Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1169/05.3TBOBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL
ACÇÃO CONTRA O INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL
OPORTUNIDADE DESSE CONHECIMENTO PROCESSUAL
Data do Acordão: 12/02/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 102º, NºS 1 E 2, DO CPC E LEIS DA BASES DA SEGURANÇA SOCIAL
Sumário: I – O legislador estabelece dois graus de gravidade da violação das regras de competência em razão da matéria: um, menos grave, ocorre quando são violadas regras que respeitem apenas aos tribunais judiciais, caso em que tem aplicação o nº 2 e a excepção só pode ser arguida ou oficiosamente conhecida até ser proferido o despacho saneador ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência de discussão e julgamento; outro, mais grave, tem lugar quando a violação incide sobre regras respeitantes a tribunais judiciais e a tribunais não judiciais, hipótese em que se aplica o nº 1 e a excepção pode ser arguida ou oficiosamente conhecida em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.

II – A competência material para a acção afere-se em fase da natureza da relação jurídica material em litígio, tal como a apresenta o autor da demanda.

III – De acordo com as sucessivas leis de bases da Segurança Social (Lei nº 28/84, de 14/08; Lei nº 17/2000, de 8/08; Lei nº 32/2002, de 20/12; Lei nº 4/2007, de 16/01), um dos princípios que regem a segurança social é o princípio da garantia judiciária, o qual pressupõe que aos interessados será sempre proporcionado acesso aos Tribunais, em tempo útil, para fazer valer o seu direito às prestações.

IV – No âmbito desse princípio, em todas as mencionadas leis de bases se reconhece o direito de acesso aos tribunais administrativos a todos os interessados a quem seja negada qualquer prestação devida ou a sua inscrição no sistema ou que, por qualquer forma, sejam lesados por acto contrário ao previsto na lei.

V – A competência material para as acções através das quais se visa obrigar o Instituto da Segurança Social a pagar o montante do subsídio cujo direito seja reconhecido ao interessado no mesmo, é, assim, dos Tribunais Administrativos.

Decisão Texto Integral:

         Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         A..., intentou acção declarativa, com processo comum e forma sumária, contra INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, I. P., com sede na Rua Rosa Araújo, 43, 1250-194 Lisboa e B..., pedindo a condenação solidária dos RR. a pagar-lhe a quantia de € 3.913,20 (três mil novecentos e treze euros e vinte cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde 4 de Abril de 2002 até efectivo pagamento.

         Para tanto, a A. alegou, em síntese, que na sua qualidade de beneficiária da Segurança Social e na sequência do nascimento, a 30/01/2002, do seu filho C..., requereu, em 16/02/2002, ao Instituto de Solidariedade e Segurança Social (actualmente designado por Instituto da Segurança Social, I.P.) a concessão de subsídio de maternidade referente ao período de 30/01/2002 a 29/05/2002; a requerida prestação foi-lhe atribuída e os dados enviados para o B..., para pagamento; o cheque emitido para o efeito, no montante de € 3.913,20, foi apresentado a pagamento e pago ao balcão do dito Banco, a pessoa não identificada, que não à A., que continua sem receber a quantia por ele titulada; a responsabilidade pela situação descrita é, pelos motivos que indica, dos RR., cabendo-lhes indemnizar a A.

         O R. B... (actualmente denominado D...) contestou alegando que o cheque emitido a favor da A. e enviado para a morada indicada pelo Instituto da Segurança Social, I.P. foi endossado em branco e, tendo-se o beneficiário do endosso apresentado a cobrá-lo, foi regularmente pago já que o funcionário que o atendeu procedeu à sua identificação, mediante exibição do bilhete de identidade, à recolha da sua assinatura e à conferência do “trato sucessivo”.

         O Instituto da Segurança Social, I.P. também contestou alegando que na sequência do deferimento do pedido da A. remeteu ao B..., em suporte informático, os registos necessários ao pagamento da pertinente prestação, ficando o Banco responsável pela emissão e envio do respectivo cheque; e que desconhece se a A. recebeu ou não a quantia devida, sendo certo que, se a não recebeu, o Instituto da Segurança Social, I.P., em cuja conta foi debitado o cheque que a titulou, nisso não tem qualquer responsabilidade.

