Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
252/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRINA FERREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ULTRAPASSAGEM
CRUZAMENTO
Data do Acordão: 03/08/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 41.º, N.º 1, AL. C) DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário: A linha descontínua num cruzamento ou entroncamento apenas autoriza que se pise ou se transponha essa mesma linha para que se efectue a manobra de mudança de direcção e não qualquer outra manobra, se houver comando que a proíba.
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação de Coimbra

A... veio interpor recurso da sentença que absolveu B...., do pedido que contra ela formulou.
Na p.i., a autora, ora apelante, pede a condenação da ré, ora apelada, a pagar-lhe 1.746.000$00 acrescidos dos juros contados desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
Para o efeito, alega que, em 13.01.2001, pelas 12h20m, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o seu veículo de matrícula CQ-89-53 por si conduzido e, um outro, de matrícula UD-56-26, conduzido na altura por C..., que o fazia por conta e no interesse do proprietário (que diz ser D...) e que a responsabilidade civil decorrente da sua circulação se encontrava transferida para a companhia de seguros ré.
A autora alega, também, que o acidente ocorreu por culpa do condutor do UD que, em manobra de ultrapassagem, ocupou a hemi-faixa de rodagem contrária àquela em que até então seguia, vindo a embater no CQ que acabava de entrar naquela mesma hemi-faixa, provindo de via pública paralela.
Decorrentemente do acidente - acrescenta - sofreu prejuízos de que se quer ver ressarcida.
A ré contestou, imputando à autora a culpa na produção do acidente pois - segundo diz - surgiu inopinadamente na hemi faixa em que circulava o UD em manobra de ultrapassagem, e suscitou a intervenção do alegado proprietário deste veículo, incidente que foi admitido.
***
Estão provados os seguintes factos:
1. No dia 13.01.2001, pelas 12h20m, ocorreu um embate entre os veículos ligeiros de passageiros de matrícula UD-56-26 e CQ-89-53 (alínea A) da matéria assente).
2. O UD era conduzido por C..., residente na Quinta da Castanheira, Covelo, Tonda, e seguia pela Av. Sá Carneiro, no sentido Alto do Pendão - centro de Tondela ( alínea B) da matéria assente e resposta ao art.º 1° da Base Instrutória).
3. O CQ era conduzido pela autora e seguia pela via pública paralela ao hipermercado Lidl (alínea C) da matéria assente).
4. O local do acidente configura uma recta dotada de boa visibilidade, ladeada de bermas, permitindo a circulação em ambos os sentidos, delimitados entre si por traço longitudinal descontínuo (resposta ao art.º 25° da Base Instrutória).
5. A estrada, no local do embate, é asfaltada, estando em bom estado de conservação (resposta aos arts. 8° e 26° da Base Instrutória).
6. E tem a largura de 8,50 metros (resposta ao art.º 9° da Base Instrutória).
7. O condutor do UD conhece o local do acidente (resposta ao art.º 6° da Base Instrutória).
8. No momento do acidente o estado do tempo atmosférico era bom (resposta ao art.º 27° da Base Instrutória).
9. Do local de onde provinha o UD existe um sinal vertical a proibir a velocidade superior a 50 km/h (resposta ao art.º 10° da Base Instrutória).
10. O UD circulava na sua mão de trânsito (resposta ao art.º 28° da Base Instrutória).
11. A autora pretendia virar à direita no sentido do Alto do Pendão (resposta ao art.º 2º da Base Instrutória).
12. O condutor do UD resolveu ultrapassar pela esquerda o veículo que seguia à sua frente (resposta aos arts. 4° e 30° da Base Instrutória).
13. Para tanto o condutor do UD ocupou a semi-faixa de rodagem contrária, ocorrendo o embate entre a frente esquerda do UD e a frente direita do CQ (resposta aos arts. 5°, 32° e 41° da Base Instrutória).
