Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
920/10.4TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRIORIDADE DE PASSAGEM
Data do Acordão: 09/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTº 30º, Nº 1 DO CÓDIGO DA ESTRADA.
Sumário: I – Um condutor que, beneficiado pela regra geral da prioridade da direita (artigo 30º, nº 1 do Código da Estrada), entra, proveniente de uma artéria estruturalmente secundária, numa estrada de cariz principal (numa Estrada Nacional) na qual previsivelmente existe uma circulação bastante intensa de viaturas, deve adoptar um cuidado acrescido, visando acautelar embates com viaturas que nesta via circulem.
II – Refere-se esta postura, de algum exacerbamento de cautela nestas condições, independentemente do benefício da prioridade, a um dever geral de cuidado na condução que não é afastado por esse benefício da prioridade de passagem, não se configurando este como um direito absoluto, que dissipe as máculas da condução do beneficiado.
III – Um embate de viaturas nas condições acabadas de caracterizar, embora determine uma prevalência da culpa do condutor que desconsiderou a regra básica da prioridade de passagem do outro veículo, não deixa de suportar uma atribuição residual de culpa – 20%, por exemplo – ao condutor beneficiado com essa prioridade.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

1. Em 13/02/2010[1], I… (A. e aqui Apelante), demandou a seguradora B…, S.A. (R. e ora Apelada), pedindo a condenação desta, em função de um acidente de viação cuja responsabilidade atribui a uma segurada da R., no pagamento de uma indemnização global de €13.611,61 (€11.611,61 de danos patrimoniais e €2.000,00 de danos não patrimoniais). Envolveu esse acidente o ligeiro de passageiros …-NB, conduzido pela A., e a viatura …-UU, conduzida pela segurada da R., e traduziu-se no embate entre o NB e o UU (cerca das 19h45 de 19/02/2007), quando este entrava na EN 357, ao km 5,900, em Loureira, Leiria, proveniente de uma artéria (a Rua do Limoeiro) que entronca na referida Estrada.

1.1. A R. contestou, atribuindo a responsabilidade do acidente à A., por não ter respeitado a prioridade de passagem da condutora do UU que provinha, no momento do embate, da direita (sem outra sinalização contrária à regra da prioridade geral) relativamente ao sentido de marcha da A.

1.2. Findos os articulados, saneado e condensado o processo, realizou-se o julgamento (terminada a audiência fixaram-se os factos provados por referência à base instrutória através do despacho de fls. 231/234), proferindo o Tribunal a Sentença de fls. 235/239esta constitui a decisão objecto deste recurso –, julgando a acção improcedente e absolvendo a R. do pedido (considerou o Tribunal ausente qualquer culpa da segurada da R.).

            1.3. Inconformada com este resultado, apelou a A. concluindo o seguinte em sede de motivação do dito recurso:
“[…]
            [transcrição de fls. 260/264].


II – Fundamentação


2. Relatado o essencial do iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pela Apelante – acabámos de as transcrever no item anterior – operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[2]. Com efeito, fora das conclusões só valem, em qualquer recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso (di-lo o trecho final do artigo 660º, nº 2 do CPC). Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas. E, enfim – esgotando o enunciado do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

(a) A Apelante insurge-se, desde logo, com a fixação dos factos pelo Tribunal a quo, referindo-se especificamente (no texto das alegações, não nas conclusões) aos itens 6 a 11 do elenco infra transcrito no item 2.1. (a)[3]. Não obstante considerarmos adequado indicar nas conclusões do recurso os factos impugnados (artigo 685º-B, nº 1, alínea a) do CPC), não deixaremos de equacionar neste Acórdão os problemas suscitados pela Apelante relativamente à matéria de facto, não inviabilizando a apreciação dessa dimensão do recurso, sendo certo configurar-mos o apontado deficit de estruturação das conclusões como uma situação de fronteira na qual ainda é possível ver uma impugnação do julgamento respeitante à matéria de facto em termos aceitáveis.

