Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4-D/1997.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: ENTREGA JUDICIAL DE MENOR
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
MORTE DA MÃE
EXERCÍCIO DO PODER PATERNAL
Data do Acordão: 10/30/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES DE COIMBRA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 1918º C. CIV.
Sumário: I – A morte da progenitora a quem a menor sua filha se encontrava confiada na sequência de divórcio do pai desta, implica, por aplicação do disposto nos artigos 1903º, 1904º e 1908º, este a contrario, todos do CC, que o poder paternal passe a competir ao progenitor sobrevivo, com a consequente entrega da menor a este;

II – Sendo esta a regra, a entrega da menor a terceiros, designadamente aos avós maternos, configurar-se-á como excepção a esta regra, dependendo (e é este o pressuposto desencadeador da excepção) da verificação de perigo, em função da entrega ao pai, para a segurança, saúde, formação moral e educação da menor, nos termos do artigo 1918º do CC.

III – A vigência da regra e o não preenchimento da excepção, significam que a morte do progenitor a quem a menor estava confiada desencadeia a entrega ao outro progenitor e não a abertura de um processo de determinação, entre todas as alternativas pensáveis de entrega, de qual a mais adequada;

IV – O “superior interesse do menor”, enquanto critério de decisão num conflito respeitante à custódia deste entre o pai (progenitor sobrevivo) e os avós, actua no quadro do preenchimento da facti species das apontadas regra e excepção.

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra


I – A Causa


1. Em Novembro de 2006, no 2º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Coimbra, por apenso ao processo de divórcio por mútuo consentimento com o nº 4/1997 veio A... (Requerente e aqui Apelado) requerer, enquanto pai da menor B..., nascida a 6 de Junho de 1994, a entrega desta, alegando ter ocorrido, em 6 de Maio de 2006, o falecimento da mãe da sua filha, sua ex-mulher, recusando os avós maternos, C... e D... (Requeridos e, neste recurso, Apelantes), proceder à entrega da menor ao pai [O Requerente configurou a sua pretensão, no requerimento inicial de fls. 1/2, como alteração de regime de regulação do exercício de poder paternal [artigo 182º da Organização Tutelar de Menores (OTM)], tendo sido considerado no despacho liminar de fls. 4 corresponder a situação ao mecanismo processual da entrega judicial de menor (artigo 191º da OTM), determinando-se a alteração da distribuição (cfr. fls. 5) e o subsequente processamento como tal.] .

Os Requeridos contestaram a fls. 12/15, alegando serem quem cuida da menor, desde data anterior ao decesso da mãe, invocando que o Requerente “[…] nunca demonstrou nem reclamou ter condições e responsabilidade para [a] criar […]”, pedindo, a culminar tal peça, que “[…] não [seja] ordenada a entrega da menor […] ao pai […] devendo a mesma ser confiada à guarda e confiança dos avós maternos [ou seja, deles Requeridos], com a consequente e posterior alteração de regulação do poder paternal” (transcrição de fls. 15).

1.1. Na fase preparatória da decisão (artigo 192º, nº 1 da OTM), realizou o Instituto de Reinserção Social (IRS) inquérito à situação do Requerente, dos Requeridos e da menor B... (constam de fls. 23/27 e 28/32 os relatórios respectivos [Que suscitaram tomadas de posição dos Requeridos (fls. 36/38) e do Requerente (fls. 51/52).]), procedendo-se, conforme promoção do Ministério Público a fls. 46 (reiterada a fls. 60), à audição do Requerente e da sua actual mulher, dos Requeridos (diligência documentada na acta de fls. 69/71), da técnica do IRS que elaborou os relatórios e, finalmente, da menor (acta de fls. 72/74
[ Julga-se útil transcrever aqui, nos termos relatados na acta de fls. 72/74, o teor das declarações da menor B...:
“[…]
Inquirida disse:
Que está a viver com os avós maternos. Mais disse que pretende continuar a viver com os mesmos, porque tem lá as suas coisas, foram estes que a criaram e têm espaço para as suas brincadeiras;
Refere que já conhece a nova casa do pai, mas não gosta do quarto que o mesmo tem para ela, este é um anexo à casa, estando virado para a rua, tendo por isso medo de ali pernoitar;
Declarou que por vezes tem medo de noite, indo dormir para a cama dos avós maternos;
Nunca chumbou, está a fazer os possíveis para transitar no presente ano lectivo;
Declarou que não foi forçada pelos avós a dizer alguma coisa;
Aceita visitar o pai, mas só uma vez por mês;
E mais não disse.
[…]”
[transcrição de fls. 73]]).

Colheu-se a fls. 75/76 o parecer final do Ministério Público, apontando este no sentido da entrega judicial da menor ao pai, acrescentando-se aí “[…] deve[r] este assegurar que a filha mantenha contactos regulares com os avós maternos, os quais, por sua vez, deverão abster-se de atitudes e comportamentos que prejudiquem ou dificultem a plena integração da neta no agregado familiar do pai” (transcrição de fls. 76).

