Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
45/05.4TAFIG.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: EXAME CRÍTICO
SEPARAÇÃO DE PROCESSOS
Data do Acordão: 01/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 30º,374º, Nº 2,379º, Nº 1 A) DO CPP
Sumário: 1. É a nula a sentença, cimentada na decisão de que o tribunal condenou um sujeito processual que, no momento em que o fez, já havia pedido a sua conexão substantivo-material com o processo.
2. A fundamentação da matéria de facto não se pode constituir como um relato circunstanciado e apegado ao depoimento de cada uma das testemunhas que depuseram perante o tribunal.
3. Não se pode pedir ao julgador que se torne num dactilógrafo ou estenógrafo que reproduz sem quebra de sequência tudo o que foi declarado em audiência.
4. O Juiz assume-se como um sujeito receptor de uma mensagem, atinada um depoimento arrimado a determinado núcleo factual a provar, e que pela percepção intelectiva colhida é capaz de formular um juízo compreensivo e valorativo do enunciado fáctico que lhe foi proposto para julgamento. Não se constitui como um assentador de palavras acrítico e mecanicamente orientado para a captação anódina da comunicação expressa pelo depoimento mas sim como um sujeito, que pela sua preparação técnica e pelo seu sentir orientado dos fenómenos jurídicos que lhe são submetidos a julgamento, se transmuta num ente compreensivo e susceptível de apreciar e valorar criticamente as comunicações que desfilam perante ele.
Decisão Texto Integral: I. – Relatório.

Após acórdão deste tribunal – cfr. fls. 294 a 304 – em que se decidiu anular parcialmente a decisão proferida a fls. 173 a 184, por inobservância do disposto nos artigos 374.º e 379.º - omissão de fundamentação – proferiu o tribunal a quo nova decisão – cfr. fls. 314 a 327 – em que, reparada a falta, decidiu:     

“1. Condenar os arguidos MG... e LM..., cada um deles, por um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelos artigos 11º, nº 1, a) do DL nº 454/91, de 28.12, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 316/97 de 19.11, na pena de 280 dias de multa, á razão diária de 4 euros, o que perfaz o montante de 1.120,00 euros; subsidiariamente 186 dias de prisão;

2. Julgar parcialmente procedente por provado o pedido cível e consequentemente condenar os arguidos a pagarem, solidariamente, á ofendida, “G…, Lda.”, o montante de 10.000,00 euros (correspondente ao montante do cheque), acrescido dos juros de mora, ás diversas taxas dos juros comerciais, desde a data de vencimento do cheque até efectivo e integral pagamento”. 

É desta decisão que traz novamente recurso a arguida, MG..., com a motivação explanada de fls. 352 a 356 e corrigida de fls. 409 a 413, rematando-a com o quadro conclusivo que a seguir fica transcrito.

“a) O princípio da presunção de inocência ou in dubio pro reo impõe a prova inequívoca, sem margem para dúvidas, da intenção ou dolo e da consciência da ilicitude do comportamento do arguido;

b) Alegando a arguida que só entregou o cheque ao filho porque este lhe prometera que, antes de o preencher e entregar a terceiros, provisionaria adequadamente a conta bancária, impunha-se fazer prova inequívoca de que esta alegação é falsa

c) Do relatório da sentença, na fundamentação da prova da matéria de facto, não há referência a qualquer testemunha que se tenha pronunciado, por conhecimento directo, sobre a intervenção da ora recorrente, muito menos infirmando a sua alegação;

d) Pelo que, ao dar como provados os factos constantes de 2,4, 7 e 8 do relatório, parte II da douta sentença impugnada, incorreu em erro de julgamento decorrente da violação do princípio da presunção de inocência consignado no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição,

e) E, ao não proceder ao exame crítico dos meios de prova utilizados para formar a convicção do Tribunal, violou o disposto no n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, vício gerador de nulidade, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do mesmo Código, 

f) Devendo a sentença ser, nessa medida, anulada ou declarada nula, e lavrado acórdão que, dando como não provados os factos relacionados com a culpa e a consciência da ilicitude da ora recorrente, a absolva da condenação penal e, consequentemente, do pedido cível.

g)Termos em que deve a douta sentença recorrida ser anulada ou declarada nula e lavrado Acórdão absolutório da acusação criminal contra a arguida e do correspondente pedido cível, assim se fazendo a costumada, Justiça!” 

Nesta instância a Exma. Senhora Procuradora-geral Adjunta tinha já emitido parecer – cfr. fls. 383 a 389 - no sentido que a seguir se deixa transcrito.

“B – o Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância, na sua resposta à Motivação do recorrente, entende que o recurso merece provimento.

C – Pela nossa parte, afigura-se-nos, que assiste razão à recorrente, embora se nos afigure com alguma utilidade uma chamada de atenção para os seguintes aspectos do presente recurso, designadamente para a seguinte questão prévia:

Questão Prévia .

1. Da conjugação do disposto no artigo 412.º n.º 1 e n.º 2 al. a), b) e c) do C.P.P., resulta que a motivação de recurso enuncia especificamente os fundamentos de recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido e que, versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões indicam, sob pena de rejeição, as normas jurídicas violadas. 

Como se constata das “ conclusões” da motivação de recurso apresentada, a recorrente não indicou quais as normas jurídicas violadas pela douta decisão recorrida, nem o sentido em que se interpretou cada norma e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que deveria ter sido aplicada.

Em suma, não respeitou a recorrente, o disposto no artigo 412.º n.º 1 e n.º 2 alínea a) do C.P.P., pelo que deverá o seu recurso ser rejeitado, por manifestamente improcedente, nos termos do artigo 412.º n.º 2 e 420.º, n.º 1, ambos do C.P.P ..

Neste sentido se pronunciou o Ac. S.T.J. de 97/05/08 in proc. 234/97, quando diz: “É de rejeitar o recurso quando as conclusões do mesmo não contêm a indicação de qualquer norma jurídica como violada pelo acórdão recorrido.”.

Porém, não sendo este o entendimento perfilhado, quanto à matéria de direito, e seguindo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, no sentido de ter julgado inconstitucional a norma dos artigos 412.º n.º 1 e 420.º, n.º 1 do C.P.P., quando interpretada no sentido da falta de conclusões levar à rejeição imediata do recurso, sem que previamente seja feito o convite ao recorrente para aperfeiçoar a deficiência, por violação do artigo 32.º n.º 1 da C.R.P. (Ac. Trib. Const. 19/1/99, Ac. Trib. Const. de 14/3/2002, publicado no Diário da Republica de 15/5/2002, II Série e. Ac. Trib. Const. de 07/10/2002, publicado no D R. 1ª série- A), deverá ser notificado o recorrente para aperfeiçoar o seu recurso, devendo ao formular as respectivas conclusões, indicar as normas jurídicas violadas, sob pena de, não o fazendo, então dever ser rejeitado tal recurso.

