Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
108/11.7GTAVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: APOIO JUDICIÁRIO
Data do Acordão: 05/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA - JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL DE ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 44º, N.º 1, DA LEI N.º 34/2004, DE 29/07 (REDACÇÃO DA LEI N.º 47/2007, DE 28/08)
Sumário: 1º- Constatando-se que o pedido de apoio judiciário foi deferido por quem tinha competência para o fazer, não poderá, nem deverá o Tribunal pronunciar-se sobre o seu deferimento e sobre as consequências desse deferimento, limitando o seu alcance, por carecer de legitimidade e competência para o fazer.

2º- O apoio judiciário requerido em processo sumário, após a prolação da sentença, mas durante o prazo de recurso dessa decisão de 1ª instância, abrange as custas anteriores.

Decisão Texto Integral: 1. Nos autos de Processo Sumário n.º 108/11.7 ____________________, que correm termos na Comarca do Baixo Vouga, foi, em 3/2/2012, proferido o seguinte Acto Decisório:
«(…)
Sobre o apoio judiciário:
Nos presentes autos foi o arguido detido a 26-02-2011 (sábado).
Ainda detido foi-lhe comunicado que, provisoriamente, tinha direito a apoio judiciário (fls.10).
Compareceu nos Serviços do Ministério Público no dia 28-02-201 1 (segunda-feira), às 09h30m.
Após, a Secção de Processos concluiu pela insuficiência económica do arguido nos termos e para os efeitos previstos no art. 39º, n.ºs 4 a 6, da Lei n.° 34/2004, de 29/07 (fls.19) e foi-lhe nomeado Ilustre Defensor Oficioso com carácter provisório e dependente da concessão de apoio judiciário pelos serviços da S.Social.
O arguido foi condenado por sentença proferida a 28-02-2011 (12h20m), alterada parcialmente por acórdão do T.R.Coimbra de 13-12-2011, decisão já transitada em julgado.
A 03-03-2011 (fls.27), o arguido requereu a concessão de apoio judiciário junto dos serviços da S.Social, o qual lhe foi deferido na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e pagamento da compensação a defensor oficioso (fls.31).
Sobre a concessão de o apoio judiciário ao arguido pronunciou-se o Ministério Público nos termos da vista de fls.33 a 35 (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido) pugnado pela interpretação de que em processo penal a protecção jurídica só pode ser requerida até ao trânsito em julgado da decisão final desde que o requerente pretenda aceder ao direito e aos tribunais.
Caso contrário, se já foi ou sabe que vai ser condenado e com isso se conformou e nada mais quer do processo, mais não tem do que assumir a sua responsabilidade tributária.
Requer o Ministério Público que se desatenda a produção de quaisquer efeitos do deferido apoio judiciário.
O arguido pronunciou-se nos termos do requerimento de fls.42 e 43 (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido) pugnado pela manutenção e validade da decisão que deferiu o apoio judiciário.
Cumpre apreciar e decidir:
Em nosso entender, e salvo o devido respeito por opinião contrária, a posição aqui defendida pelo Ministério Público e pela doutrina e jurisprudência citadas não é a que melhor se ajusta às finalidades do art. 20.° da C.R.P. e do art. 1º, n.º 1 da Lei n.° 34/2004, de 29/07, em conjugação com o art. 15.°, al. c), do Regulamento das Custas Processuais (R.C.P.).
Com efeito, julgamos mais consentâneas com os objectivos das ‘supra” referidas normas as seguintes decisões:
- Acórdão do T.R.Coimbra de 23/11/2010 (em www.dgsi.pt — Processo n.° 43/1O.6GDAND- A.C.1) em cujo sumário se lê que:
“Prevendo a lei a possibilidade de o apoio judiciário ser requerido até ao trânsito em julgado da decisão final e sendo esse benefício concedido pelos serviços competentes para o efeito, não pode o tribunal opor-se com base num diferente entendimento sobre as circunstâncias em que tal benefício poderia ser requerido”.
- Acórdão do T.R.Coimbra de 09/04/2008 (em www.dgsi.pt - Processo n.° 134/06.8GASRE- ACi) em cujo sumário se lê que:
“1. A lei é muito clara nesse aspecto — o apoio judiciário deve ser requerido até ao trânsito em julgado da decisão final (art° 44º, n° 1 da Lei n.º 34/04) —, não havendo qualquer restrição no caso deste ser formulado após a sentença.
