Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
219/05.8GBPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: HOMICÍDIO NEGLIGENTE
RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
PROVA INDIRECTA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
VIOLAÇÃO DO DEVER OBJECTIVO DE CUIDADO
Data do Acordão: 11/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 32ºDA CRP;15º,137º DO CP , 127º DO CPP 24º E 25ºDO CE
Sumário: 1. O reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efectuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso.
2.A prova indirecta, sendo um meio de prova absolutamente legítimo, pode ser livremente utilizada e valorada pelo Tribunal, em todas as circunstâncias que entender como útil à sua utilização, assumindo relevância especifica em circunstâncias de défice da prova directa, seja por virtude de inexistência, seja pela sua debilidade valorativa.

3 Na valoração individual da prova examina-se a fiabilidade de cada uma das provas em concreto reconhecendo-se que toda a prova, antes de provar deve ser provada. No decurso do processo analítico efectuado não pode prescindir-se da perspectiva conjunta do modo como cada uma das provas é integrada no quadro probatório global. Se cada um dos elementos de prova tem de exigir uma disponibilidade para ser avaliado como se realmente «tivesse sido o único disponível», a articulação das provas entre si e a sua avaliação conjunta permitem o conhecimento global dos factos que, por sua vez se irá reflectir no resultado da totalidade da prova atendível, sendo por isso reciprocamente necessários os dois momentos de valoração.

4.No caso, da análise probatória global, efectuada igualmente pelo tribunal ad quo não pode de todo concluir-se por uma errada apreciação da prova em termos de julgamento pelo tribunal.

5. Com o princípio da livre apreciação da prova, vinculado ao princípio da descoberta da verdade material – contrariamente ao sistema probatório fundado nas provas tabelares ou tarifárias que estabelece um valor racionalizado a cada prova – possibilita-se ao juiz um âmbito de discricionariedade na apreciação de cada uma das prova atendíveis que suportam a decisão. Mas uma discricionariedade assente num modelo racionalizado, na medida em que implica que o juiz efectue as suas valorações segundo uma discricionariedade guiada pelas regras da ciência, da lógica e da argumentação.

6 O Código da Estrada e o seu regulamento fixam a margem de risco permitida na condução e sobre a qual deve a ordem jurídica efectuar o juízo sobre o dever objectivo de cuidado que os condutores devem ter.

7.No caso, o dever de adequar a velocidade às circunstâncias da via molhada e enlameada foi efectivamente desprezado pelo comportamento do arguido na sua condução, daí tendo originado o despiste do veículo e as consequências trágicas que dele resultaram.

Decisão Texto Integral: 19

I. RELATÓRIO.

No processo Comum singular n.º Processo 219/05.8GBPCV.C1 foi julgado e condenado o arguido A. como autor material de um crime de homicídio por negligência previsto e punido pelo artigo 137º n.º 1 do Código Penal, na pena de 250 dias de multa à taxa diária de € 5, o que perfaz o montante global de 1250€. O arguido foi ainda condenado no pagamento de 2 UCs de taxa de justiça, acrescida do adicional de 1% nos termos do artigo 13º n.º 3 no DL 423/91, de 30 de Outubro e das demais custas com procuradoria fixada em ¼.

Não se conformando com a decisão o arguido veio interpor recurso da mesma para este Tribunal, concluindo na sua motivação nos seguintes termos:

«1 — O tribunal deu como provado que o acidente ocorreu por excesso de velocidade, apesar de a mesma não ter sido concretamente apurada.

2 — Tal conclusão assenta num juízo errado, na medida em que não existem quaisquer indícios que permitam formular o juízo de que o acidente se deveu àquela causa.

3 - Não existem nos autos quaisquer indícios que permitam formular o juízo da sentença de que o despiste se deveu a excesso de velocidade, pelo contrário existem diversos indícios de onde é possível concluir que o acidente ocorreu ou pode ter ocorrido por outras causas, que não foram valoradas, nem sequer apreciadas na sentença.

