Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
431/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: RESPONSABILIDADE DO PRODUTOR
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: DEC. LEI N° 383/89, DE 6 DE NOVEMBRO
Sumário:

I - A responsabilidade do produtor, consagrada no Dec. Lei n° 383/89, de 6 de Novembro, é uma responsabilidade objectiva, já que o mesmo é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação (art. 1º).
II - O momento para se aferir da existência ou inexistência de defeito é o da entrada do produto em circulação (art. s 4°, n.º1, e 5.°, al. b).
III - Apenas são ressarcíveis os danos resultantes de morte ou lesão pessoal e os danos em coisa diversa do produto defeituoso, desde que seja normalmente destinada ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente esse destino.
Deve entender-se por uso ou consumo privado, a utilização, feita pelo consumidor da coisa destruída ou defeituosa, para um fim privado, pessoal, familiar ou doméstico, por contraposição a um fim profissional, ou comercial.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

AA, intentou, em 19/07/2001, pelo Tribunal da comarca de Albergaria-a-Velha, acção com processo ordinário contra BB, e DD, com os seguintes fundamentos, em síntese:
Em cumprimento de contrato de seguro, do tipo mercadorias transportadas, celebrado com EEª, liquidou prejuízos sofridos por esta no valor de 5.528.615$00, encontrando-se, assim, sub-rogada nos direitos daquela.
Tais prejuízos cifraram-se na perda total de mercadoria transportada pela segurada (gelados) do estrangeiro para uma empresa portuguesa, em semi-reboque frigorífico, este de marca representada em Portugal pela 2 ª ré, adquirido em estado novo pela segurada à 1ª ré, havia 4 meses.
A mercadoria deteriorou-se em virtude de o sistema de frio ter avariado devido a defeito de construção da caixa isotérmica onde era transportada a carga.
Termina, pedindo que, na procedência da acção, sejam as rés sejam condenadas a pagar-lhe a quantia de 5.528.615$00, acrescida de juros à taxa legal desde a citação.
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A ré BB contestou, por excepção, invocando a caducidade do direito de a EE e de a ré accionarem a contestante, nos termos dos artºs 921º, nº 4, do C.Civil e 12º, nº 3, da Lei nº 24/96, de 31 de Julho, e a ilegitimidade da autora, e por impugnação, defendendo a improcedência da acção, em virtude de não ter sido qualquer defeito ou avaria da caixa isotérmica por ela fabricada que deu origem aos supostos prejuízos e ao pagamento da indemnização referida na p.i.


Também a ré DD contestou, por excepção, invocando a prescrição da acção e a sua ilegitimidade, e por impugnação, pugnando pela improcedência da acção, uma vez que a responsabilidade do transporte da mercadoria compete à transportadora EE, Ldª, e a obrigação de reparação do equipamento competia à FF.
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A autora respondeu à matéria das excepções, defendendo a sua improcedência.
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No despacho saneador foram julgadas improcedentes as excepções de ilegitimidade activa e passiva da ré DD e a da prescrição da acção, e julgada procedente a da caducidade do direito da acção contra a ré BB, com absolvição desta do pedido. Sem recurso.
Foi organizada a selecção dos factos assentes e dos que constituem a base instrutória. Sem reclamações.

Procedeu-se ao julgamento, com gravação da prova e, decidida a matéria de facto controvertida, sem reclamações, foi proferida a sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré DD a pagar à autora a quantia de 27.227,46 euros.
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Inconformada, apelou a ré, rematando a sua alegação da forma seguinte:
1- Não obstante encontrar-se provado que: a) A organização FF tem disponível um serviço de assistência técnica durante 24 horas por dia, através da sua rede interna de serviços técnicos, que funciona em toda a Europa, estando a transportadora e segurada da apelada na posse de tal informação, conhecendo o modo de contacto dos serviços internacionais que prestam assistência; b) Em 29.07.2000 a temperatura atingia somente o valor de -11º C e nos dias 30 e 31 continuou a descer até aos 2,3º C; c) Pelas 22 horas do dia 29-07.2000 e depois de tirar uma impressão de frio, o motorista do semi-reboque observou que durante todo o dia o frigorífico não atingiu a temperatura pedida no CMR; d) Só então aquele motorista chamou a assitência FF


