Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
694/19.3T8SRE.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
LIVRANÇA
REQUISITOS FORMAIS
Data do Acordão: 05/25/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 75º DA LULL; PORTARIA 28/2000, DE 27/01.
Sumário: Desde que contenha os requisitos essenciais elencados no artº. 75º da LULL, uma livrança dada a execução não deixa de ser válida e estar munida de foça executiva pelo facto de a mesma não corresponder inteiramente ao modelo de impresso legalmente aprovado (pela Portaria nº 28/2000, de 27/01).
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo de Execução - o exequente, Banco I..., S.A., instaurou (em 05/07/2019) contra a executada, I..., ambos com os demais sinais dos autos, ação executiva para pagamento de quantia certa, com forma de processo comum ordinário, reclamando deste último o pagamento da quantia de € total de 10.125,06.

Para tanto alegou.

« 1 - O Exequente é dono e legítimo portador de uma livrança, emitida em 07/10/2017 e vencida em 02/05/2019, no valor de EUR 10.051,74 subscrita pelo executada que se junta cópia e cujo conteúdo aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

2- A referida livrança foi entregue, em branco, ao Exequente no âmbito do contrato de crédito n.º 1014929, celebrado entre Exequente e Executada.

3- A Executada autorizou expressamente o Exequente a preencher a livrança em causa, apondo-lhe as datas de emissão e vencimento, o local de pagamento e a importância do título pelo valor em dívida contratualmente estabelecido.

4- O Exequente procedeu ao preenchimento da livrança e apresentou-a a pagamento.

5- Até à presente data a Executada não procedeu ao pagamento da importância titulada pela livrança em execução, pelo que está a Executada a dever ao Exequente a quantia titulada pela livrança, à qual acrescem juros de mora e imposto de selo vencidos e vincendos até integral e efectivo pagamento, bem como o imposto de selo, pela emissão de títulos de crédito, devido à Autoridade Tributária e Aduaneira.

6- A livrança em questão é título executivo que serve de base à presente execução, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 703.º do Código de Processo Civil. »

2. Conclusos que lhe foram os autos, o sr. juíz a quo, pelo despacho de 16/09/2019 e à luz do disposto no artº. 726º, nº. 1 al. a), do CPC, decidiu indeferir liminarmente o requerimento executivo.

Decisão que, naquilo que para aqui mais releva, fundamentou nos seguintes termos:

« (…) No caso concreto:

Foi apresentado como título executivo um documento particular emitido a 07-10-2017 que, em nosso entender, não tem qualquer valor legal como Livrança, logo não configura título de crédito nos termos e para os efeitos previstos no art.º 703.º/1/c) CPC.

Com efeito, a emissão de Livranças está legalmente sujeita não só aos requisitos previsto na Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças, como também ao art.º 65.º do Código do Imposto do Selo e à Portaria n.º 28/2000, de 27/01.

A Exequente, ao editar o módulo de Livrança, não observou os requisitos legais e técnicos previstos no art.º 65.º CIS e na P.28/2000.

Não existe número sequencial e nem o formato, nem o papel, nem as cores, nem as tintas, nem a impressão, respeitam as obrigações legais decorrentes da P.28/2000.

Em síntese, o documento apresentado é ilegal pois não reúne as características mínimas para valer como Livrança validamente editada por instituição de crédito/sociedade financeira à luz da lei portuguesa. »

Face ao exposto indefiro liminarmente a presente execução.»

3. Inconformado com tal despacho decisório, o exequente dele apelou, tendo concluído as respetivas alegações de recurso nos seguintes termos:

...

4. A executada foi citada para os termos da ação e do recurso, mas não apresentou contra-alegações.

5. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


II- Fundamentação

A) De facto.

Com relevância e interesse para a apreciação e decisão do presente recurso, devem ter-se- como assentes os factos que se deixaram descritos no Relatório que antecede e ainda o que o seguir se descreve (extraídos das peças processuais e documentais que integram os autos):

1. O documento original que corporiza o titulo executivo que serve de base à execução instaurada pelo exequente apresenta-se com a seguinte configuração fotográfica:


...