4 — Estão dadas como provadas várias causas aptas a determinar o acidente, ou seja circunstâncias que podem ter sido causa adequada do mesmo, e que foram ignoradas pelo Tribunal a quo.

5 - As leis da física demonstram que tendo o acidente ocorrido quando o veículo descrevia uma curva à direita, se circulasse em excesso de velocidade a força centrífuga teria provocado o despiste para o exterior da curva, ou seja, para a esquerda e não para o interior daquela, ou seja para a direita.

6 — Entre as circunstâncias causantes do acidente, que o senhor juiz não valorou, verificam-se as provadas no facto do art. 1 O.°: “O pavimento era composto de uma mistura betuminosa densa de gravilha e alcatrão e apresentava-se desgastado com pequenas gretas e ondulações à sua superfície.”

7 — Estas circunstâncias aliadas ao facto provado de que chovia abundantemente, são adequadas a provocar a perda do controlo do veículo, mesmo quando conduzido a velocidade moderada.

8 — A jurisprudência e a doutrina têm entendido que quando o facto pode ser atribuído a várias causas, a prova de um facto que constitui uma dessas causas é somente um indício provável ou possível, sendo que para dar consistência à prova será então necessário afastar toda a espécie de condicionamento possível do facto probando menos um.

9 — Na medida em que a sentença não afastou as restantes causas aptas a provocar o acidente, não se pode aceitar a presunção nela ínsita, a qual redunda numa mera conjectura ou hipótese explicativa.

10 - A negligência pressupõe a violação de um dever de cuidado, o que in casu não se logrou apurar.

11 — A sentença recorrida violou os artigos 15.° e 137.° do CP, bem como os basilares princípios da culpa e da presunção da inocência (32.°, n.°2 da CRP); violou ainda as regras quanto à livre apreciação da prova do artigo 127.° do CPP.

12 – O arguido não praticou o crime de homícidio por negligência de que vem acusado».

O Ministério Público, nas suas contra-alegações pronunciou-se pela improcedência do recurso, por entender inexistir qualquer vício ou contradição na análise da prova bem como ter que ser a conduta do arguido imputada a título de negligência e ainda ser a pena aplicada adequada e proporcional.

O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação manifestou-se igualmente pela improcedência do recurso

II. FUNDAMENTAÇÂO

As questões a decidir:

Em face das conclusões e da motivação do recorrente são duas as questões a decidir: a) erro de julgamento, insuficiência de prova e violação do princípio da livre apreciação da prova; b) violação do principio da culpa e da presunção de inocência.

*

Importa antes de mais atentar na matéria de facto provada, bem como na fundamentação.

« i) Factos provados

1.º No dia 10 de… de 2005, cerca das 15.15h, o arguido conduzia o veículo automóvel com a matrícula 54.., propriedade da associação de Bombeiros Voluntários de…, na Estrada Municipal n.º 638, no sentido Oliveira do Hospital – Coimbra.

2.º Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido transportava no veículo 54- C,… e AMa...

3.º Quando efectuava o trajecto que liga as localidades de Sabouga ao Alto de São Pedro, área desta comarca, estava a chover com bastante intensidade, apresentando-se o pavimento da via molhado e escorregadio.

4.º Nesse trajecto, ao descrever uma curva larga para a direita, com boa visibilidade, ali existente, os pneus do veículo que conduzia perderam aderência e o arguido perdeu o controlo da direcção do mesmo que seguiu para o lado direito (atento o seu sentido de marcha) transpôs a berma e caiu pela encosta, capotando, até se imobilizar.

5.º No momento do acidente o arguido conduzia a uma velocidade não concretamente apurada, mas suficiente para originar a perda de aderência dos pneus do veículo, a consequente a perda da direcção do mesmo e, finalmente, o seu despiste.

6.º Durante os capotamentos, os passageiros que seguiam no veículo foram projectados para o seu exterior, ficando caídos na encosta.