         A convite do tribunal (fls. 82), foi pela A. apresentada petição inicial corrigida, relativamente à qual os RR. se limitaram a dar como reproduzidas as anteriores contestações.

         Foi proferido despacho saneador e dispensada, com invocação do disposto no artº 787º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, a condensação.

         Instruída a causa, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferido o despacho de fls. 160 a 167 decidindo a matéria de facto assente.

         Foi depois emitida a sentença de fls. 170 a 180, julgando a acção procedente quanto ao R. Instituto da Segurança Social, I.P., que foi condenado no pedido, e improcedente relativamente ao R. D..., que foi absolvido do pedido.

         Inconformado, o Instituto da Segurança Social, I.P. interpôs recurso que foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

         Entretanto, o mesmo Instituto da Segurança Social, I.P. apresentou o requerimento de fls. 197 a 200 suscitando a questão da incompetência do tribunal em razão da matéria, ao que a A. e o R. D... se opuseram.

         E, na alegação de recurso apresentada, o Instituto da Segurança Social I.P. formulou as conclusões seguintes:

         1) No âmbito dos presentes autos, a A. peticionou a condenação do ISS-IP no pagamento do subsídio de maternidade que deveria ter recebido na sequência do nascimento do seu filho C..., acrescido dos respectivos juros de mora, subsídio esse cuja concessão é da atribuição do R. Instituto da Segurança Social, IP.

2) Nos termos do preceituado nos artigos 66.º e 67.º do Código de Processo Civil, “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem judicial” sendo “as leis de organização judiciária que determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos Tribunais Judiciais dotados de competência especializada”.

3) Ora, tendo por assente que os tribunais da jurisdição administrativa são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, sendo os competentes para obter a condenação da Administração ao pagamento de quantias, o Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro seria incompetente em razão da matéria para conhecer do objecto do presente processo, nos termos do artigo 101.º do CPC .

4) Em conformidade com o disposto no artigo 102.º n.º 1 do CPC, a incompetência material que resulta do facto de a acção ter sido proposta num Tribunal Judicial quando o deveria ser num tribunal não Judicial pode ser arguida pelas partes e conhecida oficiosamente pelo Tribunal até ao trânsito em julgado da decisão de mérito.

5) Tendo em consideração que a decisão proferida pelo Tribunal judicial de Oliveira do Bairro não transitou ainda em julgado, ter-se-á por tempestiva a arguida incompetência absoluta.

6) O Tribunal a quo entendeu que “competia ao Instituto da Segurança Social provar o pagamento, de acordo com as regras de repartição do ónus de prova”. Porém, esse mesmo Tribunal considerou provado que o Centro Distrital de Segurança Social de Aveiro informou a A. que o aludido cheque havia sido apresentado a pagamento ao balcão de Oliveira do Bairro do B... e havia sido descontado (cfr. ponto 13. dos factos provados), logo havia sido pago.

7) Daqui se depreende que a douta decisão se encontra em contradição com os seus fundamentos, maxime com a prova produzida.

8) De igual modo, o Tribunal a quo considerou que incumbia ao R. Instituto da Segurança Social fazer prova da veracidade da assinatura de um endosso do cheque. Cremos que o Tribunal fez uma errada apreciação do critério da repartição do ónus da prova, porquanto não competia ao R. fazer prova da veracidade da assinatura do cheque, mas sim à Autora provar a sua falsidade, isto para sustentar a tese de falta de percebimento da prestação alegadamente em dívida.

NESTES TERMOS, E NOS MELHORES DE DIREITO, CONSIDERANDO O TRIBUNAL RECORRIDO INCOMPETENTE, EM RAZÃO DA MATÉRIA, DEVERÃO V.ªS EX.AS ABSOLVER O R. DA INSTÂNCIA, REVOGANDO DESSA FORMA A SENTENÇA PROFERIDA.

CASO ASSIM NÃO O ENTENDAM, DEVERÃO JULGAR IMPROCEDENTE, POR NÃO PROVADA, A ACÇÃO INTENTADA CONTRA O AQUI R., SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE O ABSOLVA DO PEDIDO.