(b) Com ou sem alteração dos factos, pugna a Apelante por uma decisão-outra que responsabilize a segurada da R. pela produção do acidente, no quadro da imputação delitual aqui pretendida construir pela A.

2.1. (a) Como pressuposto da apreciação dos factos indicaremos desde já a base de trabalho – quais os factos – que se nos oferece(m) como resultado do julgamento em primeira instância. Tal indicação apresenta, na lógica expositiva deste Acórdão, a provisoriedade decorrente de estar em causa, pendente de apreciação – digamo-lo assim – o fundamento central do recurso que se traduz, precisamente, na pretensão de actuar sobre esses factos, alterando-os em determinados trechos muito significativos para o resultado da acção. Feita esta advertência de provisoriedade, aqui transcrevemos o rol dos factos provados segundo o entendimento do Tribunal a quo:
“[…]
            [transcrição de fls. 236/237, sublinhados acrescentados referidos aos pontos impugnados pela Apelante].

            2.1.1. (a) A questão de facto fundamental subjacente aos elementos criticados nas respostas do Tribunal à base instrutória (pontos 6 a 11; respostas aos quesitos 20º a 25º) prende-se com a configuração do entroncamento formado entre a EN 357, via pela qual circulava a Apelante, e a Rua do Limoeiro de onde provinha a segurada da R. Sendo consensual – sendo evidente, aliás – que esta última (a condutora da viatura UU) se apresentava pela direita da A. (da condutora da viatura NB) ao aceder à EN 357, pretende a Apelante que os factos (os factos por ela indicados) expressem algum elemento de atribuição de prioridade à marcha na EN 357 relativamente aos condutores provenientes da via entroncante (confluente) nesta, correspondente à Rua do Limoeiro, isto com base no documento emitido pela Câmara Municipal de Leiria de fls. 16/17[4] e no depoimento de algumas testemunhas ouvidas em julgamento.

Além desta questão da prioridade de passagem, pretende a Apelante, relativamente ao ponto 11 dos factos, que seja fixada uma outra caracterização da Rua do Limoeiro, acentuando tratar-se esta – morfologicamente, expressemo-lo assim – de uma artéria de reduzidas dimensões na vertente da largura, sublinhando o carácter secundário dessa artéria face à Estrada Nacional onde a mesma entronca. Todavia, neste particular aspecto, porque este ponto 11 (a resposta ao quesito 25º) se limita a sublinhar um dado objectivo, comprovado no croqui constante do auto de fls. 14 e reafirmado no julgamento, concretamente pela testemunha soldado (hoje cabo) da GNR …, não existe suporte probatório algum que nos autorize, sendo rigorosos, a alterar o que está referido ponto 11 do elenco fáctico.

            Interessam-nos aqui, pois, os restantes aspectos dos factos, relevantes para aferição da mecânica do acidente, em função da questão da prioridade de passagem de veículos que se cruzaram naquelas concretas condições de tempo e lugar (veículos vindos da Rua do Limoeiro que entram na EN 357 passando a circular nesta).

 Vejamos, desde logo, a questão da existência – da alegada existência – de sinalização na Rua do Limoeiro, retirando prioridade aos veículos que desta procurassem aceder à EN 357. Com efeito, pretende a Apelante que seja concedida prioridade à sua marcha, nas circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreu o acidente (isto é, que sejam fixados nesta instância factos dos quais essa incidência transpareça).

Ora, a este respeito, não só o documento de fls. 17 emitido pela Câmara Municipal de Leiria (a pedido do marido da A., a testemunha …) não indica a existência de qualquer sinalização, ao tempo do acidente, na EN 357 ou na Rua do Limoeiro, prioritarizando a marcha dos veículos na primeira das artérias[5], como a testemunha … (elemento da GNR que acorreu ao acidente e elaborou a participação de fls. 12/15, incluindo o croqui desta constante) referiu expressa e inequivocamente a inexistência de qualquer elemento de sinalização (isto ao tempo do acidente) que afastasse a aplicação da regra geral, por todos intuída na falta de sinalização contrária, da prioridade do trânsito automóvel proveniente da direita (artigo 30º, nº 1 do Código da Estrada). E o mesmo resultou – inexistência de sinal de Stop vertical ou horizontal – do depoimento do marido da A. (…)[6] e das restantes testemunhas da A., caso de …[7], sendo que a prova da R. aponta toda, credivelmente, no sentido da não existência no dia do acidente de sinalização de Stop na Rua do Limoeiro – por mais adequada que pudéssemos considerar essa hipotética opção (como posteriormente veio a suceder).