Tendo a decisão de que se recorre e o respectivo recurso e resposta sido apresentados já na vigência da Lei 48/2007 de 29/08 em 15/09, há que ter em consideração o disposto no artigo 417.º n.º 3 do C.P.P., que expressamente determina que o Sr. Desembargador Relator convide a recorrente a completar e esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, quando as conclusões não contiverem as indicações previstas no artigo 412.º,  nºs 2 a 5 do mesmo diploma legal.

Pelo que se emite parecer no sentido de que o Exmo. Sr. Desembargador Relator efectue convite à recorrente para aperfeiçoar o seu recurso, em matéria de direito, no prazo de 10 dias.

2.- Nulidade da decisão

Contudo, se assim se não entender, e se decidir que se deduz da Motivação apresentada, quais as normas jurídicas violadas, não havendo necessidade de formular tal convite, parece-nos que a decisão recorrida se encontra ferida de nulidade a que se refere ao artigo 379.º n.º 1 a) do C.P.P., por continuar a não respeitar o cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 374.º do C.P.P., ou seja, não efectua o exame crítico dos meios de prova utilizados para formar a convicção do tribunal, mesmo após o Tribunal da Relação de Coimbra ter anulado uma anterior decisão com esse fundamento.

Nos termos do artigo 374.º n.º 2 do C.P.P. como explicitação do princípio constitucional inscrito no artigo 32.º n.º 1 e 205 n.º1 da C.R.P, ganha particular e decisiva Importância a fundamentação da decisão, ou seja, a exigência que dela conste não só a enumeração dos factos provados e não provados, mas ainda uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.

Desiderato prosseguido (para além da exigência da indicação das provas) com a novel imposição, não tanto o de se exigir um detalhado exame crítico da prova produzida, que a ter lugar é suportado pela documentação da prova e sua reapreciação por parte do Tribunal Superior, mas antes no exame crítico dos meios de prova, designadamente a sua razão de ciência de forma a como refere o Tribunal Constitucional no Ac. n.º 680/98 “ explicitar o processo de formação da convicção do tribunal”.

Como também se afirma no Ac. ReI. Porto de 05/06/02, Proc. 0210320 in www.dgsi.pt “ estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados, nem os meios de prova, mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência … “.

Sendo certo que, “tal fundamentação deverá intraprocessualmente permitir aos sujeitos processuais e ao Tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso” e extraprocessualmente “assegurar pelo conteúdo um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença, e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade … “.

Como salienta o Prof. Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, pág. 204 e segs II a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade meramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis, p. ex a credibilidade que se concede a determinado meio de prova, e mesmo puramente emocionais –, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, capaz de se impor aos outros … “ 

Por isso mesmo “uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade, para além de toda a dúvida razoável … “ assumindo-se aqui como fundamental ° princípio da imediação, isto é, “a relação de proximidade comunicante entre o Tribunal e os participantes do processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão … “.

Só estes princípios permitem, na verdade, o indispensável contacto vivo e imediato com os arguidos, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade e a avaliação o mais correcta possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais, bem como uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e participem na declaração do direito do caso (Prof. Figueiredo Dias, Obra cit.).

Como se diz no Ac. do S.T.J. de 13/02/2003, proc. n.º 03P141 in www.dgsi.pt “ . ..Isto não significa, como é evidente, que o tribunal de recurso não possa e não deva controlar a convicção do juiz da 1 a instância, designadamente quando assenta em raciocínios contrários às regras da lógica, às máximas da experiência ou aos conhecimentos científicos, sem olvidar, porém, que casos há que face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais que uma solução. De facto, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.

Isto é assim mesmo quando, como no caso dos autos, houver documentação da prova. De outra maneira seriam defraudados os fins visados pela oralidade e a imediação da prova … “

A análise da prova não terá, de ser exaustiva, mas terá de ser suficiente para se poder concluir que a decisão assentou na prova produzida e não é fruto de qualquer discricionariedade ou arbitrariedade. Assim, o dever de indicação e exame crítico das provas, como elemento da fundamentação da decisão de facto, não exige, como é obvio, a referência específica a cada um dos elementos de prova produzidos e respectivo exame crítico perante cada facto - ver neste sentido, entre outros, Acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 07/10/98 CJ, Supremo Tribunal de Justiça, VI, Tomo III, pág. 183, de 24/06199 SASTJ, n.º 32, pág 88, de 12/05/2005 e de 12/07/2005 in www.dgsi.stj.pt. , mas também se não pode ficar por conceitos genéricos de apreciação.

No caso sub judice, a fundamentação da sentença, não cumpre, em nosso entender, os requisitos legais, não se encontrando devidamente explicitado o processo de formação da convicção do Tribunal para proceder à condenação da arguida e a indicação de todas as provas que serviram para formar a convicção do tribunal e o exame crítico das mesmas provas que o alicerçou, nomeadamente o raciocínio lógico-dedutivo seguido e o porquê, a medida e credibilidade que mereceram os depoimentos prestados em audiência e os documentos analisados.

Isto resulta, desde logo, do facto de os arguidos não terem prestado declarações em audiência, uma vez que se não encontravam presentes, e se fazer referência no relato dos depoimentos das testemunhas, a factos que lhes foram transmitidos pelo arguido, sem ele ter sido ouvido, nem se indicar que peso tiveram na formação da convicção do tribunal e porquê as afirmações que foram feitas por essas testemunhas.

Mas então, na fundamentação da decisão haverá, em nosso entender, que esclarecer, quais os depoimentos ou declarações que foram isentos e credíveis, foram todos, e porquê? Como depôs o legal representante da ofendida e como foi analisado de forma critica a sua declaração? Foi credível e porquê? Porque se acreditou na versão do que lhe havia transmitido o arguido LM…?

Mas a prova produzida em audiência que na decisão se resume aos depoimentos das testemunhas, há também os documentos juntos aos autos, que em nosso entender, não mereceram da parte do tribunal qualquer análise crítica, mas apenas a referência e sua enunciação, mas de que forma foram valorados?

Pensamos que a decisão só estará devidamente fundamentada se o tribunal superior perceber o raciocínio lógico-dedutivo que levou o tribunal a quo a formar a sua convicção em determinado sentido e não noutro sentido e que tal raciocínio levou à decisão proferida, designadamente no caso vertente, quanto ao elemento subjectivo da infracção.

Pelo que, em nosso entender, assiste razão à recorrente, quando refere que a decisão se não encontra devidamente fundamentada e não percebe como se formou a convicção do tribunal, referindo que houve um erro de julgamento.

Somos de parecer, que a decisão se encontra ferida de nulidade, nos termos do artigo 379° a) do C,P.P., por falta de cumprimento do disposto no artigo 374.º, n.º 2 do C.P.P., já que se poderá dizer que a convicção do tribunal não é linearmente perceptível, ate porque pelas motivações do recorrente se demonstra que a própria recorrente não percebeu como se formou a convicção do tribunal e qual o processo lógico-dedutivo seguido, razão pela qual impugna a matéria de facto julgada pelo tribunal.