King 24h que, através da intervenção efectuada por um seu agente credenciado assistiu ao reboque pelas 04 horas do dia 30.07.2000; entendeu o Mmº Juiz “a quo” que a apelante deveria responder pelos prejuízos que resultaram do facto do equipamento apresentar defeito e que se traduziram na destruição da mercadoria que seguia na caixa isotérmica avariada.
2- O Mmº Juiz “a quo” decidiu contra a matéria dada como provada dado que, o facto do motorista da segurada da apelada só ter chamado a referida assistência FF apenas pelas 22 horas do dia 29 apesar de durante todo o dia ter observado que o frigorífico não atingiu a temperatura pedida no CMR – quando sabia que a mercadoria deveria viajar à temperatura de -25º C que constava no CMR, e não obstante saber igualmente que a organização FF tem disponível um serviço de assistência técnica durante 24 horas por dia, através da sua rede interna de serviços técnicos, que funciona em toda a Europa, estando a transportadora e segurada da apelada na posse de tal informação, conhecendo o modo de contacto dos serviços internacionais que prestam assistência -, conduz à conclusão que a segurada da apelada contribuiu, ou pode ter contribuído, de foram determinante para o dano.
3- Acresce que, apesar de ter resultado demonstrado que após a intervenção do agente credenciado da FF o equipamento não se encontrava em condições de prosseguir viagem até ao seu destino por instruções da segurada da apelada, não retirou o Mmº Juiz as correctas ilacções de tais factos, designadamente do sentido de apurar se o equipamento não tivesse prosseguido viagem se se teria produzido o dano.
4- Mesmo aplicando DL. Nº 383/89, de 06 Nov., não poderá com a exigível certeza jurídica, concluir-se pela existência de nexo de causalidade entre o defeito e o dano já que, não resultou provado que a conduta da segurada da apelada não tenha contribuído determinantemente para causar o dano, quer pelo facto do seu motorista só ter chamado a assistência FF apenas pelas 22 horas do dia 29 apesar de durante todo o dia ter observado que o frigorífico não atingiu a temperatura pedida no CMR, quer pela circunstância do motorista ter prosseguido a viagem até ao seu destino por instruções da segurada da apelada não obstante o agente credenciado da FF ter entendido que o equipamento não se encontrava em condições de prosseguir viagem até ao seu destino em perfeitas condições.



5- Resulta claramente provado nos presentes autos que não foram tomadas todas as medidas que competiam ao motorista da segurada da apelada quanto à escolha, manutenção e uso do equipamento de frio, nem sequer foram acatadas as instruções especiais que se impunham porque, havendo o conhecimento de que o equipamento de frio não se encontrava em condições de assegurar que as mercadorias transportadas chegariam ao respectivo destinatário em perfeito estado, apesar disso, conforme matéria assente, a segurada da apelada deu instruções ao motorista para prosseguir viagem.
6- Recaía sobre a autora/apelada, nos termos do disposto no artº 342º, nº 1 do C.Civil, o ónus da prova quer do dano, quer do defeito do produto, quer ainda do nexo causal entre o defeito e o dano (cfr. artº 4º do DL nº 383/89, de 06 de Nov.), beneficiando a apelante, enquanto representante do produtor, da presunção de segurança dado que nada resultou provado no sentido do produto não ter todas as características para poder ser comercializado.
7- Nos termos da al. b) do arrtº 5º do D.L. nº 383/89, a avaliação da segurança legitimamente esperada do produto é o momento da sua entrada em circulação, o que quer dizer que “para determinar se um produto é ou não defeituoso o juiz não pode ater-se ao momento da ocorrência do dano ou do próprio julgamento, mas deve reportar-se à data da sua colocação em circulação” (in Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, 1990, pág. 644). Assim, encontrando-se provado que o frigorífico manteve a temperatura de -26º C durante todo o dia 28.07.2000 até à 1 hora do dia 29.07.2000, o Mmº Juiz “a quo” apenas podia ter concluído que o equipamento não tinha defeito quando entrou em circulação.
8- A apelada não provou que o defeito existia no momento em que o equipamento FF entrou no circuito comercial, e não sobreveio depois por acção de terceiros ou da própria segurada da apelada.
9- Acresce que, conforme previsto no artº 8º, nº 1, são ressarcíveis os danos resultantes de morte ou lesão pessoal e os danos em coisa diversa do produto defeituoso, desde que seja normalmente destinada ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente este destino. Ora, conforme facto provado, a mercadoria destruída que seguia na caixa isotérmica avariada tinha como destinatário a firma “GG”, pelo que, haverá que concluir que os danos em causa não são ressarcíveis porque, como decorre da firma ou denominação