Não existe, pois, base probatória para “colocar” no local do acidente, no dia desse evento, sinalização que aí não existia, como resulta da prova produzida.

Todavia, existe uma incidência prática da configuração e natureza das duas artérias em causa no acidente, sobre a qual não temos dúvidas, valorando todo o material probatório, que consideramos relevante para uma correcta caracterização da mecânica do acidente e relativamente à qual os factos provados são inexpressivos, sendo certo que essa incidência resulta amplamente da discussão travada no decurso da acção e repercutiu-se na temática abordada pelas testemunhas no julgamento. Referimo-nos à circunstância de a natureza e o volume de tráfego envolvido pelas duas artérias (EN 357 e a Rua do Limoeiro) ser completamente distinto – a EN 357, artéria principal de acesso a Fátima, é uma estrada com um movimento muitíssimo superior ao da Rua do Limoeiro –, em termos de pudermos intuir como regra de conduta prudente de um condutor normalmente diligente[8], que pretenda aceder à EN 357 vindo da Rua do Limoeiro, um cuidado acrescido, assente na antecipação de um possível risco decorrente da entrada (cruzamento) numa via com bastante tráfego[9], independentemente da concreta actuação de uma regra de prioridade que privilegie a respectiva marcha.

Entendemos que esta particular incidência do caso concreto, por razões de completude dos factos em função de todas as vicissitudes presentes na situação ajuizada, deve ser destacada e feita repercutir no rol de factos, dentro de uma lógica de evitação de uma anulação, por insuficiência da plena caracterização da dinâmica do acidente, nos termos previstos no nº 4 do artigo 712º do CPC[10], sendo certo que esse elemento está presente no quadro factual alegado pela A. (v. artigo 16º da p.i.) e foi objecto de discussão ao longo do processo, como ressalta amplamente da audição da prova. Aliás, por se tratar de incidências do domínio do que se nos apresenta como notório, que foram referidas pela generalidade das testemunhas, estamos no que corresponde fundamentalmente à introdução de um complemento valorativo na factualidade discutida e apurada.

Entenda-se que esta Relação, tendo acedido e controlado integralmente toda a prova relevante para a fixação dos factos, actua em sede de fixação destes no quadro do recurso da A., com base no entendimento doutrinariamente qualificado como “tese do poder-dever da Relação formar uma convicção própria sobre os factos[11].

É neste sentido que consideramos correcto – imprescindível por fidelidade ao real sentido da prova e a uma real compreensão do acidente aqui discutido –, nesta Relação e actuando no âmbito dos poderes de acesso à matéria de facto previstos no nº 1 do artigo 712º do CPC, com a amplitude antes caracterizada, substituir as respostas aos quesitos 20º e 22º da base instrutória (as quais originaram os itens 6 e 8 do elenco fáctico) por uma nova resposta agregada especificada (corresponderá ela ao novo ponto 8 dos factos, substituindo os pontos 6 e 8 fixados na primeira instância), com o seguinte teor:


8. [antigos itens 6. e 8.] O acidente ocorreu num entroncamento formado pela EN 357 com a Rua do Limoeiro, que na altura não dispunha de qualquer sinalização vertical ou outra, regulando a prioridade, embora ambas as condutoras, designadamente a da viatura 32-99-UU, conhecessem tratar-se a EN 357 de uma artéria habitualmente muito movimentada, comparativamente às artérias nela confluentes (concretamente a Rua do Limoeiro), e que a entrada nessa EN a partir de uma outra via sempre implicaria um cuidado acrescido, independentemente da questão da prioridade.