Assim, entendemos que deverá ser julgado procedente o recurso interposto pela recorrente, ficando prejudicada a apreciação do restante argumento de violação do princípio in dubio pro reo, porque entendemos deverem ser as questões prévias analisadas e emitimos parecer, no sentido de que o mesmo merece provimento, sendo declarada a nulidade da decisão.”

Estando sedimentada a ideia de que o tema decidendum do recurso deve ser delimitado pelas conclusões do recurso [[1]] estimamos deverem ser analisadas as sequentes questões:

A) – Questão Prévia da rejeição do recurso por inobservância do estatuído nos n.ºs 1 e 2 do artigo 412.º do Código de Processo Penal;

B) – Nulidade da decisão por omissão ou deficiência no exame critico das provas produzidas em audiência.

C) – Violação dos princípios in dubio pro reo e da presunção da inocência.

II. – Fundamentação.                               

II.A. – De Facto.

Para a decisão que prolatou escorou-se o tribunal a quo na facticidade que a seguir se deixa transcrita.

“1. O arguido LM...adquiriu á sociedade “G…, Lda”, com sede na Figueira da Foz, proprietária do Stand …, um veículo automóvel de marca Audi A4, com a matrícula 00-00-EU, pela quantia de 22.000,00 euros.

2. Para pagamento de parte do preço dessa viatura, o arguido solicitou á arguida MG…, sua mãe, que assinasse e lhe entregasse um cheque da sua conta no Banco Atlântico - Agência de Sines.

3. Assim, dando satisfação ao solicitado, a arguida MG...assinou o cheque nº ………., sacado sobre a sua conta naquela instituição bancária e entregou-o ao arguido LM....

4. Este, por sua vez, sempre com o conhecimento e concordância da arguida MG..., preencheu tal cheque com a quantia de 10.000,00 euros e a data de 13.7.2004 e, neste mesmo dia, entregou-o á sociedade G...lda para pagamento do mencionado veículo automóvel, que lhe foi entregue naquela data.

5. Apresentado a pagamento na agência da Figueira da Foz do Banco Totta e Açores, foi o referido cheque devolvido sem pagamento por falta de provisão no dia 20.7.2004.

6. Desta forma, foi a sociedade G...lda lesada na importância de 10.000,00 euros.

7. Os arguidos agiram consciente e livremente e sabiam que não existiam na conta bancária sacada fundos suficientes para garantir o pagamento do referido cheque e, bem assim, que esse comportamento era proibido e punido por lei penal.

8. Os arguidos actuaram de comum acordo e em conjugação de esforços. Os arguidos sabiam ainda que, com a sua conduta, causavam um prejuízo patrimonial á G...lda.

9. A ofendida é uma sociedade comercial que apenas conta para o seu giro comercial com os dinheiros provenientes dos seus negócios, recorrendo á Banca quando lhe falta capital, com juros elevados.

10. Nenhum dos arguidos entregou até hoje qualquer quantia para pagamento do cheque em causa.

11. Caso os arguidos tivessem devolvido o Audi A4 á ofendida, esta poderia ter arranjado outro comprador para tal viatura.

12. Ambos os arguidos são primários.

II – Factos não provados

Não se provou que:

- a arguida MG...nunca teve o Audi A4 em causa na sua posse;

- a arguida MG...desconhecia  em concreto a finalidade do cheque que entregou ao filho, o arguido Luís.

IV – Motivação da decisão de facto

A convicção do tribunal formou-se com base na conjugação dos depoimentos das testemunhas e de alguns documentos juntos, como se passa a expor.

A testemunha A..., legal representante da ofendida G...lda; esclareceu que veículo foi vendido ao arguido e por que valor; esclareceu o que o arguido lhe disse aquando da compra do carro, nomeadamente a quem se destinava tal veículo e a forma como pretendia fazer o pagamento; deixou bem claro que o arguido lhe disse que o veículo em causa era para a sua mãe, que iria pagar parte do preço com a entrega imediata de um cheque de sua mãe e que o restante iria pagar num curto espaço de tempo. Explicou que entregou a carrinha ao arguido e este entregou-lhe o cheque dos autos, que posteriormente veio a ser devolvido por falta de provisão; sabe que ainda hoje essa quantia se encontra por pagar na íntegra; sabe que o Audi nunca foi devolvido e que o arguido agiu como se a conta em causa tivesse provisão. Referiu que o arguido lhe entregou uma cópia do bilhete de identidade de sua mãe para confirmar que o cheque em causa era dela.

A testemunha J..., pessoa que trabalha para a G...lda como vendedor comissionista, há 4 anos; tem conhecimento do negócio feito pelo arguido com a sociedade ofendida uma vez ter perguntado por esse veículo para um outro cliente; por essa razão, veio a saber a quem foi vendido o Audi A4 em causa e por quanto; veio a saber que o cheque foi devolvido por falta de provisão; sabe que o veículo não foi devolvido e que ainda não foi pago o valor do cheque à ofendida; tem conhecimento de que por vezes a ofendida tem necessidade de recorrer á Banca.

A testemunha D..., colaborador do arguido; esclareceu que vendia carros á comissão, para o arguido que também se dedicava ao comércio de automóveis; viu o arguido com o Audi A4 e sabe o que o arguido lhe disse quanto ao destino a dar a esse veículo; referiu que o arguido lhe disse que o veículo em causa era para a sua mãe. Tem conhecimento que a ofendida ainda hoje não recebeu o dinheiro do cheque em causa nos autos.

Quanto á arguida MG..., atendendo aos depoimentos supra relatados na parte em que é referida, naturalmente ela saberia do destino do cheque em causa e a forma como seria preenchido.

Ajudou a formar a convicção do Tribunal os documentos de fls. 3, 4, 73 e 74.

Os factos não provados resultaram de ninguém os ter referido e estarem mesmo em contradição com o teor de outros depoimentos relatados supra.”

II.B. – De Direito.

II.B.1. – Questão Prévia da rejeição do recurso por inobservância do estatuído nos n.ºs 1 e 2 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.

Socava a Exma. Sr.ª Procuradora-geral Adjunta a questão da inobservância do estatuído nos n.ºs 1 e 2 (especialmente este, porquanto a omissão esgrimida atina com a falta de indicação das normas jurídicas violadas) por parte da recorrente.

A estruturação da peça processual através da qual a recorrente pretende atacar a recamada decisão impugnanda não será certamente recomendável como exemplo e figurino a seguir pelos vindouros, no entanto, não está tão deserta de indicação normativa que a ostracize e desvalie para os fins que pretende alcançar.