2. Assim sendo, tendo tal apoio sido requerido antes do trânsito da sentença pro ferida nos e tendo o mesmo sido deferido, não pode o tribunal vedar o acesso a esse benefício só porque tem um diferente entendimento sobre as circunstâncias em que aquele podia ser requerido, ignorando que a competência para essa concessão é agora dos serviços de segurança social”.
- Acórdão do T.R.Guimarães de 10I03I2011 (em www.dgsi.pt - Processo n.° 39/09.OPABRG.AG1) em cujo sumário se lê que:
“1.Em processo penal, o pedido de apoio judiciário pode ser requerido até ao termo do prazo de recurso da decisão em primeira instância.
2. Se deieij4o o apoio judiciário requerido antes do trânsito em julgado da sentença condenatória da qual não foi interposto recurso abrange as custas de todo o processo e não apenas as devidas após o requerimento.”.
- Acórdão do T.R.Guimarães de 3111012005 (em www.dgsi.pt - Processo n.° 1783/05-1) em cujo sumário se lê que:
“I. Na vigência da Lei 30-E/90 de 20-12, tal como já acontecia no regime do anterior Dec. Lei 387-B/87, de 29-12, em que o apoio judiciário podia ser requerido “em qualquer estado da causa” - artigo 17 n.° 2, a jurisprudência veio a fixar-se no entendimento de que o apoio judiciário só operava para o futuro, isto é, a partir do momento em que tinha sido requerido.
II. Na verdade, destinando-se o sistema de acesso ao direito e aos tribunais a promover que a ninguém seja dificultado ou Impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos, verdadeiramente, o requerente do apoio judiciário só necessitava dele para o que ainda tivesse de litigar, pelo que, fazer retroagir os seus efeitos ao inicio do processo equivaleria a uma isenção do pagamento das quantias já em dívida, o que nada tinha a ver com a possibilidade de defesa.
III. Mas a Lei 34/04 de 29-7 estabeleceu um regime diferente: o apoio judiciário “deve ser requerido antes da primeira intervenção processual” (artigo 18,n° 2), salvo se ocorrer facto superveniente, e mesmo neste caso, “o apoio judiciário deve ser requerido antes da primeira intervenção processual que ocorra após o conhecimento da respectiva situação” (art. 18 n.° 3).
IV. No entanto, alguma excepção tinha de ser prevista para o processo penal, pena de existirem situações em que, simplesmente, seria negada a possibilidade de apoio judiciário a quem dele estivesse carente, pois que, sendo, actualmente, o apoio judiciário sempre decidido pelos serviços da segurança social (art. 20), casos haveria em que o arguido, na prática, estaria impedido de se dirigir àqueles serviços antes da primeira intervenção no processo, como, por exemplo, quando fosse detido em flagrante delito e apresentado nessa situação para primeiro interrogatório ou para julgamento em processo sumário, como é o caso dos autos.
V. Essa a razão da norma do artigo 44º, n° 1 da nova Lei, que dispõe que se aplicam ao “processo penal, com as necessárias adaptações, as disposições do capítulo anterior, com excepção do disposto nos n°s 2 e 3 do artigo 18º, devendo o apoio judiciário ser requerido, até ao trânsito em julgado da decisão final”.
VI. Temos, pois que, actualmente, ao contrário do que acontecia anteriormente, a lei fixa o momento até ao qual tem de ser requerido o apoio judiciário: na generalidade dos processos, até à primeira intervenção; no processo penal, até ao trânsito em julgado da sentença.
VII. Finalmente sempre se dirá, (embora como questão prejudicada no caso dos autos, pois o apoio judiciário foi formulado antes do trânsito em julgado da sentença por arguido que havia sido detido e nessa condição apresentado em juízo para julgamento em processo sumário), que nada na letra da norma do artigo 44.° n.° 1 da Lei 34/04, permite a conclusão de que o arguido é único sujeito processual por ela abrangido e, mesmo ele, só se estiver detido.