7.º O veículo veio a imobilizar-se na diagonal e sobre rodas, numa estrada florestal que atravessava a encosta que marginava a EM n.º 638, numa patamar inferior a esta cerca de 17 metros.

8.º Na sequência do despiste e subsequentes capotamentos e embates do veículo, a passageira AM... sofreu as lesões descritas e examinadas no relatório de autópsia de fls. 27 a 34, designadamente lesões tóraco-abdominais que causaram, directa e necessariamente, a sua morte.

9.º No local a faixa de rodagem tinha 6,10 metros de largura.

10.º O pavimento era composto de uma mistura betuminosa densa de gravilha e alcatrão e apresentava-se desgastado, com pequenas gretas e ondulações à sua superfície.

11.º A berma do lado direito (atento o sentido de marcha do arguido) era em terra batida e tinha 1,40 metros de largura.

12.º Após aquela berma desenrolava-se a encosta que apresentava uma inclinação de cerca de 39% e se encontrava coberta por vegetação arbórea e arbustos.

13.º Na faixa de rodagem não havia resíduos de quaisquer outros líquidos além da água pluvial, nem ficaram marcas de travagem ou derrapagem do veículo.

14.º Na berma do lado direito, o veículo deixou duas marcas, com um metro de cumprimento cada, as quais terminavam no início do declive da encosta.

15.º Já na encosta, deixou um rasto de vegetação derrubada, desde a margem da berma até ao local onde se imobilizou.

16.º Tal veículo é um automóvel ligeiro de passageiros, da marca Mercedes-Benz, modelo 213 CDI (902661), matriculado em 22/01/2001 e preparado para serviço de transporte de deficientes.

17.º Aquando dos factos, apresentava-se em bom estado de conservação e funcionamento, designadamente ao nível dos sistemas de direcção, travagem, caixa de velocidades, suspensão e pneumáticos, sendo que havia sido inspeccionado e aprovado em 25/06/2005.

18.º O arguido era motorista dos Bombeiros Voluntários de… há vários anos e costumava passar com frequência semanal no local do acidente que conhecia bem.

19.º Já por várias vezes havia conduzido o veículo supra descrito.

20.º Sabia que devia adequar a velocidade a que o conduzia às condições climatéricas e às condições físicas da via em que circulava, bem como que o piso molhado diminui consideravelmente a aderência dos pneus dos automóveis à estrada.

21.º E sabia que uma vez perdida essa aderência poderia entrar em despistar e provocar lesões, ou mesmo a morte, das pessoas que transportava consigo.

22.º Aufere € 380,00/mensais de pensão.

23.º Vive em casa própria com a sua esposa que se encontra desempregada.

24.º Nunca teve quaisquer outros acidentes enquanto motorista dos Bombeiros.

25.º Ficou emocionalmente abatido com a morte da vítima, tendo ficado paraplégico em consequência do acidente

26.º Não tem antecedentes criminais, nem contra ordenações averbadas no seu registo estradal .


*

ii) Factos não provados

Nenhum que pudesse ter relevo para a decisão a proferir.


*

iii) Motivação

O decidido quanto aos factos provados fundou-se na análise conjugada da prova documental junta aos autos e da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, à luz das regras da experiência comum e do bom senso.

Quando às condições climatéricas e físicas da via no local e na data do acidente, valorou-se o auto de notícia de fls. 3, o auto de exame ao local de fls. 88 a 99, as fotografias de fls. 96 a 106, as declarações do arguido e os depoimentos dos agentes da GNR ouvidos em audiência de julgamento.

Quanto ao estado de conservação e funcionamento do veículo, valorou-se o auto de exame ao veículo de fls. 90 a 94 e na informação da DGV de fls. 119 a 124.

A prova das lesões sofridas pela vítima na sequência do despiste e o nexo entre elas e a sua morte, fundou-se no relatório de autópsia junto aos autos a fls. 27 a 34.

