Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
156/06.9TAACN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: CHEQUE SEM PROVISÃO
FALSIFICAÇÃO
Data do Acordão: 06/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 255º,256º,359º ,360º, E AL. B) DO Nº 1 DO ARTº 11º DO DEC. LEI 454/91
Sumário: A falsa informação prestada ao banco sacado de extravio ou furto de cheque, com a intenção de obstar ao pagamento desse cheque, integra apenas o crime de emissão de cheque sem provisão previsto na alínea b) do nº 1 do artº 11º do Dec. Lei 454/91, se verificados os demais elementos constitutivos do crime, e não o crime de falsificação.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


RELATÓRIO

Nos presentes autos de instrução vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Alcanena, a Mmª Juiz proferiu despacho de não pronúncia do arguido por inexistência de indícios suficientes do cometimento do ilícito criminal que lhe vinha imputado.
Dessa decisão recorreu o assistente A..., SPA, que conclui a sua motivação nos seguintes termos:
“ 1. – No processo penal actual vigora o princípio da vinculação temática do Tribunal que veda ao Juiz de Instrução a prolação de uma decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que não constem da Acusação.
O que, porém, não preclude a possibilidade de o Juiz de Instrução poder alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na Acusação ou no requerimento para a abertura da instrução, desde que a mesma não implique alteração substancial, e sem que antes comunique essa alteração ao Arguido, conforme Acórdão desta Relação supra citado.
2. - A Jurisprudência fixada no Assento 4/200, de 19/01/2000, restringe-se ao regime anterior à entrada em vigor do D.L. 454/91 e à vigência do C. Penal de 1982, não tendo aplicação nas situações posteriores à entrada em vigor daquele diploma e no domínio do art.º 256º do C. Penal de 1995;
3. – No domínio do art.º 256.º do C. Penal e do Dec. Lei 454/91, constitui facto juridicamente relevante a comunicação falsa de extravio de cheques às instituições de crédito sacadas por justificar a recusa de pagamento e por, se a conta não tiver fundos suficientes para o pagamento, obstar às consequências para o sacador da emissão de cheque sem provisão;
4. – Nos autos, há indícios suficientes da prática de 1 crime continuado de falsificação de documentos, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, ala. b) do C.P., decorrente das circunstâncias descritas, feitas pelo Arguido, de falso extravio e furto de cheques, pelo que este deve ser pronunciado por eles.
5. – O douto despacho recorrido ao decidir como decidiu violou o art.º 256.º n.º 1 ala. b) do C.P., bem como os art.ºs 1.º, 1.º-A, 2.º, 3.º, 8.º, N.º 3, 11.º, n.º 1, b), do Dec. Lei 454/91, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei 316/1997, de 19 de Novembro, Dec. Lei 323/2001 de 17 de Dezembro e 38/2003, de 24 de Abril, e violou o art.º 308.º, 1, 1.ª parte e 2 do C. Penal.”.
O Ministério Público e o arguido responderam, concluindo ambos que a decisão recorrida deve ser mantida.
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO


