Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
460/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL
DENÚNCIA DE CONTRATO POR PARTE DO SENHORIO
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 11/16/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 18º A 20º DA LEI DO ARRENDAMENTO RURAL E ARTº 46º DO CPC
Sumário: Não tendo o arrendatário deduzido qualquer oposição, mas não entregando voluntariamente o prédio, a denúncia do contrato de arrendamento rural feita pelo senhorio nos termos e condições previstas no artº 18º da LAR, não constitui título executivo, havendo necessidade de propor a pertinente acção declarativa.
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. RELATÓRIO
A... e B...., residentes na Rua do Carmo, nº 35, lugar de Casal da Cruz, freguesia de Caranguejeira, comarca de Leiria, instauraram acção executiva contra C... e D..., residentes na Rua da Craveira, nº 26, lugar e freguesia de Marrazes, comarca de Leiria, visando a citação dos executados para, em 20 dias, fazerem entrega do prédio identificado no artº 1º da exposição dos factos (anexo C4), “devendo depois o agente de execução investir os exequentes na posse do indicado prédio, notificando os executados e quaisquer detentores para que respeitem e reconheçam o direito dos exequentes”.
Como título executivo foi apresentada pelos exequentes uma notificação judicial avulsa da qual resulta que, a requerimento de Afonso Dinis da Costa Vieira, como cabeça de casal da herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de Maria de Jesus Costa e Julieta da Costa Portela, os executados foram notificados, em 04/01/2001, por funcionário judicial do Serviço Externo do Tribunal Judicial de Leiria, de que “os herdeiros das referidas Maria de Jesus Costa e Julieta da Costa Portela não querem a renovação ou continuação do contrato verbal de arrendamento, e que o denunciam em relação ao prédio identificado na cláusula 1a deste requerimento, devendo ainda os requeridos ser advertidos que deverão entregar aquele prédio livre e desocupado até ao dia 31/10/2002, data para a qual fica efectuada a denúncia, podendo, se assim o entenderem, proceder á entrega antes daquela data”.
Na exposição dos factos os exequentes alegaram que os executados tomaram de arrendamento, há largos anos, uma terra de semeadura com oliveiras, sita em Cerveira, freguesia de Marrazes – Leiria, a confrontar de norte com herdeiros de Joaquim Lagoa, sul com herdeiros de José Vieira, nascente com carreiro e poente com caminho público, inscrita na matriz rústica da referida freguesia sob o artigo 583, o qual pertencia à herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de Maria de Jesus Costa e Julieta da Costa Portela e foi adquirido pelos exequentes aos herdeiros daquelas por contrato de compra e venda formalizado pela escritura pública outorgada em 17/01/2001 no 1º Cartório Notarial de Leiria; que o arrendamento se destinava ao cultivo directo por parte dos arrendatários, renovando-se no dia 01 de Novembro de cada ano; que os arrendatários foram notificados, no dia 04/01/2001, através de notificação judicial avulsa, de que os senhorios não queriam a renovação do contrato e que o denunciavam, devendo o prédio ser-lhes entregue, livre e desocupado, até ao dia 31/10/2001; e que os arrendatários não se opuseram à denúncia, não tendo proposto qualquer acção com essa finalidade, como prevê o artº 19º, nº 1 do Dec. Lei nº 385/88, de 25/10 (LAR – Lei do Arrendamento Rural).
Foi proferido despacho liminar de indeferimento, com o fundamento de que “a denúncia não resistida, só por si, não constitui título executivo, havendo necessidade de o senhorio pedir judicialmente a condenação do arrendatário a reconhecer a cessação do contrato de arrendamento e a despejar o prédio”.
Inconformados, os exequentes agravaram, tendo no final da alegação de recurso apresentada, formulado as seguintes conclusões:
1. A denúncia corresponde a um direito potestativo que opera, no caso do arrendamento rural, pela simples comunicação escrita à outra parte dessa vontade, sem a necessidade de intervenção judicial (artigo 18º da L.A.R.), e uma vez efectuada a denúncia com as formalidades legalmente exigidas, produz os seus efeitos, nomeadamente, a extinção o vínculo contratual.
2. A denúncia do contrato é título executivo bastante para a execução do despejo, quer tenha havido oposição julgada improcedente quer não (Ac. Rel. do Porto citado).
3. No primeiro caso, o mandado de despejo só pode ser requerido após o termo do ano agrícola posterior à sentença (Ac. Rel. do Porto citado).
4. No segundo, pode ser requerido se o prédio não for entregue nos 60 dias após a comunicação escrita da denúncia (Ac. Rel. do Porto citado).
5. Tal é a interpretação que, nos termos do artigo 9.° do C. Civil deve ser dada ao artigo 19.° da L.A.R., de modo a coadunar aquelas disposições com os princípios de economia processual, com a lógica e unidade do sistema jurídico do arrendamento.
6. Na d. decisão recorrida não se fez correcta interpretação e aplicação do disposto no artigo 5.° n.° 3, 18.°, 19.° e 35.° n.° 1 da L.A.R. (DL 385/88 de 25/10).
Não houve resposta.