Sem que tivesse sido apreciado o requerimento de fls. 197 a 200 e mesmo sem notificação à A. e ao D... da alegação de recurso apresentada, foi proferido despacho (fls. 228) mandando subir os autos a esta Relação.

A A. e o D... foram notificados da remessa dos autos a este Tribunal, nada tendo objectado à mesma[1].

Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as questões seguintes:

         a) (In)competência em razão da matéria do Tribunal Judicial de Oliveira do Bairro;

         b) Nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão;

         c) Repartição do ónus da prova.


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         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         Não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto nem havendo fundamento para oficiosamente a alterar, dá-se como assente a factualidade considerada provada pela 1ª instância e que é a seguinte:

         1. A autora é beneficiária da Segurança Social n.° 116 692 034.

2. A 30 de Janeiro de 2002, nasceu C..., filho da autora.

3. A 16 de Fevereiro de 2002, mediante o requerimento de fls. 11, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, a autora requereu ao Instituto da Segurança Social, I.P. a concessão de subsídio de maternidade referente ao período de 30 de Janeiro de 2002 a 29 de Maio de 2002.

4. Nessa data encontrava-se em vigor o modelo de requerimento RP5007/2001 – DGSSS, facultado aos beneficiários pelos Serviços de Segurança Social, cujo ponto 5 estabelecia o seguinte modo de pagamento. «O subsídio pode ser pago ao beneficiário por depósito em conta bancária, para o que deve enviar fotocópia de um cheque em branco da respectiva conta onde pretende efectuar o depósito ou indicar o Número de Identificação Bancária (NIB)», mediante preenchimento dos espaços em branco para o efeito constantes do requerimento, sendo que apenas na falta destes elementos seria utilizado outro meio de pagamento.

5. A autora declarou optar pelo depósito do subsídio na sua conta bancária, para o que indicou o NIB.

6. Tal prestação foi-lhe atribuída e o seu processamento ocorreu em 24 de Fevereiro de 2002.

7. Apesar de a autora ter expressamente optado pelo depósito na sua conta bancária, tendo para o efeito indicado o respectivo NIB, o Centro Distrital de Segurança Social de Aveiro não efectuou o pagamento por este meio, tendo optado pelo pagamento da prestação através de cheque.

8. Entendeu aquele Centro Distrital que a utilização do meio de pagamento escolhido pela autora acarretaria significativos atrasos no pagamento da prestação – uma vez que a inserção dos dados correspondentes, sendo efectuada pelos seus serviços de contabilidade, demora, em média, 60 dias – razão pela qual optou pelo pagamento através de cheque.

9. Nessa sequência, no âmbito de um protocolo previamente estabelecido entre ambos, remeteu, em suporte informático, ao B... os registos com todos os elementos necessário à emissão e remessa dos cheques aos beneficiários da Segurança Social, de acordo com o que coube ao Banco a emissão à ordem da autora e o envio do cheque n.° 2800425249, no valor de € 3.913,20, com vencimento a 22.03.2002.

10. A 26 de Abril de 2002, a autora contactou o Centro Distrital de Segurança Social de Aveiro, informando não ter recebido aquela prestação, tendo sido informada de que os dados tinham já sido enviados para o Banco co-réu e que este já teria enviado um cheque para pagamento

11. Nesse mesmo dia, a autora enviou ao Centro Distrital de Segurança Social de Aveiro um requerimento pedindo uma fotocópia do referido cheque.

12. Ao longo de meses, foi a autora questionando os competentes serviços da Segurança Social no sentido de saber qual a situação do processo, recebendo, como resposta, que o Banco ainda não devolvera as listas com os cheques que tinham sido pagos.

13. Em Junho ou Julho de 2002 o Centro Distrital de Segurança Social de Aveiro informou a autora que o aludido cheque havia sido apresentado a pagamento ao balcão de Oliveira do Bairro do B... e havia sido descontado.