Com efeito a recorrente entona o ataque à decisão impugnanda por duas vias: uma primeira, pela insuficiência probatória – violação dos princípios in dubio pro reo e da presunção da inocência – para estear a inferência jurídico-normativa da intencionalidade ou do dolo e da consciência da ilicitude posta na estruturação da acção delituosa por que veio a ser condenada; uma segunda, pela falta de fundamentação da sentença, figurada na ausência de indicação dos respectivos elementos probatórios que escorem a matéria provada constante da decisão.

Se quanto ao primeiro grupo de questões a recorrente se limita a chamar à colação a norma constitucional que contém o enunciado do princípio reitor já quanto ao segundo grupo a recorrente indica – cfr. alínea e) das conclusões – quais as normas que em seu juízo não foram observadas na sentença e que são susceptíveis de colocar em crise a sua valia processual. 

E porque se entende que, efectivamente, mau grado a nossa resistência intelectual em decretar nulidades, só o fazendo quando de todo não seja possível outra solução ou a respectiva sanação, a sentença é nula, por duas razões, como intentaremos demonstrar no apartado sequente, não valeria a pena convidar a recorrente para indicar as normas adjectivas que praticizam a normação constitucional relativa à presunção de inocência.

Daí que não acolhamos a sugestão de convite e não opcionemos pela rejeição do recurso. A razão, outra que não de natureza estrita e confinadamente processual, mas outrossim de feição pragmática e de índole funcional-participativa dos sujeitos processuais, prende-se com o facto de não se mostrar razoável rejeitar o recurso, por razões meramente técnico-jurídicas e adjectivas, quando a sentença se revela inquinada e afecta os princípios processuais e outra – esta atinente à possibilidade de endereçar um convite á recorrente para aperfeiçoar as conclusões (solução que seria de adoptar) – porque não seria curial estar a convidar a recorrente para aperfeiçoar uma peça processual que, na parte em que pretende evidenciar o erro da sentença, se mostra cumprir, minimamente, o ritualismo processual adrede.

Razões, como se percebe, que atinam mais com o pragmatismo e a informalidade da aplicação justiça conveniente e necessária do que com o convencionalismo ou formalismo estrénuo do rigor positivista arredado da realidade e do agir finalístico. 

A compreensão da realidade importa antes de tudo que nela se encontre o fim para as acções dos órgãos de organização e modelação societária – tribunais, este caso, - devem tender afirmando a sua função de resolver conflitos dentro de condicionalismos que nem sempre se prefiguram com o mais sadio e óptimo enquadramento processual.

II.B.2. – Nulidade da decisão por omissão ou deficiência no exame critico das provas produzidas em audiência.

Para a nulidade de omissão por carência de fundamentação, no que é coonestada pela Exma. Sr.ª Procuradora-geral Adjunta, a recorrente afirma que:

Do relatório da sentença, na fundamentação da prova da matéria de facto, não há referência a qualquer testemunha que se tenha pronunciado, por conhecimento directo, sobre a intervenção da ora recorrente, muito menos infirmando a sua alegação;

d) Pelo que, ao dar como provados os factos constantes de 2,4, 7 e 8 do relatório, parte II da douta sentença impugnada, incorreu em erro de julgamento decorrente da violação do princípio da presunção de inocência consignado no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição,

e) E, ao não proceder ao exame crítico dos meios de prova utilizados para formar a convicção do Tribunal, violou o disposto no n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, vício gerador de nulidade, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do mesmo Código, 

f) Devendo a sentença ser, nessa medida, anulada ou declarada nula, e lavrado acórdão que, dando como não provados os factos relacionados com a culpa e a consciência da ilicitude da ora recorrente, a absolva da condenação penal e, consequentemente, do pedido cível.”

 Como já se deixou expresso supra a motivação do recurso não convalida o pedido e inferências legais com que a recorrente remata as conclusões na alínea f) desabonam a alegação de nulidade da sentença com que pretende ver-se absolvida da condenação penal e do pedido civil.

Antes, porém, e, curiosamente, adverte-se uma outra causa de anulação da sentença.

Compulsado o processo constata-se que já depois de prolatada a decisão que foi objecto do primevo recurso foi proferido o despacho constante de fls. 267 – que recaiu sobre uma promoção do Ministério Público constante de fls. 266 em que era pedida a cessação da conexão de processos - que reza (reprodução na íntegra): “Fls. 266: Nos termos do artigo 30.º1, n.º 1, 31ínea b) do Código de Processo Penal, o Tribunal faz cessar a conexão e ordena a separação de algum processo (…) sempre que a conexão puder representar um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, para o interesse do ofendido ou do lesado”.

Nos presentes autos foi proferida sentença de fls. 1 73 a 184 a qual ainda não foi notificada ao arguido LM... uma vez que as correspondentes notificações, de fls. 245, 245, 255 e 257 a 59, foram devolvidas, sendo que a última apresenta a indicação “mudou-se”, sem qualquer outra indicação de residência pelo que não se conhece o actual paradeiro do arguido.

Assim, mostra-se inviável, por ora, a notificação daquele arguido.  

Por seu turno, a arguida MG…  interpôs recurso da aludida sentença, tendo o mesmo sido admitido a fls. 205.

Em face do exposto, afigura-se-nos que a conexão pode representar um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, para o interesse do ofendido ou do lesado, pelo que, nos termos do artigo 30.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, determina-se a cessação da conexão e a separação do processo quanto ao arguido LM....

Abra vista ao Ministério Público para se pronunciar sobre os elementos processuais de que deve ser extraída certidão para organizar o processo separado.”

A fls. 269 em promoção do Ministério Público foram indicadas as peças processuais que deveriam passar a constar do processo que seria organizado para o arguido LM... e na mesma folha foi ordenada a extracção da certidão para organização do mencionada processo.

Conforme se constata da decisão sob impugnação o tribunal a quo decidiu: “1. Condenar os arguidos MG... e LM..., cada um deles, por um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelos artigos 11º, nº 1, a) do DL nº 454/91, de 28.12, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 316/97 de 19.11, na pena de 280 dias de multa, á razão diária de 4 euros, o que perfaz o montante de 1.120,00 euros; subsidiariamente 186 dias de prisão;

2. Julgar parcialmente procedente por provado o pedido cível e consequentemente condenar os arguidos a pagarem, solidariamente, á ofendida, “G...lda”, o montante de 10.000,00 euros (correspondente ao montante do cheque), acrescido dos juros de mora, ás diversas taxas dos juros comerciais, desde a data de vencimento do cheque até efectivo e integral pagamento”. 

O separado continua inerido. Isto é, o arguido LM... que foi extirpado deste processo por a sua presença nele se revelar “(…)um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, para o interesse do ofendido ou do lesado (…)” continua imperturbável a manter a sua presença no mundo processual e a ser condenado como se a sua omnipresença estivesse para além do já decidido quanto ao seu apartamento do núcleo processual em que se deve fixar o objecto deste processo.