A ausência de antecedentes criminais e de contra ordenações estradais fundou-se no CRC do arguido e na informação da DGV de fls. 119 a 124.

Os factos relativos à sua situação sócio-económica foram dados como provados com base nas declarações que o mesmo prestou em audiência de julgamento.

E, por fim, a prova de que foi a velocidade desadequada a que o arguido conduzia que esteve na origem do despiste, resultou do facto de se ter provado que o veículo estava em boas condições de funcionamento – não permitindo que se justifique o acidente pela ocorrência de qualquer avaria mecânica –; do facto de se ter provado que não havia na estrada nenhum outro liquido que promovesse a falta de aderência dos pneus que se verificou, a não ser as águas pluviais que o arguido sabia de antemão lá estarem e com as quais podia e devia contar; do facto de ser do conhecimento geral que ao circularem em pisos molhados os pneus dos automóveis têm um menor grau de aderência, impondo uma condução a uma velocidade especialmente moderada de forma a evitar derrapagens e outros fenómenos como o conhecido “aquaplaning”; e por fim, do facto de ter sido o próprio arguido a declarar que tudo aconteceu tão rapidamente que não teve tempo de evitar o despiste, o que indica que a seguia a uma velocidade excessiva para as condições da via.

*

a) Erro de julgamento, insuficiência de prova e violação do principio da livre apreciação da prova

Antes de emergir da análise das questões suscitadas importa sublinhar que conforme decorre do disposto no art. 428.º, n.º 1, do CPP, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, sendo que, segundo o art. 431.º “sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) se tiver havido renovação da prova.”

O reexame da matéria de facto não visa, no entanto, a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efectuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso – vejam-se, neste sentido, os Acordãos do STJ de 16.6.2005, Recurso n.º 1577/05), e de 22. 6. 2006, do mesmo Tribunal. Este é um limite fundamental ao conhecimento do recurso que deve salientar-se.

Efectuadas estas considerações o núcleo essencial da primeira questão suscitada pelo recorrente, decorre do eventual erro de julgamento efectuado pelo Tribunal na valoração das provas que utilizou que, segundo o mesmo recorrente não poderiam permitir chegar à conclusão que o tribunal chegou de que o arguido circulava a uma velocidade inadequada.

No caso em apreço, o Tribunal para decidir da questão concreta em análise, socorreu-se (bem) da análise de um vário conjunto de provas (directas e indirectas), legalmente válidas e interpretou-as livremente (mas não arbitrariamente). Essa a conclusão inequívoca da fundamentação da matéria de facto que consta na sentença, onde o tribunal escreveu para fundamentar a sua decisão o seguinte: a prova de que foi a velocidade desadequada a que o arguido conduzia que esteve na origem do despiste, resultou do facto de se ter provado que o veículo estava em boas condições de funcionamento – não permitindo que se justifique o acidente pela ocorrência de qualquer avaria mecânica –; do facto de se ter provado que não havia na estrada nenhum outro liquido que promovesse a falta de aderência dos pneus que se verificou, a não ser as águas pluviais que o arguido sabia de antemão lá estarem e com as quais podia e devia contar; do facto de ser do conhecimento geral que ao circularem em pisos molhados os pneus dos automóveis têm um menor grau de aderência, impondo uma condução a uma velocidade especialmente moderada de forma a evitar derrapagens e outros fenómenos como o conhecido “aquaplaning”; e por fim, do facto de ter sido o próprio arguido a declarar que tudo aconteceu tão rapidamente que não teve tempo de evitar o despiste, o que indica que a seguia a uma velocidade excessiva para as condições da via.».

Para justificação da sua decisão o Tribunal valorou o depoimento do arguido, como prova declarativa directa, Valorou o exame efectuado ao veículo para concluir do estado em que o mesmo se encontrava na altura do acidente. Sobre as condições climatéricas no momento do acidente, valorou o auto de notícia de fls 3, as fotografias de fls 96 a 106, as declarações do arguido e os depoimentos dos agentes da GNR

Neste conjunto de provas está em causa, como aliás salienta o recorrente, a utilização de prova indirecta pelo Tribunal, que constitui meio de prova absolutamente legítimo e conforme com o dispositivo legal estabelecido no artigo 127º, expressamente consagra o princípio da livre apreciação da prova.