14. Apenas a 17 de Janeiro de 2003, recebeu a autora a requerida fotocópia do cheque.

15. Tal cheque, tendo sido emitido à ordem da autora, tem aposta no verso uma assinatura «E...», seguida do seguinte n.° de bilhete de identidade «62344672 – A. I. Lisboa», em seguida tem aposta uma assinatura/rubrica não legível seguida de um outro n.° de bilhete de identidade, ao que se segue um carimbo do balcão de Oliveira do Bairro do B... com a indicação de «pago» e da data de 04.04.2002.

16. Da observação desse mesmo cheque resulta que a primeira das assinaturas apostas no verso do cheque está escrita de forma diferente da que consta do bilhete de identidade da autora «E...» e que o número do bilhete de identidade constante do verso do cheque não corresponde ao número do bilhete de identidade desta.

17. Tendo em conta os factos vertidos em 10 e 11, no dia 24 de Janeiro de 2003, a autora apresentou queixa na GNR de Oliveira do Bairro, tendo sido instaurado o inquérito com o número 31/03.9GBOBR.

18. No dia 4 de Fevereiro de 2004, foi a autora notificada pelos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Bairro do despacho de arquivamento por não se ter logrado apurar quaisquer elementos que permitissem saber quem é que se apoderou do cheque, de que forma o fez, quem procedeu ao seu preenchimento e o apresentou a pagamento.

19. A 26 de Abril de 2004 o Centro Distrital de Segurança Social de Aveiro remeteu à autora uma carta na qual esclareceu, em síntese, que, de acordo com o protocolo referido em 9., os cheques emitidos em nome da Segurança Social pelas instituições bancárias, não são cruzados e que também não são enviados por carta registada porque o custo seria elevado.

20. A pessoa que se apresentou ao balcão de Oliveira do Bairro do B..., identificou-se mediante exibição de um bilhete de identidade.

21. O funcionário do Banco que procedeu à identificação da pessoa que se apresentou a cobrar o cheque verificou a conformidade da assinatura, fotografia e do número do bilhete de identidade que lhe foi exibido.


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         2.2. De direito

         2.2.1. (In)competência em razão da matéria

         Antes de mais haverá que aquilatar da tempestividade ou intempestividade da arguição nesta fase processual da excepção da incompetência em razão da matéria[2].

         Impera, neste domínio, o artº 102º do Cód. Proc. Civil, com a seguinte redacção:

         1 – A incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.

         2 – A violação das regras de competência em razão da matéria que apenas respeitem aos tribunais judiciais só pode ser arguida, ou oficiosamente conhecida, até ser proferido despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência de discussão e julgamento.

Ou seja, o legislador estabelece dois graus de gravidade da violação das regras de competência em razão da matéria. Um, menos grave, ocorre quando são violadas regras que respeitem apenas aos tribunais judiciais, caso em que tem aplicação o nº 2 e a excepção só pode ser arguida ou oficiosamente conhecida até ser proferido o despacho saneador, ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência de discussão e julgamento. Outro, mais grave, tem lugar quando a violação incide sobre regras respeitantes a tribunais judiciais e a tribunais não judiciais, hipótese em que se aplica o nº 1 e a excepção pode ser arguida ou oficiosamente conhecida em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa[3].

No caso dos autos as regras alegadamente violadas respeitam a tribunais judiciais e não judiciais (tribunais administrativos e fiscais), regendo, por isso, o nº 1 do artº 102º. O que implica a conclusão de que, não havendo ainda sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa, a arguição da excepção da incompetência material se mostra tempestiva.

Nos termos dos arts. 211º, nº 1 da Constituição, 66º do Código de Processo Civil (CPC) e 18º, nº 1 da Lei Orgânica e de Funcionamento dos Tribunais Judiciais[4] (LOFTJ), a competência dos tribunais judiciais é residual, de modo que tal competência só existirá na hipótese de a causa não caber a outra jurisdição.

         O caso em análise opõe os tribunais judiciais aos tribunais administrativos e fiscais pelo que convém averiguar o que, a este respeito, estipulam os vários textos legais, nomeadamente, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF)[5] e o Código do Procedimento Administrativo (CPA)[6].

         Se for possível concluir que a competência cabe à jurisdição administrativa e fiscal, fica automaticamente excluída a competência dos tribunais judiciais. Se não, serão estes os competentes.

