Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1425/06.3YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: ABÍLIO RAMALHO
Descritores: QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Data do Acordão: 10/25/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DENEGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS: 38º, N.º 2, AL. B), DA C. R. P.; 2º, N.º 1, AL. A) E 2, AL. F) E 22º, AL. C) DA L. IMPRENSA (L. 2/99, DE 13/1); 6º, AL. C) E 11º, N.º 1, DO E. J. (L.1/99, DE 13/1); 371º, DO C. PENAL; 86º, N.º 4, AL. B), DO C. P. PENAL
Sumário: I- O objecto da proibição (violação do segredo de justiça) não é o facto histórico mas apenas o conteúdo dos actos processuais

II- Uma denúncia anónima carece de valor de acto processual.

Decisão Texto Integral: Acordamem conferênciana Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

1 – Por impulso do Ministério Público junto da comarca de Coimbra, no âmbito do processo de inquérito em referência tendente à investigação de pretensa infracção criminal de violação de segredo de justiça inerente ao Inquérito n.º 180/05.9JACBR, suscitou o Ex.mo Juiz de Instrução Criminal – pelo processo incidental prevenido no art.º 135.º, n.º 3, do CPP – a quebra do segredo profissional invocado pelo Ex.mo Jornalista (do Diário de Coimbra) A..., [cuja legitimidade formal e substancial reconheceu, (cfr. art.º 135.º, n.º 2, do CPP)], tocantemente à identificação da fonte informativa dos elementos por si noticiados em artigo publicado na edição de 29 de Setembro de 2005 do Diário de Coimbra, com o objecto investigatório do identificado Inquérito 180/05.9JACBR correlacionados, cuja revelação é tida por essencial ao desiderato processual, (cfr. despachos certificados a fls. 5/7 e 8, nesta sede tidos por transcritos nos respectivos dizeres).
2 – Nesta instância, o Ex.mo Procurador-geral-adjunto emitiu parecer no sentido do deferimento da pretensão formulada, (vd. peça processual de fls. 19, de igual modo tida por reproduzida).
3 – O Sindicato dos Jornalistas (pelo respectivo Conselho Deontológico), a quem, em conformidade com o preceituado no art.º 135.º, n.º 5, do CPP, foi concedida oportunidade para o efeito, pronunciou-se – com esclarecida e exaustiva fundamentação – pela denegação da enunciada petição, (vide douto parecer junto a fls. 23/36).
4 – Observadas as pertinentes formalidades legais, nada obsta à respectiva apreciação.
II – FUNDAMENTAÇÃO