B) De direito.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, e 639º, nº. 1, e 608º, nº. 2, do CPC).

Como decorre das conclusões das alegações de recurso, e bem assim do teor decisão recorrida, a única questão que aqui nos cumpre apreciar e decidir traduz-se em saber se o documento que a exequente deu à execução como título executivo reveste-se do valor/natureza legal de uma livrança (como a exequente/ora apelante invoca e defende) e, consequentemente como título de crédito, se está dotado de força executiva.

O tribunal a quo entendeu que não, argumentando para o efeito que o referido documento editado pela exequente, como uma livrança, não observou os requisitos legais e técnicos previstos no artº. 65º do Código do Imposto de Selo (CIS) e na Portaria nº. 28/2000, de 27/01, pois que não existe nele número sequencial e nem o formato, nem o papel, nem as cores, nem as tintas, nem a impressão respeitam as obrigações legais decorrentes de tal Portaria, e daí que não reúna as caraterísticas mínimas para valer como livrança, (e, consequentemente, como título executivo) sendo, pois, ilegal, a esse título.

Apreciemos, pois.

Conforme se dispõe no artº. 10º, nº 5, do CPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da ação executiva.

O título executivo – que, como se sabe, não se confunde necessariamente com a causa de pedir -, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda, assume, assim, uma função delimitadora (por ele se determinando o fim e os limites, objetivos e subjetivos), probatória e constitutiva. Todavia, não se confundido com a causa de pedir e nem sendo conceitos necessariamente coincidentes, costuma-se, porém, ainda afirmar que, como pressuposto processual específico da ação é executiva, o título é, grosso modo, uma condição e suficiente da mesma.

No campo dos títulos executivos vigora entre nós o princípio da legalidade/tipicidade, segundo o qual só pode servir de base a um processo de execução documento a que seja legalmente atribuída força executiva.

As espécies de títulos executivos encontram-se elencadas no artº 703º do CPC.

Dentre o elenco daqueles ali taxativamente tipificados, são títulos executivos “Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.” (artº. 703º, nº. 1 al. c), do CPC) (sublinhado nosso)

Como é sabido, as livranças (tais com as letras e os cheques) encontram-se entre esses títulos de crédito revestidos de força executiva.

Desde logo, na sua função natural de documentos cartulares ou cambiários, ou seja, enquanto títulos de crédito de natureza cambiária, e podendo agora (naquilo que constitui hoje entendimento claramente dominante da nossa doutrina e jurisprudência, embora com algumas vozes discordantes) sê-lo ainda, em determinadas condições, enquanto documento particular ou quirógrafo, ou seja, desde que, nesse caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo. (Cfr. ainda, além do citado normativo legal, o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º., Coimbra Editora, 1999, pág. 90” e in “A Acção Executiva, 5ª ed., Coimbra Editora, pág. 59”, e Amâncio Ferreira, in “Curso de Processo de Execução, 2005, 8ª ed., Almedina, pág. 35”).

Quando a livrança se apresenta à execução, como título executivo, na sua veste cambiária ou cartular, é considerado como um título de crédito próprio, porém, se é ali apresentado despido dessa veste cambiária, ou seja, apenas como documento particular, é considerado como um título de crédito impróprio (cfr., por todos, o Ac. do STJ, de 12/09/2019, proc. 125/16. 0T8VLF-A.C1.S1, disponível, em www.dgasi.pt).

Ressalta do requerimento executivo que o documento dado à execução pelo exequente o foi, antes de mais, na veste de livrança, enquanto documento cartular ou cambiário.

Vejamos, então, se o referido documento configura ou tem a natureza (jurídica) de uma livrança.

