Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1887/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: JUSTO IMPEDIMENTO
ARGUIÇÃO DE INCIDENTE
PRÁTICA DO ACTO EM ATRASO
Data do Acordão: 07/18/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA- 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 146º DO CPC .
Sumário: I – O justo impedimento é concedido às partes, a título excepcional, quando razões estranhas e imprevisíveis ocorram, de forma que se revele adequada e equitativa a concessão de um prazo suplementar para a prática do acto.
II – A parte que invoque o justo impedimento para a prática de um acto processual em tempo deve arguir o incidente e praticar esse acto logo que cesse o justo impedimento.

III – O juiz, ouvida a parte contrária e se julgar verificado o impedimento, admitirá a parte a praticar o acto fora de prazo, deferindo esse prazo para o dia imediato àquele em que tenha sido o último de duração do impedimento .

IV – O efeito do justo impedimento não é nem o de impedir o início do curso de prazo peremptório nem o de interromper tal prazo quando em curso, no momento em que ocorre o facto que se deva considerar justo impedimento, inutilizando o tempo já decorrido, mas tão somente o de suspender o termo de um prazo peremptório, deferindo-o para o dia imediato aquele que tenha sido o último de duração do impedimento .

V – Ou seja, através do justo impedimento não se pode pretender que novo prazo para a prática do acto seja concedido, apenas se concedendo ao requerente a possibilidade de praticar o acto no momento (dia) imediatamente posterior ao fim da cessação do impedimento .

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A..., residente na Rua Cidade de Poitiers 34, 2º, Monte Formoso, Coimbra, propõe contra B..., com sede na Rua Cidade de Poitiers 151, r/c, Monte Formoso, Coimbra, a presente acção declarativa de condenação com processo sumário, pedindo se decrete a resolução do contrato de arrendamento que identifica, por falta de pagamento de rendas e, em consequência, se condene a R. da despejar o locado e a restituir as fracções a ela, A., livres e devolutas e pagar-lhe o valor das rendas em atraso, no valor de 1840 euros, acrescidas dos juros de mora a contar da citação até integral pagamento e ainda o valor das rendas que se vencerem na pendência da acção até entrega efectiva do locado, acrescidas dos respectivos juros, desde a constituição da mora até efectivo pagamento.
1-2- A R. foi citada para contestar, mas não o fez, razão por que foi condenada no pedido.
1-3- Por requerimento de 15-11-2004, veio a R. invocar justo impedimento, nos termos do art. 146º do C.P.Civil, com vista a poder contestar a acção, com o fundamento, em síntese, de que, pese embora tenha assinado o aviso de recepção um seu sócio gerente, o certo é que só se deu conta da existência do processo após ter sido notificada da sentença final, pois uma das suas funcionárias terá dito a esse seu gerente, que a carta lhe era a si destinada, tendo ficado na posse da mesma.
1-4- Entretanto através do requerimento de fls. 22, veio a R. interpor recurso da sentença, recurso que foi admitido como apelação, com efeito suspensivo.
1-5- Notificada a parte contrária para se pronunciar sobre o incidente de justo impedimento, a mesma sustentou o seu indeferimento, em síntese, por os motivos invocados não poderem ser integrados no conceito de justo impedimento e, além disso, porque com a alegação do justo impedimento, não praticou o acto em falta.
1-6- Através de articulado de fls. 46, entrado em juízo em 31-1-2005, veio a R. contestar, pedindo a improcedência da acção.
1-7- Por decisão judicial de 13-10-2005, foi indeferido o justo impedimento invocado pela R.
1-8- Não se conformando com esta decisão dela veio interpor recurso a R., requerente, recurso que foi admitido como agravo com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo.
1-9- Notificada da admissão deste recurso de agravo, veio a A. recorrer do respectivo despacho, recurso que foi admitido como agravo com subida imediata em separado e com efeito devolutivo.
Porém, por despacho judicial de fls. 164, foi este recurso julgado deserto por falta de alegações.
1-10- A R. alegou ( quanto ao recurso de apelação ), tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- O conhecimento dos factos que fundamentam o justo impedimento para a prática do acto, apresentação da contestação, prejudica o conhecimento do mérito da causa.
