Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
206/09.7TBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 12/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.23 Nº2 , 27 Nº1 A) DO CIRE
Sumário: I – Na petição inicial, que não provenha do apresentante do devedor, são facultativas as indicações a que alude o art.23 nº2 alíneas b), c) e d) do CIRE.

II – Em princípio, o tribunal só deve proferir despacho de aperfeiçoamento quando a petição careça de elementos essenciais e apresente vícios sanáveis, enquadráveis na previsão da alínea a) do nº1 do art.27 do CIRE ( indeferimento liminar).

III – Não se verificando irregularidades com aquelas características e ainda que incumprido despacho liminar, o juiz deve mandar prosseguir o processo.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. No Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, no processo de insolvência supra referido, instaurado por A  (…). contra  B (…), melhor identificados nos autos, aquela sociedade, na qualidade de credora, requereu a declaração de insolvência do demandado, aduzindo a factualidade pertinente e concluindo que o mesmo se encontra impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações.

            Juntou aos autos uma certidão do assento de nascimento do demandado (no qual se encontra averbado o seu casamento) e quatro facturas relativas a vendas de materais de construção que efectuou ao demandado nos meses de Abril a Julho de 2007, com prazo de vencimento de 30 dias e cujos valores diz não terem sido pagos, afirmando ainda que existem outras empresas nas mesmas circunstâncias da requerente e foram instaurados vários processos executivos contra o requerido, nomeadamente os indicados na petição inicial sob o item 8º.

            Requereu a citação do requerido para contestar e, designadamente, para juntar aos autos a relação dos seus credores, moradas destes e respectivos créditos, a lista de todas as acções e execuções instauradas contra o mesmo, bem como todos os restantes documentos referidos no art.º 24º do CIRE, bem como para indicar o valor do activo e os cinco maiores credores.

             Em 28.01.2009, dia seguinte à distribuição, a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:

            Sob pena de indeferimento, ao abrigo do disposto no art.º 27.º, n.º 1, al. b) do CIRE, notifique a requerente para, em cinco dias, dar cumprimento ao disposto nas als. b), c) e d), do n.º 2, do art.º 23.º, do referido Código, sendo que tais faltas não foram devidamente justificadas nem o poderiam ser no caso concreto, identificando o cônjuge do devedor e indicando o regime de bens do casamento, juntando certidão do assento de casamento e da convenção antenupcial se existir, mais resultando conhecer a requerente a existência doutros credores do devedor. Mais deverá certificar nos autos a quantia exequenda em causa nos processos executivos a que alude, a penhora de bens efectuada nos mesmos, se houve ou não oposição às execuções ou às penhoras e o estados desses autos. 

            Transcorrido o aludido prazo, a requerente pediu a concessão de (novo) prazo nunca inferior a 15 dias, afirmando que as ditas certidões não lhe haviam sido remetidas, não obstante terem sido requeridas às entidades competentes.

            Na sequência deste requerimento, a Mm.ª Juíza indeferiu liminarmente a petição inicial, em 12.3.2009, com a seguinte fundamentação:

            A requerente foi notificada (...) para, em cinco dias, dar cumprimento ao disposto nas als. b), c) e d), do n.º 2, do art.º 23.º, (...), tendo-se considerado que tais faltas não foram devidamente justificadas nem o poderiam ser no caso concreto.

            Contrariamente ao que se lhe impunha por força do despacho dado e das citadas disposições legais, a requerente, no prazo fixado, não procedeu em conformidade, não se tendo tais faltas por devidamente justificadas desde logo tendo em consideração que os elementos em causa e a que se reportam as citadas disposições legais devem constar dos autos logo aquando da instauração da acção e estava ao alcance da requerente a respectiva obtenção prévia.

            Assim, ao abrigo do disposto no art.º 27.º, n.º 1, al. b), do CIRE, decide-se indeferir liminarmente a petição inicial. (...)

                Inconformada com tal decisão, a requerente interpôs o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

            1ª A douta sentença é nula, uma vez que o Juiz a quo não se pronuncia sobre questão que deveria apreciar, nos termos do disposto no artigo 668° n.° 1 alínea d) do CPC.

            2ª À petição inicial juntou a recorrente o documento a que estava obrigada (certidão do Registo Civil do devedor), conforme dispõe o artigo 23° n.° 2 alínea d) do CIRE.

            3ª As certidões cuja junção foi ordenada não constituem documentos de junção obrigatória com a petição inicial, pelo que a sua falta não é fundamento para o indeferimento liminar da petição, nos termos do art.º 27° n.° 1 alínea b).

            4ª A recorrente diligenciou no sentido da obtenção atempada das certidões, e não o tendo conseguido por facto que não lhe é imputável e do qual deu conhecimento ao Tribunal a quo, deveria este ter entendido tal falha como justificada, nos termos do artigo 146° do CPC, e deferido o pedido de prorrogação do prazo.