            Devemos, pois, na distribuição de responsabilidades decorrentes do acidente de viação aqui ajuizado, valorar, a par da circunstância da A. não ter respeitado a prioridade de passagem do UU proveniente da direita, a circunstância da condutora desta viatura (da segurada da R.) ter acedido a uma via com as características da EN 357 sem algum tipo de exacerbamento de cuidado quanto à circulação de veículos na referida EN, num quadro de antecipação de riscos muito plausíveis.

            É com esta base – também ponderando o novo item 8. dos factos – que apreciaremos, nos subsequentes passos deste Acórdão, a dinâmica do acidente, determinando a imputação desse evento delitual às duas intervenientes no mesmo.   

2.2. (b) Como deixámos antever no final do item anterior, sendo evidente e preponderante a responsabilidade da A. (o que ora se reafirma), que no momento do embate desconsiderou, na forma pela qual exercia a condução, a existência de uma circulação prioritária proveniente da sua direita – à qual deveria a A. ceder, em qualquer caso, a passagem, de acordo com a regra de tráfego aplicável naquelas circunstâncias –, sendo isto evidente, dizíamos, e decorrendo disto uma atribuição de culpa muito significativa à A. pelo acidente ocorrido, não deixaremos de ponderar o carácter não absoluto dessa regra da prioridade, em termos de diligência normal de cuidado exigível à generalidade dos condutores beneficiados por essa regra – aqui à segurada da R. em termos de condutor médio – no caso de uma marcha com prioridade que se consubstancie na entrada numa via tida por principal e consabidamente muito movimentada. Vale aqui a ideia de que todo o condutor, mesmo quando beneficiado com uma circulação prioritarizada no cruzamento com outros veículos, deve ser cauteloso, aferindo-se essa incidência (a presença ou ausência dessa cautela por parte do condutor detentor de prioridade) no quadro da caracterização do modelo de um condutor normal para efeitos de imputação delitual, mesmo que comparativamente à conduta imprudente preponderante de um outro condutor. É que, a determinação, relativamente a um evento delitual, do elemento culpa, aqui entendida em sentido normativo, ou seja, “[…] como um juízo de censura ao comportamento do agente”[12], mesmo no quadro da aferição de uma culpa concorrente, assenta no critério plasmado no nº 2 do artigo 487º do Código Civil (CC): “[…] é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de familia, em face das circunstâncias concretas”, sendo que o apelo a este paradigma de aferição, o bonus pater familias, igualmente presente, com esta ou uma formulação equivalente, na generalidade das ordens jurídicas (v. nota 9 supra) remete-nos para a “[…] diligência do homem médio […]”[13], aquele que não é pouco diligente, porque não põe um empenho muito reduzido, inferior ao da média, nos seus actos, mas que também não é excepcionalmente diligente, no sentido de adoptar nesses mesmos actos um empenho muito superior ao da média das pessoas.

Este conceito, o de condutor normalmente diligente – enfim, o de um condutor bonus pater familias –, toma como paradigma de aferição um cuidado assente na antecipação preventiva dos riscos normais da condução, sendo que nestes vemos, sem necessidade de complexas extrapolações valorativas dos dados básicos deste acidente, uma margem mínima de prudência impendente sobre a condutora do veículo segurado pela R., cautela que esta terá omitido significativamente ao aceder (e deveria já ser escuro, naquele dia àquela hora) à EN 357.

Vale isto, enfim, pela consideração de uma concorrência de culpa no evento delitual da segurada da R., que estando longe de ser preponderante, nos parece adequadamente valorada em 20% da culpa pelo acidente, face a uns preponderantes 80% atribuiveis à A., como responsável fundamental do acidente, através do desrespeito da regra concreta da prioridade de passagem. A culpa residual da segurada da R. refere-se, pois, a alguma contribuição causal da “omissão da diligência que seria exigível ao agente [rectius, a essa condutora] de acordo com o padrão de conduta que a lei impõe”[14] e funciona num quadro de efectiva demonstração de uma culpa concorrente, embora quantitativamente muito distinta, não estando em causa aqui, nessa imputação de uma culpa concorrente ao lesado (à A.), o funcionamento de qualquer presunção de culpa: não se preenche, pois, e é o que ora se pretende frisar, a facti species de exclusão do dever de indemnizar constante do nº 2 do artigo 570º do CC[15].