Nos casos de prova indirecta o que está em causa é «o tribunal inferir racionalmente a prova dos factos a partir da prova indirecta ou indiciária desde que seja seguido um processo dedutivo baseado na lógica e nas regras de experiência comum (recto critério humano e correcto raciocínio) – cf. Ac. R. Coimbra de 2008, proc. 495/002.

A prova indirecta, sendo um meio de prova absolutamente legítimo, pode ser livremente utilizada e valorada pelo Tribunal, em todas as circunstâncias que entender como útil à sua utilização, assumindo relevância especifica em circunstâncias de défice da prova directa, seja por virtude de inexistência, seja pela sua debilidade valorativa. Nesse sentido «a prova indirecta ou indiciária pode ser valorada preferencialmente pelo julgador e, só por si, conduzir à sua convicção, tal qual a prova directa», cf. Ac. RC 26.11.2008 proc. 341/06 in www.dgsi.pt

Da análise da prova produzida em audiência, importa sublinhar que a única prova assente em declarações referente à factualidade em causa provém do depoimento do arguido. Como se constata, trata-se de um depoimento muito débil, desde logo tendo em atenção as condições de fragilidade física e emocional em que o arguido se encontra após ao acidente, que são notoriamente constatadas da audição do registo disponibilizado a este Tribunal da Relação.

No entanto, mesmo levando em conta essa circunstância é possível verificar das declarações do arguido, como o fez o Tribunal ad quo, que na condução que fazia do veículo no momento em que ocorreu o acidente «ia relativamente devagar, a 50/60 ou menos» (gravação 7.53 e 8.25) embora não possa confirmar exactamente qual o a velocidade que exactamente fazia imprimir ao veículo. Segundo as suas palavras - «não sei», (gravação, 7.55, 8.25) – por «ter sido tudo instantâneo» ( gravação, 1.06 e 8.02).

O que é certo, segundo o arguido é que «chovia muito» (gravação, 2.53) «a estrada estava muito escorregadia e com muita folhagem» (gravação, 4.30 e 7.08).

De igual modo ficou demonstrado que não havia no local do acidente qualquer liquido que promovesse a falta de aderência do veículo, a não ser as águas pluviais e a terra provocada pela chuva («a estrada estava com terra da chuva», declarações do arguido, gravação, 4.44).

Conforme resulta igualmente da documentação junta ao processo, maxime o relatório elaborado pelas autoridades policiais sobre o acidente (fls. 88 a 106 e que não foi questionado) e informação da DGV de fls 119 a 124, onde constam fotografias do veículo, local do acidente e exame minucioso ao estado do veículo, está demonstrado que o veículo estava em perfeitas condições de segurança local do acidente. Provas fundamentais em que o tribunal fundou a sua convicção, como se referiu.

Na valoração individual da prova examina-se a fiabilidade de cada uma das provas em concreto reconhecendo-se que toda a prova, antes de provar deve ser provada. No decurso do processo analítico efectuado não pode prescindir-se da perspectiva conjunta do modo como cada uma das provas é integrada no quadro probatório global. Se cada um dos elementos de prova tem de exigir uma disponibilidade para ser avaliado como se realmente «tivesse sido o único disponível», a articulação das provas entre si e a sua avaliação conjunta permitem o conhecimento global dos factos que, por sua vez se irá reflectir no resultado da totalidade da prova atendível, sendo por isso reciprocamente necessários os dois momentos de valoração.

Da análise probatória global, efectuada igualmente pelo tribunal ad quo não pode de todo concluir-se por uma errada apreciação da prova em termos de julgamento pelo tribunal.

