurso, limitado que está à audição – mais raramente, à visualização – das passagens concretamente indicadas pelos intervenientes processuais e de outras, que eventualmente considere relevantes.

Por ser assim este o procedimento a observar – audição dos registos gravados –, as limitações que dele decorrem determinam que o tribunal de recurso não possa apreender parte substancial dos elementos enunciados, impossíveis de captar, ao menos na sua plenitude, no registo áudio, elementos que, no entanto, foram, ou podiam ter sido, apreendidos, interiorizados e valorados, na sua globalidade, por quem os presenciou ou seja, pelo juiz do julgamento. E é esta, portanto, a razão fundamental para que, como vem sendo entendido, quando a 1ª instância atribui, ou não, credibilidade a uma fonte de prova por declarações, fundando a opção tomada na imediação, a Relação só a deva censurar, quando seja feita a demonstração de que a opção tomada carece de razoabilidade ou viola as regras da experiência comum.

Aqui chegados, vejamos como argumentou o arguido para concluir que a prova produzida deveria ter conduzido à sua absolvição.

i) Começa por dizer que os autos nasceram de queixas apresentadas pela assistente que não contemplaram os factos levados à acusação pois que, só posteriormente, deles se ‘lembrou’ aquela acrescendo, por outro lado, que no decurso da audiência de julgamento outra foi já a versão da assistente, o que deu lugar à comunicação de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, apesar da sua conduta teatral, o que deveria ter conduzido a uma diferente valoração das suas declarações, até porque não foram confirmadas pela restante prova designadamente, pela prova testemunhal. Portanto, o arguido discorda da credibilização dada pela 1ª instância às declarações da assistente.

As declarações do assistente são um meio de prova tipificado no C. Processo Penal (art. 145º, entre outros) e sujeito ao princípio da livre apreciação da prova.

Como facilmente se compreende, a proximidade do assistente com o objecto do processo – em, regra, tem esta qualidade processual, o ofendido (art. 68º, nº 1, a) do C. Processo Penal) – determina, necessariamente, uma maior atenção e exigência do julgador na apreciação probatória das suas declarações. A partir daqui, elas são livremente valoráveis, desde que observados os critérios previstos no art. 127º do C. Processo Penal.

Na motivação de facto da sentença recorrida a Mma. Juíza a quo fez constar que valorou as declarações da assistente, que qualificou como coerentes, claras, espontâneas e sentidas e ainda que se apercebeu que a mesma se preocupou em não imputar ao arguido outros factos para além dos que recordava ou seja, afirmou a isenção de taos declarações.

Acrescentou ainda a Mma. Juíza a quo que as declarações da assistente foram corroboradas, em maior ou menor extensão, pelos depoimentos das testemunhas D... e E... .

A circunstância de o teor da queixa ficar, eventualmente, aquém dos factos imputados na acusação e de, no decurso da audiência de julgamento, ter o tribunal entendido comunicar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, em si mesmas, nada tem a ver com a maior ou menor credibilidade que possam merecer as declarações da assistente.

O que releva é o que a assistente disse e como o disse, na audiência de julgamento, se o que disse viola qualquer regra do normal acontecer e se o que disse foi corroborado ou contraditado por outros meios de prova e, nesta última hipótese, devam estes sobrepor-se às declarações prestadas, por credores de maior credibilidade. Ora, a todas estas questões respondeu a Mma. Juíza a quo da forma supra sintetizada, sem que se vislumbre a violação de uma qualquer regra da experiência que, aliás, tão-pouco o arguido identifica.

Atentemos, a propósito, em duas contradições entre declarações e depoimentos, que o arguido aponta.

Depois de transcrever o segmento das declarações da assistente [de 00:11:18 a 00:12:35 da gravação, como vem indicado no corpo da motivação] relativo a um episódio em que terá sido ameaçada por si, com uma ‘imagem’ ou ‘santa’ – supostamente, refere-se à matéria de facto do ponto 9 dos factos provados – o arguido refere, em ‘comentário’ ao segmento transcrito, ter a testemunha D... dito que a discussão estava a ser entre si e o arguido, que a assistente se meteu na discussão e que o arguido levantou a ‘santa’ sem nunca dizer nada, quando a assistente declarou que ele também lhe disse que não prestava para nada, que era uma porca e que lhe dava com a ‘santa’.

Apesar de qualificar o depoimento da testemunha D... [filha da assistente] como claramente parcial, interessado e vingativo, dado o mau relacionamento que, na opinião da testemunha, tinham, o arguido socorre-se dele para apontar uma contradição com as declarações da assistente e assim as descredibilizar, o que não deixa de ser estranho.

