Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3888/07.0TVLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: CRÉDITO AO CONSUMO
RESERVA DE PROPRIEDADE
FALTA DE CONTESTAÇÃO
SENTENÇA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Data do Acordão: 01/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 484º, NºS 1, 2 E 3, DO CPC; 409º, 432º E 436º DO C. CIV.; 6º, Nº 3, AL. F), DO DEC. LEI Nº 359/91, DE 21/09
Sumário: I – Tendo a Ré sido regularmente citada na sua própria pessoa, de harmonia com o disposto no nº 1 do artº 484º CPC “consideram-se confessados os factos articulados pelo autor”.

II – Dispõe o nº 3 do citado preceito que “se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado”.

III – Uma relação contratual pode extinguir-se por resolução, que consiste no acto de um dos contraentes dirigido à dissolução do vínculo contratual, colocando as partes na situação que teriam se o contrato não houvesse sido celebrado.

IV – Essa faculdade pode resultar da lei ou de convenção dos contraentes – artº 432º, nº 1, C. Civ..

V – Assim, a resolução pode fazer-se mediante declaração à outra parte, por acordo das partes ou judicialmente (artº 436º, nº 1, C.Civ.).

VI – Nos contratos sinalagmáticos ou com prestações recíprocas, se uma das partes não cumpre, pode a outra resolvê-lo quando ocorra inadimplemento definitivo do contrato imputável ao devedor – artº 801º, nº 2, do C. Civ..

VII – O artº 409º do C. Civ. apenas permite a estipulação da reserva ao alienante, ao referir-se expressamente aos contratos de alienação, que são translativos de um direito real.

VIII – O contrato de crédito ou mútuo não é um contrato de alienação, porque o financiador não é o proprietário do bem nem nada vende.

IX – A norma do artº 6º, nº 3, al. f), do Dec. Lei nº 359/91, de 21/09 (Contrato de crédito ao consumo) tem em vista apenas as situações em que o vendedor era e continua a ser proprietário, agora sob reserva, financiando a aquisição através de qualquer uma das formas ou meios que pode revestir a concessão de crédito, nos contratos de crédito ao consumo.

Decisão Texto Integral:          ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

         I- RELATÓRIO

         I.1- «A...» com sede em ...., intentou em 27.8.07 acção declarativa de condenação sob a forma ordinária, contra B... residente em ..., pedindo, com fundamento na falta de pagamento da totalidade das prestações em dívida pela ré, fosse declarada a resolução do contrato de crédito que com ela celebrou em 4.1.05, por via do qual a financiou com o montante de 62.195,48 € para lhe possibilitar a aquisição, por ela, do veículo automóvel da marca «Mercedes-Benz» com a matrícula 00-00-XX, tendo sido constituído a favor da A., para garantia do cumprimento do contrato, reserva de propriedade sobre o mencionado veículo. Pediu ainda que a ré fosse condenada a restituir à A. o referido veículo «Mercedes», com o cancelamento do registo de propriedade averbado em nome da ré.

Regularmente citada a Ré não apresentou contestação.

Por despacho exarado a fls.78 foram julgados confessados os factos alegados pela A. e dado cumprimento ao disposto no art.484º/2,C.P.C..

Foi então proferida sentença datada de 19.2.09, nestes termos: “A falta de contestação implica a confissão dos factos alegados pela A. nos termos do art.484º/1 do C.P.C., donde se tem por assente toda a factualidade vertida na petição inicial. (…) Termos em que aderindo à fundamentação de facto e de direito aduzida na petição inicial: Declaro a resolução do contrato de crédito celebrado entre Autora e Ré com o nº000000, em 04.01.2005 e, em consequência, condeno a Ré a restituir à Autora o veículo automóvel de marca «Mercedes», modelo Benz Classe E Diesel, com a matrícula 00-00-XX, bem como determino o cancelamento do registo de propriedade averbado em nome da Ré».

         I.2- Notificada da sentença, a Ré dela apelou, concluindo as alegações recursivas, assim, em síntese nossa:

[………………………………………………………………………………………]

I.3- Contra-alegou a A., pugnando pelo improvimento do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

                                               #                 #

         II – FUNDAMENTOS

         II.1 - de facto

         Na sentença julgaram-se confessados os factos alegados pela A., os quais, com relevo para a decisão, assim se resumem:

[…………………………………………………………………………….]