14. Quando se encontrava em manobra de ultrapassagem o condutor do UD é surpreendido pelo CQ que provinha da rua paralela ao Lidl, situado à esquerda do UD atento o seu sentido de marcha (resposta ao art.º 33° da Base Instrutória).
15. Sendo intenção da condutora do CQ mudar de direcção para a direita, tomando o sentido de marcha oposto àquele em que circulava o UD, a mesma procedeu a tal manobra sem parar antes de entrar na Avenida Sá Carneiro (resposta ao art.º 34° da Base Instrutória).
16. Não cedendo passagem ao UD que circulava naquela via (resposta ao art.º 35° da Base Instrutória).
17. O UD mostrava-se bem visível a uma distância de mais de 50 metros (resposta ao art.º 36° da Base Instrutória).
18. A condutora do CQ atravessou-se na frente do UD obstruindo-lhe a passagem (resposta ao art.º 37° da Base Instrutória).
19. O embate teve lugar na Av. Sá Carneiro junto à saída do entroncamento formado pela Av. Sá Carneiro e pela Rua paralela ao Lidl, quando a autora ainda não lograra terminar a pretendida mudança de direcção à direita no sentido do Alto do Pendão (resposta aos arts. 3°, 11 ° e 39° da Base Instrutória).
20. Na via de onde provinha a autora e na proximidade imediata do entroncamento referido em 19., em local bem visível junto à berma do lado direito, atento o sentido de marcha do CQ existia um sinal vertical de aproximação de estrada com prioridade (resposta ao art.º 38° da Base Instrutória).
21. Não foram registados quaisquer rastos de travagem no pavimento (resposta ao art.º 40° da Base Instrutória).
22. Atento o sentido de marcha do UD, não há qualquer sinal que indique aproximação de entroncamento (resposta ao art.º 42° da Base Instrutória).
23. O acidente dos autos não ocorreu por questões de segurança do veículo UD (resposta ao art.º 49° da Base Instrutória).
24. Como consequência directa e imediata do acidente dos autos, a autora teve de ser assistida no Hospital Distrital de Tondela a um hematoma no pescoço (resposta ao art.º 12° da Base Instrutória).
25. Porque apresentava intensas dores no peito, a autora realizou em tal hospital um RX (resposta ao art.º 13° da Base Instrutória).
26. Durante um mês a autora teve dores no pescoço e peito (resposta ao art.º 14° da Base Instrutória).
27. Não obstante o referido em 26., a autora compareceu no trabalho, que é a sua única fonte de rendimentos, com os incómodos e mau estar inerentes (resposta ao art.º 15 da Base Instrutória).
28. A autora comprou o CQ em 02.08.1999, o qual é uma viatura da marca SEAT, modelo IBIZA, de cor vermelha, do ano de 1993, que estava como nova, pelo preço de 1.550.000$00 (resposta ao art.º 16° da Base Instrutória).
29. Devido ao acidente, a viatura da autora foi considerada em perda total (resposta ao art.º 17° da Base Instrutória).
30. O valor de tal viatura, à data do acidente, era de 1.250.000$00 (resposta aos arts.18° e 44° da Base Instrutória).
31. A sua reparação ascendia a 963.985$00 (resposta aos arts.19°, 43° e 44° da Base Instrutória).
32. Após o acidente, o CQ não ficou em condições de transitar na via pública (respostas aos arts. 20° e 44° da Base Instrutória).
33. Durante 8 meses a autora não pôde utilizar o seu veículo, nem tem condições económicas para adquirir outro (resposta ao art.º 2lº da Base Instrutória).
34. Era com o CQ que a autora se deslocava para e do trabalho, fazendo com o mesmo 30 km diários (resposta ao art.º 22° da Base Instrutória).
35. A autora trabalha na URFIC, em Tondela, e quando entra pelas 0h15m e sai pelas 17h30m do trabalho não há transportes públicos de e para a sua residência em Treixedo (resposta ao art.º 23° da Base Instrutória).