2ª- Nos termos do art. 279º do C.P.Civil não deve ser apreciado o recurso de apelação enquanto não estiver definitivamente julgada a questão do justo impedimento.
3ª- Para a acção proceder, era necessário que a recorrida tivesse alegado cumulativamente que a recorrente não procedeu ao pagamento da renda e não procedeu ao depósito liberatório.
4ª- Não se encontrando preenchidos todos os elementos constitutivos do direito de resolução do contrato por falta de pagamento de rendas.
5ª- Decidindo como decidiu, o tribunal recorrido violou o art. 64º nº 1 al. a) do RAU.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso e revogar-se a sentença recorrida, julgando-se improcedente a acção.
1-11- A parte contrária respondeu a estas alegações sustentando o não provimento do recurso e a confirmação da decisão recorrida.
1-12- A R. alegou ( quanto ao recurso de agravo ), tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- O Tribunal recorrido violou o art. 146º do C.P.Civil e o art. 20º da Constituição.
2ª- Da letra da lei, art. 146º do C.P.Civil, resulta que antes de a parte que alega o justo impedimento praticar o acto em atraso, deve o juiz pronunciar-se sobre o justo impedimento.
3ª- Uma vez apreciada a alegação de justo impedimento, o juiz admitirá ou não a prática do acto em atraso.
4ª- A recorrente, assim que cessou a causa impeditiva, apresentou-se a requerer o justo impedimento com fundamentação relevante e atendível, oferecendo prova.
5ª- O despacho recorrido debruçou-se apenas sobre uma questão formal.
6ª- O justo impedimento é consagrado na nossa lei, a título excepcional por uma questão de justiça material, para dar realização a situações excepcionais, por ocorrências estranhas e imprevisíveis ao obrigado à prática do acto, funcionando como uma válvula de escape à rigidez fixada na lei.
7ª- O art. 20º da Constituição traduz-se essencialmente na real possibilidade de obter decisão jurídica sobre toda a questão juridicamente relevante
Termos em que o despacho recorrido deve ser substituído por outro que admita a prática do acto em atraso.
1-13- A parte contrária respondeu a estas alegações sustentando o não provimento do recurso e a confirmação da decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Como se vê pelo relatório deste acórdão, haverá para apreciar a apelação referida sob o nº 1-4 e o agravo referenciado sob o nº 1-8.
Nos termos do art. 710º nº 1 do C.P.Civil, a apelação e o agravo deveriam ser apreciados pela ordem da sua interposição. Daí que, no caso, se deveria, em primeiro lugar, conhecer da apelação porque se trata do recurso interposto primeiramente e depois apreciar o agravo. Não procederá, porém, assim, visto que, patentemente, o agravo a proceder prejudica o conhecimento do mérito da causa e logo a apreciação da apelação. Por isso, começaremos por conhecer do agravo e depois se se justificar da apelação.
Uma vez que o âmbito objectivos dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas ( arts. 690º nº1 e 684º nº 3 do C.P.Civil ).
A) Quanto ao agravo:
2-2- No despacho recorrido, para o que aqui importa, considerou-se que o instituto do justo impedimento não dispensa, de acordo com a lei, a prática do acto processual cujo prazo exauriu, assim que cessa o facto ou a circunstância que impediu a prática atempada ( ou seja, assim que cessa o impedimento justificado ). No caso, verificando-se que a R., apesar de ter invocado o justo impedimento para praticar o acto processual da contestação fora de prazo, como não contestou logo, tendo-o feito apenas muito posteriormente, indeferiu-se o requerido, não se chegando sequer a apreciar os fundamentos ou razões do justo impedimento.
A este entendimento, contrapôs a agravante que da letra da lei, art.146º do C.P.Civil, resulta que antes de a parte, que alega o justo impedimento, praticar o acto em atraso, deve o juiz pronunciar-se sobre o justo impedimento. Uma vez apreciada a alegação de justo impedimento, o juiz admitirá ou não a prática do acto em atraso. A recorrente, assim que cessou a causa impeditiva, apresentou-se a requerer o justo impedimento com fundamentação relevante e atendível, oferecendo prova, pelo que formalmente cumpriu o dispositivo legal.