                                               #                 #

         II.2 - de direito

         De harmonia com as conclusões acima transcritas, delimitadoras do objecto do recurso, importa analisar, essencialmente, estas duas questões: se se verifica incumprimento definitivo justificativo da decretada resolução do contrato ajuizado; se no mesmo contrato é admissível a estipulação de reserva de propriedade a favor do financiador.

         Será ainda de questionar primeiramente, se foi correcta a adesão à fundamentação de facto e de direito aduzida na petição inicial feita na sentença, ao abrigo do disposto no art.484º/1 e 2 do C.P.C..

         Não se verificando na situação presente nenhuma das excepções constantes do art.485º/C.P.C., e tendo sido a ré regularmente citada na sua própria pessoa (fls.77), de harmonia com o disposto no nº1 do art.484º, “consideram-se confessados os factos articulados pelo autor”. Os factos alegados pela autora ficaram provados ante a pura omissão de contestar da parte contrária. Cumprida que foi a 1ª parte do nº2 do mesmo preceito, restava ao juiz julgar a causa aplicando o direito aos factos admitidos, por vigorar aqui o efeito cominatório semi-pleno (2ª parte do nº2).

         No caso, a 1ª instância limitou-se a condenar a ré no pedido mediante simples adesão aos fundamentos da autora - efeito cominatório pleno referido ao processo sumário - proferindo de seguida a decisão.

         Todavia, dispõe o nº3 do citado preceito que, “se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado”.

         Portanto, para simplificar a elaboração da sentença, e não estar assim sujeita ao rigor imposto pelo art.659º/2 e 3, C.P.C., após identificar as partes e fundamentar sumariamente a causa, nada impedia que o juiz proferisse imediatamente a decisão, como fez.

         Não tem, pois, razão a apelante, quando afirma que na sentença teria de ser indicada especificadamente os factos bem como os fundamentos de direito a sustentar a decisão proferida, fundamentos esses que, também ao contrário do que diz a recorrente, foram indicados pela autora na petição, como resulta dos artigos 11º, 17º, 18º, 19º, 20º e 22º.

         Segue-se, assim, que a sentença não padece do vício da nulidade contemplada no art.668º/1-b), C.P.C. (total omissão dos fundamentos de facto e de direito em que assenta a decisão).

         Arrumada esta questão prévia, analisemos então as questões acima enunciadas.

         2.1- Sustenta a recorrente que foi ilegal a resolução do contrato por parte da credora/autora, por não ocorrerem as situações previstas nos arts.801º/1 e 2, 802º e 808º do C.C. (como os demais a citar sem menção expressa).

         Cremos que com razão.

         A relação contratual pode extinguir-se por resolução, que consiste no acto de um dos contraentes dirigido à dissolução do vínculo contratual, colocando as partes na situação que teriam se o contrato não houvesse sido celebrado. Essa faculdade pode resultar da lei ou de convenção dos contraentes (art.432/1)[1].

         Assim, a resolução pode fazer-se mediante declaração à outra parte, por acordo das partes ou judicialmente (art.436º/1).

         No caso, não ocorre o direito de resolver o contrato com base em convenção, porque a resolução convencional não foi inserta nas cláusulas contratuais.  

         Consequentemente, há que lançar mão da resolução legal.

         A autora pretende obter a declaração judicial de que a declaração resolutiva foi legalmente efectuada.

         Em qualquer contrato sinalagmático ou com prestações recíprocas, se uma das partes não cumpre, pode a outra resolvê-lo, quando ocorra inadimplemento definitivo do contrato imputável ao devedor (art.801º/2). Ou seja, quando se verifique impossibilidade definitiva da prestação, perda do interesse do credor em consequência da mora, ou decurso de um termo fixado como essencial (art.808º/1).

         A mora consiste no atraso culposo do devedor no cumprimento da obrigação (art.804º). Mas não basta a mora solvendi para surgir o direito de resolução. É preciso que se verifique a conversão da mora em incumprimento definitivo, por uma de duas situações: a perda do interesse do credor na prestação em consequência da mora; a não realização da prestação dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor.