Grosso modo, pode dizer-se que a livrança é um título à ordem, sujeito a certas formalidades, pelo qual uma pessoa (o emitente, subscritor ou passador) se compromete, para com outra (o tomador ou beneficiário), a pagar-lhe determinada quantia (cfr., por todos, Abel Pereira Delgado, in “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada, 4ª. ed. Actualizada, Livraria Petrony, págs. 321/322”).

A Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL) enuncia no seu artº 75º os requisitos essenciais que a livrança deve conter, sendo que a falta de algum deles conduz, nos termos do disposto no seu artº. 76º – salvo no que concerne àqueles referentes à não indicação da época do seu pagamento ou do lugar da sua emissão -, a que não produza os efeitos como livrança.

Lei essa que não contêm qualquer preceito legal que regule ou discipline o modelo e as caraterísticas a que devem obedecer aos documentos em papel que corporativizem as livranças.

Resulta, assim, da conjugação de tais normativos, que a única condição imposta pela referida Lei para que um documento possa valer como livrança, e possa como tal produzir efeitos, é que contenha em si os requisitos (essenciais) enunciados no seu artº. 75º.

O modelo (de impressão do papel) a que devem obedecer aas livranças (tal como o das letras) encontra-se atualmente oficializado/regulamentado pela Portaria nº. 28/2000, de 27/01, descrevendo-se aí as caraterísticas a que esse modelo (normalizado) deve obedecer, nomeadamente no que concerne ao tipo, ao formato e dimensões do papel, ao seu ao texto, à impressão, às cores e outros carateres ali referenciados (que aqui se dão por reproduzidos).

Regulamentação essa que o legislador, no preâmbulo desse diploma, justifica da seguinte forma:

 “Em consequência da entrada em vigor do Código do Imposto do Selo, aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de Setembro, e respectiva Tabela Geral, resulta a abolição definitiva da forma de arrecadação do imposto do selo por meio de papel selado, ainda subsistente na espécie de papel para letras, e a sua substituição por meio de guia.
Torna-se, pois, necessário adequar a esta realidade os modelos das letras e livranças.” (sublinhado nosso)
A definição dessa regulamentação do modelo e caraterísticas a que devem obedecer os atuais documentos das livranças (e também das letras) foi imposta expressamente pelo Código do Imposto do Selo (CIS), aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11/09, o qual no seu atual artº. 65º dispõe, a esse respeito, nos seguintes termos:

1 - As letras emitidas obedecerão aos requisitos previstos na lei uniforme relativa a letras e livranças.

2 - O modelo das letras e livranças e suas características são estabelecidos em portaria do Ministro das Finanças.

3 - As letras são editadas oficialmente ou, facultativamente, pelas empresas públicas e sociedades regularmente constituídas, desde que o número de letras emitidas durante o ano não seja inferior a 600.

4 – (…)

5 –As letras editadas pelas empresas públicas e sociedades regularmente constituídas são impressas nas tipografias autorizadas para o efeito por despacho do Ministro das Finanças.

6 - As letras referidas no número anterior contêm numeração sequencial impressa tipograficamente com uma ou mais séries, convenientemente referenciadas.

7 - (…)

8 – (…)

9 – (…)

10 - As livranças são exclusivamente editadas pelas instituições de crédito e sociedades financeiras.” (sublinhado e negrito nossos)

Já antes, nesse domínio, a intervenção do legislador nacional (que a Convenção de Genebra de 7 de Junho de 1930, que aprovou a LULL e à qual o nosso Estado aderiu pelo Decreto-Lei ratificador n.º 23721, de 29 de Março de 1934, não proibiu nessa matéria) se havia feito sentir, tal como aconteceu com as Portarias nºs. 142/88, de 04/03, 545/88, de 12/08, 233/89, de 27/03, 1042/98, de 19/12, e pelo DL nº. 387-G/87, de 30/12.