Quer dizer, segundo o despacho recorrido, como a recorrente, ao mesmo tempo que deduziu o justo impedimento não praticou o acto, não o poderá já realizar. No entendimento da recorrente, tendo deduzido o justo impedimento, deveria o Mº Juiz apreciar esse fundamento e caso fosse entendido a ocorrência de justo impedimento, então poderia praticar o acto.
Vejamos:
Por evidentes motivos de disciplina processual, a lei concede às partes a obrigatoriedade do cumprimento de prazos. Assim, por exemplo, para contestar uma acção sumária ( como é o caso dos autos ) o réu tem um prazo de 20 dias ( art. 783º do C.P.Civil ). Pode suceder, porém, que por motivo não imputável à parte ( ou a seu representante ) que esta não pratique o acto atempadamente. Poderá então nessas circunstâncias invocar o justo impedimento da prática do acto fora de prazo. O justo impedimento é concedido às partes, a título excepcional, quando razões estranhas e imprevisíveis ocorram, de forma que se revele adequado e equitativo a concessão de um prazo suplementar para a prática do acto.
O art. 146º define o que se deve entender por justo impedimento e estabelece a forma de arguição do incidente. Assim, refere o nº 1 da disposição que “considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto”. Acrescenta o nº 2 da disposição que “a parte que alegar o justo impedimento oferecerá logo a respectiva prova; o juiz ouvida a parte contrária admitirá o requerente a praticar o acto fora de prazo se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou”.
Portanto para o aqui interessa e face a esta disposição, a parte, invocando o justo impedimento, deve praticar o acto logo que cesse o justo impedimento. O juiz, ouvida a parte contrária, se julgar verificado o impedimento, admitirá a parte a praticar o acto fora de prazo, deferindo esse prazo para o dia imediato àquele em que tenha sido o último de duração do impedimento.
Como bem se refere na decisão recorrida, o efeito do justo impedimento não é nem o de impedir o início do curso de prazo peremptório, nem o de interromper tal prazo quando em curso, no momento em que ocorre o facto que se deva considerar justo impedimento, inutilizando o tempo já decorrido, mas tão somente o de suspender o termo de um prazo peremptório, deferindo-o para o dia imediato aquele que tenha sido o último de duração do impedimento. Ou seja, através do justo impedimento não se pode pretender que novo prazo para a prática do acto seja concedido. Nos termos legais, apenas se concede ao requerente, a possibilidade de praticar o acto no momento ( dia ) imediatamente posterior, ao fim da cessação do impedimento.
Revertendo estes princípios para o caso vertente, lícito será concluir que a recorrente não procedeu da forma determinada. Isto porque, invocou o justo impedimento, sem que tivesse desde logo oferecido o acto em falta, isto é, a contestação. Com efeito, apresentou o requerimento invocando tal fundamento a 15-11-2004 ( e nesta altura já há 15 dias tinha conhecimento da situação que fundamentou o seu pedido de justo impedimento, como iremos ver ), tendo apresentado a contestação apenas em 31-1-2005, ou seja mais de dois meses depois. Quer isto dizer que o requerimento do justo impedimento, não foi acompanhado como devia, do acto ( contestação ) em falta, pelo que tal requerimento não poderia ser admitido.
De resto, se bem observarmos o próprio requerimento em que foi invocado o justo impedimento ( que entrou em juízo em 15-11-2004 ), verificamos, pelo seu conteúdo, que a R. ficou ciente da situação desencadeadora do impedimento que invocou, na altura em que foi notificada da sentença ( onde, nas suas próprias palavras, vinha referido que havia sido regularmente citada para contestar a acção e não o havia feito ), isto é, em 31-10-2005 ( 30-10-2005 domingo, vide fls. 18 e art. 254º nº 3 do C.P.Civil ). Só vindo a invocar o justo impedimento quinze dias depois, como a própria recorrente deve aceitar, não o fez, obviamente, logo que ele ( impedimento ) cessou, como impõe a disposição legal evidenciada. Por isso, é óbvio que o incidente não foi invocado em momento oportuno.
Quer dizer que a posição assumida na douta decisão recorrida foi certa.
Evidentemente que o art. 20º da Constituição da República Portuguesa não desmente ou vai contra o entendimento referido. Com efeito, tal disposição concede, genericamente, aos cidadãos o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva. Claro que o art. 146º do C.P.Civil, por si próprio, não viola o dispositivo genérico da Constituição em causa.