social da destinatária da mercadoria, os gelados destinavam-se a uma actividade comercial e não ao mero uso ou consumo privado.
Por tudo o exposto, a sentença recorrida violou várias normas jurídicas, nomeadamente as constantes dos artºs 4º, 5º, al. b) e 8º, nº 1, do D.L. nº 383/89, de 6 de Nov., 342º, nº 1, do C. Civil, 156º, nº 1, 158º, nº 1, 515º, 653º, nº 2, 655º, nº 1 e 664º do C. P. Civil.
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A autora contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
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Corridos os legais vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Na 1ª instância foi dado como provado o seguinte:
1 - A ré DD vendeu a BB, o equipamento de marca FF, modelo SL 200, nº de série 0695G3107, equipamento que, em 06/05/2000, a BB veio a instalar na galera semi-reboque frigorífico, marca Lecitrailer, modelo LTP-3 ES, ano de construção 2000, e que vendeu a EEª - Al. A) dos Factos Assentes.
2 - No exercício da sua actividade como seguradora a autora celebrou com a EE um contrato de seguro do ramo “Mercadorias Transportadas”, titulado pela apólice nº 71/5177797, nos termos do qual a autora garantia à sua segurada os riscos cobertos e descritos na apólice de transporte de mercadorias no veículo (galera) id. em A) – al. B).
3 - O veículo/galera supra referido saiu de Hepenheim a 28/07/00 com destino a Portugal, tendo chegado ao local de descarga em 31/07/00 – al. C).
4 - Em 02/08/00 procedeu-se à vistoria do camião e da mercadoria transportada no seu interior – al. D).
5 - O sistema de refrigeração do combinado aludido em A) tinha uma deficiência de fabrico – o motor da trampilha encontrava-se queimado, originando deficiências no sistema de descongelação das alhetas do evaporador, situação que provocou o bloqueio da instalação do frio e a avaria do sistema de refrigeração do combinado – al. E).



6 - A proprietária do semi-reboque aludido em A) efectuou o plano de revisões estabelecido pela marca para os seus veículos – al. F).
7 - No âmbito do contrato de seguro aludido em B) a autora liquidou à EE a quantia de 5.528.615$00 pelos danos na carga sofridos na sequência do transporte e avaria aludidos em C) e F) e que a esta foram reclamados pelo destinatário ou recebedor da mercadoria – al. G).
8 - No dia e local aludidos em C) o veículo/galera foi carregado de mercadoria composta de 33 paletes com 5940 embalagens de gelados “magnum double” – resp. p. 1º da Base Instrutória.
9 - A referida mercadoria tinha como destinatário a firma “GG”, sendo o local de descargas nos armazéns da Frisul – p. 2º.
10 - Ao iniciar-se a descarga da mercadoria transportada constatou-se que a temperatura da mercadoria era de -11º C e a da galera acusava a temperatura de -8º C – p. 3º.
11 - A mercadoria deveria viajar à temperatura de -25º C que constava no CMR – p.4º.
12 - Aquando da vistoria aludida em D) a máquina FF SL 200, instalada na galera, conforme descrito A), indicava a temperatura de -1,6º C
- p. 5º.
13 - Em 29/07/2000 a temperatura atingia somente o valor de -11º C e nos dias 30 e 31 continuou a descer até aos -2,3º C – p. 7º.
14 - A organização FF tem disponível um serviço de assistência técnica durante 24 horas por dia, através da sua rede interna de serviços técnicos, que funciona em toda a Europa, estando a segurada da autora de posse de tal informação, conhecendo o modo de contacto dos serviços internacionais que prestam assistência – p. 8º.
15 - O frigorífico da galera aludida em A) manteve a temperatura de -26º C durante todo o dia 28/07/2000 até à 1 hora do dia 29/07/2000 – p.9º.
16 - À 1 hora do dia 29/07/2000 o frigorífico apresentava o símbolo de descongelação com a temperatura de -16,5º C – p.10º.