1.2. Foi, então, proferida a decisão de fls. 76/80 (a ela respeita o presente recurso), contendo o seguinte pronunciamento decisório:

“[…]
[J]ulgo provada e procedente a presente acção especial de entrega judicial de menor e ordeno que os requeridos C... e D..., avós maternos da menor B..., nascida em 6/6/1994, procedam à entrega dessa neta ao respectivo progenitor, aqui requerente, A..., no dia 28 de Abril de 2007, pelas 12 horas, à porta de casa deste, no Sítio da Ponte Velha, Lousã, sob pena de, não o fazendo, incorrerem em crime de desobediência, nos termos do artº 191º, nº 4, parte final, da O.T.M. e do artº 348º, nº 1, a), do Código Penal.
O pai fica obrigado a vigiar o aproveitamento escolar da menor, estimulando-a e auxiliando-a a melhorá-lo, não a transferindo da escola que ora frequenta até ao final do presente ano lectivo.
O pai fica ainda obrigado a permitir que a menor visite e seja visitada pelos avós maternos, nas ocasiões que forem acordadas entre estes e aquele, com uma periodicidade não inferior a uma vez por semana.
Os avós ficam obrigados a abster-se de atitudes e comportamentos que prejudiquem ou dificultem a plena integração da neta no agregado familiar do pai.
[…]”
[transcrição de fls. 79 vº/80]


1.3. Inconformados, interpuseram os Requerentes (fls. 84) o presente recurso, recebido pelo despacho de fls. 91 como de apelação, com efeito meramente devolutivo, tendo os Apelantes apresentado as alegações de fls. 139/144, rematando tal peça processual com as seguintes conclusões:

“[…]
1- A decisão do Mmo. Juiz ao entregar, sem mais, a menor ao pai, não teve em conta o verdadeiro interesse da mesma, e limitou-se a aplicar a lei substantiva.
2- Os presentes autos são de jurisdição voluntária.
3- O Mmo. Juiz a quo ao não adoptar a solução mais conveniente à menor, violou o disposto no artigo 1410º do [Código de Processo Civil].
4- A menor que tem 13 anos de idade tem maturidade e discernimento para formar opinião.
5- O Mmo. Juiz do Tribunal a quo ao não valorizar a vontade da menor em não querer ir viver com o pai, violou o direito da personalidade da mesma consagrado no artigo 26º, nº 1 da [Constituição da República Portuguesa], bem como o artigo 12º, nº 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança.
[…]”
[transcrição de fls. 144]


1.3.1. Entretanto, subsequentemente à prolação da decisão recorrida e paralelamente à preparação da subida do recurso, atravessou o Requerente o requerimento de fls. 95/96, no qual relata ter a menor B... “mudado” as suas coisas para a casa dos avós, aqui Requeridos, aí permanecendo, recusando-se estes a entregarem-na ao pai [Note-se que o efeito devolutivo do recurso acarretou a efectiva entrega da menor ao pai no dia 28 de Abril de 2007, nos termos determinados na decisão apelada.].

Originou esta situação o processamento desencadeado pelo despacho de fls. 97/98
[Do qual consta, nos trechos mais relevantes:
“[…]
[A]legadamente a menor não quer sair de casa dos avós, que não a obrigam a cumprir a decisão judicial de regresso a casa do pai, pois o que se estipulou na sentença foi que pudesse visitar e ser visitada pelos avós e não que por mera «birra» decidisse voltar a viver com os avós, quando não tem maturidade para tal decisão e é obrigada a obedecer ao pai, nos termos do artigo 1878º, nº 2 do Código Civil, mesmo que os avós a influenciem em sentido contrário.
A sentença não pode ser «letra morta», pelo que ordeno a passagem de mandados de condução da menor a casa de seu pai, a cumprir pela equipa própria do IRS, com o auxílio, se necessário, da GNR, nos termos do artigo 157º, nº 1, parte final da OTM.
[…]
Deve o progenitor marcar uma consulta de pedopsiquiatria para a filha B..., com urgência, a fim de lhe fazer compreender o alcance da decisão judicial de entrega ao pai e a estabilizar emocionalmente.
Suspendo provisoriamente o estipulado na sentença sobre visitas da menor aos avós maternos e sobre visitas destes à neta, para evitar repetição do sucedido, que desestabiliza gravemente a menor (artigo 157º, nº 2 da OTM).
[…]”
[transcrição de fls. 97/98]] , que culminou com a (nova) entrega documentada a fls. 112/113, sendo que, antecedendo a subida dos autos a este Tribunal, realizou-se a conferência consubstanciada na acta de fls. 233/234, na qual foi alcançado um acordo de restabelecimento das visitas da menor B... aos avós, ora Apelantes.
II – Fundamentação


2. Relatado o iter do processo que o conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos deste, tendo presente que as conclusões formuladas pelos Apelantes, a cuja transcrição se procedeu no item 1.3. deste Acórdão, operaram a delimitação temática da apelação, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aqui aplicáveis ex vi do disposto no artigo 161º da OTM. Trata-se, assim, basicamente, de sindicar a opção do Tribunal a quo, decorrente da decisão de fls. 76/80, de proceder à entrega da menor B... ao seu pai, em detrimento da pretensão dos avós maternos a essa custódia, sindicância esta que terá por referência o quadro argumentativo configurado pelos Apelantes, através das mencionadas conclusões, sendo que nestas avulta, enquanto argumento central, a asserção segundo a qual o interesse da menor exigiria a sua entrega aos avós maternos, em detrimento do pai.