É, pois, com base nesta repartição de culpas (20% para a R.; 80% para a A.[16]), que deverá ser determinado o montante indemnizatório a satisfazer pela seguradora R., no quadro da transferência para ela da responsabilidade pelos riscos da condução da viatura …-UU.

2.2.1. (b) O pedido indemnizatório formulado pela A. foi de €13.611,61, correspondendo este valor global a €11.611,61 de danos patrimoniais (€7.611,61 relativos à reparação do veículo e €4.000,00 respeitantes à privação de uso da viatura sinistrada) e €2.000,00 a danos não patrimoniais.

Apurou-se, efectivamente, o valor indicado da reparação (€7.611,61, v. item 13 dos factos correspondente à resposta ao quesito 9º), que aqui deverá ser considerado como dano da A.

Paralelamente, ainda dentro do ressarcimento do dano patrimonial, tendo presentes os itens 15 a 18 do rol dos factos, devemos considerar a presença do chamado dano de privação de uso, aqui quantificado com recurso à equidade (artigo 566º, nº 3 do CC), concordantemente com o valor indicado pela A., em €4.000,00. Trata-se fundamentalmente de uma indemnização que envolve a afirmação – rectius, que projecta no A. o cumprimento do contrato de seguro pela R. –, a qual se situa em linha com anterior jurisprudência deste Tribunal[17], a qual remete para outra jurisprudência e doutrina concordantes[18], segundo a qual a privação do uso de um bem decorrente do inadimplemento contratual (mesmo que projectado num terceiro abrangido na incidência desse contrato), funda um relevante dever de indemnizar, sendo que este dever, numa situação com as características da presente, ainda se situa no domínio da responsabilidade contratual. Está em causa, com efeito, numa privação do uso com o suporte fáctico da presente, uma responsabilização (ainda) resultante do incumprimento de uma obrigação contratual (num contrato que também é em favor de terceiro)[19], nos termos em que o artigo 798º do CC define, nesse quadro, a responsabilidade do devedor.

            E restam-nos os danos não patrimoniais (artigo 496º, nº 1 do CC), que se projectam como atendíveis através do item 14 do elenco fáctico, que aqui consideramos adequadamente valorado em €2.000,00.

            2.2.2. (b) Somando as indemnizações ora parcelarmente apuradas o valor de €13.611,61 – precisamente o indicado globalmente pela A. –, haverá que considerar aqui a redução destas a 20%, em função da distribuição percentual das culpas pelo acidente antes determinada. Assim, a indemnização global a suportar pela seguradora R. corresponderá ao montante de €2.722,32.

            2.3. Aqui chegados, apreciados todos os fundamentos da apelação, procedendo parcialmente o recurso, com a consequente necessidade da revogação do pronunciamento absolutório total, condenaremos a R. a satisfazer o montante apurado (o valor dos danos da A. reduzidos a 20%), sumariando antes, nos termos do artigo 713º, nº 7 do CPC, os elementos relevantes do antecedente percurso, nos seguintes termos:


I – Um condutor que, beneficiado pela regra geral da prioridade da direita (artigo 30º, nº 1 do Código da Estrada), entra, proveniente de uma artéria estruturalmente secundária, numa estrada de cariz principal (numa Estrada Nacional) na qual previsivelmente existe uma circulação bastante intensa de viaturas, deve adoptar um cuidado acrescido, visando acautelar embates com viaturas que nesta via circulem;
II – Refere-se esta postura, de algum exacerbamento de cautela nestas condições, independentemente do benefício da prioridade, a um dever geral de cuidado na condução que não é afastado por esse benefício da prioridade de passagem, não se configurando este como um direito absoluto, que dissipe as máculas da condução do beneficiado;
III – Um embate de viaturas nas condições acabadas de caracterizar, embora determine uma prevalência da culpa do condutor que desconsiderou a regra básica da prioridade de passagem do outro veículo, não deixa de suportar uma atribuição residual de culpa – 20%, por exemplo – ao condutor beneficiado com essa prioridade.