            Pede a “anulação” da decisão em apreço e o deferimento do pedido de prorrogação do prazo para a junção das certidões requeridas.

            O recurso foi admitido para subir imediatamente nos autos e com efeito meramente devolutivo sobre a decisão em crise, fixando-se provisoriamente o valor da causa no montante equivalente ao da alçada da Relação.

            A única questão a decidir consiste assim em saber se existia fundamento para o aludido indeferimento liminar ou se, considerado o regime jurídico aplicável, antes se impunha o prosseguimento da acção.


*

            II. 1. Os factos a considerar na decisão do recurso são apenas os aludidos do relatório (ponto I), para os quais se remete e que aqui se dão por reproduzidos.[1]

            2. A apresentação à insolvência ou o pedido de declaração desta faz-se por meio de petição escrita, na qual são expostos os factos que integram os pressupostos da declaração requerida e se conclui pela formulação do correspondente pedido.

            Na petição, o requerente: a) sendo o próprio devedor, indica se a situação de insolvência é actual ou apenas iminente e, quando seja pessoa singular, se pretende a exoneração do passivo restante, nos termos das disposições do capítulo I do título XII; b) Identifica os administradores do devedor e os seus cinco maiores credores, com exclusão do próprio requerente; c) Sendo o devedor casado, identifica o respectivo cônjuge e indica o regime de bens do casamento; d) Junta certidão do registo civil, do registo comercial ou de outro registo público a que o devedor esteja eventualmente sujeito.

            Não sendo possível ao requerente fazer as indicações referidas (...), solicita que sejam prestadas pelo próprio devedor (art.º 23º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa/CIRE, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18.3)[2].

            Quando o pedido não provenha do próprio devedor, o requerente da declaração de insolvência deve justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito (...) e oferecer (...) os elementos que possua relativamente ao activo e passivo do devedor. O requerente deve ainda oferecer todos os meios de prova de que disponha (...) (art.º 25º, n.ºs 1 e 2).

            No próprio dia da distribuição, ou, não sendo viável, até ao 3º dia útil subsequente, o juiz: a) Indefere liminarmente o pedido de declaração de insolvência quando seja manifestamente improcedente, ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis de que deva conhecer oficiosamente; b) Concede ao requerente, sob pena de indeferimento, o prazo máximo de cinco dias para corrigir os vícios sanáveis da petição, designadamente quando esta careça de requisitos legais ou não venha acompanhada dos documentos que hajam de instruí-la, nos casos em que tal falta não seja devidamente justificada (art.º 27º, n.º 1).

            3. Contrariamente ao que é hoje a solução geral do processo civil, o CIRE manteve a apreciação liminar do requerimento inicial, a qual pode conduzir ao indeferimento do pedido ou ao aperfeiçoamento da petição, especial forma de tramitação que poderá compreender-se em razão do regime da insolvência, das suas consequências e dos interesses envolvidos, pretendendo-se assim um controlo judicial prévio, de forma a assegurar que não são decretadas insolvências em casos de manifesta improcedência ou sem que se encontrem reunidos os necessários pressupostos processuais.[3]

            As alíneas b) a d) do n.º 2 do art.º 23º identificam elementos e documentos que devem ser indicados na petição inicial ou a ela juntos mas, na hipótese de processo aberto a requerimento do credor, não lhe sendo possível fazer as indicações ou junções em causa, o requerente tem a faculdade de pedir que as mesmas sejam prestadas pelo devedor, o qual fica vinculado a assim agir, em conformidade com o dever geral de cooperação (art.ºs 266º e 519º do CPC, ex vi do art.º 17º do CIRE), sendo que a eventual falta de colaboração do devedor não obstará ao prosseguimento da acção.

            Se o requerente/credor não fornecer as informações e os documentos em causa nem usar da dita faculdade, o tribunal deverá proferir o aludido despacho de aperfeiçoamento, sendo que, se a situação se mantiver, nem por isso se justificará o indeferimento liminar, devendo o tribunal ordenar que o devedor supra a omissão, porquanto não estamos em presença de elementos que se mostrem indispensáveis para a normal marcha do processo e concretização dos seus objectivos, que não são estruturalmente condicionantes da apreciação da situação do devedor, antes destinados a facilitar a concretização/produção das consequências ligadas à declaração de insolvência e a adopção de medidas que ela implica, as quais, todavia, não ficam impossibilitadas pela ausência dos elementos e documentos em falta.[4]

            Daí que, em princípio, o tribunal, perante irregularidades da petição, só deve proferir despacho de aperfeiçoamento quando esteja perante vícios sanáveis e em face de elementos essenciais (o processo não fica legalmente em condições de poder prosseguir, na hipótese de permanência do vício, após o decurso do prazo de cumprimento do despacho de aperfeiçoamento).