No que respeita à prova directa, sustentada pelas declarações do arguido e também dos documentos, nada há a dizer. A prova citada e sublinhada é, por si só demonstrativa dos factos referidos.

Quanto à conclusão essencial de que no momento do acidente o arguido conduzia a uma velocidade não concretamente apurada, mas suficiente para originar a perda de aderência dos pneus do veículo, a consequente a perda da direcção do mesmo e, finalmente, o seu despiste, bem como sabia que devia adequar a velocidade a que o conduzia às condições climatéricas e às condições físicas da via em que circulava, bem como que o piso molhado diminui consideravelmente a aderência dos pneus dos automóveis à estrada, resulta evidente o julgamento correcto e bem fundamentado efectuado pelo Tribunal, de acordo com o conjunto probatório referido.

Resta apenas referir que de todo se constata qualquer evidência que permita concluir, como pretende o recorrente, a violação do princípio da livre apreciação da prova.

O princípio da livre apreciação da prova, como princípio estruturante do direito processual do continente europeu e, especificamente do direito processual penal português, assume, na dinâmica do processo de fundamentação da sentença penal simultaneamente, uma dupla função de ordenação e de limite.

Vinculado ao princípio da descoberta da verdade material, contrariamente ao sistema probatório fundado nas provas tabelares ou tarifárias que estabelece um valor racionalizado a cada prova, possibilita-se ao juiz um âmbito de discricionariedade na apreciação de cada uma das prova atendíveis que suportam a decisão.

Trata-se de uma discricionariedade assente num modelo racionalizado, na medida em que implica que o juiz efectue as suas valorações segundo uma discricionariedade guiada pelas regras da ciência, da lógica e da argumentação. Ou seja, «o princípio da livre convicção libertou o juiz das regras da prova legal mas não o desvinculou das regras da razão» cf. Michelle Taruffo, «Conocimiento cientifico y estándares de prueba judicial», Jueces para la Democracia, Información y debate, nº 52, Marzo, 2005, p. 67.

Ora conforme foi referido o Tribunal no caso concreto, para chegar à sua decisão, valorou um conjunto diverso de provas utilizando exactamente as regras da razão, fundadas na lógica e na experiência. Daí que não se vislumbra qualquer vício no seu modo de decidir e valorar essas provas que ponha em causa o principio da livre apreciação da prova.

b) Violação do principio da culpa e da presunção de inocência.

Segundo o recorrente a decisão «viola o preceituado pelo artigo 14º do Código Penal, na medida em que a negligência pressupõe a violação de um dever de cuidado (violação do cuidado objectivamente devido) que in casu não se logrou apurar». Para tanto o recorrente alega que «parece resultar evidente é o facto de o Tribunal a quo não ter recolhido elementos probatórios suficientes que lhe permitissem considerar que o arguido não agiu com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e era capaz».

Mais refere, o recorrente que «não se entende como o Tribunal pode ter feito o juízo de censura ético-juridica subjacente ao juízo de culpa, sem ter antes procurado apurar a concreta ou aproximada, velocidade imprimida pelo arguido ao veículo, ou seja, sem antes ter concluido, com segurança da existência de uma efectiva violação do cuidado objectivamente devido. O Tribunal, para concluir como concluiu, tinha de afastar, uma a uma, todas as outras causas aptas a provocar uma acidente desta natureza, o que não sucedeu»

Vale a pena começar por salientar que os crimes negligentes, na sua estruturação dogmática envolvem, três elementos objectivos: i) violação do dever objectivo de cuidado; ii) a produção do resultado típico; iii) a imputação desse resultado objectivo.

No caso dos autos e neste particular o recorrente coloca em causa o elemento «violação do dever objectivo de cuidado» por, segundo ele, não se configurar esse dever, no caso concreto.