Segundo a recorrente, a violação desse art. 20º “traduz-se essencialmente na real possibilidade de obter uma decisão jurídica sobre a questão juridicamente relevante”. Este entendimento carece de sentido, porque a disposição não nega a necessidade da existência de regras processuais que disciplinem a tutela efectiva de direitos. O juízo da recorrente levaria, com o fundamento de se dever privilegiar as questões juridicamente relevantes, a que todas as regras adjectivas fossem postergadas, o que é algo inadmissível, como a própria recorrente deve aceitar.
Só mais umas palavras para fazer sublinhar a incoerência da recorrente ao sustentar que deve o juiz, primeiramente, pronunciar-se sobre o justo impedimento, admitindo depois que o requerente pratique o acto fora de prazo num momento processual posterior. Se assim entendia, porque apresentou a contestação, sem que o juiz tenha proferido decisão sobre a questão?
O agravo é, pois, improcedente.
B) Quanto à apelação:
2-3- Como o agravo não procedeu, haverá que conhecer da apelação.
A recorrente sustenta que para a acção proceder, era necessário que a A. tivesse alegado, cumulativamente, que a R. não procedeu ao pagamento da renda e não procedeu ao depósito liberatório, o que não foi feito, não se encontrando, assim, preenchidos todos os elementos constitutivos do direito de resolução do contrato por falta de pagamento de rendas, como resulta do art. 64º nº 1 al. a) do RAU.
Mais uma vez a recorrente carece de razão.
Na sentença recorrida consideram-se assentes, por confissão, os factos alegados na p.i.. Nesta conformidade, disse-se no aresto que “ficou assente, a Ré, que estava contratualmente obrigada a pagar a renda de 460, euros por mês pelo gozo das fracções, não pagou nenhuma renda desde Maio de 2004. Tal incumprimento, por parte da Ré e não se mostrando efectuado o depósito liberatório, confere à Autora o pretendido despejo do locado”. Por isso e nos termos do art. 64º nº 1 al. a) do RAU, considerou-se resolvido o contrato de arrendamento em causa, condenando-se a R. a despejar o locado.
Nos termos da disposição em causa o senhorio poderá resolver o contrato de arrendamento se o arrendatário “não pagar a renda no tempo e lugar próprios nem fizer depósito liberatório”.
O pagamento da renda no tempo e lugar próprios, constitui uma das obrigações do arrendatário, como decorre o art. 1038º al. a) do C.Civil.
Não cumprindo o arrendatário esta obrigação, concede ao senhorio o direito de pedir a resolução do contrato.
Constituindo a falta de pagamento de rendas, o facto constitutivo do direito à resolução do contrato invocado pela A., é a esta que competia fazer tal prova, de harmonia com o disposto no art. 342º nº 1 do C.Civil. E no caso dos autos, a senhoria, por confissão da R., logrou provar que o pagamento da renda não foi efectuada. Daí que se tenha integrado o direito à resolução do contrato.
E o que dizer em relação ao depósito liberatório?
Trata-se, a nosso ver, de um facto impeditivo e extintivo do direito do A. que terá que ser alegado e provado pelo R., de harmonia com o disposto no art. 342º nº 2 do C.Civil. Isto resulta, claramente, do disposto no art. 1048º deste diploma legal que estabelece que “o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer caduca logo que o locatário até à contestação da acção destinada a fazer valer esse direito pague ou deposite as somas devidas e a indemnização referida no nº 1 do art. 1041º”. Isto é, para fazer cessar o direito à resolução do contrato com o fundamento de falta de pagamento de rendas, o arrendatário deve pagar ou depositar as rendas em dívida acrescidas da indemnização de 50% ( art. 1041º nº 1), devendo alegar e provar esse pagamento no processo.
É pois claro que competia à R., como arrendatária, fazer o depósito liberatório e efectuar a respectiva prova nos autos.
Por conseguinte, o entendimento da apelante sobre a questão é infundado.
A apelação, improcede, pois.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, nega-se provimento ao agravo, mantendo-se a douta decisão recorrida.
Considera-se improcedente a apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pela recorrente.