Acontece que a Mma. Juíza a quo, na motivação de facto, qualificou o depoimento da testemunha como seguro, coerente, sereno e merecedor de credibilidade, até porque afirmou, de forma espontânea, nunca ter tido bom relacionamento com o arguido.

Por outro lado, os segmentos do depoimento da testemunha que o arguido transcreveu, relacionados com o episódio [de 00:04:27 a 00:07:03 e de oo:34:41 a 00:35:37 da gravação, como vem indicado no corpo da motivação] não afastam a possibilidade de este este, como afirmou a assistente, lhe ter dirigido palavras injuriosas, na medida em que o que a testemunha disse foi que, que estava a discutir com o arguido, que estava a ser insultada por ele e que, a mãe meteu-se no meio, o que significa que passou a tomar parte na discussão.

É pois evidente que as declarações da assistente e o depoimento da testemunha são coincidentes quanto ao fundamental do episódio a que se referem, a ameaça de agressão com a imagem.

O arguido aponta uma segunda contradição, agora entre as declarações da assistente, relativamente ao segmento das declarações de 00:26:42 a 00:32:22 da gravação [como vem indicado no corpo da motivação] onde ela relata que o arguido, à frente da testemunha E... e de U... , e o segmento do depoimento da testemunha E... [00:02:04 a 00:03:21, como vem indicado no corpo da motivação], afirmando que o tempo e o lugar dos acontecimentos relatados pela assistente são diferentes dos indicados pela testemunha.

Mais uma vez o arguido lança mão de um depoimento que considera não merecer qualquer credibilidade – conclusão XXIV – para demonstrar a falta de consistência das declarações da assistente, eventualmente relacionadas com a matéria do ponto 25 dos factos provados.

Acontece que no segmento das declarações da assistente esta não refere o tempo e o local onde o arguido a chamou de ladra e disse não saber se a filha era dele, sendo o arguido quem afirma, em ‘comentário’ ao segmento, que a assistente situa os factos na florista (...) , e apenas do segmento do depoimento consta que a testemunha situa os factos na funerária, sendo certo que, consta do ponto 5 dos factos provados – um dos poucos que não foi objecto de impugnação – que a assistente foi funcionária e sócia da agência funerária e florista que é explorada pelo arguido existindo, portanto, um único estabelecimento (cfr. ponto 39 dos factos provados, igualmente não impugnado).

Assim, também aqui não descortinamos contradição relevante. 

ii) Argumenta também o recorrente que a assistente afirma ter sido chamada de puta, vaca e cabra mas que não contextualiza as situações no espaço e no tempo.

Lidos os factos provados da sentença, neles não detectámos a palavra cabra, como dirigida pelo arguido à assistente (cfr. pontos 14 e 25 dos factos provados) sendo certo que também na acusação não lhe era imputada.

Quanto ao mais, dada a especificidade da conduta típica pressuposta pelo preenchimento do tipo do crime de violência doméstica, que conduz à sua qualificação como crime habitual, parece-nos evidente que, sobretudo quando praticado em meio familiar, a exigência de concretização, no espaço e no tempo, de cada conduta tem que ser perspectivada com alguma flexibilidade sob pena de impunidade, pela prática de tais condutas, sem que, contudo, possa, em caso algum, colocar-se em risco o efectivo exercício do direito de defesa do arguido.

Aliás, o art. 283º, nº 3, b) do C. Processo Penal, se impõe que da acusação conste, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos fundamentadores da aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, já não impõe, sob a mesma cominação, a indicação do lugar e do tempo da prática dos factos, dispensando-a, em caso de impossibilidade.

Ora, lendo os pontos 14 e 25 dos factos provados, cujo conteúdo se refere a palavras e expressões injuriosas dirigidas pelo arguido à assistente, verificamos que têm concretização no tempo, menos precisa, no primeiro caso, mais precisa, no segundo, sendo certo que, do ponto 25 consta o exacto local onde ocorreram os factos.

Também o arguido aponta falta de concretização no que respeita às discussões e agressões relatadas pela assistente, mas não é exactamente isso o que decorres dos próprios segmentos de tais declarações que seleccionou. É verdade que a assistente reconhece, várias vezes, não poder indicar o dia preciso de cada ocorrência, mas sempre as situou dentro de determinados períodos de tempo e a sua localização.

iii) Para terminar, as referências feitas ao registo de mensagens trocadas, supõe-se, entre o arguido e a assistente, e ao registo de mensagens trocadas entre o arguido e outra filha da assistente, não são entendíveis, e a restante argumentação do arguido reconduz-se a meros comentários e opiniões pessoais sobre a credibilidade das declarações e depoimentos valorados pelo tribunal a quo.