2.1. Entretanto, importa ter presente que os factos fixados como relevantes pela primeira instância (fixação que os Apelantes não contestam e que, aliás, esta Relação aceita à luz dos elementos disponíveis no processo) são os seguintes:

“[…]
A menor B... nasceu em 6/6/1994 na freguesia e concelho da Lousã.
A regulação do poder paternal [desta] ocorreu no âmbito dos autos de divórcio dos seus progenitores, com o nº 4/97 deste 2º Juízo, a que este processo está apenso.
A progenitora, após a ruptura familiar, reorganizou-se em família monoparental.
A casa onde habitava com a filha fora-lhe cedida pelos seus pais e localiza-se perto da habitação destes familiares.
Os avós maternos apoiavam a progenitora nos cuidados a ter com a menor, designadamente nas refeições, porque a mãe da criança sofria de «anorexia».
A B... vivia com a mãe, convivia com o pai e manteve um relacionamento de proximidade com os avós maternos até 6 de Maio do 2006, data em que a progenitora faleceu.
O progenitor e os avós discutiram quem deveria assumir os cuidados com a menor, propondo-se aquele assumi-los, mas devido à fragilidade emocional que o falecimento da mãe tinha trazido à menor e seus avós, ficou combinado que estaria à guarda dos avós até chegarem as férias escolares, ocasião em que voltariam a falar do assunto.
Não chegaram depois a um entendimento, por os avós terem desqualificado o desempenho paterno, como meio de assumirem a gestão dos bens da neta, o que contou com a desaprovação do progenitor e, desde então, desencadeou-se o conflito entre pai e avós.
A B... também foi envolvida neste conflito e tem-no manifestado através de posturas ambivalentes ao nível do seu relacionamento com o pai, embora o pai lhe tivesse notado vontade de viver consigo, quando se reuniu com os avós, depois da morte da progenitora.
O agregado familiar dos avós é integrado pelo casal, por dois filhos e pela neta.
O avô C... tem 63 anos, a 4ª classe e é empresário de exploração florestal.
A avó D... tem 60 anos, a 3ª classe, está desempregada e ocupa-se das tarefas domésticas.
O filho Sérgio Ramos, de 28 anos, é um dos sócios da empresa do pai.
O filho Luís Miguel Ramos, tem 26 anos, é estudante e trabalha em part-time.
A neta B... é estudante.
A família habita em casa própria, com boas condições de habitabilidade.
A menor dispõe de um quarto só para si, com decoração personalizada.
Os rendimentos mensais de trabalho do avô e subsídio de desemprego da avó somam €1.495.
Têm outros rendimentos, de bens imóveis, no valor de €950 por mês.
Os avós estimam gastar com a menor, em média, €100 por mês, exceptuando as despesas relativas a alimentação.
O pai da menor não aceitou a gestão feita pelos avós dos recursos materiais da B....
O convívio pai/filha tornou-se cada vez mais difícil, tendo a B... passado a apresentar ao pai justificação para não passar fins-de-semana na sua casa, nomeadamente por ter outras actividades programadas, com os avós e/ou com terceiras pessoas.
O progenitor encara com alguma preocupação o modo, intenso, como a filha está a praticar a religião da avó, que é Testemunha de Jeová, embora o avô seja católico.
Os avós tencionam de facto continuar a assegurar os cuidados à neta, por a mesma nunca ter estado aos cuidados do pai e se sentirem com melhores condições pessoais, devido ao relacionamento de proximidade mantido com ela ao longo dos anos, por suspeitarem das intenções do pai, relativamente ao facto de agora querer assumir os cuidados à filha, por recearem que a neta não seja bem tratada na família do pai, por estarem a projectar na neta a imagem da filha que perderam e por quererem continuar a gerir os bens da neta.
Aceitam o convívio com o pai, sem grande flexibilidade.
Perspectivam a educação da menina num contexto de oferta, abundante, de bens, mas não demonstram preocupação pela transmissão de regras firmes, colocando na neta a responsabilidade de tomar decisões.
O pai também manteve a sua posição de querer a filha a viver consigo, de modo a orientá-la e acompanhá-la no dia-a-dia, sem prejuízo de a menor continuar a conviver com os avós.
A B..., perante a Técnica do I.R.S., considerou gratificante a vivência passada com o progenitor e gostava de estar na casa do pai, sendo boa a sua interacção com a actual família do pai, mas comentou com desaprovação o facto de o pai se mostrar, agora, mais preocupado com ela e estar a decorar um quarto para ela, na sua nova casa, atitude que reproduz o que lhe terão dito e é contraditória com os seus sentimentos.
Aquando da entrevista na Equipa do I.R.S. não pareceu espontânea e está claramente dividida, mas colada à postura dos avós, com quem vive.
O mesmo sucedeu quando foi ouvida em Tribunal aos 22/3/2007, apresentando um discurso coincidente no essencial com o da avó materna, apesar de declarar não ter sido pressionada pelos avós, dizendo que pretendia continuar a viver com estes, porque a criaram, tem as suas coisas em casa deles e espaço para brincar, não gostando do quarto que o pai reservou para ela, anexo à casa dele, virado para a rua, tendo medo de ali pernoitar, tendo por vezes medo durante a noite, indo dormir para a cama dos avós maternos, acrescentando estar a fazer os possíveis para transitar no presente ano lectivo e aceitar as visitas ao pai só uma vez por mês.
A B... tem 12 anos de idade e frequenta o 7º ano de escolaridade, na Escola da área de residência.
O seu aproveitamento escolar é tendencialmente baixo, o que é atribuído a falta de atenção nas aulas e dificuldade em manter um horário do estudo.
Teve quatro notas negativas e não soube dizer a que disciplinas.
Na entrevista com a Técnica do I.R.S. revelou-se uma menina com poucos interesses e com uma vivência social limitada.
Em casa já se mostrou mais espontânea e com alguns interesses próprios do seu grupo etário, mas pouco motivada pela vida escolar.
O seu âmbito familiar relacional decorre com os familiares com quem vive e com o pai e irmãos paternos.
O pai e os avós maternos são as figuras mais significativas da sua vida.
Aquando da morte da mãe, os avós levaram-na a consultas de psicologia, no sentido de ser apoiada no luto.
Não deram continuidade a este tipo de intervenção, por não a terem sentido importante.
A B... também foi conduzida a uma consulta de psiquiatria, mas apenas para ser submetida a uma avaliação relacionada com um problema de visão detectado no passado.
A situação sócio-familiar do pai tende para a estabilidade, tendo ainda vários projectos pessoais e familiares em curso.
A sua família é estruturada, sendo a interacção familiar forte e coesa.
O progenitor revela sensibilidade relativamente a toda a situação da filha.
Ao longo da vida da menor teve em conta o seu desempenho parental, sobretudo ao nível afectivo.
O acordo de regulação do exercício do poder paternal nem sempre foi cumprido por ambos os progenitores.
O progenitor, em alguns períodos, suspendeu o pagamento da pensão de alimentos, alegadamente, por dificuldades económicas e como meio de persuasão perante os obstáculos com que se deparava no convívio com a filha.
O agregado familiar do pai é integrado pelo casal e pelos dois filhos nascidos deste relacionamento.
A... tem 43 anos e é empresário.
Lurdes de Fátima Fernandes Pereira tem 33 anos e é empresária.
O filho Afonso Bastos tem 8 anos e frequenta o 3° ano de escolaridade;
A filha Inês Bastos, tem 5 meses de idade e encontra-se aos cuidados directos dos pais.
A família mudou-se para uma habitação arrendada no concelho da Lousã.
Trata-se de uma casa rústica, espaçosa, com condições de habitabilidade.
Nesta habitação a família está a decorar um quarto para a B....
A esposa do pai está de acordo em receber a menor e não se opõe às visitas aos avós maternos.
O casal tem uma empresa familiar, relacionada com a indústria de estofos, onde ambos trabalham diariamente, tendo como rendimentos de trabalho entre €1500 e €2.000 por mês.
Pagam de renda de casa, €250, de consumos domésticos €100 e de pensão de alimentos para a filha B... e para a Flávia €250.
É irregular o pagamento de prestação de alimentos relativa à B....
A Flávia é uma filha nascida do primeiro casamento do progenitor.
[…]”
[transcrição de fls. 76 vº/79]