17 - Durante todo o dia 29 o comportamento do motor de frio foi normal, apresentando por várias vezes, descongelações com temperatura negativa adequada para a função sem quaisquer sinais de avaria – p. 11º.
18 - Pelas 22 horas do dia 29, e depois de tirar uma impressão de frio, o motorista do semi-reboque observou que durante todo o dia o frigorífico não atingiu a temperatura pedida no CMR – p. 12º.
19 - Só então aquele motorista chamou a assistência FF 24 horas, que, através da intervenção efectuada por um seu agente credenciado, assistiu ao reboque pelas 4 horas do dia 30, sem quaisquer resultados. Nessa altura a série frigorífica SL 200 apresentava uma temperatura de -11º C – p. 13º.
20 - Após a intervenção do agente da FF, o motorista prosseguiu a viagem até ao seu destino – p. 16º.
21 - Por instruções da segurada da autora (por lapso diz-se da ré), ao serviço da qual exercia as suas funções – p. 17º.
22 - Os técnicos da FF, contactados pelo motorista em Bordéus, a 30/07/2000, verificaram a existência de avaria que não repararam por a mercadoria se encontrar chumbada pelos serviços alfandegários e porque era necessário retirar toda a mercadoria do interior da máquina de frio não dispondo o motorista de local adequado para a acondicionar durante o tempo necessário para o efeito – p. 18º.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de processo Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).

I - Nas conclusões 1 a 5 pretende a recorrente DD imputar a responsabilidade da deterioração da carga ao motorista da segurada da recorrida por só ter chamado a “Assistência FF 24 horas” pelas 22 horas do dia 29, apesar de durante todo o dia ter observado que o frigorífico não atingiu a temperatura de – 25º C


que constava do CMR, e por ter prosseguido a viagem não obstante o agente da FF ter entendido que o equipamento não se encontrava em condições de o fazer em perfeitas condições.
Na sentença recorrida entendeu-se, quanto a nós bem, que não resulta da matéria de facto que o motorista tenha actuado de forma negligente ou menos cuidada no transporte em apreço.

Recorda-se a matéria de facto que, com interesse para a decisão desta questão, se deu como provada:
A mercadoria deveria viajar à temperatura de -25º C, que constava do CMR; O frigorífico da galera manteve a temperatura de -26º C durante todo o dia 28/07/2000; Em 29/07/2000 a temperatura atingia somente o valor de -11ºC e nos dias 30 e 31 continuou a descer até aos -2,3ºC; À 1 hora do dia 29 o frigorífico apresentava o símbolo de descongelação com a temperatura de -16,5ºC; Durante todo o dia 29 o comportamento do motor de frio foi normal, apresentando, por várias vezes, descongelações com temperatura negativa adequada para a função sem quaisquer sinais de avaria; Pelas 22 horas do dia 29, e depois de tirar uma impressão de frio, o motorista do semi-reboque observou que durante todo o dia o frigorífico não atingiu a temperatura pedida no CMR; Só então o motorista chamou a assistência FF 24 horas, que, através da intervenção efectuada por um seu agente credenciado, assistiu ao reboque pelas 4 horas dia 30, sem quaisquer resultados. Nessa altura a série frigorífica SL 200 apresentava uma temperatura de -11ºC; Após a intervenção do agente da FF, o motorista prosseguiu a viagem até ao destino, por instruções da segurada da autora; Os técnicos da FF, contactados pelo motorista em Bordéus, a 30/07/2000, verificaram a existência de avaria que não repararam por a mercadoria se encontrar chumbada pelos serviços alfandegários e porque era necessário retirar toda a mercadoria do interior da máquina de frio, não dispondo o motorista de local adequado para a acondicionar durante o tempo necessário para o efeito; O sistema de refrigeração do combinado (galera semi-reboque frigorífico) tinha uma deficiência de fabrico – o motor da trampilha encontrava-se queimado, originando deficiências no sistema de descongelação das alhetas do evaporador, situação que provocou o bloqueio da instalação do frio e a avaria do sistema de refrigeração do combinado.