Foi proferido despacho de sustentação.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à apreciação e decisão deste Tribunal é colocada apenas a questão de saber se a comunicação escrita integrando a denúncia, por parte do senhorio, do contrato de arrendamento rural, conjugada com a falta de oposição por parte do arrendatário, constitui ou não título executivo para efeito de ser obtida coercivamente a entrega do prédio arrendado.
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3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
A factualidade relevante para a análise e resolução da questão colocada no presente agravo é a que resulta do relatório antecedente, que nos dispensamos de aqui transcrever, dando-o por reproduzido.
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3.2. De direito
De acordo com o artº 18º, nº 1 da LAR (diploma legal ao qual pertencem todas as disposições adiante citadas sem outra menção), os contratos de arrendamento a que se refere aquele diploma consideram-se sucessiva e automaticamente renovados se não forem denunciados nos termos seguintes: (a) O arrendatário deve avisar o senhorio, mediante comunicação escrita, com a antecedência mínima de um ano, relativamente ao termo do prazo ou da sua renovação, ou de seis meses, se se tratar de arrendamento a agricultor autónomo; (b) O senhorio deve avisar também o arrendatário pela forma referida na alínea anterior, com a antecedência mínima de dezoito meses, relativamente ao termo do prazo ou da sua renovação, ou de um ano, se se tratar de arrendamento a agricultor autónomo.
Feita a denúncia nos termos e nos prazos legais, o senhorio nenhuma oposição lhe pode deduzir, outro tanto não sucedendo – a não ser em caso de denúncia para exploração directa pelo senhorio ou filhos que satisfaçam as condições de jovem agricultor estipuladas na lei (artº 20º) – relativamente ao arrendatário que, nos termos do artº 19º, nº 1, pode obstar à efectivação da denúncia desde que, em acção intentada no prazo de 60 dias após a comunicação prevista no artigo anterior, prove que o despejo põe em risco sério a sua subsistência económica e do seu agregado familiar.
De acordo com o nº 2 do mencionado artº 19º, o despejo do prédio arrendado não pode ter lugar antes do termo do ano agrícola posterior à sentença e se o arrendatário não entregar o prédio arrendado no prazo referido no número anterior, pode o senhorio requerer que se passe mandado para a execução do despejo.
A questão que se levanta neste agravo é a de saber se, em caso de denúncia do contrato de arrendamento rural feita pelo senhorio nos termos e condições previstas no artº 18º, não tendo o arrendatário deduzido a oposição prevista no artº 19º e não efectuando a entrega do prédio arrendado, pode o senhorio enveredar directamente pela execução, valendo como título executivo a comunicação escrita da denúncia, ou tem de previamente intentar acção declarativa com vista a obter sentença que constitua título para a execução.
Como bem demonstram os autos, em que o Mº Juiz “a quo” adopta a tese da necessidade da prévia propositura da acção declarativa e os agravantes adoptam a tese oposta, trata-se de questão controvertida na doutrina e na jurisprudência A controvérsia na jurisprudência limita-se, tanto quanto conseguimos apurar, às Relações, já que os arestos do Supremo Tribunal de Justiça a que tivemos acesso vão todos no mesmo sentido, ou seja, no sentido de que a denúncia não resistida não integra título executivo, sendo indispensável a propositura de acção declarativa em que se obtenha sentença que titule a execução. .
Apenas como exemplo, defendem a opinião de que a comunicação escrita da denúncia constitui título executivo fundamentador da execução e da imediata passagem de mandado de despejo, na doutrina, o Prof. Antunes Varela Cód. Civil Anotado, 4ª edição, Vol. II, pág. 450. e na jurisprudência, entre outros, o Acórdão da Rel. de Évora de 20/11/97 CJ, XXII, V, 263. e os Acórdãos da Rel. do Porto de 28/05/98, 26/01/2000, 28/02/2000, 14/03/2002 e 19/11/2002 CJ, XXIII, III, 185; www.dgsi.pt/jtrp (Relator: Des. Saleiro de Abreu); www.dgsi.pt/jtrp (Relator: Des. Ferreira de Sousa); XXVII, II, 189 e www.dgsi.pt/jtrp (Relator: Des. Pelayo Gonçalves), respectivamente.. E defendem a tese contrária, na doutrina, Aragão Seia Arrendamento Rural, 3ª edição, págs. 129 e sgts. e Francisco Cravo O Arrendamento Rural, artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados, nº 28, de Setembro/Outubro de 2003. e na jurisprudência, entre outros, o Acórdão da Rel. de Évora de 6/2/92 CJ, XVII, I, 272., o Acórdão da Rel. do Porto de 18/11/96 CJ, XXI, V, 187., o Acórdão da Rel. de Coimbra de 15/02/2000 CJ, XXV, I, 20. e os Acórdãos do S.T.J. de 5/11/98, 11/5/99 e 27/03/2001 CJ (STJ), VI, III, 89; VII, II, 86; e IX, I, 188..
Inclinamo-nos claramente para a tese que vem sendo acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, de que a comunicação escrita da denúncia não integra título executivo, pelo que, se o arrendatário, apesar de não ter deduzido a oposição prevista no artº 19º, não entrega o prédio arrendado, o senhorio tem de intentar acção declarativa onde obtenha sentença que lhe permita instaurar execução.