2.2. Estrutura-se o percurso argumentativo da decisão – percurso que aqui nos propomos reconstruir – em torno do evento básico originador do pedido de entrega: a morte da mãe da menor B..., a quem esta se encontrava confiada – rectius, à qual o exercício do poder paternal fora atribuído –, na sequência do divórcio dos pais. Este evento é tomado na decisão recorrida enquanto elemento desencadeador da entrega da menor ao pai, como progenitor sobrevivo, por preenchimento da facti species complexa resultante da conjugação dos artigos 1903º, 1904º, 1908º e 1918º do Código Civil (CC), estes dois últimos interpretados a contrario sensu. Com efeito, destas disposições decorre, na leitura compaginada efectuada pela decisão recorrida, que na impossibilidade de um dos pais exercer o poder paternal, por ausência, incapacidade ou outro impedimento – e a morte é nesta situação o impedimento paradigmático, quiçá o único verdadeiramente definitivo –, tal exercício caberá unicamente ao outro progenitor (artigo 1903º), sendo que, morrendo um dos progenitores, fica o poder paternal a pertencer ao sobrevivo, mesmo quando o filho não lhe estivesse confiado até aí (artigos 1904º e 1908º a contrario). Só a existência de perigo para a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação da menor, situação que o Tribunal entendeu não verificada neste caso, teria aptidão de bloquear a confiança da mesma ao progenitor sobrevivo, podendo neste caso ser aquela confiada a uma terceira pessoa ou a uma instituição apropriada (artigos 1908º e 1918º).