VIII. Efectivamente, onde a lei não distingue não cabe ao julgador diferenciar, nomeadamente censurando tal decisão do legislador de permitir que outros sujeitos processuais também beneficiem de um regime mais favorável que talvez apenas se impusesse relativamente ao arguido detido”.
- Acórdão do T.R.Guimarães de 16/3/2009 em www.dgsi.pt - Processo n.° 205/07.3GAPTL- A.G1) (subscreve e mantêm o entendimento do acórdão do T.R.Guimarães de 31/10/2005 “supra” referido) em cujo sumário se lê que:
“1 — Actualmente, em processo penal, o pedido de apoio judiciário pode ser requerido até ao termo do prazo de recurso da decisão em primeira instância.
II — Se deferido, o apoio judiciário abrange as custas de todo o processo e não apenas as devidas após o requerimento”.
A interpretação restritiva que o Ministério Público defende levaria, em nosso entender, e salvo o devido respeito por opinião contrária, a que, na prática, os arguidos detidos em flagrante delito (artigo 256.° do C.P.Penal), apresentados de imediato ao Ministério Público e por este a julgamento em processo sumário (artigos 381º, 382.° e 387.° do C.P.Penal) nunca pudessem aceder ao apoio judiciário, pois nunca tiveram oportunidade, antes da audiência de julgamento, e em rigor (artigo 389°, n.° 6. do C.P.Penal), antes da condenação) de se deslocar aos serviços da S.Social e requerer o apoio judiciário (no caso concreto: o arguido foi detido no dia 26/02/2011 e libertado nesse dia (sábado; compareceu nos Serviços do Ministério Público no dia 28-02-2011 (segunda-feira), pelas 09h30m e às 12h20m desse dia foi julgado e condenado).
Seria a total e completa denegação do acesso ao apoio judiciário por estes arguidos desde o princípio até ao fim do processo.
Igualmente seria enorme o espanto do cidadão/arguido perante a justiça, caso o mesmo Tribunal onde realizou a simulação do cálculo de rendimentos para efeitos de concessão provisória de protecção jurídica lhe viesse agora comunicar que tal diligência não tem qualquer efeito útil e que a subsequente decisão definitiva da S.Social que lhe concede o apoio de nada vale.
Por outro lado ainda, a interpretação da L. n.° 34/2004, de 29/07, no sentido de que a concessão do benefício de apoio judiciário só se justifica nos casos em que o arguido necessite de despender determinadas quantias para defender os seus direitos [neste sentido, a título de exemplo, o acórdão do T.R.Coimbra de 18-11-2009 (em www.dgsi.pt— Processo n.° 207/07.OGCPBL Cl) e o acórdão do T.R.Coimbra de 28-01-2010 proferido no processo n.° 491/08.1GBAND.C1 deste Juízo de Instância Criminal), em nosso entender, e sempre salvo o devido respeito por opinião contrária, esbarra frontalmente com o art. 15°, al. c), do R.C.P.
A ser deste modo, desde a entrada em vigor do R.C.P., nunca seria admissível a concessão do apoio judiciário ao arguido, por desnecessário.
Com efeito, à luz do R.C.P. os arguidos estão sempre dispensados do pagamento prévio de taxa de justiça, pelo que não têm que despender previamente qualquer quantia para defender e exercer os seus direitos, logo, de acordo com esta interpretação, nunca se verifica em processo penal a necessidade de conceder aos arguidos o benefício do apoio judiciário.
Em síntese, face ao R.C.P., a concessão do apoio judiciário visa efectivamente e apenas o não pagamento de custas pelo arguido que não reúne condições económico-financeiras para o efeito, seja qual for a fase processual em que o mesmo é requerido junto dos serviços da S.Social (até ao trânsito em julgado), pois ao longo de todo o processo nunca é exigido ao arguido o prévio pagamento de qualquer quantia para o exercício dos seus direitos de defesa.
Pelo exposto, em nosso entender:
1) Actualmente, o apoio judiciário pode ser requerido pelo arguido até ao termo do prazo de recurso da decisão em primeira instância;
2) Se deferido pelos serviços da S.Social, o apoio judiciário abrange as custas de todo o processo e não apenas as devidas após o requerimento.