De acordo com o artº 212º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa, compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Por sua vez o artº 1º, nº 1 do ETAF estabelece que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais[7].

E a al. e) do nº 2 do artº 2º do CPTA acrescenta que a todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela junto dos Tribunais Administrativos, designadamente para o efeito de obter (…) a condenação da Administração ao pagamento de quantias (…).

A competência material para a acção afere-se em face da natureza da relação jurídica material em litígio, tal como a apresenta o autor da demanda[8]. Ou seja, determina-se pelo modo como o autor configura o pedido e a respectiva causa de pedir[9], sendo fixada em função dos termos em que a acção é proposta[10].

         No caso dos autos a A. alegou que, tendo o direito de receber e o Estado, através do Instituto da Segurança Social, I.P., o dever de lhe pagar, nos termos do disposto nos artºs 1º e 19º da Lei nº 4/84, de 5 de Abril, com as alterações introduzidas pela Lei nº 142/99 e Decreto-Lei nº 70/00, nos artºs 33º e seguintes do Código do Trabalho e 68º do Decreto-Lei nº 35/2004, de 29 de Julho e ainda nos termos do disposto no Decreto-Lei nº 154/88, de 29 de Abril, com a redacção dada pelos Decretos-Lei nºs 333/95, 347/98, 77/2000 e 77/2005[11], um subsídio de maternidade, requereu oportunamente a concessão do mesmo. E que, apesar de tal direito lhe ter sido reconhecido pelo Instituto da Segurança Social, I.P., por razões que são da responsabilidade deste organismo[12] e por ele não assumidas, não chegou a receber o pertinente subsídio, no montante de € 3.913,20. Consequentemente, a A. pediu a condenação do Instituto da Segurança Social, I.P. (e do D...) a pagarem-lhe a dita quantia.

         Ou seja, a A. considera-se lesada pelo acto do Instituto de não assunção da responsabilidade pelo extravio e levantamento por terceiro do cheque destinado ao pagamento do subsídio de maternidade a que reconhecidamente tem direito e pretende convencê-lo judicialmente dessa responsabilidade e obter a sua condenação a efectuar o pertinente pagamento.

        

         De acordo com as sucessivas leis de bases da Segurança Social (Lei nº 28/84, de 14 de Agosto, Lei nº 17/2000, de 8 de Agosto, Lei nº 32/2002, de 20 de Dezembro e Lei nº 4/2007, de 16 de Janeiro), um dos princípios que regem a segurança social é o princípio da garantia judiciária, o qual pressupõe que aos interessados será sempre proporcionado acesso aos Tribunais, em tempo útil, para fazer valer o seu direito às prestações.

         No âmbito desse princípio, em todas as mencionadas leis de bases se reconhece o direito de acesso aos tribunais administrativos a todos os interessados a quem seja negada qualquer prestação devida ou a sua inscrição no sistema ou que, por qualquer forma, sejam lesados por acto contrário ao previsto na lei[13].

         O Instituto da Segurança Social, I.P., foi criado pelo Decreto-Lei nº 171/2004, de 17 de Julho e, de acordo com o artº 38º, nº 6 deste diploma legal, sucedeu nos direitos e obrigações do Instituto da Solidariedade e Segurança Social, criado pelo Decreto-Lei nº 45-A/2000, de 22 de Março[14] e é, tal como o seu antecessor, uma pessoa colectiva de direito público dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, com a natureza de instituto público, a quem compete, além do mais, gerir as prestações do sistema de segurança social e dos seus subsistemas e garantir a realização dos direitos e promover o cumprimento das obrigações dos beneficiários da segurança social[15].

         O Instituto da Segurança Social, I.P. integra-se, pois, no sistema da Segurança Social, sendo-lhe aplicáveis os princípios que regem esta, nomeadamente o da garantia judiciária e, consequentemente, os interessados a quem seja negada prestação devida (…) ou que, por qualquer forma, sejam lesados por acto contrário ao previsto na lei, têm direito de acesso aos tribunais administrativos, nos termos das leis que regulam o respectivo regime contencioso.