         Ora, nem uma nem outra das duas situações ocorreu na situação em análise: a autora não alega a perda do interesse na prestação em consequência da mora, nem se divisam motivos que justifiquem objectivamente que o retardamento do pagamento das prestações pela ré, não é já adequada a realizar o fim visado pelo negócio (art.808º/2); por outro lado, a autora não usou da chamada interpelação admonitória, declaração receptícia que contém três elementos: intimação para o cumprimento; fixação de um termo peremptório para o cumprimento; admonição ou cominação de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida, se ocorrer o adimplemento dentro desse prazo.

         No caso, a autora comunicou à ré, por carta registada com A/R, que em relação aos valores vencidos, concedia um prazo suplementar de 8 dias úteis para liquidação do montante total em atraso acrescido de juros de mora, considerando o contrato resolvido se decorrido tal prazo, o pagamento não se encontrar efectuado (doc.fls.27).

         Sucede que essa comunicação não chegou ao poder da ré por não ter sido recebida sendo a carta devolvida ao remetente (fls.24), nem consta que foi dela conhecida.

         Decorre da doutrina constante do art.224º (doutrina da recepção), que a declaração negocial com um destinatário ganha eficácia logo que chegue ao seu poder ou é dele conhecida. As declarações não receptivas tornam-se eficazes logo que a vontade se manifesta da forma adequada.

         Como tal, a declaração receptícia foi ineficaz, o que significa que, não conhecendo a devedora o prazo peremptório para o cumprimento, cuja não observância converte a mora em incumprimento definitivo - pressuposto do direito de resolução -, a credora não era admitida a desvincular-se do contrato em relação ás prestação ainda não cumpridas.

         Daí que o tribunal não possa declarar a resolução, pretensão que afinal mais não é do que um antecedente lógico justificativo do pedido de devolução da viatura.

         Nesta circunstância, a acção teria desde logo de improceder.

         2.2- Ainda assim, abordemos a questão da reserva de propriedade.

         Diz a autora que, não tendo a ré cumprido as obrigações e existindo reserva de propriedade sobre o veículo, pode exigir a restituição imediata do mesmo.

         A reserva de propriedade vem referida no art.409º, podendo ser definida como a convenção pela qual o alienante reserva para si a propriedade da coisa, até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte, ou até à verificação de outro evento.

         A compra e venda com reserva de propriedade já constitui actualmente um tipo jurídico estrutural, aplicável nas compras e vendas a prestações ou com espera de preço, em que o vendedor procede à entrega da coisa ao comprador, por forma a permitir-lhe o gozo dela antes de o preço estar pago. A reserva de propriedade apresenta-se assim como uma garantia típica do contrato de compra e venda relativamente à obrigação de pagamento do preço pelo comprador, constituindo uma garantia não acessória dessa obrigação.[2]

         Na situação vertente, clausulou-se que até integral cumprimento, a autora poderá constituir no seu interesse, reserva de propriedade sobre o bem objecto do contrato, o que veio a suceder, pois encontra-se registada a reserva de propriedade da viatura «Mercedes-Benz», matrícula 00-00-XX, a favor da A. «A...».

         É inquestionável que o contrato ajuizado é de qualificar como de “contrato de crédito ao consumo”, disciplinado pelo DL nº359/91, de 21.9.

         O art.6º/3-f) do memo diploma prevê como cláusula desses contratos, “o acordo sobre reserva de propriedade”.

         No caso dos autos, o crédito foi concedido pela autora/entidade financiadora sob a forma de mútuo, pagável em prestações, destinado a financiar a aquisição do referido veículo «Mercedes-Benz» pela ré. Como resulta da cláusula 2º das «condições gerais», e bem assim das «condições especiais» do contrato, a autora entregou o montante mutuado à empresa fornecedora do veículo, «C....». Está assim desenhada uma situação em que o crédito é concedido para financiar o pagamento de um bem, bem esse não alienado pelo próprio credor/mutuante, mas por uma outra entidade – o fornecedor. Ou seja, na operação de financiamento está coenvolvida uma terceira parte, o fornecedor da coisa a adquirir, que após a entrega recebeu o preço de venda directamente do mutuante. Existe assim uma relação económica triangular, pela interposição de uma terceira entidade independente – o comerciante fornecedor do bem, e dois contratos firmados que, conquanto conexos, são distintos: o de compra e venda entre o fornecedor e a sociedade financiadora ou mutuante, e o contrato de concessão de crédito entre esta sociedade e o utilizador do bem ou mutuário.