Esta contravenção ao caso julgado formal, formado pela decisão supra transcrita, e que o tribunal a quo constituiu sobre a posição processual do arguido seria o primeiro motivo, se outro não ocorresse, para que fosse determinada a nulidade da sentença, cimentada na decisão de que o tribunal condenou um sujeito processual que, no momento em que o fez, já havia pedido a sua conexão substantivo-material com o processo. Vale por dizer que o tribunal condenou pessoa que, neste momento, e mercê da decisão assumida endoprocessualmente já não pode ver a sua conduta apreciada no processo de que foi apartado.

Fez o tribunal a quo uma condenação para além do que lhe era permitido pelas forças materiais do processo em questão, pelo que a decisão deverá ser anulada por condenação de sujeito processual que não poderá ver a sua conduta pronunciada neste procedimento.   

Ainda que assim não fosse, e como bem coonesta o douto parecer da Exma. Sr.ª Procuradora-geral Adjunta, a decisão continua a não valer (fundadamente) para a condenação que efectuou.

A sentença depois de relatar (assentar) os depoimentos das testemunhas A..., J… e D... que relatam o negócio efectuada entre a sociedade ofendida e o arguido LM...remata com a sequente asserção: Quanto á arguida MG..., atendendo aos depoimentos supra relatados na parte em que é referida, naturalmente ela saberia do destino do cheque em causa e a forma como seria preenchido.”.

Naturalmente ela saberia”. Mas o que é que naturalmente ela saberia? Onde fica o nível de conhecimento da arguida relativamente ao modo de utilização do cheque, por parte do filho, para que o tribunal possa estabelecer um nexo ou elo de apreensão cognitivo dessa utilização, por parte da imputada Guilhermina? E como é possível aos destinatários da decisão ficarem a saber, com asserção anotada, qual foi o percurso lógico, alicerçado em elementos de prova antecedentes e explicitados, percorrido para extrair a conclusão a que chegou? Dos depoimentos prestados, e concretamente de que partes desses depoimentos, o tribunal extraiu a convicção de que a arguida sabia que o filho tinha preenchido o cheque e o tinha entregue nos moldes em que o fez? Em que outros elementos o tribunal se cevou para criar a asserção de que a arguida sabia ou soube antecipadamente que o arguido agiu pela forma descrita?

É doutrina assente que a fundamentação da matéria de facto não se pode constituir como um relato circunstanciado e apegado ao depoimento de cada uma das testemunhas que depuseram perante o tribunal. Não se pode pedir ao julgador que se torna num dactilógrafo ou estenógrafo que reproduz sem quebra de sequência tudo o que foi declarado em audiência. O Juiz assume-se como um sujeito receptor de uma mensagem, atinada um depoimento arrimado a determinado núcleo factual a provar, e que pela percepção intelectiva colhida é capaz de formular um juízo compreensivo e valorativo do enunciado fáctico que lhe foi proposto para julgamento. Não se constitui como um assentador de palavras acrítico e mecanicamente orientado para a captação anódina da comunicação expressa pelo depoimento mas sim como um sujeito, que pela sua preparação técnica e pelo seu sentir orientado dos fenómenos jurídicos que lhe são submetidos a julgamento, se transmuta num ente compreensivo e susceptível de apreciar e valorar criticamente as comunicações que desfilam perante ele.

Se assim é, não pode ser menos verdade que o juiz não é um ente isolado e despejado de responsabilidade social relativamente aos actos socialmente relevantes que assume perante a sociedade para que presta o serviço de dirimir conflitos. O juiz é antes de mais um comunicador da lei e do Direito concreto, isto é, alguém que, na base de um caso concreto e perante uma realidade factual recolhida mediante um conspecto probatório confinado a um procedimento previamente estabelecido, dita a solução de justiça destinada a ser aceite num ordenamento jurídico e pelo conjunto de pessoas involucradas no concreto caso. Não pode, pois, o Juiz alhear-se da necessidade de justificar o Direito e a justiça que dita ou decreta, o que vale por dizer que não pode deixar de explicitar aos destinatários da solução assumida quais as razões pelas quais se perfilou num ou noutro sentido do conflito de interesses que estava planteado no caso sobre que lhe foi proposto tomar posição em nome da ordem jurídica que serve.

A propósito do dever de fundamentação escreveu-se de forma lapidar na decisão do Tribunal Constitucional proferida no processo n.º 784/05: “(…) o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais, cons­tante do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição.

Deste dever de fundamentação das decisões judiciais decorre que, nas decisões sobre matéria de facto, é obrigatória a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. A imposição constitucional referida só fica satisfeita com a explicitação das razões dessa decisão, feita pelo seu próprio autor, em termos de habilitar o seu destinatário a, ciente dessas razões, se conformar com a decisão ou impugná-la de forma consciente e eficiente. O exame crítico das provas credibiliza a decisão, viabiliza o recurso e permite revelar «o raciocínio lógico do tribunal relativamente à própria decisão», como foi sublinhado já na Conferência Parlamentar sobre a Revisão do Código de Processo Penal, em 7 de Maio de 1998 (cf. as intervenções de Luís Nunes de Almeida, Germano Marques da Silva e Eduardo Maia Costa, entre outros, em Código de Processo Penal - Processo Legislativo, 2.° vol., t. 2, ed. da Assembleia da República, 1999, pp. 68, 85,86,90 e 95 e segs.).

Ocupando essa garantia de fundamentação das decisões judiciais um lugar central no sistema de valores nos quais se deve inspirar a admi­nistração da justiça no Estado democrático moderno (cf. Michele Taruffo, «Notte sulla garanzia costitutionale della motivazione», in Bole­tim da Faculdade de Direito, Coimbra, 55.° vol., 1979, pp. 29 e segs.). Ela deve ser susceptível, como se escreveu já em acórdão deste Tribunal, «de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da livre apreciação pelo julgador, devendo também indicar as razões de direito que conduziram à decisão con­cretamente proferida» (cf. o Acórdão n.o 680/98, publicado no Diário da República, 2.a série, de 5 de Março de 1999).

A respeito da exigência constitucional de fundamentação das deci­sões judiciais, pode ler-se também no Acórdão nº 61/2006 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):

«Foi a primeira revisão constitucional (1982) que, com a inserção do novo n.º 1 do então artigo 210.º da CRP, veio proclamar que "As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos ter­mos previstos na lei", formulação que, sem alteração de redacção, transitou, com a segunda revisão constitucional (1989) para o n.º 2 do artigo 208.° A remissão para a lei, não apenas da modulação dos termos, mas também da definição dos casos em que a fun­damentação das decisões dos tribunais era devida (muito embora sempre se entendesse que "a discricionariedade legislativa nesta matéria não [era total], visto o dever de fundamentação [ser] uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito demo­crático (cf. o artigo 2.°), ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como ins­trumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso"), representando "a falta de consagração constitucional de um dever geral de fundamentação das decisões judiciais", surgia como "pouco congruente com o prin­cípio do Estado de direito", para além de não se compreender que "a garantia de fundamentação seja constitucionalmente menos exigente quanto às decisões judiciais do que quanto aos actos admi­nistrativos (artigo 268.°, n.º 3)" (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.a ed., Coimbra, 1993, pp. 798-799) - preceito este último que impunha a "fundamentação expressa" dos "actos administrativos [ ... ] quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos" .