No caso concreto:
O arguido requereu o apoio judiciário antes do termo do prazo de recurso da sentença condenatória pelo que dentro do prazo legal, devendo, portanto, o Tribunal observar o que foi decidido no âmbito do procedimento administrativo que correu termos nos serviços da S.Social.
Notifique»

2. Inconformado com este acto decisório, dele recorreu, em 13/2/2012, o Ministério Público, pedindo a sua revogação e a sua substituição por outro que decline a produção de feitos nos autos do concedido apoio judiciário, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
«1. Depois da publicação da sentença condenatória dos autos, da qual o arguido não recorreu, mas ainda antes do trânsito, requereu ele perante a Segurança Social e viu deferida a concessão de apoio judiciário, nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de pagamento da compensação de defensor oficioso.
2. Tais requerimento e decisão administrativa - que ignoraram o estado dos autos a que respeitam - sendo embora aquele tempestivo e tendo esta fundamento de facto abstracto, não podem impor potestativamente os seus efeitos nos autos, não tendo qualquer repercussão nas custas e demais encargos da responsabilidade única do condenado, de que o Estado é credor.
3. Na verdade, ao demandar o benefício de apoio judiciário o arguido, ora condenado, não quis aceder ao direito e aos tribunais, cfr. art. 200º da CRP; não quis conhecer, exercer ou defender os seus direitos, cfr. art. 10º da L. 34/2004 de 29.7 mas, tão só e apenas, como ele ali escreveu, livrar-se/eximir-se do pagamento das custas e demais encargos a que dera lugar a sua condenação, não pagar quaisquer custas processuais e honorários ao defensor nomeado...” (sic.)
4. O despacho recorrido aceitou, formal e acriticamente, a produção de efeitos nos autos da citada decisão administrativa, ainda que o arguido se tenha conformado com a sentença, não curando de saber, como devia, se ele pretendia aceder ao direito e aos tribunais ou conhecer, exercer ou defender os seus direitos, tal a matriz, a génese e a finalidade únicas do instituto.
5. A passividade de tal despacho, com o devido respeito, escorado apenas na análise da questão da tempestividade do requerido e do alcance da decisão administrativa, que o MP não questionou, colide de modo ostensivo com a filosofia e finalidade do instituto, já não como um instrumento/regime de acesso ao direito e aos tribunais, já não para conhecer, exercer ou defender direitos, como claramente resulta da letra e do espírito da lei mas, antes, como meio expedito de perdoar/branquear/amnistiar os encargos de um processo já exaurido para o requerente, onde, em suma, o ius dicere já teve lugar, ademais por via administrativa e á custa dos cada vez mais esforçados/esgotados/mirrados contribuintes, ademais nesta conjuntura de grande contenção económica e financeira...
6. Para significar que o termo final (meramente formal) previsto no citado art. 44°-1 “devendo o apoio judiciário ser requerido até ao trânsito em julgado da decisão final, no que tange á oportunidade do pedido, não pode ser desligado dos fundamentos materiais concretos e da finalidade subjacentes ao requerimento e á concessão do benefício em causa, para não o desvirtuar completamente.
7. Embora o requerido apoio seja tempestivo e haja fundamento de facto abstracto para o seu deferimento - razão pela qual o MP não impugnou a decisão administrativa -, a verdade é que, em concreto, esse pedido e a decisão da Seg. Social que o acolheu abstraíram do estado dos autos, afrontando a finalidade do instituto.
8. Ou seja, em processo penal a protecção jurídica só pode requerida depois da sentença e até ao respectivo trânsito desde que o requerente dela pretenda recorrer, isto é, desde que ainda queira aceder ao direito e aos tribunais, assim conhecendo, exercendo ou defendendo os seus direitos, sendo esta a única interpretação (restritiva) da lei que respeita a previsão do art. 9° do CC., ora reproduzido e a génese e finalidade material do instituto.
9. Pelo que, a decisão administrativa que lhe concedeu o apoio judiciário nestes autos não se impõe potestativamente ao Tribunal quando é evidente que afrontou a ratio e a finalidade do instituto, donde, podia e devia ser apreciada criticamente pelo Tribunal, já que nenhuma repercussão pode ter na responsabilidade tributária nestes autos a cargo do arguido/requerente/condenado.