III – Decisão

            3. Assim, na parcial procedência do recurso, alterando-se correspondentemente a Sentença apelada, condena-se a R. B…, S.A. a satisfazer à A., I…, a título de indemnização, a quantia de €2.722,32, acrescida de juros vencidos e vincendos, contados desde a data da citação da R. até integral pagamento.

            Custas em ambas as instâncias a cargo da A. (80%) e da R. (20%).


Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado em audiência na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia 11/09/2012

(J. A. Teles Pereira)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)


[1] Aplica-se aqui o regime de recursos decorrente da reforma introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida, cujo texto tenha sido alterado pelo indicado DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante deste Diploma.
[2] V. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[3] Em rigor os concretos pontos de facto impugnados deveriam constar das conclusões. V., neste sentido, os Acórdãos, que o ora relator também subscreveu, desta Relação (Jorge Arcanjo), de 13/05/2008 (processo nº 372/04.8AAND.C1) e de 03/06/2008 (processo nº 245-B/2002.C1), disponíveis na base de jurisprudência do ITIJ, através dos campos de pesquisa aqui indicados, ou, directamente, em: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb53003ea1c61802568d9005cd5bb/171e03f7d2c8f3e2 e em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/bc3774b42c238fee.
Refere-se no sumário do último destes Acórdãos:
“Deve rejeitar-se o recurso de facto por o recorrente omitir o ónus de especificação, cominado no art.690-A nº1 do CPC, visto não ter individualizado, nas respectivas conclusões, «os pontos de facto» que pretende impugnar, limitando-se a afirmar genericamente que a decisão «assenta em factos que não devem ser considerados provados»”.
Esta asserção é fundamentada no mesmo Acórdão nos termos seguintes:
“[…]
Os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação (cf., por ex., Ac. do STJ de 20/11/2003, de 8/3/06, de 13/7/06, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj), mas em todo o caso impõe-se a obrigatoriedade de conexionar cada facto censurado com os elementos probatórios correspondentes.
Sobre a sanção para o incumprimento do ónus da especificação, existem actualmente duas teses:
a) - Uma, no sentido da rejeição imediata do recurso, sem prévio convite. Argumenta-se, para o efeito, não só com a letra da lei (“ deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição”), como com a interpretação sistemática, pois se fosse aplicável a regra do art.690 nº4 do CPC o legislador tê-lo-ia dito, e a própria teleologia, o duplo grau em matéria de facto converge com o ónus da especificação, já que, de outro modo, implicaria numa substituição pelo tribunal do ónus que impende sobre as partes de litigar diligentemente, contendendo com o direito da outra parte a fazer valer, segundo o princípio da igualdade, da forma como a contra-parte litiga (arts.3 e 264 do CPC) (cf., neste sentido, por ex., Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª ed., pág.157, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, pág.466, Ac. STJ de 20/5/04, de 1/7/04, de 25/11/04, de 29/11/05, de 7/12/05, 25/5/06, de 14/9/06, disponíveis em www dgsi.pt/jstj).

b) - Outra, que defende o convite ao aperfeiçoamento apenas quando estiver em causa uma mera deficiência do ónus de especificação, tanto por aplicação analógica do art.690 nº4, como da regra geral dos arts.265 nº2 e 266 nº2 do CPC.
Justifica-se, para tanto, que a sanção deve ser proporcional à gravidade do incumprimento, cominando a lei a rejeição imediata do recurso, à semelhança da imediata deserção no caso de falta (absoluta) de alegações (art.690 nº3 do CPC), mas já não quando ocorre uma simples deficiência (cf., por ex., Ac. do STJ de 20/3/03, 29/11/05, de 6/7/06, de 13/7/06, de 7/2/07, em www.dgsi.pt/jstj).
Analisando as alegações do embargante, constata-se não haver individualizado, nas respectivas conclusões, ‘os pontos de facto’ que pretende impugnar, limitando-se a afirmar genericamente que a decisão ‘assenta em factos que não devem ser considerados provados’
Por isso, verificando-se total omissão sobre o ónus de especificação, por ausência de individualização da matéria questionada, impõe-se a rejeição do recurso de facto.