O dever objectivo de cuidado, no caso das situações que envolvem condutas cometidas no exercício da condução, tem a sua fonte nas normas legais «positivamente estabelecidas em leis e regulamentos que disciplinam as situações de perigo mais comuns (…) que caracterizam as técnicas e as normas de cuidado que devem ser usadas na actividade correspondente para excluir os riscos que excedem a medida permitida» - cf. António Latas, in « Descrição e Prova dos factos nos crimes por negligência. Questões de ordem geral», Revista do CEJ, n.º 11, Setembro, 2009 p. 58.

Como se sabe é o Código da Estrada e o seu regulamento que fixam a margem de risco permitida na condução e sobre a qual deve a ordem jurídica efectuar o juízo sobre o dever objectivo de cuidado que os condutores devem ter.

O juízo sobre o dever objectivo de cuidado não é, no entanto, um juízo cego ou objectivamente fixado mas deve em cada caso concreto ser analisado. Não é outra coisa o que refere Roxin quando diz que «o que em abstracto é perigoso pode deixar de o ser em concreto», apud, António Latas, «Descrição…», cit. p. 58.

O que se pretende sublinhar é que mesmo nos casos em que o dever objectivo de cuidado tem uma fonte normativa inequívoca pode, em concreto, verificar-se uma situação em que a conduta do agente, pese embora ter violado uma norma legal estabelecida não concorreu, em concreto para que se criasse ou aumentasse o risco permitido subjacente à norma violada, não se «concretizando in casu o perigo pressuposto pela mesma norma» - assim António Latas, cit. p. 59.

No caso em apreço decorre à evidência que o arguido conduzia a uma velocidade não concretamente apurada, mas suficiente para originar a perda de aderência dos pneus do veículo, a consequente a perda da direcção do mesmo e, finalmente, o seu despiste, bem como sabia que devia adequar a velocidade a que o conduzia às condições climatéricas e às condições físicas da via em que circulava, bem como que o piso molhado diminui consideravelmente a aderência dos pneus dos automóveis à estrada,

Ou seja o perigo pressuposto na norma do artigo 24º e seguintes do Código da Estrada que estabelece, em regra que o condutor «deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, ás condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente», foi posto em causa pela conduta do arguido. Aliás a relevância das condições atmosféricas e a sua implicação na condução são reforçadas no Código da Estrada quando se refere no artigo 25º n.º 1 alínea h), a propósito da velocidade moderada que «sem prejuízo dos limites de velocidade fixados o condutor deve moderar especialmente a velocidade (…) nos troços de via em mau estado de conservação, molhados, enlameados ou que ofereçam precárias condições de segurança».

Como decorre dos factos provados, para além de o arguido ser «motorista dos Bombeiros Voluntários de Oliveira do Hospital há vários anos e costumava passar com frequência semanal no local do acidente que conhecia bem», «sabia que devia adequar a velocidade a que o conduzia às condições climatéricas e às condições físicas da via em que circulava, bem como que o piso molhado diminui consideravelmente a aderência dos pneus dos automóveis à estrada.

E sabia que uma vez perdida essa aderência poderia entrar em despistar e provocar lesões, ou mesmo a morte, das pessoas que transportava consigo.»

No caso aquele dever de adequar a velocidade às circunstâncias da via molhada e enlameada foi efectivamente desprezado pelo comportamento do arguido na sua condução, daí tendo originado o despiste do veículo e as consequências trágicas que dele resultaram.

É assim manifesto que o comportamento do arguido violando as normas estradais referidas e o consequente dever de cuidado que se lhe impunha levou à produção do resultado conhecido, não existindo dúvidas de que foi esse seu comportamento que levou a esse resultado e não outro. Daí decorre que não se verificou qualquer violação do princípio da culpa em que se sustenta a decisão, sabido que no caso está em causa, como se referiu ab initio, uma situação de negligência.

III. DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente em 8 Ucs (Artº 87º nº 1 b) e 3 CCJ).
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artigo 94º nº 2 CPP).

Coimbra, 25 de Novembro de 2009


Mouraz Lopes


Félix de Almeida