10. Sejamos claros: por um lado, com o requerido apoio o arguido, sabendo-se condenado, pois não recorreu, encontrou um meio expedito de endossar a sua responsabilidade tributária para os contribuintes que em nada contribuíram para o crime que ele cometeu e, por outro, o despacho judicial recorrido vergou-se perante uma mera decisão administrativa, da qual foi mero depositário, sem curar de saber, como devia, se foi ostensivamente tirada à revelia dos estado dos autos e da finalidade do instituto e se podia surtir efeitos nestes autos, inércia que não podemos aceitar.
11. O despacho recorrido violou, entre outros, os arts. 20.° da CRP e l, 18°, 39º a 44.°, todos da Lei n.º 34/2004 de 29.7, na redacção da Lei n.º 47/2007 de 28.8.
Nestes termos e nos mais de direito, se Vas. Exas. derem provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e mandando-o substituir por outro que decline a produção de efeitos nos autos do concedido apoio judiciário, será feita a habitual, Justiça».

3. O arguido respondeu ao recurso, pedindo a sua improcedência.

4. Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto limitou-se, a fls _________, a apor visto nos autos.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Acórdão de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Acórdão de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Acórdão de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), uma questão vem colocada pelo recorrente à apreciação deste tribunal:
· Saber se o apoio judiciário requerido em processo sumário, após a prolação da sentença mas antes do respectivo trânsito em julgado – ou seja, durante o prazo de recurso da decisão de 1ª instância -, abrange as custas anteriores.

2. O legislador ordinário através da Lei nº 34/2004, de 29/7 - que entretanto foi alterada e republicada com a Lei nº 47/2007, de 28/8 - veio regular o regime de acesso ao direito e aos tribunais.
Estatui o nº 1 do artigo 1º (finalidades) da citada Lei nº 34/2004, na redacção da Lei nº 47/2007, de 28/8 que: "O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos."

3. No nosso processo, o arguido foi constituído como tal a 26.2.2011 e veio a ser julgado e condenado a 28.2.2011, cuja sentença foi depositada a 10.3.2011.
O arguido requereu a protecção jurídica a 3.3.2011, tendo-lhe sido deferida por decisão da Segurança Social de 29.3.2011.
Nesta questão ora discutida nos autos, fazemos nossa a doutrina expendida por alguns recentes Acórdãos desta Relação.
Não é, de facto, nova a questão suscitada, sendo certo que, como, desde logo, resulta do despacho em crise, não tem merecido resposta uniforme por parte dos tribunais superiores.
O arguido viu pelos serviços competentes da Segurança Social, integralmente, deferida a sua pretensão, apresentada tempestivamente.
Neste quadro, defende o recorrente uma interpretação restritiva do artigo 44.º, n.º 1 da Lei n.º 34/2004, de 29.07, na redacção da Lei n.º 47/2007, de 28.08, por forma a que o apoio judiciário concedido, logo que o requerente não interpôs recurso da sentença, nenhuma repercussão tenha na sua responsabilidade tributária nos autos, o que encontraria razão de ser nos fundamentos e finalidade subjacentes ao instituto do apoio judiciário.
À posição do recorrente não é alheio o ensinamento de Salvador da Costa, perfilhada em vários arestos, no sentido de dever ser interpretada restritivamente a parte final do n.º 1 do artigo 44.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho [alterada pela Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto] de modo que o apoio judiciário só possa ser concedido depois da prolação da sentença final com vista à interposição de recurso, concluindo, então, o autor “Assim, se o arguido não recorrer da sentença condenatória nem manifestar a intenção de dela pretender recorrer, deve ser-lhe indeferido o pedido de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas que haja formulado depois daquela sentença.” – [cf. “O Apoio Judiciário”, 5.ª Edição Actualizada e Ampliada, Almedina, pág. 249].
Com o devido respeito, não nos parece, porém, que constitua esta a melhor interpretação.
Por conter uma retrospectiva, a nosso ver, inteiramente correcta, com toda a relevância na situação em análise, transcrevemos o que a propósito ficou consignado no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31.10.2005 [proferido no proc. n.º 1783/05 – 1, Rel. Fernando Monterroso]:
«Na vigência da Lei 30- E/90 de 20-12, tal como já acontecia no regime do anterior Dec. – Lei 387- B/87, o apoio judiciário podia ser requerido “em qualquer estado da causa” – art. 17 nº 2.