2.2.1. Confluem neste quadro interpretativo, que é aquele que subjaz à decisão recorrida, a consideração da parentalidade enquanto direito-dever subjectivo dos seus titulares, sujeito à modulação das circunstâncias concretas em que o seu exercício se processa, e a procura do “superior interesse do menor”, enquanto modelo decisório geral sempre presente nestas situações, expressem elas ou não um conflito respeitante à entrega do menor. Historicamente [Seguimos aqui de perto, numa versão naturalmente simplificada, a caracterização histórica do princípio do “superior interesse do menor” feita no estudo de Jon Elster, “Solomonic Judgements: against the best interests of the child”, in Solomonic Judgements. Studies In The Limitations Of Rationality, Cambridge, 1992, pp. 130/134.] , corresponde este modelo decisório – o do “superior interesse do menor” (do inglês, que cunhou a expressão, the best interest of the child) – à ultrapassagem do carácter absoluto da chamada “regra da preferência paterna” (paternal preference rule), tributária do carácter dominante do pai – rectius do marido, enfim, do homem – nos assuntos familiares. No início do século vinte assistiu-se a um emergir gradual de uma presunção – mais que de uma regra – de preferência materna. Esta, por sua vez, dada a sua instrumentalidade relativamente aos interesses da criança (a criança estaria melhor com a mãe porque a mãe cuidaria melhor dela), continha em si, na sugestiva formulação de Jon Elster, “as sementes da sua própria destruição”: “[a]o assentar exclusivamente em considerações relativas ao interesse da criança, convidava os legisladores a transformarem esses interesses no critério explícito de atribuição da custódia da criança em todos os casos”. Isto, para mais, quando a regra – a estruturação da regra em torno dos interesses da criança – apresentava (e apresenta), numa perspectiva utilitarista, a externalidade virtuosa de constituir um incentivo para cada um dos pais cuidar efectivamente dos seus filhos, no sentido – e citamos de novo Jon Elster – de “[…] com a regra da preferência materna, o espectro do divórcio não conferir a cada um dos pais um incentivo para cuidar do filho durante o casamento. Habitualmente a mãe podia contar com a obtenção da custódia, a não ser que “se portasse muito mal” [unless she behaved very badly], e o pai sabia que nenhum esforço lhe conferiria essa oportunidade. Com a adopção da regra do interesse da criança, já não seria supérfluo para a mãe nem inútil para o pai cuidar da criança” [“Solomonic Judgements…”, cit., pp. 131/132.].

Enquanto elemento juridicamente actuante, ou seja, dotado de conteúdo normativo, o modelo ou critério de decisão que a formulação o “superior interesse do menor” expressa, suscita problemas com algum paralelismo àqueles que envolve, na sua significação normativa, a articulação entre “regras” e “princípios”. Ao passo que as regras encerram um conteúdo (normativo) que se realiza num domínio do “tudo ou nada”, sendo pura e simplesmente cumpridas ou não cumpridas (por exemplo: face a um semáforo vermelho, ou paro, cumprindo a regra, ou avanço, incumprindo-a)
[Caracterizando a ideia de “regra” (distinguindo-a de um “princípio”), Robert Alexy refere conterem estas “[…] determinações no domínio daquilo que é fáctica e juridicamente possível” (Theorie der Grundrechte, Frankfurt, 1986, p. 76).], diversamente, os princípios constituem nesta caracterização “mandatos de optimização” (Optimierungsgebote), cujo cumprimento ocorre num domínio difuso, no qual avulta a existência de elementos concorrenciais expressando diversas possibilidades fácticas e jurídicas de consecução do objectivo teleologicamente coberto pelo princípio
[Ibidem.].

Não significando isto que a regra – o princípio – do “superior interesse do menor”, enquanto critério de decisão, actue sob reserva do possível, como se de uma espécie de princípio constitucional programático se tratasse, significa antes que a sua aplicação ocorre num ambiente no qual se projectam diversas regras e princípios, estes, por vezes, concorrentes, relativamente aos quais o “superior interesse do menor” funcionará – aí sim, num determinado sentido, “no domínio do possível” – como critério aferidor final da solução alcançada. Explicitando esta ideia, dir-se-á que a dimensão normativa conjugada dos artigos 1904º e 1908º do CC, da qual resulta pertencer o exercício do poder paternal, nos casos de viuvez, ao progenitor sobrevivo, mesmo que o filho não lhe tenha estado até aí confiado, passa pelo crivo do “superior interesse do menor”, na consideração dos elementos indicados no artigo 1918º do CC [Este é, igualmente, o sentido interpretativo congruente com a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei nº 147/99, de 1 de Setembro) a qual, obviamente com uma vocação de aplicação a situações diversas da que aqui se configura, fixa como pressuposto da legitimidade da “[…] intervenção para promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo […]” a circunstância de os “[…] pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto [colocarem] em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo” (artigo 3º, nº 1)].