Uma palavra apenas para a referência feita, se bem que em termos apenas teóricos, à presença do princípio constitucional da presunção de inocência, na formação da convicção do tribunal.

Na verdade, este princípio assume, no julgamento penal, a sua máxima relevância com o princípio in dubio pro reo, que dele decorre e que visa dar resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao juiz que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido. Assim, se produzida a prova, subsiste na mente do julgador um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se-lhe proferir uma decisão favorável ao arguido. Se, pelo contrário, a incerteza não existe, se a convicção do julgador foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.

Na fase de recurso, a demonstração da violação do pro reo passa pela sua notoriedade, aferida pelo texto da sentença, devendo, por isso, resultar dos termos desta, de forma clara e inequívoca, que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.

A dúvida relevante para este efeito não é, no entanto, a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, em conformidade com a apreciação que dela, por si [recorrente], foi feita, mas antes, a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada.

Pela sentença recorrida, muito particularmente, pela sua motivação de facto, não vemos que a Mma. Juíza a quo tenha ficado na dúvida quanto aos factos, impugnados pelo recorrente, que considerou provados. Pelo contrário, na motivação de facto mostra-se claramente exposto o processo lógico que conduziu à certeza alcançada sobre os mesmos, e também não descortinamos qualquer razão objectivamente válida para entender que a Mma. Juíza deveria ter permanecido numa qualquer dúvida inultrapassável.

Não se mostra, portanto, violado o pro reo e por via dele, o art. 32º, nº 2 da Lei Fundamental e a presunção de inocência.

3. Em conclusão do que antecede, fundando-se a convicção da Mma. Juíza a quo na imediação da prova, não existindo razões objectivas para questionar a versão dos acontecimentos dada pela assistente e, de alguma forma, corroborada pelas testemunhas D... e E... , torna-se evidente que os meios de prova especificados pelo recorrente são insusceptíveis de permitirem e, muito menos, de imporem, decisão diversa da recorrida, que os pontos de facto sindicados pelo recorrente, têm pleno suporte na prova produzida e valorada em estrita obediência ao princípio previsto no art. 127º do C. Processo Penal pelo que, sendo consequência de tudo isto que o arguido, pela via do recurso, pretendeu apenas substituir a convicção alcançada pelo tribunal recorrido, pela sua própria convicção, não pode proceder a sua pretensão de ver modificada a decisão proferida sobre a matéria de facto pela falta de verificação dos respectivos pressupostos.

Tem-se, pois, por definitivamente fixada a matéria de facto nos exactos termos em que o foi pela 1ª instância.


*

Da atipicidade da conduta

4. Alega o arguido – conclusões XXX a XXXIV, XLII e XL a XLIV – que não se tendo provado que os factos praticados tenham tido outras motivações, extensão ou consequências que não as que resultaram provadas, a sua conduta apenas revela uma situação de conflito e não assume a gravidade necessária para concluir que a assistente numa posição de vítima, mais ou menos, permanente, com sujeição a um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, no seio da sociedade conjugal, não estando assim verificados os pressupostos do crime por cuja prática foi condenado.

Vejamos.

O crime de violência doméstica, que tutela o bem jurídico saúde física, psíquica, mental e moral enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana (cfr. Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 512 e Plácido Conde Fernandes, Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, Estudos, Revista do CEJ, 1º Semestre 2008, Número 8, Especial, pág. 305 e Nuno Brandão, A tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, nº 12 Especial, Setembro/Dezembro, 2010, pág. 15 e ss.), tem como elementos constitutivos do respectivo tipo, na parte em que agora interessa:

[Tipo objectivo]

- A inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou ao ex-cônjuge;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência de que o mesmo é censurável.    

A lei não define o conceito de maus tratos físicos ou psíquicos, esclarecendo apenas que nele se integram castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais. Assim, incluem-se neste conceito todas as condutas agressivas que visam atingir directamente o corpo do ofendido, v.g., bofetadas, murros, pontapés, joelhadas, puxões de cabelos, empurrões, apertões de braços e pancadas ou golpes desferidos com objectos portanto, acções normalmente preenchedoras do tipo do crime de ofensa à integridade física. Integram o conceito de maus tratos psíquicos, entre outras acções, as injúrias, as críticas destrutivas e/ou vexatórias, as ameaças, as privações da liberdade, as restrições e perseguições e as esperas não consentidas.

A qualificação de uma determinada acção como mau trato não depende da sua aptidão para preencher um outro tipo de ilícito. Por outro lado, a aptidão de uma determinada acção para preencher o conceito de mau trato não significa, sem mais, a verificação do «crime de violência doméstica, tudo dependendo da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto» (Nuno Brandão, ob. cit., pág. 19).  