Foi a revisão constitucional de 1997 que deu à norma em causa a sua localização (artigo 205.°, n.º 1) e formulação ("As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei") actuais. Estabeleceu-se, assim, com dig­nidade constitucional, a regra geral do dever de fundamentação de todas as decisões judiciais, com a única excepção das de mero expediente, remetendo-se para a lei ordinária a definição, já não dos casos em que a fundamentação é devida, mas tão-só da forma de que se pode revestir.

O alcance desta alteração foi salientado por este Tribunal, no Acórdão n.º 680/98, nos seguintes termos:

"7 - Dispõe a Constituição, no n.º 1 do artigo 205.°, que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fun­damentadas na forma prevista na lei”. Este texto, resultante da Revisão Constitucional de 1997, veio substituir o n.º 1 do artigo 208.°, que determinava que “as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei”. A Cons­tituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamen­tação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação ver­dadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas “nos termos pre­vistos na lei”para o serem “na forma prevista na lei”. A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legis­lativa na conformação concreta do dever de fundamentação."

Também o Acórdão n.º 147/2000 salientou que a "actual redacção do artigo 205.°, n.º 1, imprimiu contornos mais precisos ao dever de fundamentação, pois, onde a Constituição remetia para a lei os “casos”em que a fundamentação era exigível, passou a con­cretizar-se que ela se impõe em todas as decisões “que não sejam de mero expediente”, mantendo-se apenas a remissão para a lei quanto à “forma” que ela deve revestir", acrescentando:

"Este aprofundamento do dever de fundamentação das decisões judiciais reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afec­tam as partes, do mesmo passo que a elas permite um controlo mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adopção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas.

De todo o modo, a persistência daquela remessa para a lei faz com que o mandado constitucional de fundamentação continue a ser um mandado aberto à actuação constitutiva do legislador, a quem incumbirá definir a “forma” em que a fundamentação se deve traduzir, sem que, contudo, ele possa esvaziar o sentido útil daquele mandado (cf. o Acórdão nº 59/97, in Diário da República, 2.a série, nº 65, de 18 de Março de 1997) - qualquer que seja essa forma, ela terá sempre que permitir o conhecimento das razões que motivam a decisão.

[ ... ]

Mas se a relevância da fundamentação das decisões judiciais é incontestável como garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, ela assume, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos, muito embora o texto constitucional não contenha qualquer norma que disponha especificamente sobre a fundamentação das decisões judi­ciais naquele domínio."»

A exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais tem uma função não apenas endoprocessual, mas também dirigida ao exterior do processo: ela visa explicitar a ponderação que integrou o juízo decisório e permitir às partes - no caso, ao arguido - o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a possibilidade de optar pela reacção (impugnatória ou não) que entendam mais ade­quada à defesa dos seus direitos (e por esta via, a obrigação de fun­damentação possibilita também, mediatamente o exercício do direito ao recurso que possa caber no caso). Mas a exigência de fundamen­tação visa também possibilitar o próprio conhecimento pela comu­nidade das razões que levaram a uma determinada decisão, e, pela via da exigência de lógica ou racionalidade da fundamentação (contida na exigência de fundamentação), contribui também para a própria legitimação da actividade decisória dos Tribunais.

5 - O tribunal do julgamento tem, pois, que explicitar as razões que o levaram a convencer-se de que o arguido praticou os factos que deu como provados.

Importa, porém, notar que, como este Tribunal também já afirmou, «a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada, em que o tribunal reproduza os depoimentos de todas as pessoas ouvidas, ainda que de forma sintética» (Acórdão n.º 258/2001, com texto integral disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Nem, por outro lado, a fundamentação tem de obedecer a qualquer modelo único e uniforme, podendo (e devendo) variar de acordo com as circunstâncias de cada caso e as razões que neste determinaram a convicção do tribunal.

Com o dever de fundamentação das decisões judiciais, a Cons­tituição não impõe, na verdade, um modelo único de fundamentação, com descrição ou, ainda mais, transcrição, de todos os depoimentos apresentados no julgamento, ou a menção do conteúdo de cada um deles. Estes depoimentos, mesmo quando são depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa, podem, com efeito, não ter sido decisivos para a formação da convicção do tribunal, podendo então bastar que o tribunal indique aqueles que o foram. Isto, sendo certo que, por um lado, o que está em causa em sede de fundamentação das sentenças não é um princípio de paridade de consideração e explicitação da prova produzida por todos os sujeitos processuais, mas antes de expli­citação do juízo decisório e das provas em que este se baseou, e que, por outro lado, não compete ao Tribunal Constitucional controlar a forma como concretamente o tribunal formou a sua convicção. Como se referiu, não está, aliás, em causa no presente recurso o controlo do exame crítico das provas feito na decisão em causa, nem uma admissão da mera elencagem <<tabelar» das provas produzidas.

O que resulta da transcrição acima feita do teor da decisão recorrida é, antes, no que ora interessa, que o tribunal do julgamento se socorreu, para formar a sua convicção, fundamentalmente da audição das cas­settes contendo as gravações das chamadas, do depoimento da ofendida e dos depoimentos das testemunhas, remetendo-se para a decisão da La instância: «o Ex.mo juiz motivou a sua decisão ao longo de três páginas, retirando-se no essencial que determinante para o seu convencimento foi a audição das cassettes contendo as gravações das chamadas, o depoimento da ofendida, os depoimentos das testemu­nhas», dizendo-se também aquilo que estas depuseram. Pelo que se entendeu que na sentença foram efectivamente mencionadas as provas em que o tribunal se baseou, com indicação da respectiva intervenção e teor do depoimento, apenas não se fazendo menção específica do conteúdo dos depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa. Tal entendimento não pode, porém, só por si, considerar-se violador da exigência de fundamentação das decisões judiciais (ou, media­tamente, das garantias de defesa do arguido, incluindo o seu direito ao recurso). [[2]]

A fundamentação deve servir, no dizer de Chaïm Perelman, para convencer os destinatários do veredicto do órgão decisório da coerência interna do raciocínio lógico seguido pelo julgador no processo de formação da sua convicção e na justificação do ato decisório que desse processo emana, tendo em linha de conta a vivência normal dos indivíduos numa determinada sociedade, histórico-socialmente situada e as regras de direito aplicáveis ao caso.