De qualquer forma – e importa enfatizar este elemento, por ser fulcral na presente situação –, esta articulação entre o comando extraído dos artigos 1904º e 1908º do CC (que é, repete-se: na viuvez o poder paternal passa para o cônjuge sobrevivo, mesmo que este não tenha tido até aí a confiança do filho) e o que decorre conjugadamente dos artigos 1908º e 1918º do mesmo diploma (pode, nestes casos de viuvez, o menor ser confiado a um terceiro ocorrendo um dos pressupostos elencados no artigo 1918º), tal articulação, dizíamos, configura-se enquanto regra (artigos 1904º e 1908º, este último a contrario) e excepção (artigos 1908º e 1918º). Assim, a regra é, face à ocorrência do evento morte do progenitor a quem o filho estava confiado, que o outro progenitor (re)assuma a plenitude do exercício do poder paternal; a excepção será não a (re)assumir.

Fora deste quadro interpretativo, o princípio da procura do “superior interesse do menor” perde qualquer sentido prático, deixa de ser um elemento operante de uma decisão judicial, transformando-se numa espécie de “fórmula mágica”, despida de um significado real, apta à convocação da mais completa arbitrariedade, com a qual cada um dos interessados na custódia de um menor “mascara”, recitando-a à exaustão, não os interesses do menor, mas sim, os seus próprios interesses distintos dos do menor [Ocorre aqui remeter para as considerações tecidas pelos ora Apelantes nas alegações em torno do “interesse da menor” sua neta (fls. 139/144). Aí, na falta de qualquer elemento racional de caracterização desse interesse, tudo acaba por se reconduzir ao (compreensível) desejo deles, enquanto avós, de terem consigo a filha da sua filha desaparecida, associando, num processo de transferência, este “seu” interesse ao interesse da menor.]. É neste último sentido, ou seja, fora do quadro interpretativo que expusemos, que o princípio da procura do “superior interesse do menor” é indeterminado e, como o caracteriza Jon Elster, acaba por ser pouco útil a um processo de decisão racional com as características de uma decisão judicial adjudicativa de um menor [Diz Elster que “[a] questão é a de saber se um tribunal pode decidir qual das duas opções adjudicativas [num conflito respeitante à entrega do menor] corresponde efectivamente aos interesses da criança. Como em todos os problemas colocados por uma decisão, determinada resposta requer, em termos gerais, a satisfação das seguintes condições: devem ser conhecidas todas as opções; devem conhecer-se todos os resultados possíveis de cada opção; devem conhecer-se as probabilidades de cada resultado; deve conhecer-se o valor atribuído a cada resultado […]” (“Solomonic Judgements…”, cit., p. 134).
É intuitivo que um tribunal não pode, no quadro de um processo deste tipo, obter uma decisão racionalmente justificável nestes termos, à luz de algo que, por estar tão dependente de uma infinidade de circunstâncias desconhecidas, se prefigura como paradigmaticamente incerto.]. Só aproximativamente, projectando probabilisticamente alguns indícios, é possível atenuar as margens de incerteza e ultrapassar uma aplicação do princípio do “superior interesse do menor”, que assente numa espécie de crença metafísica em algo impossível de demonstrar – maxime de reconstruir – racionalmente. É neste sentido que uma prévia articulação jurídica dos interesses conflituantes permite, designadamente, como aqui sucede, por referência a padrões decisórios assentes no domínio actuante de regras e de excepções a estas, permite, dizíamos, que nos situemos no plano da argumentação jurídica e, em função disso, que o processo decisório expresse um discurso que seja (que ainda seja), não obstante as significativas margens de incerteza que sempre implicará, um discurso jurídico racional. Fora disto, fora de uma abordagem assente nestes pressupostos, a invocação do “superior interesse do menor” mais não expressa que um expediente argumentativo destinado a convencer através da produção ou reforço de atitudes emocionais, actuando, no sentido em que Robert Alexy caracteriza o “emotivismo” argumentativo, num quadro em que “[o]s argumentos mais não são do que instrumentos de influência psíquica” [Theorie der juristischen Argumentation. Die Theorie des rationalen diskurses als Theorie der juristischen Begründung, 2ª ed., Frankfurt, 1991 (1978), p. 68.]. Não cremos que em semelhante quadro exista espaço para confrontar argumentos jurídicos e, por isso mesmo, que exista – na base desse entendimento “emocional” do “superior interesse do menor” – um espaço apto à intervenção dos tribunais.

É, pois, com base num discurso jurídico racional – fazendo actuar os elementos que o caracterizam – que se desenvolverá o subsequente processo argumentativo deste Acórdão e é nessa base que este Tribunal, tal como já sucedeu com o Tribunal de primeira instância, proferirá uma decisão.