[…]”.
[4] Diz a informação contida neste Documento:
“[…]
Pode certificar-se de que tratando-se a via EM 357 de uma via prioritária pela sua hierarquia, com a designação hierárquica de Via Distribuidora Local, em relação aos ramais de acesso, respectivamente via de acesso local com a toponímia de Rua dos Limoeiros, não existindo sinalização vertical de cedência de passagem possivelmente por vandalismo, deveria ser dada a respectiva prioridade, sendo importante referir que o Código da Estrada não é muito explícito em relação à cedência de passagem, apenas a alínea b) do nº 1 do artigo 31º que refere deverá ceder a passagem o condutor que entre numa auto-estrada ou numa via reservada a automóveis e motociclos, pelos respectivos ramais de acesso.
[…]” (transcrição de fls. 17).
[5] Tal documento “embrulha-se” em explicações de pendor jurídico, de sentido prático muito duvidoso (não é, obviamente, a Câmara que determina o Direito aplicável ao caso), supostos esclarecimentos esses que em nada contribuem para fazer luz sobre a única questão aqui relevante: saber se a Rua do Limoeiro, na data do acidente, dispunha de sinalização vertical ou horizontal obrigando a ceder a prioridade aos veículos em circulação na EN 357.
[6] Que reconheceu inexistir no dia do acidente sinalização desse tipo, pretendendo atribuir (sem fundamento jurídico algum) esse valor a uma suposta faixa branca existente ao fundo da Rua do Limoeiro, quando a própria existência dessa faixa não foi confirmada pela testemunha …, pelo perito da R. seguradora ou pela condutora da viatura UU.
[7] Esta testemunha, depois de ter dito, no início do seu depoimento, que “lá sempre existiu um sinal de Stop” (referindo-se ao final da Rua do Limoeiro), acabou por admitir desconhecer se no dia do desastre, naquela época, existiria ou não qualquer sinal de Stop no local. Vale isto pela consideração deste depoimento como imprestável para afirmar positivamente que no dia do acidente a segurada da R. tenha desrespeitado um sinal vertical ou horizontal de Stop efectivamente existente naquele local; nem o marido da A. foi ao ponto de fazer semelhante afirmação.
[8] Para utilizar o exemplo, menos habitual, de um sistema de common law, no caso o do direito norte-americano, sublinhar-se-á que, na responsabilidade por negligência (liability for negligent conduct), se utiliza como padrão de conduta (standard of conduct) a ideia de “pessoa razoável” (reasonable person, ou expressões equivalentes: ordinary care, reasonable care, reasonable person of ordinary prudence, etc.), com o significado “idealizado” (“a creature of the law’s imagination”) de alguém que corresponde ao “julgamento da comunidade sobre como um típico membro dessa comunidade é suposto agir naquelas circunstâncias” (Edward J. Kionka, Torts in a Nutshell, St. Paul, Minnesota, 2005, pp. 56/60).
[9] Na qual os condutores que aí circulam podem, mesmo que por falta de atenção e de cuidado, supor gozarem de prioridade.
[10] O exercício deste poder de evitação da anulação é caracterizado por Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, comentando o artigo 712º nº 4 do CPC, nos seguintes termos:
“[…]
A clara ampliação do leque dos elementos probatórios constantes do processo e à disposição da Relação – e o consequente incremento dos seus poderes cognitivos quanto à matéria de facto objecto da impugnação – leva a que a possibilidade de anulação da decisão de facto proferida em 1ª instância passe a ser, de algum modo, excepcional ou residual relativamente ao exercício dos poderes de cognição conferidos à 2ª instância.
Assim, constatada uma possível deficiência ou obscuridade quanto a certa parcela ou segmento da decisão sobre a matéria de facto, se constarem do processo todos os elementos probatórios que lhe serviram de base, deverá a Relação, antes e em vez de anular a decisão, proceder à reapreciação do decidido, substituindo-se ao tribunal a quo e corrigindo o erro de julgamento que considere ter ocorrido.
[…]” (Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª ed., Coimbra, 2004, p. 610).