36. A autora fez parte do trajecto a pé, entre a sua residência e o sítio onde apanha boleia (resposta ao art.º 24° da Base Instrutória).
37. A ré companhia de seguros não assumiu de imediato a responsabilidade quer pelo pagamento do valor da viatura, quer pela reparação da mesma (alínea D) da matéria assente).
38. À data do acidente, MJC L.da tinha a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação do veículo UD-56-26, até ao montante de 125.000.000$00, transferida para a companhia de seguros ré, através da apólice n°.3596674 (alínea E) da matéria assente).
39. C... é pai de D... (alínea F) da matéria assente).
40. À data do acidente, o UD não tinha inspecção válida (alínea O) da matéria assente);
***
A apelante apresentou as conclusões de recurso que constam de fls.305, sustentando que o acidente ocorreu por culpa do condutor do UD que fez uma manobra de ultrapassagem ilícita, porque em infracção ao disposto no art.º 41º, n.º 1, al. c) do CE e, imponderada, porque no local o limite de velocidade é de 50 km/h.
No que se refere à velocidade, importa notar, em primeiro lugar, que o quesito 7º onde se perguntava se «o UD seguia a velocidade superior a 50 km/h», obteve a resposta «não provado». Em segundo lugar, da circunstância de o limite de velocidade se situar nos 50 km/h não se retira, sem mais, que toda e qualquer ultrapassagem seja imponderada.
No que diz respeito à alegada infracção ao art.º 41º, n.º 1, al. c) do CE.:
Prescrevendo aquele normativo que «É proibida a ultrapassagem imediatamente antes e nos cruzamentos e entroncamentos» e resultando dos factos provados que «o embate teve lugar na Av. Sá Carneiro junto à saída do entroncamento formado pela Av. Sá Carneiro e pela Rua paralela ao Lidl», retira-se que o condutor do UD desrespeitou a proibição de ultrapassar no entroncamento.
Sustenta a apelada que «o facto de existir no local uma marca longitudinal ou linha descontínua de cor branca delimitando as hemifaixas da via (...) não interrompida no entroncamento (...) determina a derrogação da referida regra geral de trânsito que proíbe a ultrapassagem na imediação de um entroncamento».
Efectivamente, o art.º 7º, n.º 1 do CE estipula que «As prescrições resultantes dos sinais prevalecem sobre as regras gerais do trânsito». Importa, no entanto, apurar se a marca rodoviária a que a apelada se refere afasta a proibição contida no art.º 41º, n.º 1, al. c) do CE.
O art.º 60º, n.º 1 do Regulamento de Sinalização de Trânsito diz que a linha descontínua «significa para o condutor o dever de se manter na via de trânsito que ela delimita, só podendo ser pisada ou transposta para efectuar manobras». Daqui, a apelada retira - segundo alcançámos - que a linha descontínua concede o direito de executar toda e qualquer manobra, incluindo a de ultrapassar nos entroncamentos.
Porém, a linha descontínua autoriza apenas que se pise ou transponha essa mesma linha. Para efectuar manobras é certo. Mas que não serão as de ultrapassagem, se houver comando que as proíba.
Ora, no que se refere à proibição de ultrapassagem nos entroncamentos estabelecida no art.º 41º, n.º 1, al. c), ela só conhece as excepções enunciadas nos números 3 e 4 do preceito, não havendo factos que as integrem.
Mas ainda que fosse permitida a ultrapassagem, tal manobra sempre seria imprudente, pois, como se provou, o condutor do UD conhecia o local do acidente, não podendo, por isso, ignorar que na via em que circulava entroncava uma outra.
No que diz respeito à apelante, está assente que, sendo sua intenção mudar de direcção para a direita e tomar o sentido de marcha oposto àquele em que circulava o UD, realizou tal manobra sem parar antes de entrar na Avenida Sá Carneiro. Ora, o sinal de trânsito que a obrigava a ceder a passagem, impunha-lhe que detivesse a sua marcha, o que a ter sido feito, evitaria a colisão entre os veículos.