2.2.2. Referimo-nos anteriormente à consideração da parentalidade enquanto direito-dever subjectivo dos seus titulares. É esta, com efeito, a perspectiva do texto constitucional [artigo 36º, nºs 5 e 6 da Constituição da República Portuguesa (CRP)] [“O direito e o dever dos pais de educação e manutenção dos filhos (nº 5) são um verdadeiro direito-dever subjectivo e não uma simples garantia institucional ou uma simples norma programática, integrando o chamado poder paternal (que é uma constelação de direitos e deveres, dos pais e dos filhos, e não um simples direito subjectivo dos pais perante o Estado e os filhos) […].” (J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, CRP Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 2007, p. 565).], e é em função dela que ocorre sublinhar, e seguimos aqui a exposição de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, anotando esse artigo 36º:

“[…]
[Que a] garantia de não privação dos filhos (nº 6) é também um direito subjectivo a favor dos pais. As restrições a esse direito estão sob reserva da lei (pois compete a esta estabelecer os casos em que os filhos poderão ser separados dos pais, quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais) e sob reserva de decisão judicial, quando se trate de separação forçada, contra a vontade dos pais. É o Código Civil – artigo 1915º (inibição do poder paternal) e artigo 1918º (perigo para a segurança, saúde, formação moral e educação dos filhos) – que determina os casos em que o tribunal pode confiar os filhos a terceira pessoa ou a estabelecimentos de educação ou assistência.
[…]” [J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, CRP…, cit., p. 566.]


E é, enfim, neste mesmo sentido que a nossa jurisprudência constitucional vem afirmando que esta garantia (a que emerge do artigo 36º, nº 6 da CRP) “[…] consiste em os filhos não poderem, em princípio, ser separados dos pais, não constitui[ndo] apenas um direito subjectivo dos próprios pais a não serem separados dos seus filhos, mas também um direito subjectivo dos filhos a não serem separados dos respectivos pais. Eventuais restrições ao mesmo direito apenas serão possíveis mediante decisão judicial, nos casos especialmente previstos por lei e verificados os pressupostos expressamente previstos na Constituição: quando se torne necessário salvaguardar os direitos dos menores, por os pais não cumprirem os seus deveres para com eles […]”
[Acórdão nº 181/97 (Luís Nunes de Almeida), disponível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos. Neste se decidiu julgar inconstitucional a norma constante do artigo 34º, nº 1 do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro (expulsão de estrangeiros condenados por crime de tráfico de estupefacientes), “[…] enquanto aplicável a cidadãos estrangeiros que tenham filhos menores de nacionalidade portuguesa com eles residentes em território nacional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 33º, nº 1 e 36º, nº 6 da [CRP]” [em idêntico sentido cfr. Acórdão nº 232/2004 (Benjamim Rodrigues), disponível no mesmo sítio].
Na sua última obra escrita, o Professor João de Castro Mendes, caracterizando o Direito dos Menores como um domínio em constante evolução no Direito Comparado, fixa a prevalência do “direito de custódia” dos pais como elemento comum à generalidade dos sistemas e, em certo sentido, como expressão de uma essência imutável do que qualificamos como poder paternal. Este “direito de custódia” é definido, nessa sua essência, “[…] como direito de os pais terem os filhos (menores) consigo, ou em local que mereça o seu acordo”, sendo reconduzido por Castro Mendes ao artigo 36º, nº 6 da CRP, norma que vem do texto constitucional original de 1976 (Direito Comparado, ed. policopiada, Lisboa, 1982/1983, pp. 411/412; corresponde às Lições da cadeira de Direito Comparado, a última leccionada pelo Professor Castro Mendes, que faleceu em 1983, na Faculdade de Direito de Lisboa, no ano lectivo de 82/83).].

2.2.2.1. Outro traço fundamental desta configuração da parentalidade como direito-dever prende-se com a aproximação à tensão existencial conatural à ideia algo paradoxal de um direito-dever. Vale aqui o princípio da proporcionalidade, particularizado neste domínio por Jorge Miranda e Rui Medeiros, anotando também o artigo 36º da CRP, nos seguintes termos:

“[…]
[A]s intervenções dos poderes públicos, não só estão estritamente vinculadas à prossecução dos interesses dos filhos, como também devem ser submetidas a um rigoroso crivo de proporcionalidade.
[…]
Não basta […] que os pais não cumpram os seus deveres para com os filhos, sendo necessário que esteja em causa o incumprimento de «deveres fundamentais». Incumbindo aos pais um «primordial e insubstituível papel na tarefa de educação e acompanhamento dos filhos, apenas em casos extremos, de irresponsabilidade ou negligência, se justificará, assim, a respectiva separação ou afastamento» (Acórdão nº 181/97 [Trata-se do Acórdão do Tribunal Constitucional referido na nota 15.]).
Por outro lado, estando em causa uma medida gravemente restritiva de direitos, liberdades e garantias, não pode o legislador deixar de densificar os deveres fundamentais cuja violação, ainda que objectiva, legitima a imposição de que os filhos sejam separados dos pais. As intervenções dos poderes públicos estão, pois, neste domínio, sujeitas a reserva de lei […].
O princípio da proporcionalidade exige, por último, que a separação, sendo a medida mais gravosa, constitua a ultima ratio […]” [Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, pp. 416/417. É um pouco neste sentido que António Menezes Cordeiro, sistematizando o conteúdo do “Direito dos menores”, refere a existência de um acervo de regras “[…] de protecção, para a hipótese de não operarem os esquemas do Direito da família” (Tratado de Direito Civil Português, I Parte geral, tomo III, Coimbra, 2004, p. 390).]