         Ou seja, a não assunção por parte do Instituto da Segurança Social, I.P. da responsabilidade pelas vicissitudes que rodearam a tentativa frustrada de pagamento à A. do subsídio de maternidade a que tem direito é apresentado pela A. como um acto contrário à lei e que a lesa.

         A competência material para a acção através da qual a A. visa obrigar o Instituto da Segurança Social, I.P. a pagar-lhe o montante do subsídio cujo direito lhe reconheceu é, assim, de acordo com o apontado regime legal da Segurança Social, dos tribunais administrativos[16].

         Mesmo que se analise a acção pela perspectiva civilista da responsabilidade civil, estar-se-ia, “in casu”, perante responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa colectiva de direito público, o que, atento o disposto no artº 4º, nº 1, al. g) do ETAF, sempre colocaria a competência material no âmbito dos tribunais administrativos.

         Entende-se, pois, que a competência material para conhecer do litígio entre a A. e o Instituto da Segurança Social, I.P. pertence aos tribunais administrativos e fiscais, sendo os tribunais judiciais incompetentes em razão da matéria. O que importa a absolvição do Instituto da Segurança Social, I.P. da instância (artº 105º, nº 1 do Cód. Proc. Civil). E a desnecessidade de apreciação das demais questões colocadas do recurso (artºs 713º, nº 2 e 660º, nº 2 do Cód. Proc. Civil).


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         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, consequentemente, em revogar a sentença recorrida e, considerando o tribunal incompetente em razão da matéria, absolver o Instituto da Segurança Social, I.P. da instância.

         As custas são a cargo da recorrida.


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                                                        Coimbra,


[1] Assim ficando sanadas as eventuais nulidades praticadas (artºs 201º, nº 1, 202º, 203º e 205º, nº 1, 2ª parte, do C.P.C.).
[2] A violação das regras de competência em razão da matéria determina, nos termos do artº 101º do Cód. Proc. Civil, a incompetência absoluta do tribunal.
[3] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, pág. 129.
[4] Lei nº 3/99, de 13/01.

[5] Aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/09, alterada pela Lei nº 4-A/2003, de 19/02 e pela Lei nº 107-D/2003, de 31/12.

[6]Aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro, alterado e republicado pelo Decreto-Lei nº 6/96, de 31/12.
  Com eventual interesse ainda a consulta do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aprovado pela Lei nº 15/2002, de 22/02, alterada pela Lei nº 4-A/2003, de 19/02.
[7] O Prof. Freitas do Amaral, em Direito Administrativo, vol. III, pág. 439, ensina que a relação administrativa é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.
  Por sua vez J.C. Vieira de Andrade, em A Justiça Administrativa, Lições, 3ª edição, 2000. pág. 79, define relações administrativas como aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido.
[8] Ac. Rel. Porto de 10/11/2003 (Relator: Des. Oliveira Abreu) e de 27/05/2004 (Relator: Des. Fernando Batista), in www.jurisprudencia.no.sapo.pt.
[9] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91 e Ac. STJ de 09/05/1995, in CJ, Ano III, Tomo 2, pág. 68.
[10] Ac. STJ de 06/03/2002 (Proc. 01S3359, relatado pelo Cons. Emérico Soares), in www.dgsi.pt/jstj.
[11] Cfr. artigo 41º da petição inicial corrigida na sequência do convite formulado a fls. 82.
[12] Ou do Banco por ele incumbido de fazer o pagamento.
[13] Artºs 40º da Lei nº 28/84; 73º da Lei nº 17/2000; 78º da Lei nº 32/2002; e 77º da Lei nº 4/2007.
[14] Cujos Estatutos foram aprovados pelo Decreto-Lei nº 316-A/2000, de 7 de Dezembro e cuja estrutura orgânica interna foi definida e regulada pela Portaria nº 543-A/2001, de 30 de Maio.
[15] Cfr. também Decretos-Lei nº 211/2006, de 27 de Outubro, 214/2007, de 29 de Maio, nº 163/2008, de 8 de Agosto e Portaria nº 638/2007, de 30 de Maio.
[16] Cfr. também artº 4º, nº 1, als. a) e b), do ETAF.