1 – Com o devido respeito por diverso entendimento, cremos que a notícia veiculada pelo Diário de Coimbra, na edição de 29 de Setembro de 2005, subscrita pelo Ex.mo Jornalista A..., não colide minimamente com o segredo de justiça inerente e a qualquer processo criminal, designadamente ao referenciado Inquérito 180/05.9JACBR, e que, consequentemente, se não justifica a medida de excepção de quebra do supremo direito/dever de sigilo profissional sobre a respectiva fonte, salvaguardado pelos normativos 38.º, n.º 2, al. b), da Constituição; 2.º, ns. 1, al. a), e 2, al. f), e 22.º, al. c), da Lei de Imprensa, aprovada pela Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro; 6.º, al. c), e 11.º, n.º 1, do Estatuto do Jornalista, aprovado pela Lei n.º 1/99, de 13 de Janeiro; e 6.º do Código Deontológico do Jornalista, aprovado em Assembleia-geral do Sindicato dos Jornalistas, em 4 de Maio de 1993.
Senão vejamos:
A figura-de-delito de violação de segredo de justiça – referente a processo criminal – ínsita no dispositivo 371.º do Código Penal, é tipificada pelo seguinte modo:
1 - Quem ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada para o caso pela lei do processo.
2 – […].
Em função de tal descrição típica – complementada pelo texto normativo do art.º 86.º, n.º 4, al. b), do C. Processo Penal –, só relevará, pois, criminalmente a revelação pública do teor de acto de processo penal que se encontre coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral.
Por conseguinte, importará, em primeira linha, aferir se pela publicação do artigo jornalístico em questão se revela ou dá conhecimento do teor de qualquer acto processual – ou seja, do conteúdo e termos desse acto –, entendido como a acção humana voluntária de um sujeito processual ou de entidade estranha à relação processual (v.g. o denunciante) que a lei utiliza para a constituição, desenvolvimento, modificação ou extinção dessa mesma relação processual (vide M. Simas Santos e M. Leal-Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, I Volume, 2.ª edição, 2004, pag. 454), posto que objecto da proibição não é o facto histórico (os facto criminosos presuntivamente ocorridos), mas apenas o conteúdo dos actos processuais, (vide A. Medina de Seiça, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, pag. 650).
É o seguinte o enunciado de tal peça jornalística:
Inquérito aberto na sequência de denúncia de munícipe de Coimbra às autoridades
PJ investiga urbanismo da Câmara e financiamento da Académica
Averiguações sobre actividade de José Eduardo Simões como director municipal do urbanismo e presidente da Académica envolvem investimentos do grupo Amorim e do promotor da Urbanização Jardins do Mondego
A Polícia Judiciária (PJ) está a investigar eventuais promiscuidades nas relações entre alguns promotores imobiliários, a Académica e a Câmara de Coimbra. Fonte da PJ confirmou ao Diário de Coimbra que o inquérito tem na mira, nomeadamente, a actividade paralela de José Eduardo Simões como director municipal do urbanismo e presidente da Associação Académica de Coimbra/Organismo Autónomo de Futebol. Em causa pode estar, designadamente, a ligação entre vários empreendimentos imobiliários licenciados pela Autarquia de Coimbra e o financiamento da equipa de futebol profissional da Académica. «Não comento nada disso», disse ao Diário de Coimbra o presidente da Câmara, Carlos Encarnação. Também não foi possível ouvir José Eduardo Simões sobre o assunto.
A investigação policial foi desencadeada por uma carta remetida por um munícipe de Coimbra, em Abril deste ano, para a PJ, Procuradoria-Geral da República e Inspecção Geral da Administração do Território. A missiva dá conta dos contornos de vários projectos imobiliários aprovados pela autarquia e das relações mantidas entre os respectivos investidores e a Académica. São abordados, entre outros projectos, a remodelação do antigo Estádio Municipal de Coimbra e a construção do complexo Eurostadium e da Urbanização Jardins do Mondego. O Diário de Coimbra tentou ouvir, sem êxito, o promotor desta urbanização, Emídio Mendes, assim como o responsável do grupo Amorim que tem dado a cara pelo Eurostadium, Leal Barreto.
Várias testemunhas, nomeadamente, com actividade profissional nos serviços de urbanização da autarquia, foram já ouvidas pelos investigadores da Directoria de Coimbra da PJ. A esta caberá enviar ao Ministério Público, em data ainda desconhecida, o relatório final do inquérito.
A PJ procura apurar a credibilidade das suspeitas levantadas pela referida carta, enviada sob anonimato (realce nosso), que apontam para o tratamento privilegiado que a Direcção Municipal de Administração do Território, liderada por José Eduardo Simões, alegadamente daria aos promotores dos projectos imobiliários referidos, para garantir financiamento para a Académica. Recorde-se, a propósito, que um semanário de âmbito nacional noticiou que a Briosa, na época futebolística de 2004/2005, tinha o quarto orçamento mais alto da Super liga, logo a seguir aos dos três maiores clubes do futebol português. Na altura, José Eduardo Simões desmentiu esta informação, alegando que o estudo em que se baseava a notícia não tinha tido em conta algumas Sociedades Anónimas Desportivas.

Jardins do Mondego

Notícias recentes têm merecido a atenção da Polícia Judiciária e ajudam a perceber o que está em causa na investigação em curso: É o caso de textos publicados no Brasil e em Portugal sobre o atacante da Académica Marcel, indicando que 75% a 80% do passe do jogador, que o Cruzeiro Esporte Clube queria contratar, pertenciam a Emídio Mendes, promotor da Urbanização Jardins do Mondego.
Dia 4 deste mês, o presidente da Académica, José Eduardo Simões, chama os jornalistas para lhes dizer, sem permitir perguntas, que a Briosa é que é dona de 80% do passe do jogador brasileiro, pertencendo os restantes 20% ao clube em que o brasileiro alinhava anteriormente. «Estamos a pagar o jogador através de um empréstimo bancário cuja letra está avalizada por mim». Esta é a realidade, o resto é especulação, acrescentou o presidente da Briosa.
Na Urbanização Jardins do Mondego, Emídio Mendes, um empresário que fez fortuna no Brasil e a quem se atribui um fundo de investimento para a representação de futebolistas, construiu oitavos pisos em cinco torres que não estavam previstos no respectivo projecto, mas permitiriam a criação de T5 duplexes cujo valor de venda rondaria os 900 mil euros (180 mil contos) – caso denunciado pelo Diário de Coimbra a 3/4/2005.
Além de não estarem no projecto aprovado pela autarquia, ainda sob a liderança do socialista Manuel Machado, aqueles pisos suplementares fariam a urbanização ultrapassar o índice máximo de construção permitido pelo Plano Director Municipal (PDM). A proposta de embargo da obra, feita por uma técnica da câmara, causou agitação nos serviços dirigidos por José Eduardo Simões, mas o vereador do urbanismo, João Rebelo, quando confrontado com o assunto pelo Diário de Coimbra, a 2 de Abril, diz que já tinha ordenado o embargo nessa mesma semana.
Na última segunda-feira, é afirmado na reunião semanal do executivo que o prazo de seis meses do embargo expiraria hoje; no dia seguinte, o presidente da Câmara, Carlos Encarnação, anuncia que a demolição dos oitavos pisos será feita nos próximos três meses.
O Diário de Coimbra também deu conta, a 14 de Abril, de que parte de um edifício da mesma urbanização estava implantada numa área classificada no PDM como zona verde. Na altura, João Rebelo e o seu antecessor, o socialista João Silva, refutaram responsabilidades sobre a suposta irregularidade.
A PJ estará a tentar apurar, entre outras coisas, as razões que terão levado Emídio Mendes a comprar bilheteiras de jogos da Académica em Coimbra, conforme referiu o autor da carta que desencadeou a investigação da PJ.