As diversas espécies de títulos executivos possíveis estão previstas no nº 1 do artº 46º do Cód. Proc. Civil, sendo que a comunicação escrita da denúncia do contrato de arrendamento rural por parte do senhorio não se enquadra em qualquer delas.
Com efeito, não se trata de sentença condenatória al. a), nem de documento exarado ou autenticado por notário al. b). Por outro lado, como refere o Cons. Aragão Seia Arrendamento Rural, 3ª edição, pág. 131., “a denúncia, só por si, não constitui, nos termos do art. 46º, al. d) do CPC, um título judicial impróprio, porque não se desenvolve no âmbito de um processo ou tramitação judicial, nem tão pouco um título administrativo ou de formação administrativa, nem a sua exequibilidade está expressamente prevista em disposição que lhe confira especialmente a força de título executivo”.
Esgrimem os defensores da orientação contrária com o princípio da economia processual, não encontrando utilidade que justifique a prévia instauração de acção declarativa.
Há, porém, que atentar em que a oposição prevista no artº 19º, nº 1 apenas pode ter lugar se a denúncia puser em sério risco a subsistência económica do arrendatário e do seu agregado familiar, quando é certo que tal pressuposto pode não se verificar, mas concorrer outro fundamento de defesa, susceptível de afastar a validade da denúncia.
Igualmente invocam os defensores da tese de que a comunicação escrita da denúncia, aliada à não oposição, integra título executivo que existe analogia com a situação prevista para o arrendamento urbano nos artºs 100º e 101º do RAU, onde se estabelece que o contrato de arrendamento de duração limitada, em conjunto com a certidão da notificação judicial avulsa do arrendatário enformadora da denúncia feita pelo senhorio constitui título executivo para efeitos de despejo do local arrendado.
A força executiva do contrato em conjunto com a certidão da notificação judicial avulsa é expressamente conferida pelo artº 101º do RAU, motivo pelo qual nenhuma dúvida pode haver de que se está perante um título executivo com perfeito cabimento na al. d) do nº 1 do artº 46º do Cód. Proc. Civil.
Só que, relativamente à denúncia não resistida do contrato de arrendamento rural inexiste norma que, com ou sem outro documento, lhe confira aquela especial força de título executivo.
Argumenta-se também, a favor da opinião de que a denúncia sem oposição integra título executivo, com o artº 19º, nº 2, sustentando que, tendo a oposição à denúncia sido julgada improcedente, o título que permite ao senhorio requerer a passagem de mandado para a execução do despejo só pode ser o documento contendo a denúncia, já que a sentença proferida, porque se limita a julgar improcedente a oposição, em nada, designadamente na entrega do prédio, condenando o arrendatário, não é título executivo.
Contudo, como entendeu o Supremo Tribunal de Justiça nos Acórdãos de 11/05/99 e de 27/03/2001, já citados, em tal caso o título executivo é a sentença e não o documento da denúncia, já que a sentença condenatória, para efeitos da al. a) do nº 1 do artº 46º do Cód. Proc. Civil, não tem de o ser formalmente, bastando que deixe reconhecida a existência de uma obrigação a cumprir Prof. Alberto dos Reis, Processo de Execução, Vol. 1º, 3ª edição, pág. 127.. E a sentença em causa “é certificativa da existência do contrato e da validade da denúncia que o dá por findo, do que resulta a obrigação do arrendatário de entregar o prédio, passando a constituir título executivo” Ac. STJ de 27/03/2001, já mencionado..
Finalmente, os apoiantes da desnecessidade da acção declarativa convocam a seu favor o nº 1 do artº 35º, dizendo que, se não pode efectivar-se a entrega do prédio ao senhorio com base em denúncia do contrato enquanto os processos judiciais referidos no artº 28º estiverem pendentes, isso significa que, “a contrario”, não se verificando aquela pendência, a entrega pode ser feita.
Porém, a norma em questão tem apenas a ver com a situação do arrendatário, consagrando o princípio de que “a acção de preferência se sobrepõe ao despejo pontual com fundamento na denúncia do contrato (denúncia que consubstancia apenas uma manifestação de vontade do senhorio, independentemente de qualquer actuação do arrendatário), e que o senhorio, no caso de a ter efectuado ou a vir a efectuar, não tem o direito de exigir do arrendatário o despejo do arrendado, enquanto a acção de preferência estiver pendente, permitindo-se a este que continue a cultivar e a colher os frutos da sua actividade agrícola Aragão Seia, Obra e local citados..
Ou seja, a norma referida, no que respeita à controvérsia em análise, é neutra, não favorecendo nem desfavorecendo qualquer das orientações em confronto.

Perfilhando-se a tese adoptada no despacho recorrido e, consequentemente, renegando-se a tese contrária, sustentada pelos agravantes, é óbvio que, a nosso ver, as conclusões da alegação de recurso soçobram e o agravo improcede.
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4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo e, consequentemente, em manter o despacho recorrido.
As custas são a cargo dos agravantes.
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Coimbra,