Com esta matéria de facto não é possível concluir, como pretende a recorrente, pela responsabilidade do motorista pela deterioração da carga, nomeadamente por este apenas às 22 horas do dia 29 ter chamado a assistência FF e ter prosseguido a viagem após a intervenção do agente da mesma FF.
Para assim decidir basta ver que o agente da FF, não obstante ter verificado a existência da avaria, não a reparou por a mercadoria se encontrar chumbada pelos serviços alfandegários e por ser necessário retirar toda a mercadoria do interior da máquina de frio, não dispondo o motorista de local adequado para a condicionar durante o tempo necessário para o efeito.
Portanto, mesmo que a intervenção da assistência tivesse sido requerida muito tempo antes, tal seria inóquo para o efeito de responsabilizar, ou não, o motorista, visto que a avaria não seria reparada em qualquer circunstância.
Por outro lado, também não é possível responsabilizar o motorista por ter prosseguido a viagem até ao seu destino, uma vez que não dispunha de local adequado para acondicionar a mercadoria, e, mesmo que tivesse, nada adiantaria, visto a FF não poder proceder à reparação da avaria, por a mercadoria se encontrar chumbada pelos serviços alfandegários.
Como bem se diz na sentença, não se vê onde está a culpa do motorista na produção dos danos se estes resultaram de defeito de fabrico do sistema de refrigeração, que a assistência prevista na garantia fornecida pelo fabricante não reparou por circunstâncias alheias ao proprietário do equipamento.
Termos em que improcedem as conclusões 1 a 5.
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II – Alega a recorrente, nas conclusões 6 a 8, que, nos termos da al. b) do artº 5º do Dec. Lei nº 383/89, de 6 de Novembro, a avaliação da segurança legitimamente esperada do produto é o momento da sua entrada em circulação e que a apelada não provou que o defeito existia no momento em que o equipamento FF entrou no circuito comercial, e não sobreveio depois por acção de terceiros ou da própria segurada da apelada.
Na sentença recorrida decidiu-se que a ré DD responde perante a autora, como sub-rogada nos direitos da sua segurada EE, por via da responsabilidade objectiva consagrada naquele Dec. Lei nº 383/89, que transpôs para a


ordem jurídica interna a Directiva nº 85/374/CEE, em matéria de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos.

Este diploma dispõe, no artº 1º, que o produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação.
Por sua vez, o artº 4º estatui, no seu nº 1, que um produto é defeituoso quando não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita no momento da sua entrada em circulação.
O artº 5º estabelece, na al. b), que o produtor não é responsável se provar que, tendo em conta as circunstâncias, se pode razoavelmente admitir a inexistência do defeito no momento da entrada do produto em circulação.
Verifica-se deste normativo que o momento para se aferir da existência ou inexistência de defeito é o da entrada do produto em circulação e que, para haver exclusão de responsabilidade do produtor, é necessário que este prove a inexistência do defeito nesse momento (da entrada do produto em circulação).
Na sentença recorrida entendeu-se que as situações enumeradas no artº 5º (que determinam que, provadas elas, o produtor não é responsável) não relevam para a hipótese sub iudice.
Não se refere o motivo de tal irrelevância.
Poderia relevar se a ré, ora recorrente, tivesse provado que o defeito inexistia no momento em que o produto entrou em circulação.
Resulta, no entanto, do factualismo dado como provado que a ré não logrou obter tal prova, sendo certo que nem sequer alegou, na contestação, factos que pudessem conduzir a tal prova.
Pelo contrário, provou-se que o sistema de refrigeração do combinado (galera semi-reboque frigorífico) tinha uma deficiência de fabrico – o motor da trampilha encontrava-se queimado, originando deficiências no sistema de descongelação das alhetas do evaporador, situação que provocou o bloqueio da instalação do frio e a avaria do sistema de refrigeração do combinado.