         A aplicação por analogia do art.409º a situações como a descrita, tem gerado alguma controvérsia, havendo quem admitida a licitude da aludida cláusula de reserva de propriedade, em face da conexão entre os dois contratos, e quem a considere nula, quando a favor da empresa que, no contrato, figurou como mutuante do comprador e não como vendedora.

         Esta última solução foi defendida, por exemplo, no Ac.R.P. de 15.1.07 relatado por João Cura Mariano,[3]em cujos fundamentos nos abonamos.

         O art.409º apenas permite a estipulação da reserva ao alienante, ao referir-se expressamente aos contratos de alienação, que são translativos de um direito real. O contrato de crédito ou mútuo não é um contrato de alienação. O financiador não era o proprietário do bem, nem nada vendeu. Na locação financeira (ou operação de leasing) é que a instituição de crédito compra para si o bem e este fica no seu património, para conceder o gozo da mesma ao locatário, servindo a sua propriedade de garantia do financiamento. Já no contrato de crédito, aquela instituição concede um empréstimo ao mutuário para que este compre o bem e o integre no seu património.[4]

No caso, ocorreu apenas o financiamento da aquisição do veículo «Mercedes», sendo outrem o alienante do mesmo a quem a financiadora fez a entrega da quantia mutuada. Não há, portanto, justificação para que a autora possa ser titular da reserva.

         Ponderou-se no aresto que vimos seguindo, que o facto do citado art.6º/3-f) prever a cláusula em questão, não “legaliza” a sua estipulação a favor da entidade financiadora, quando ocupa a posição de terceira relativamente ao contrato de alienação, uma vez que tal disposição se reporta ás situações em que o pagamento do preço ao vendedor é deferido para momento posterior ao da entrega do bem, sendo este o beneficiário da reserva de propriedade clausulada.

         E no infra citado Ac.STJ de 19.7.08, cuja argumentação também nos convenceu e que por isso de perto seguimos, escreveu-se: “… o normativo em questão (al.f) do nº3 do art.6º) tem em vista apenas as situações em que o vendedor era e continua a ser proprietário, agora sob reserva, financiando a aquisição através de qualquer uma das formas ou meios que pode revestir a concessão de crédito, nos contratos de crédito ao consumo (…). O mesmo é dizer que tal normativo tem em mira situações em que o crédito é concedido para financiar o pagamento de um bem alienado pelo próprio credor, ou seja, em que a pessoa ou entidade financiadora é a detentora do direito de propriedade do bem alienado”.

         Em suma, ainda que conexionado com um contrato de compra e venda, no contrato de financiamento para aquisição a crédito de determinado bem, a financiadora/mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, justamente porque não é o seu titular, e o art.409º/1 apenas permitir a estipulação da reserva a quem é proprietário do bem em causa.

         Considera-se, portanto, nula, nos termos do art.280º, a estipulada cláusula de reserva de propriedade, porque legalmente impossível.

         E sendo nula, não tem a autora qualquer direito sobre o veículo em causa, pelo que improcede a pretendia restituição do mesmo.

         Dito isto, o recurso merece provimento.

                                               #              #

        III - DECISÃO

         Acorda-se, pelo exposto, em julgar procedente a apelação, revoga-se em consequência a sentença apelada, e julga-se improcedente a acção absolvendo-se a ré do pedido.

         Custas em ambas as instâncias pela autora.


[1]   Almeida Costa, «Direito das Obrigações», pág.236
[2]   L. Menezes Leitão, «Garantias das Obrigações», 2ªed., pág.257
[3]   in CJ tomo I/07, pág.161-163. também nesse sentido, os Ac.R.L de 27.5.03 e 14.12.04 (Ap 4667/03-7 e 9857/04-7) relatados por António Abrantes Geraldes. Ainda os Acs.do STJ de 27.9.07 (07B2212) e 19.7.08 (08B1480), relatados pelo Conselheiro Santos Bernardino.
[4]   J. Calvão da Silva, «Estudos de Direito Comercial», pág.20