E do cotejo da leitura dos diplomas legais que se deixaram citados ressalta, à evidência, que essa intervenção tem sido justificada por razões estritamente de ordem tributária e burocrática – vg. com cobrança do imposto de selo e a sua adaptação ao tratamento informático –, sem qualquer interferência – como não poderia deixar de ser, atenta a vinculação do Estado Português à referida Convenção de Genebra e o disposto no artº. 8º da C.R.Port. – no regime, natureza, características e princípios consagrados pela LULL para a livranças (e também, enfatiza-se, para as letras), enquanto títulos ou documentos cambiários ou cartulares.

Diga-se ainda, em acréscimo, que nem o CIS e nem a Portaria nº. 28/2000 (o mesmo tendo sucedido com as antecedentes que se citaram) estabelecem qualquer sanção para as livranças ou letras que forem emitidas em desconformidade com os modelos de impresso em vigor e por eles criados e regulamentados, e nomeadamente ao nível da sua validade como letras e livranças ou ao nível da sua força executiva.

E sendo assim - e tal como vem constituindo entendimento claramente prevalecente na nossa doutrina e jurisprudência –, uma livrança ou uma letra de câmbio não deixaram de o ser pelo facto de ter sido utilizado para a sua emissão um papel diferente do impresso oficial ou do modelo estabelecido para a sua emissão particular, desde que contenham em si a indicação dos requisitos essenciais enunciados na LULL (cfr. artº. 75º para as livranças, e artº. 1º para as letras).

E para ilustrar o que acabamos de concluir, nada melhor do que servirmo-nos, para terminar esta fase expositiva, das palavras de Pinto Furtado (in “Títulos de Crédito, 2017, 2ª. ed., revista e actualizada, Almedina, pág. 208”), quando escreve que “tal como vimos ocorrer com a letra, também relativamente à livrança o uso de um escrito não normalizado, mas contendo as menções legais imprescindíveis, não retira ao título a natureza de livrança, nem, hoje em dia, a sua executoriedade imediata”. No sentido que se deixou exposto, vide ainda (para além do autor que se acabou de citar, e para maior e melhor desenvolvimento, in “Ob. Cit., págs. 115, 116, 117 e 208”), Pinto Coelho, in “Lições de Direito Comercial., - As Letras, 1ª. parte – págs. 48/50”; Oliveira Ascensão, in “Direito Comercial, Vol. III, 1992, pág. 239; José de Oliveira de Ascensão e Pedro Pais de Vasconcelos, in “Revista da Ordem dos Advogados, Ano 60, Janeiro de 2000, vol. I”; Ac. do STJ de 03/12/1998, “BMJ nº. 482, pág. 250”; Ac. da RL de 27/01/1998, “BMJ, nº. 473, pág. 552”; Acs. da RP de 29/04/2008, proc. 0821381, e de 09/12/2004, proc. 0435733, disponíveis em www.dgsi.pt).

Posto isto, e reportando-nos ao caso em apreço, compulsando o documento que a exequente deu à execução como título executivo,  facilmente, a nosso ver, se deteta que o mesmo contem em si todos os requisitos essenciais a que alude o artº. 75º da LULL, pelo que sendo assim, e independentemente de não corresponder integralmente ao modelo plasmado na citada Portaria nº. 28/2000, se terá de concluir, como se conclui (e ao contrário do que fez o tribunal a quo), que o mesmo reveste a natureza de uma (válida) livrança, estando, como tal, dotado de força executiva.

E sendo assim, decide-se, na procedência do recurso, revogar o despacho recorrido, determinando-se que o mesmo seja substituído por outro que receba o requerimento executivo e ordene a subsequente tramitação legal da execução.


III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso, revogando-se, em consequência, o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, recebendo o requerimento executivo, ordene o prosseguimento da execução nos termos da tramitação legalmente prevista.

Sem custas.

Sumário

Desde que contenha os requisitos essenciais elencados no artº. 75º da LULL, uma livrança dada a execução não deixa de ser válida e estar munida de foça executiva pelo facto de a mesma não corresponder inteiramente ao modelo de impresso legalmente aprovado (pela Portaria nº. 28/2000, de 27/01).

Coimbra, 2020/05/25