Ainda para este autor, in Lógica Jurídica, Martins Fontes, S. Paulo, p. 238, “as decisões de justiça devem satisfazer três auditórios diferentes, de um lado as partes em litigio, a seguir, os profissionais do foro e, por fim, a opinião pública, que se manifestará pela imprensa e pelas reacções legislativas ás decisões dos tribunais”. Ainda para este autor “motivar uma decisão é expressar-lhe as razões. É, deste modo, obrigar quem a toma a tê-las. É afastar toda a arbitrariedade”. [[3]]

“O dever de fundamentação cumpre, no essencial, a ideia de que o tribunal “administra a Justiça”, tal qual ela se deve precipitar, concretamente, num certo juízo jurisdicional. O que significa que, no concreto juízo jurisdicional, deve estar suficientemente demonstrado que a decisão final tomou em devida consideração todos os argumentos (de facto e de direito) aduzidos pelas “partes” na audiência de julgamento (o que, no nosso processo penal, significa uma decisão fundamentada quanto ao que “resta” de um conflito penal. Assim, este dever de demonstração implica (agora para o processo penal), a possibilidade de reconhecimento de que o concreto juízo jurisdicional corresponde a uma decisão sobre todas as questões cuja apreciação foi solicitada ao tribunal, por parte os sujeitos processuais”,[4] “o dever de fundamentação cumpre, no caso de decisão condenatória, não só uma função de garantia perante o arguido (a de que este é condenado, por um juízo que demonstre, através de uma fundamentação, que foram tomados em consideração todos os contributos – as suas declarações e os meios de prova que apresentou), mas representa também a garantia “institucional” de uma condenação que não deixa margem para quaisquer dúvidas, por tal forma que a concreta decisão se afirme como “aceitável” nas suas premissas de facto e de direito”. [[5]]

Na sequência do que entende por dever de fundamentação e dever de motivação, este autor escreve, mais adiante que “o dever de motivação cessa necessariamente onde esteja em causa o princípio da livre apreciação da prova – ou, talvez melhor de livre apreciação das provas. Este aspecto merece alguma atenção, pois que, o dever de motivação levado a extremos, pode implicar a reconsideração do princípio de livre apreciação das provas. Se, de facto, ao tribunal compete necessariamente dar conta das provas decisivas para a decisão (o que, por si, é já um limite à tradicional consideração do princípio da livre apreciação), exigir-se uma motivação profunda que conduza a uma espécie de discurso justificativo sobre toda as operações mentais que levaram o tribunal a dar um “facto” como provado, para além de deparar com dificuldades inerentes à composição dos tribunais colegiais e à sua forma de deliberação, poderia transformar o tribunal de recurso – quando o recurso fosse pensado a partir de uma efectiva “motivação” – num “substitutivo” do sistema de provas legais (por tal forma que o tribunal de recurso fizesse, ele próprio, uma valoração da prova, acabando, ao invés de censurar a decisão, por proceder a um juízo, mas com inversão das regras de audiência de julgamento) ou, então, numa espécie de juízo por parâmetros. Aquilo que o tribunal de recurso pode essencialmente censurar, é a violação de todo o conjunto de princípios que estão subtraídos à livre apreciação das provas (que limitam o arbítrio na sua apreciação), exactamente: as regras [[6]] de experiência comum, o princípio in dubio pro reo, o princípio da presunção de inocência e, em especial, aquele que está directamente ligado à afirmação de uma culpabilidade pelo facto isenta de qualquer referência a características pessoais do arguido”.

Será, pois, nestes precisos limites que o dever de fundamentação se deverá expressar e não já, como parece querer exigir o recorrente, entrar na intima ou interior convicção do julgador, seja ela medida ou aferida por esquemas mentais explorados por Habermas ou Florescu, [[7]] seja mesmo pela exigência de escandir e pontualizar todos os momentos psicológicos que intervieram na formação da convicção. O processo de formação da convicção não é um processo linear e passível de ser descrito sem intervenção e apelo a soluções exteriores, porque interiormente acumuladas com o saber e a experiência de quem decide, sendo passível de serem encontradas fissuras ou descompensações intelectivas que, contudo não podem abalar a compreensão de quem analisa e textualiza a explicação critica apresentada numa decisão. O processo de formação de um juízo de probabilidade acima de uma dúvida razoável e cerca da certeza histórica constitui-se como um proceder entretecido e entramado de pontos essenciais, que congraçados com alguns outros de menor densidade real/material, se concitam num núcleo mental arrimado a uma realidade histórica que se nos prefigura como plausível e adequada ao acontecer histórico normal e comum.

Com as interrogativas apostas antes da explanação teórica fincou-se a posição de que a sentença não desenvolve nem explicita quais os elementos de prova em que o tribunal se escorou para que pudesse defluir na asserção infirmada no derradeiro parágrafo da motivação da decisão de facto. Não explicitou o tribunal quais os troços dos depoimentos das testemunhas que permitiam concluir que a arguida teve conhecimento de todo o processo de preenchimento do cheque por banda do arguido. Donde é possível extrair a conclusão de que a arguida teve uma intervenção ou comparticipação em todo o processo que conduziu á entrega do cheque sem provisão. Foi dito às testemunhas, pelo arguido, que a mãe tinha dado expresso aval ao preenchimento do cheque na quantia nele inscrita? O arguido fez constar que a sua mãe cobria todo o seu procedimento e que o cheque valia com o respaldo pessoal e económico da arguida?

Com absoluto desencanto, pois já por mais de uma vez deixamos expressa a nossa animadversão de que a anulação de julgamentos ou decisões mais não serve que para desdoirar o já deslustrado estado em que o sistema judiciário se encontra, não vemos, neste caso, pela concorrência dos dois apontados motivos, outra solução que não seja declarar a nulidade da sentença por deficiente fundamentação e absoluta incapacidade de transmitir a quem a lê de qual foi o conjunto de provas em que o tribunal se baseou para extrair a conclusão de que “naturalmente ela saberia”. 

Com a decisão que se assume fica prejudicada, pela precedência de conhecimento de pedido – cfr. artigo 660.º, n.º 2 do Código Processo Civil – a derradeira questão anunciada – violação do principio in dubio pro reo e da presunção da inocência. 

III. – Decisão.

Na defluência do exposto decidem os juízes que compõem este colectivo, na secção criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, em:

- Julgar procedente o recurso interposto pela arguida e, consequentemente, declarar nula a decisão por carência de fundamentação relativamente aos factos provados sob os n.ºs 2,4,7 e 8 da decisão de facto.

- Sem tributação.

                           

Coimbra, 21 de Janeiro de 2009



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(Gabriel Catarino, relator)



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(Barreto do Carmo)

[1]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; WWW.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).
 