A assistente participou criminalmente contra o arguido, pela prática dos seguintes factos:
“ 1º. - A participante dedica-se ao fabrico e comercialização de peles.
2º - A pedido do Sócio Gerente da B... Participante procedeu a diversos fornecimentos de peles, sendo que as relações comerciais entre as partes perduraram no período compreendido entre Outubro de 2005 e Março de 2006.
3º. - A Sociedade B... é devedora à Participante em montante que ascende a 240 929, 68 €.
4º - A mercadoria recepcionada e não paga pela B... era efectuada do seguinte modo:
O seu Representante C... contactava o Representante da J.G.M.C. da qual é seu sócio gerente D..., representante por sua vez da Firma Italiana Queixosa, com sede na Rua X .
5º - As notas de encomenda eram verbais e dirigidas quer ao Snr. E..., quer ao Snr. D... representantes da Queixosa.
6º - Estes transmitiam o pedido do cliente para Itália e nesta sequência dali eram enviadas para a sede da J.G.M.C., local onde o Representante da Participada ia depois proceder ao carregamento e transporte.
7º - Os pagamentos das facturas aqui em causa, foram efectuados contra a emissão de cheques, entregues directa e pessoalmente ao referido D... que depois, por sua vez, os enviava para a sua representada italiana ora Queixosa.
8º - Deste modo, para pagamento:
1) - Da Factura N.º 595, datada de 05/10/2005, no valor de 41 845,92 €, foram emitidos os cheques n.º 1784409014, sacado sobre o Millenium, número de conta 00000000000, no valor de 20 922,96 €, com vencimento em 18/03/2006 e outro cheque de igual montante, sacado sobre a mesma entidade, que o representante da Participada entretanto solicitou a sua devolução ficando fisicamente com o documento e, por conta do mesmo, transferiu 10 000 €, ficando de transferir o remanescente em dívida, ou seja 10 922,96 € que até hoje não procedeu (Docs. 2 e 3).
2.1 - Para pagamento da factura nº. 648, datada de 19/10/2005, no valor de 3 851, 74 €. (Doc. 4)
2.2– Para pagamento da factura n.º 663, datada de 21/10/05, no valor de 9 545, 11 €.(Doc. 5)
2.3 - Para pagamento da factura n.º 698, datada de 31/10/2005, no valor de 15 437,41 €, (Doc. 6)
Num total de 28 834, 26 €. Para pagamento das referidas facturas o representante legal da ora Participada emitiu, assinou e subscreveu o cheque n.º 1784417453, datado de 15/04/2006, sobre o Millenium, da conta n.º 0000000000. (Doc. 7).
3 – Para pagamento da factura n.º 751, datada de 15/11/05, no valor de 24 426,74 €, emitiu, assinou e preencheu o cheque n.º 7184418132, datado de 30/04/2006, sacado sobre o Millenium, da conta n.º 0000000000, no valor de 24 426,74 €. (Doccs. 8 e 9)
4 – Para pagamento da factura n.º 816, datada de 28/11/05, no valor de 38 577,31 €, emitiu, assinou e preencheu o cheque n.º 5100147878, datado de 31/05/2006, sacado sobre o Millenium, da conta n.º 1111111111, no valor de 38 577,31 €. (Docs. 10 e 11).
9º. - O C... na qualidade de representante da B... –. visando evitar o pagamento dos supra identificados quatro cheques no montante global de 133 6824,23 €, (onde está incluído o montante do cheque de 20 922,96 € que lhe foi entregue, contra promessa de proceder à transferência bancária do referido valor, tendo apenas ocorrido a transferência de 10 000 €), contra a verdade por si conhecida, pois tinha perfeito conhecimento que tais cheques tinham sido por si entregues ao D..., representante em Portugal da ora Queixosa, para pagamento das mercadorias fornecidas constantes nas facturas acima mencionadas e aqui se dão por reproduzidas, deu ordem em 18/03/2006, 15/04/2006, 30/04/2006 e 31/05/2006, ao Banco sacado de revogação dos mencionados cheques invocando que o primeiro havia sido “extraviado”, o segundo, terceiro e quarto com a menção de “furtado” (protesta-se juntar os originais do terceiro e quarto cheques que ainda não