Estádio e Eurostadium

A remodelação do antigo Estádio Municipal de Coimbra e a posterior aprovação do empreendimento Eurostadium, na Praça dos Heróis do Ultramar, suscita interrogações às autoridades sobre as relações entre autarquia, a Académica e o grupo Amorim – que tem negociado empreendimentos imobiliários com outros clubes de futebol e intervém também, segundo notícia do semanário Expresso, na representação de atletas, consultoria de marketing desportivo, etc.
No âmbito do acolhimento do Euro 2004, o anterior executivo municipal de Coimbra decide remodelar o estádio, com custos asfixiantes (37 milhões de euros) para a autarquia e consigna a obra no final do mandato. Para compensar estes custos, o executivo que lhe sucede abre um concurso público internacional para a construção de um empreendimento junto ao estádio, que determina que os concorrentes têm de entregar contrapartidas ao município: cinco milhões de euros em numerário e bens imóveis no valor de cerca de 30 milhões (três complexos de piscinas, um pavilhão desportivo e um parque de campismo). Com um prazo de três meses para a entrega de propostas, só uma empresa do grupo Amorim aparece no concurso. O ex-vereador socialista João Silva diz entretanto em público que o grupo Amorim propusera ao executivo anterior um projecto equivalente ao Eurostadium – que teria sido recusado –, sugerindo que o concurso fora elaborado à medida dos interesses do grupo Amorim.
Este fica com o direito de superfície de uma parte da Praça dos Heróis do Ultramar onde constrói um centro comercial Dolce Vita, um grande parque de estacionamento e 200 apartamentos que deveriam gerar uma receita próxima dos 15 milhões de euros. Mas estes T0, chamados "studio residence" e equiparados pela autarquia e o grupo Amorim a uma espécie de aparthotel, são construídos em zona que o Plano Director Municipal (PDM) destina a equipamentos de uso público. Facto que leva um munícipe, Paulo Antunes, a apresentar queixa às autoridades contra a câmara e a construtora do grupo Amorim. O MP acolhe os argumentos da queixa, considerando que houve violação do PDM. O processo aguarda decisão do Tribunal Administrativo de Coimbra, há cerca de um ano.
A carta enviada às autoridades por um outro munícipe – que desencadeia as actuais investigações da Judiciária – salienta, entre outras alegações, a coincidência de ser o Casino da Figueira da Foz, da Sociedade Figueira Praia, (grupo Amorim), o principal patrocinador da Briosa. Informação, entretanto, desactualizada, já que, na presente época futebolística, as camisolas da Académica exibem o símbolo Dolce Vita – do mesmo grupo económico. Foi também à Sociedade Figueira Praia que a direcção da Académica entregou a gestão do seu Bingo, que vai entrar em funcionamento no Estádio Cidade de Coimbra.
Como claramente se apreende do referido texto, as investigações policiais de que se deu nota foram despoletadas, fundamentalmente, por uma denúncia anónima, acto em si, por tal sorte – desconhecimento da identidade do respectivo emitente –, sem qualquer valor jurídico-processual, e, por isso, juridicamente inexistente – ou, pelo menos, nulo – como meio válido de transmissão do conhecimento de crime público, (cfr. arts. 241.º, parte final, 244.º e 246.º, do CPP, e, ainda, 220.º, 294.º e 295.º, do Código Civil).
Por conseguinte, não possuindo valor de acto processual, é apodíctico que o respectivo teor não justificará qualquer especial protecção, particularmente a inerente ao segredo de justiça, cujos conteúdo e limites se encontram definidos no citado normativo 86.º, n.º 4, máxime al. b), do CPP.
Decorrentemente, não se nos apresentando como juridicamente sustentável a formulação de qualquer juízo de violação de segredo de justiça – já que se não vislumbra a revelação do conteúdo de outro acto processual do Inquérito em referência –, é manifestamente inútil, e como tal proibida, (cfr. art.º 137.º do C. P. Civil), ou pelo menos desproporcionada, (art.º 135.º, n.º 3, do CPP), a sujeição do identificado Ex.mo Jornalista à prestação de testemunho com quebra do sigilo profissional sobre a identidade da fonte informativa sobre o teor da referida denúncia anónima.

III – DECISÃO

Destarte – sem outras considerações por inócuas/despiciendas –, delibera-se a denegação da solicitada determinação de quebra do sigilo profissional do Ex.mo Jornalista A... quanto à identificação/revelação da sua fonte informativa sobre o teor da denúncia anónima que esteve na base da investigação policial inerente ao Processo de Inquérito n.º 180/05.9JACBR.
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Sem tributação.
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Legais notificações, também ao Sindicato dos Jornalistas.