Ora, se essa deficiência era de fabrico, é óbvio que já existia no momento em que o produto entrou em circulação, não podendo, portanto, considerar-se excluída, sob esse aspecto, a responsabilidade da ré DD.
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III – Finalmente, alega a recorrente que, conforme previsto no artº 8º, nº 1, são ressarcíveis os danos resultantes de morte ou lesão pessoal e os danos em coisa diversa do produto defeituoso, desde que seja normalmente destinada ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente este destino, pelo que, tendo a mercadoria destruída como destinatário a firma GG, haverá que concluir que os danos em causa não são ressarcíveis porque os gelados se destinavam a uma actividade comercial e não ao mero uso ou consumo privado.
A resolução desta questão prende-se com o problema de saber o que se deve entender por uso ou consumo privado.
Na sentença recorrida entendeu-se que aquela norma era aqui aplicável em virtude de os danos patrimoniais resultarem de o bem fabricado pela ré não funcionar devidamente, sofrendo de vício que fez perder outras coisas materiais de uso que não era público, mas privado, considerando-se, portanto, este como o oposto de público, ou seja, na dicotomia público/privado.
Não nos parece que as coisas possam ser vistas sob este prisma.
Seguimos, antes, o entendimento do Prof. Calvão da Silva (Compra e Venda de Coisas Defeituosas – Conformidade e Segurança, 2001, pág. 208), segundo o qual “nos danos em coisas o Decreto-Lei nº 383/89 protege apenas o consumidor em sentido estrito, aquele que utilizava a coisa destruída ou determinada pelo produto defeituoso para um fim privado, pessoal, familiar ou doméstico, e não para um fim profissional. Assim, será coisa de uso privado, por exemplo, um frigorífico utilizado em casa de habitação, mas não já se utilizado numa fábrica, numa empresa; será coisa de uso privado o automóvel que A utiliza habitualmente na sua vida privada e familiar, mas não já o automóvel da empresa, por ele utilizado na profissão”.

Por isso, é bom de ver que, no presente caso, não são ressarcíveis com base naquele diploma (Dec.-Lei nº 383/89) os danos sofridos pela mercadoria transportada pela segurada da autora, uma vez que, tratando-se de 33 paletes com 5940


embalagens de gelados “magnum double” destinadas à firma GG,, não eram para um fim privado, pessoal, familiar ou doméstico, no sentido atrás referido, mas antes para um fim comercial e, portanto, profissional.

É certo que a ré poderia ser responsabilizada com base na responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, com previsão nos artºs 483º e ss. do Código Civil.
Simplesmente, e como se diz na sentença recorrida, a autora não enveredou por tal trilho
Para isso, teria que provar os requisitos integradores de tal tipo de responsabilidade, o que se não verifica, já que nem, sequer, alegou os factos constitutivos desses requisitos.
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Não sendo os danos ressarcíveis, nos termos expostos, tem o recurso de obter provimento, por ser de concluir que a sentença recorrida violou o disposto no nº 1 do artº 8º do Decreto-Lei nº 383/89, de 6 de Novembro, pelo que tem que ser revogada e a ré DD absolvida do pedido.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em dar provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e absolvendo a ré DD do pedido.

Custas a cargo da autora.