foram devolvidos pelo Banco ao cliente, mas tem este conhecimento de que os mesmos foram revogados pela “invocação de furto”).
10º - Tais cheques, apresentados a pagamento nas datas do seu vencimento não foram pagos tendo sido devolvidos com a menção de “extravio” e “furto”.
11º - Visando receber as quantias em dívida o F..., representante da A… e o D..., representante desta em Portugal, contactaram o C... na qualidade de responsável pela emissão dos cheques da participada, assegurou-lhes que iriam ser integralmente pagos o que não sucedeu até hoje, apesar da promessa do fax de 14 de Junho de 2006, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido. (Doc. 12).
12º - O C... através da B... não pagou à queixosa as mercadorias objecto das facturas suportadas por cheques circunscritos a esta queixa, bem como outras no valor de € 107 245,45, (Vide extracto, Doc.1) não suportadas por cheques.
13º - As mercadorias entregues ao representante da participada vieram a ser vendidas a terceiros, não tendo até à presente data sido recuperadas ou paga pela denunciada.
14º O Denunciado C... actuando como actuou como representante da B... Ldª indicia a prática de um crime de falsificação de documento previsto e punido pelo artigo 256º nº a1 a), al. b) e 3 do Código Penal e artº 26º do referido diploma “.
Findo o inquérito, por entender que os factos participados não integravam a prática de qualquer crime ordenou o Ministério Público o arquivamento dos autos.
A assistente veio então requerer a abertura de instrução por não se conformar com o despacho de arquivamento dos autos pelo Ministério Público, alegando, em síntese, que a facticidade participada integra o crime de burla nos termos do artº 217º e 218º nº 2 a) CP.
A Mmª juiz, como já referido anteriormente, concluiu pela inexistência de indícios suficientes do cometimento do ilícito criminal que lhe vinha imputado.
Face ao conteúdo das conclusões, as questões colocadas no presente recurso são as seguintes:
- Saber se o tribunal se encontra sujeito ao princípio da vinculação temática vedando ao juiz de instrução a possibilidade de poder alterar ou não a qualificação jurídica dos factos descritos no requerimento de abertura da instrução;
- Saber se a informação dada aos bancos sacados de que os cheques foram extraviados e furtados configura ou não o crime de falsificação de documento.
Passemos então à sua análise.
E o que desde já se dirá relativamente ao primeiro ponto, é que nos parece que a questão levantada relativamente ao princípio da vinculação temática não tem razão de ser, já que a Srª juiz de instrução, como decorre do despacho de não pronúncia, e pese embora o assistente tenha qualificado os factos no requerimento de abertura de instrução como integrando o crime de burla, não deixou de se pronunciar sobre a possibilidade desses factos integrarem ou não o crime de falsificação de documento, concluindo pela negativa.
Na verdade a alínea c) do n.º 3 do art.º 283º CPP obriga à indicação, na acusação, das disposições legais aplicáveis, sob pena de nulidade. Tal preceito é aplicável ao requerimento de abertura de instrução por parte do assistente, o qual configura verdadeira acusação (art.º 287º/2).