[11] A expressão é de J. P. Remédio Marques e assenta na contraposição à chamada “tese restritiva dos poderes da Relação”, que se limita a remeter o Tribunal da Relação para um controlo da plausibilidade dos factos fixados na primeira instância, v. “Um breve olhar sobre o duplo grau de jurisdição em matéria de facto”, nos Cadernos de Direito Privado, Número Especial 01/Dezembro 2010, pp. 80/90.
Caracteriza-se esta tese ampla aqui seguida nos seguintes termos:
“[…]
A Relação desfruta não apenas do poder de aferir a razoabilidade da convicção dos juízes da 1ª instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, nos casos flagrantes ou notórios de desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão de facto proferida pela 1ª instância, mas também (e sobretudo) de um poder-dever de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação da prova, sem se achar limitada ou condicionada pela convicção que tenha servido de base à decisão recorrida.
Este poder-dever pressupõe que a Relação valore, ela própria, de modo crítico e fundado, a prova disponível, não se limitando a aceitar passivamente a convicção formada pela 1ª instância ou a controlar somente a formação dessa convicção efectuada na 1ª instância.
[…]” (pp. 85/86).
[12] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 2005, pp. 295/296; v., sobre a natureza normativa da culpa, António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º vol., Lisboa, 1980, pp. 308/309.
[13] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, cit., p. 303.
[14] Citamos aqui, rememorando o que antes já foi dito, a definição de culpa de Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (Direito das Obrigações, vol. I, cit., p. 296): “A culpa pode […] ser definida como o juízo de censura ao agente por ter adoptado a conduta que adoptou, quando de acordo com o comando legal estaria obrigado a adoptar conduta diferente. Deve, por isso, ser entendida em sentido normativo, como a omissão da diligência que seria exigível ao agente de acordo com o padrão de conduta que a lei impõe. Nestes termos, o juízo de culpa representa um desvalor atribuído pela ordem jurídica ao facto voluntário do agente, que é visto como axiologicamente reprovável”.
[15] V. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11ª ed., revista e actualizada, Coimbra, 2008, pp. 781/783; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, cit. p. 353.
[16] Tendo em conta ter sido a A. quem intentou a acção formulando o pedido indemnizatório, estes 80% de culpa da A. correspondem, de acordo com a regra do nº 1 do artigo 570º do CC, a uma redução equivalente (de 80%) ao valor dos danos da A. aqui apurados e que a R. deverá indemnizar ao abrigo do contrato de seguro.
[17] Acórdão de 25/01/2005, proferido no processo nº 3498/04 (Regina Rosa), disponível em www.dgsi.pt/jtrc.nsf.
[18] V., o estudo de António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil (Indemnização do Dano de Privação do Uso), I vol., 2ª ed., pp. 45/73.
[19] V., quanto à caracterização da responsabilidade contratual, António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, cit., pp. 273/275, e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, cit., pp. 268/270.
Esta qualificação do contrato de seguro de responsabilidade civil como contrato em favor de terceiro tem um importante esteio na nossa jurisprudência e doutrina [v. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/03/1989 (Menéres Pimentel), publicado no BMJ 385,563 e, enquanto exemplo mais recente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/01/2009 (José Augusto Ramos), proferido no processo nº 5127/2008-1, disponível na base de jurisprudência do ITIJ nos campos indicados ou, directamente, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f8b69bb8694303bd; na doutrina v., por todos, o estudo de Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Coimbra, 2010, onde esta questão é abordada nos seguintes trechos: pp. 25/26, 735/777 e 869/870].