Importa, pois, repartir a culpa entre ambos os condutores, afigurando-se-nos que a actuação de qualquer deles merece igual censura.
A autora pede indemnização por danos não patrimoniais e patrimoniais.
Está assente:
Como consequência directa e imediata do acidente dos autos, a autora teve de ser assistida no Hospital Distrital de Tondela a um hematoma no pescoço;
Porque apresentava intensas dores no peito, a autora realizou em tal hospital um RX. Durante um mês a autora teve dores no pescoço e peito;
Não obstante, a autora compareceu no trabalho, que é a sua única fonte de rendimentos, com os incómodos e mau estar inerentes.
***
A obrigação de indemnizar a apelante decorre do princípio geral consagrado no art.º 483º, n.º 1 do CC.
Consoante resulta do art.º 496º, n.ºs 1 e 3 do citado diploma, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais deve atender-se àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito e o seu montante será fixado equitativamente.
A gravidade dos danos sofridos pela apelante decorre do facto das dores se terem mantido durante um mês e terem atingido o peito e o pescoço, zonas do corpo que, uma vez afectadas, comprometem a generalidade dos movimentos da cabeça e dos membros superiores.
A recorrente pede a indemnização de 400.000$00. Afigura-se-nos, porém, que 300.000$00 é o montante adequado. Uma média diária de 10.000$00 compensará a autora das dores que padeceu.
A apelante pede, ainda, indemnização pela privação do uso do veículo.
Está provado:
Após o acidente, o CQ não ficou em condições de transitar na via pública;
Durante 8 meses a autora não pôde utilizar o seu veículo, nem tem condições económicas para adquirir outro;
Era com o CQ que a autora se deslocava para e do trabalho, fazendo com o mesmo 30 km diários;
A autora trabalha na URFIC, em Tondela, e quando entra pelas 0h15m e sai pelas 17h30m do trabalho não há transportes públicos de e para a sua residência em Treixedo;
A autora fez parte do trajecto a pé, entre a sua residência e o sítio onde apanha boleia.
***
É equilibrado o montante que, pela privação do uso do veículo, reclama a apelante, e merece a tutela do direito, não obstante a seguradora defender o contrário.
Os factos evidenciam a necessidade que a recorrente tem da sua viatura. Para exercer a sua actividade profissional, única fonte de rendimento, a apelante percorre diariamente 30 km, em horário em que o veículo não é apenas um meio de transporte, mas também, uma garantia de segurança e liberdade de movimentos.
Acresce que a autora não dispõe de transportes públicos quando entra ao serviço às 0h15m e sai às 17h30m, daí que o seu veículo lhe seja indispensável.
Diferentemente do que sustenta a seguradora, a privação do uso do automóvel, no quadro dos factos enunciados, merece a tutela do direito e os 3.000$00 semanais pedidos, equivalem a uma média diária de 500$00, o que é manifestamente modesto, em termos de reparação.
No âmbito dos danos patrimoniais, os factos mostram que o prejuízo da autora ascende a 1.250.000$00, valor do seu veículo à data do acidente e que, em consequência dele ficou irrecuperável.
Tendo-se entendido que a autora e o condutor do UD merecem igual juízo de censura, a culpa há-de ser distribuída na proporção de 50% para cada um, o que significa que o montante da indemnização obedece a uma redução, também de 50%.
Deste modo, acordam os juizes da secção cível em conceder parcial provimento à apelação e, consequentemente, em revogar a sentença recorrida, indo agora a ré/apelada, condenada a pagar à apelante a quantia de 823.000$00, a que acrescem os juros legais desde a citação até integral pagamento. No mais pedido, vai a apelada absolvida.
Custas por ambas as partes na proporção do decaimento.