[2] Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2007; Proc. nº 24/07, onde se escreveu: “I – A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289). II – A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objectivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cf. Michele Taruffo, Note sulla garanzia costituzionale della motivazione, in BFDUC, 1979, LV, págs. 31-32). III – A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo. IV – Em matéria de facto, a fundamentação remete, como refere o segmento final do n.º 2 do artigo  374.º do CPP (acrescentado pela Reforma do processo penal com a Lei 59/98, de 25-08), para a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. V – O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto –, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. Só assim não será quando se trate de decidir questões que têm a ver com a legalidade das provas ou de decisão sobre a nulidade, e consequente exclusão, de algum meio de prova. VI – O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cf., v.g., Ac. do STJ de 30-01-2002, Proc. n.º 3063/01). VII – O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte. VIII – No que respeita à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto – a que se refere especificamente a exigência da parte final do art. 374º, nº2, do CPP –, o exame crítico das provas permite (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o art. 410.º, n. 2, do CPP; o nº2 do art. 374.º impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório (cf., nesta perspectiva, o Ac. do TC de 02-12-1998). IX – A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência”.
[3] Vide op. loc. cit. p. 210.
[4] Neste sentido José Manuel Damião da Cunha, in “O Caso Julgado Parcial – Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num processo de Estrutura Acusatória”, Publicações Universidade Católica, Porto, 2002, p. 564. 

[5] Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 11.10.2007; Proc. n.º 07P3240., onde se escreveu: “Mais exigentemente, pois que agora se deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas "nos termos previstos na lei" para o serem "na forma prevista na lei". A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação.

A fundamentação das decisões judiciais continua, pois, dependente da lei a que é atribuído o encargo de definir, com maior ou menor latitude, o âmbito do dever de fundamentação, sem que isso signifique total discricionariedade legislativa, “uma vez que o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso. Nestes casos, particularmente, impõe-se a fundamentação ou motivação fáctica dos actos decisórios através da exposição concisa e completa dos motivos de facto, bem como as razões de direito que justificam a decisão” (V. Moreira e G. Canotilho, CRP Anotada, 2.ª Edição, 798-9)

Foi devolvido ao legislador o seu “preenchimento”, a delimitação do seu âmbito e extensão em termos prudentes evitando correr o risco de estabelecer uma exigência de fundamentação demasiado extensa e, por isso, inapropriada e excessiva. Limitou-se a consagrar o aludido princípio “em termos genéricos”, deixando a sua concretização ao legislador ordinário. (cfr. o ac. nº 310/94 do T. Constitucional – DR IIS de 29.8.94), sem que isso signifique, como se viu, que assiste ao legislador ordinário uma liberdade constitutiva total e absoluta para delimitar o âmbito da obrigatoriedade de fundamentação das decisões dos tribunais, em termos de esvaziar de conteúdo a imposição constitucional.

Têm sido atribuídas à fundamentação da sentença diversas funções:

— Contribuir para a sua eficácia, através da persuasão dos seus destinatários e da comunidade jurídica em geral;

— Permite, ainda, às partes e aos tribunais de recurso fazer, no processo, pela via do recurso, o reexame do processo lógico ou racional que lhe subjaz;

— Constitui um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa o dever de dizer o direito no caso concreto (iuris dicere). E, nessa medida, é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões (cfr. citado Ac. 680/98).

E a norma, que desenhou o dever de fundamentação no processo penal, cumpre todas estas funções, como vêem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional (cfr. Ac. TC n.ºs 680/98 e 636/99, 102/99, 258/2001, 382/98 e AcSTJ de AcSTJ de 11.11.2004, proc. n.º 3182/04-5)”. E ainda no mesmo sentido o ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 09-01-2008 - Proc. n.º 4457/07. “[…] VIII - Através da exigência de fundamentação consegue-se que as decisões judiciais se imponham não por força da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que  lhes subjaz (Marques Ferreira, in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 230). Ao mesmo tempo, permite-se a plena observância do princípio do duplo grau de jurisdição, podendo o tribunal superior verificar se, na sentença, se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 294), sem olvidar que, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1.ª instância aquele que está em melhores condições para fazer um adequado usado do princípio de livre apreciação da prova. IX - Antes da vigência da Lei 59/98, de 25-08, entendia-se que o art. 374.º, n.º 2, do CPP não exigia a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão-só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não impondo a lei a menção das inferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contraprovas, nem impondo que o julgador expusesse pormenorizadamente o raciocínio lógico que se encontrava na base da sua convicção, pelo que somente a ausência total da referência às provas que formaram a fonte da convicção do tribunal constituía violação do art. 374.º, n.º 2, do CPP, a acarretar nulidade da decisão nos termos do art. 379.º do mesmo diploma legal. X - Actualmente, face à nova redacção do n.º 2 do art. 374.º do CPP – introduzida pela Lei 59/98, de 25-08, e inalterada pela Lei 48/2007, de 29-08 –, é indiscutível que tem de ser feito um exame crítico das provas, ou seja, é necessário que o julgador esclareça “quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra”. XI - O dever constitucional de fundamentação da sentença (art. 205.º, n.º 1, da CRP) basta-se com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como com o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas também dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que aquela se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência. XII - A fundamentação decisória não tem que preencher uma extensão épica, sem embargo de dever permitir ao seu destinatário directo e à comunidade mais vasta de cidadãos, que sobre o julgado exerce um controlo indirecto, apreender o raciocínio que conduziu o juiz a proferir tal decisão. Não basta, pois, uma mera referência dos factos às provas, torna-se necessário um correlacionamento dos mesmos com as provas que os sustentam. XIII - Aplicada aos tribunais de recurso, a norma do art. 374.º, n.º 2, do CPP não tem aplicação em toda a sua extensão, nomeadamente não faz sentido a aplicação da parte final de tal preceito (exame crítico das provas que serviram para formar a livre convicção do tribunal) quando referida a acórdão confirmatório proferido pelo Tribunal da Relação. Se a Relação, reexaminando a matéria de facto, acolheu a fundamentação do acórdão recorrido que se apresenta detalhada, justificando-o na parte respectiva, então as instâncias cumpriram suficientemente o encargo de fundamentar, sendo que a discordância quanto aos factos apurados não permite afirmar que não foi (ou não foi suficientemente) efectuado o exame crítico pelas instâncias. XIV - O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento na 2.ª instância. Dirige-se somente ao exame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos em recurso e das provas que impõem decisão diversa (e não indiscriminadamente de todas as provas produzidas em audiência). XV - O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127.° do CPP. A livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em 1.ª instância. O art. 127.° indica um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.

[6] Vide op.loc. cit., p.566.
[7] Para mais desenvolvimentos sobre esta temática, vide Robert Alexy, in Teoria da Argumentação JurídicaA Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica, Landy Editora, 2001, p. 100; e Hermenegildo Borges, in “Vida, Razão e Justiça, Racionalidade argumentativa na Motivação Judiciária”, Minerva Editora, Coimbra, 2005, p.177. “(…) a convicção que suporta uma decisão dificilmente assume um grau de certeza, isto é, o grau superior de convicção e que, existindo, exclui qualquer possibilidade de erro, uma vez que perante ela se atinge o grau mais rigoroso da motivação lógico-material”.