            Se o tribunal proferir despacho de aperfeiçoamento quando não ocorrem vícios com aquelas características, independentemente de o requerente dar ou não cumprimento ao despacho, o juiz deve mandar prosseguir o processo, por não se verificarem os pressupostos do indeferimento liminar fixados na alínea a) do n.º 1 do art.º 27º.[5]

            4. Face ao descrito enquadramento jurídico e doutrinal e porque no caso em apreço estamos perante vícios sanáveis/corrigíveis da petição inicial, a solução a dar ao presente caso não poderá ser diferente da propugnada em II. 3., de resto, a única que permite respeitar elementares regras do processo civil (inclusive, a da economia processual), a finalidade do processo especial de insolvência e uma adequada concretização prática dos mencionados normativos.

            No caso vertente, a requerente aduziu os factos concretos que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido, juntou os documentos atrás referidos e pediu que outros elementos (documentos e informações) fossem prestados pelo requerido/devedor, o qual, conhecendo os factos da sua vida profissional/empresarial, pessoal e familiar, em melhores condições se encontra de os obter e indicar,  (ainda) em tempo oportuno.[6]

            Os elementos em falta, não indispensáveis à normal marcha do processo (não essenciais ou decisivos na fase inicial da tramitação deste processo especial), eram e são passíveis de suprimento pela própria requerente (que se viu impossibilitada de o fazer dentro do exíguo prazo que lhe foi concedido, e justificou esse facto), por intermédio do devedor/requerido e no desenvolvimento da lide (cfr., nomeadamente, art.ºs 29º, n.º 2; 30º, n.º 2; 36º, alíneas f) e g); 128º; 129º e 149º).

             Por conseguinte, mostrando-se preenchidos os requisitos legais, o processo deverá prosseguir a sua tramitação com a citação do devedor, nos termos do art.º 29º - o processo poderá e deverá prosseguir a sua tramitação e não será intempestiva ou tardia a indicação e/ou junção, em momento posterior, na forma indicada, dos elementos em falta mencionados no despacho recorrido.[7]

            Não se verificando, in casu, os pressupostos do indeferimento liminar fixados na alínea a) do n.º 1 do art.º 27º e mostrando-se prejudicado o conhecimento do demais invocado nas “conclusões do recurso”, importa revogar o despacho recorrido, devendo o processo prosseguir os seus regulares termos, podendo-se, inclusive, convidar a requerente a juntar aos autos os elementos e os documentos entretanto obtidos e citando-se depois o requerido nos termos legais.


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            III. Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão impugnada, que deverá ser substituída por despacho adequado ao prosseguimento do processo.

            Custas do recurso a cargo da massa insolvente, caso venha a ser decretada a insolvência, nos termos do art.º 304º.

            Notifique.


[1] De salientar, ainda, que o presente processo teve uma tramitação deveras anómala - pese embora a sua natureza urgente (art.º 9º do CIRE), o primeiro despacho foi notificado três semanas depois da sua prolação (fls. 42) e, interposto o recurso da decisão recorrida, em 02.4.2009, os autos foram conclusos para despacho apenas em 01.10.2009…(fls. 35).

[2] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem.

[3] Vide, neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris, 2009, págs. 148 e 161.
[4] Vide Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 149 e seguinte e 163 e acórdão da RE de 13.12.2007, in CJ, XXXII, 5, 250.
Em idêntico sentido, vide Salazar Casanova, Temas Jurídicos e Judiciários – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Boletim da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, IVª série, n.º 4, de Outubro de 2004, pág. 23, que refere, designadamente: “quanto à petição inicial que não provenha do apresentante devedor, são já facultativas as indicações a que alude o artº 23º, nº 2, als. b), c) e d) e a parte final do artº 25º/1; parece-nos aceitável afastar-se uma interpretação rigorista que seria a de, não juntando o requerente documentos apesar do convite do tribunal e nada dizendo, logo indeferir o tribunal liminarmente a petição por não ter sido declarado pelo requerente que não lhe era possível efectuar a sua junção (art.º 23º/3); numa interpretação menos rigorista, nada sendo dito, o tribunal, se o pedido estiver justificado nos termos da primeira parte do n.º 1 do artº 25º, deve mandar citar o devedor que será advertido nos termos indicados no art.º 29º/2 e de que deve prestar as indicações e efectuar as junções referidas no art.º 23º/2”.

[5] Vide Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 163 e seguinte, e Salazar Casanova, ibidem, que também conclui que “o juiz não fica vinculado pelo despacho de aperfeiçoamento: assim, se o juiz verificar que não havia razão para proferir tal despacho, manda citar (artº 29º/1).”
[6] Inclusive, os demais elementos a que se refere a alínea c) do n.º 2 do art.º 23º.
 Importa dizer que, sendo porventura admissível na situação em análise a coligação passiva dos cônjuges, o requerente não está impedido de instaurar o processo apenas quanto a um deles – art.º 264º, n.º 2.
[7] Vide, ainda, sobre a matéria, o acórdão da RC de 15.4.2008-processo 2653/07.0TBAGD.C1, publicado no “site” da dgsi.