Brevitatis causa, diremos que o quadro resultante da matéria de facto provada demonstra a assunção pelo arguido de condutas repetidas no tempo, com violência, física e psicológica, de média e baixa intensidade relativas, contra a assistente, durante o casamento, condutas livre e intencionalmente realizadas por aquele, sabedor de que assim não podia actuar por tanto a lei proibir.

Embora seja média e baixa a intensidade da violência empregue em cada concreta conduta, quando consideradas em conjunto, o padrão de comportamento, a imagem global do facto – que é a que verdadeiramente importa na violência doméstica – que delas resulta caracteriza a relação de domínio do agente sobre a vítima, e tem aptidão para afectar, relevantemente, a dignidade da assistente enquanto ser humano, por via da afectação da sua saúde física, psíquica e moral.

Deste modo, sempre com ressalva do respeito devido, contrariamente ao pretendido pelo arguido, dúvidas não subsistem de que, face à matéria de facto provada, a sua conduta preenche o tipo, objectivo e subjectivo, do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a) e 2 do C. Pena, por cuja prática foi condenado nos autos.

Por outro lado, a pena de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na respectiva execução por igual período, sujeita a condição de natureza pecuniária, decretada pela 1ª instância [até porque, situada bem próximo do limite mínimo da moldura penal], respeita os critérios aplicáveis para a sua escolha e determinação, previstos nos arts. 40º e 71º do C. Penal.

Improcedem assim, as conclusões formuladas pelo arguido na motivação.

B) Recurso da assistente

Da incorrecta fixação do montante da indemnização

            5. Alega a assistente – conclusões D), H) a J) e L) – que sendo o arguido o único responsável pelos danos que sofreu, exponenciados por terem as condutas deles causadoras sido presenciadas pelas suas filhas menores, atenta a condição patrimonial do demandado, a desvalorização monetária e a jurisprudência dos tribunais superiores, sob pena de violação do disposto nos arts. 129º do C. Penal e 483º, 496 e 566º do C. Civil, deve a indemnização ser fixada entre € 2.000 e € 4.000.

            Vejamos.
A indemnização por perdas e danos emergentes da prática de crime é regulada pela lei civil (art. 129º do C. Penal).
A matéria de facto provada definitivamente fixada nos termos sobreditos permite concluir que estão verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, previstos no art. 483º, nº 1 do C. Civil, pelo que, se tornou o recorrente sujeito passivo da obrigação de indemnizar. 
In casu, estão apenas em causa danos não patrimoniais os quais, pela sua própria natureza, não são avaliáveis em dinheiro. Por isso, a indemnização a atribuir por tais danos visa apenas compensar o lesado pela sua ocorrência, devendo ser fixada equitativamente, com ponderação do grau de culpa do agente e da situação económica deste e do lesado, além de outras circunstâncias relevantes (arts. 494º e 496º, nº 4 do C. Civil).
Não pode, no entanto, esquecer-se que, em qualquer caso, estaremos sempre perante uma sanção civil.
Vem provado que a assistente, em consequência das repetidas condutas do arguido, objectivadas em agressões físicas e psicológicas, de média e baixa intensidade, sofreu dores, como é facto notório, medo, tristeza, vergonha, desgosto e humilhação, além do mais, por ter sido posta em causa a sua honra de mulher casada, e mágoa por se ver diminuída aos olhos de sua filha mais nova, que presenciou episódios de violência.
Os danos não patrimoniais verificados são pois, variados e significativos, o recorrente agiu com dolo intenso e persistente, sendo portanto, considerável o grau de culpa.
Por outro lado, não pode deixar de considerar-se remediada mas equilibrada, a sua situação económica e financeira.
Tudo ponderado, considera-se mais adequada, por melhor realizar a justiça do caso concreto, na compensação de tais danos, a indemnização de € 1.500.

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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em:

A) Negar provimento ao recurso do arguido.

            B) Conceder parcial provimento ao recurso da assistente e, em consequência:

            1. Revogam a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido e demandado civil no pagamento da quantia de € 850 à assistente e demandante civil.

            2. Condenam o arguido e demandado civil no pagamento da quantia de € 1.500 (mil e quinhentos euros) à assistente e demandante civil, pelos danos não patrimoniais sofridos.

            C) Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.

            D) O arguido suportará as custas do respectivo recurso, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs. (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

E) Custas do recurso da assistente e demandante civil, por demandado civil e demandante civil, na proporção do decaimento (arts. 523º do C. Processo Penal e 527º, nºs 1 e 2 do C. Processo Civil).


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Coimbra, 25 de Outubro de 2017


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro – adjunta)