Tal possibilidade suscitou a questão de saber que actos deviam ser abrangidos pelo apoio judiciário, quando era requerido em fases já adiantadas do processo. A jurisprudência veio a fixar-se no entendimento de que o apoio judiciário só operava para o futuro, isto é, a partir do momento em que tinha sido requerido. Destinando-se o sistema de acesso ao direito e aos tribunais a promover que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos, verdadeiramente, o requerente do apoio judiciário só necessitava dele para o que ainda tivesse de litigar. Fazer retroagir os seus efeitos ao início do processo equivaleria a uma isenção do pagamento das quantias já em divida, o que nada tinha a ver com a possibilidade de defesa, dali para a frente, dos seus direitos – por todos, v. ac. Rel. Porto de 4-10-00, CJ tomo IV, pag. 230….
Mas a Lei 34/04 de 29-7 estabeleceu um regime diferente: o apoio judiciáriodeve ser requerido antes da primeira intervenção processual” (art. 18 nº 2), salvo se ocorrer facto superveniente. Mesmo neste caso, “o apoio judiciário deve ser requerido antes da primeira intervenção processual que ocorra após o conhecimento da respectiva situação” (art. 18 nº 3).
Alguma excepção tinha de ser prevista para o processo penal, sob pena de existirem situações em que, simplesmente, seria negada a possibilidade de apoio judiciário a quem dele estivesse carente.
Sendo, actualmente, o apoio judiciário sempre decidido pelos serviços da segurança social (art. 20), casos haveria em que o arguido, na prática, estaria impedido de se dirigir àqueles serviços antes da primeira intervenção no processo. Seria assim, por exemplo, quando fosse detido em flagrante delito e apresentado nessa situação para primeiro interrogatório ou para julgamento em processo sumário …Esta questão nunca se pôs na Lei 30-E/90, porque durante a vigência da mesma os pedidos de apoio judiciário formulados pelos arguidos sempre foram “apresentados, instruídos, apreciados e decididos perante a autoridade judiciária” (art. 57 nº 3). Isso permitia que o arguido, no próprio acto do interrogatório ou do julgamento, requeresse ao juiz a concessão do apoio judiciário.
Essa a razão da norma do art. 44 nº 1 da nova lei, que dispõe que se aplicam ao “processo penal, com as necessárias adaptações, as disposições do capítulo anterior, com excepção do dispostos nos nºs 2 e 3 do art. 18, devendo o apoio judiciário ser requerido até ao trânsito em julgado da decisão final”.
Temos, pois, que, actualmente, ao contrário do que acontecia anteriormente, a lei fixa o momento até ao qual tem de ser requerido o apoio judiciário: na generalidade dos processos, até à primeira intervenção; no processo penal, até ao trânsito em julgado da sentença.
Posto isto, não deve o aplicador da lei distinguir onde o legislador nenhuma razão viu para diferenciar. Fixando a lei um prazo final para a formulação do pedido do apoio judiciário, se o mesmo for respeitado, o deferimento abrangerá naturalmente todo o processo».

4. Entretanto, em, 2007, tal artigo 44º veio a ter nova redacção, o que, na prática, não altera muito os dados do nosso problema.
Ficou assim a sua letra:
«Em tudo o que não esteja especialmente regulado no presente capítulo relativamente à concessão de protecção jurídica ao arguido em processo penal aplicam-se, com as necessárias adaptações, as disposições do capítulo anterior, com excepção do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 18, devendo o apoio judiciário ser requerido até ao termo do prazo de recurso da decisão em primeira instância».
Decorre desta norma que, no processo penal (que tem particularidades próprias, que o distinguem designadamente do processo civil), o requerimento a solicitar apoio judiciário pode ser apresentado até ao termo do prazo do recurso da decisão em 1ª instância (anteriormente, falava-se em «até ao trânsito em julgado da decisão final»).
No caso, o pedido foi tempestivamente feito já que data de 3/3/2011, o que significa que foi antes do termo do prazo do recurso da decisão de 1ª instância (3 dias após a leitura da sentença e ainda antes do seu depósito).