Acresce que pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, se introduziu um número 3 ao art.º 358º do CPP, com a seguinte redacção: "O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia".
Isto é se o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, o presidente, comunica a alteração ao arguido; e concede-lhe, a requerimento, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
Assim e como se concluiu no Ac. desta Relação de 06.10.25, igualmente invocado pelo recorrente na sua motivação “ No processo penal actual vigora o princípio da vinculação temática do tribunal, princípio que veda ao juiz de instrução a prolação de uma decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que não constem da acusação.
O que, porém, não preclude a possibilidade de o juiz de Instrução poder alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou no requerimento para a abertura da instrução, desde que a mesma não implique alteração substancial, e sem que antes se comunique esta alteração ao arguido”.
Dito isto e uma vez que o tribunal não deixou de apreciar se os factos integravam a prática do invocado crime de falsificação, não tem, salvo o devido respeito por opinião contrária, razão de ser a questão ora levantada.
E será que a ordem do não pagamento dada aos bancos sacados, alegando falsamente o seu furto e o seu extravio, integra o crime de falsificação de documento?
A resposta não pode deixar de ser negativa
Vejamos porquê.
O Dec. Lei 316/97 de 19/11, na redacção que deu ao artº 11º nº 1 b) do Dec. Lei 454/91 de 28/12, veio estabelecer expressamente que quem “ Antes ou após a entrega a outrem de cheque sacado pelo próprio ou por terceiro, nos termos e para os fins da alínea anterior, levantar os fundos necessários ao seu pagamento, proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerrar a conta sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque …”.
Como refere Germano Marques da Silva Regime Jurídico-Penal dos Cheques Sem Provisão, pág. 65. “ Enquanto na alínea a) do nº 1 do artº 11º os elementos do crime são a emissão e a entrega a outrem de cheque e o prejuízo causado ao portador ou a terceiro pelo não pagamento, sendo, por isso, autor do crime o sacador do cheque, na alínea b), além daqueles elementos (emissão, circulação e prejuízo), exige-se ainda um acto especificamente causador do não-pagamento do cheque, na pressuposição de que, sem esse acto, a conta estaria provisionada e o cheque emitido seria pago.”.
Quer dizer com a falsa declaração de extravio ou furto do cheque, a conta sacada fica sem provisão, sendo essa exactamente a intenção do agente quando a emite.
Como escreve José Maria Pires O Cheque, pág. 150. “ Ao sacado não é exigível o controlo da existência e da razoabilidade dos motivos invocados pelo sacador para proibir o pagamento. Será no decurso da investigação criminal que se apurará da existência e do valor dos motivos justificativos do acto proibitivo, alegados pelo sacador contra a queixa apresentada nos termos do art. 11º-A. A apresentação de falsas justificações constitui fraude à lei que proíbe a revogação, sujeitando o seu autor à punição por emissão de cheque sem provisão.”.
Significa isto que a mentirosa comunicação à instituição sacada, de extravio ou furto do cheque, faz hoje parte da incriminação do cheque sem provisão, desde que verificados os demais elementos constitutivos.
Ora no caso vertente é pacífico que, tratando-se de cheques pós-datados, a sua incriminação como tal está desde logo afastada, atento o disposto no artº 11º nº 3 do Dec. Lei 454/91.
Perante um cenário de afastamento desse crime, será então possível integrar ainda essa conduta no crime de falsificação de documento?
Parece-nos que tal possibilidade, a ser admitida, afrontaria, de forma grosseira, os princípios da especialidade e do ne bis in idem, porquanto é a referida alínea b) do nº 1 do artº 11º, que de forma mais específica e como vimos anteriormente, prevê a conduta do arguido.
Acresce que para além disso a prestação da falsa declaração de extravio ou furto destina-se a produzir efeitos no próprio cheque, pois revoga a ordem de pagamento consubstanciada na proibição do pagamento do cheque.
Não há pois uma afirmação falsa constante do cheque.
Como escreve Germano Marques da Silva Obra citada, pág. 71. “ O sacado é-lhe inteiramente alheio, porque não lhe compete indagar das razões do titular da conta para cancelar a ordem de pagamento e essas razões podem ter plena tutela legal.
O titular da conta sacada, como mandante do sacado, pode dar-lhe ordem para não pagar o cheque e este, obedecendo-lhe, não incorre em responsabilidade cambiária, civil nem criminal, pois o seu comportamento é o devido; o sacado não tem o dever de desobedecer ao seu mandante para impedir a produção do resultado”.
Mas acresce ainda que, no nosso ponto de vista, atenta a definição da figura de falsificação feita no artº 255º e o conteúdo do artº 256º CP, a lei exige para o preenchimento deste crime uma conduta activa do agente na criação do documento falso, a qual não se esgota apenas numa mentirosa declaração.
Ora a prestação de declaração falsa é uma conduta diversa da falsificação de um documento, sendo tratada nas situações previstas nos artºs 359º e 360 CP, na qual não cabe a falsa informação de extravio ou furto de cheques.
Daí que o documento (cheque) não incorpore verdadeiramente qualquer declaração falsa e, como tal seja insusceptível de integrar as condutas previstas no artº 256º CP (na redacção vigente à data da prática dos factos).
Resta por isso ao recorrente a possibilidade de lançar mão dos meios cíveis.
Em suma diremos que a falsa informação prestada ao banco sacado de extravio ou furto de cheque, com a intenção de obstar ao pagamento desse cheque, integra apenas o crime de emissão de cheque sem provisão previsto na alínea b) do nº 1 do artº 11º do Dec. Lei 454/91, se verificados os demais elementos constitutivos do crime, e não o crime de falsificação.
Termos em que se conclui não assistir razão ao recorrente e, como tal, bem andou, a Mmª Juiz ao não pronunciar o arguido.

DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acordam os Juizes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto, confirmando-se inteiramente o douto despacho recorrido.

Fixam a taxa de justiça devida pelo recorrente em sete Ucs.

Sem tributação.

Notifique.

Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (Artº 94º nº 2 CPP)
Coimbra, 25 de Junho de 2008.