5. Na senda do aresto de Guimarães, acima citado, outros se seguiram no mesmo sentido, entre os quais os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 16.03.2009, proferido no proc. n.º 205707.3GAPTL – A.G1, Rel. Desembargadora Nazaré Saraiva, do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.04.2008, proc. n.º 134/06.8GASRE – A.C1, Rel. Esteves Marques, de 23.11.2010, proferido no proc. n.º 43/10.6GDAND – A.C1, Rel. Jorge Jacob, do Tribunal da Relação do Porto de 24.05.2006, proc. n.º 0546876, Rel. Dias Cabral, disponíveis em www.dgsi.pt.
Veja-se ainda o Acórdão desta Relação de 23/11/2010 (Pº 43/10.6GDAND-A.C1).
Remontando ao caso dos autos, constata-se que o arguido requereu o apoio judiciário antes do termo do prazo do recurso da decisão em 1ª instância - sentença proferida em processo sumário -, tendo-lhe o mesmo sido concedido na modalidade requerida.
Para além de não resultar da lei qualquer dever que recaia sobre o requerente de apoio judiciário de manifestar no próprio requerimento a intenção de interpor recurso, afigura-se-nos decisiva a circunstância de se tratar de uma decisão administrativa, tomada, pelos serviços competentes, de acordo com a lei, que não pode ser contestada, afastada pelo tribunal, com base numa tese que contraria o legalmente consagrado, e que, como decorre do supra exposto, resultou de uma evolução legislativa num quadro em que a controvérsia não era desconhecida – bem pelo contrário -, não cabendo, pois, ao julgador, ainda que entenda mais consentâneo com o espírito do instituto do apoio judiciário, sobrepor a sua interpretação num caso em que a opção tomada – boa ou má, não interessa - não deixa margem de manobra.
Tal é, na nossa perspectiva, quanto basta para, na situação em apreço, o recurso não merecer resposta positiva.
Na verdade, o requerente, ainda antes do trânsito em julgado da sentença, apresentou junto dos serviços da Segurança Social o requerimento com vista à concessão do apoio judiciário, o que viu, nas modalidades pretendidas, deferido, não podendo, após, o tribunal retirar efeito à decisão, sob pena de se imiscuir, à margem da lei, num poder que, há muito, não lhe assiste – [cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.03.2011, proferido no proc. 39/09.0PABRG.AG1, Rel. Cruz Bucho, disponível em www.dgsi.pt.].
E não se venha agora esgrimir com a tese de fraude à lei: que chances teve este homem de pedir mais cedo o benefício do apoio judiciário, num processo sumário – célere – como este é?
Não admitir que este homem, que tem todo o direito de pedir clemência tributária, face à sua inegável insuficiência económica (provada porque documentada), litigue com o benefício do apoio judiciário, mesmo apesar de já se saber condenado, é tratá-lo com um filho de um deus menor – tem o direito de dizer ao Estado que não consegue pagar a sua dívida de custas criminais, não devendo esse juízo ficar dependente de uma não consumada condenação criminal…
É que não há «pobres de primeira e pobres de segunda», pois então!
Há apenas gente carenciada que tem direito a litigar com tal benefício – e quem o decide, não são os tribunais. A estes, resta-lhes retirar as consequências jurídicas de uma prévia declaração por parte de uma terceira entidade, na sequência de um pedido tempestivamente feito.
Em suma:
1º- Constatando-se que o pedido de apoio judiciário foi deferido por quem tinha competência para o fazer, afigura-se-nos que não poderá, nem deverá o Tribunal pronunciar-se sobre o seu deferimento e sobre as consequências desse deferimento, limitando o seu alcance, por carecer de legitimidade e competência para o fazer - foi isso que não fez o tribunal recorrido. E muito bem.
2º- O apoio judiciário requerido em processo sumário, após a prolação da sentença mas antes do respectivo trânsito em julgado – ou seja, durante o prazo de recurso da decisão de 1ª instância -, abrange as custas anteriores.

6. Improcede, pois, e com toda a justiça, o recurso.


III. DISPOSITIVO

Nesta conformidade, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção – Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra o despacho recorrido.
Sem tributação.
Paulo Guerra (Relator)
Alberto Mira