2.2.2.2. Julga-se útil referir aqui, numa limitada incursão de direito judiciário comparado, alguns elementos, que reputamos de particularmente ilustrativos, colhidos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal norte-americano, versando sobre conflitos com algum paralelismo com o aqui em causa.

Em Junho de 2000, na decisão Troxel v. Grainville [Jenifer Troxel, et vir, Petitioners v. Tommie Granville (esta, bem como qualquer outra decisão do Supremo Tribunal norte-americano, disponível em www.law.cornell.edu/supct/html).], relatada pela Juíza Sandra Day O’Connor, num conflito opondo uns avós maternos de duas menores confiadas ao pai, na sequência da morte da mãe, conflito assente na invocação, pelos avós, do direito de visita aos netos [direito assente numa Lei do Estado de Washington, conferindo a “qualquer pessoa o direito de solicitar a um tribunal direitos de visita a qualquer tempo” (“any person may petition the court for visitation rights at any time”), relativamente a um menor, na base de um interesse atendível], nesta decisão, dizíamos, confrontado com a objecção do pai às circunstâncias nas quais eram pretendidas essas visitas, o Tribunal considerou assistir aos pais, e só a eles, um direito constitucional fundamental de limitar visitas aos seus filhos menores, com terceiras pessoas, incluindo os avós destes. Citando um anterior precedente (a decisão Parham v. J. R., de 1979), considerou o Supremo Tribunal ser de presumir que os pais “[…] possuem o que falta aos seus filhos menores em maturidade, experiência e capacidade de julgamento para adoptar as decisões difíceis da vida […], sendo de presumir, até prova em contrário, que os laços naturais de afecto conduzem os pais a actuar de acordo com o superior interesse da criança (natural bonds of affection lead parents to act in the best interest of their children)”. Daí, que o Tribunal tenha sublinhado, à laia de conclusão, que:

“[…]
Num mundo ideal, os pais deveriam porventura cultivar os laços entre os seus filhos e os avós destes. Todavia, sendo escusado sublinhar que o nosso mundo está longe de ser perfeito, há que aceitar que a decisão sobre se essa relação intergeracional é benéfica, em todas e quaisquer circunstâncias, compete desde logo aos pais. E se essa decisão, tomada por um pai capaz [fit parent] é sujeita à apreciação de um tribunal, este deve, no mínimo, conferir-lhe um peso muito significativo […].”


Mais do que extrair argumentos dos óbvios elementos circunstanciais comuns a esta e à situação dos autos, entende-se útil sublinhar a consideração, que reputamos nuclear à resolução de conflitos deste tipo, da prevalência prima facie do estatuto do progenitor, expressando-se esta, enquanto uma espécie de “ordem natural das coisas”, como elemento de partida na solução dos conflitos envolvendo o menor, e isto muito especialmente – acrescentamos nós, pensando directamente nesta situação – nos conflitos envolvendo a custódia do menor: nestes, a solução de partida passará sempre pela entrega aos pais – a um “pai capaz” – e só circunstâncias excepcionais, como o são as elencadas no artigo 1918º do CC, podem conduzir à adopção de uma solução que não passe por essa entrega.

Aprofundando um pouco mais esta indagação de direito judiciário comparado, sublinharemos que a caracterização, pela negativa, do elemento expresso na ideia de um “pai capaz” – ou seja, de um “pai incapaz” – passa, nas palavras do Supremo Tribunal Federal norte-americano, desta feita na decisão de 1982, Santosky v. Kramer, ao considerar que o direito fundamental dos pais a criarem os seus filhos, “[…] não se «evapora» simplesmente pela circunstância de não terem sido pais modelares […]”, sendo que qualquer procedimento que possa implicar para estes a perda da custódia dos filhos, terá de assentar na produção “[…] de uma prova clara e convincente” (clear and convincing evidence) dessa incapacidade.

É por este elemento, também, que passa a consideração do princípio da proporcionalidade, na configuração que lhe dá o nosso Tribunal Constitucional, em sede de separação de um filho do pai, reconduzindo essa eventualidade a “casos extremos de irresponsabilidade ou negligência” (Acórdão nº 181/97).

2.3. Ora, revertendo estas considerações à concreta situação que se configura neste recurso, constatamos, e o elenco fáctico transcrito no item 2.1. é a tal respeito esclarecedor, a inexistência de qualquer elemento objectivo que sugira não ser o Apelado, pai da menor B..., um “pai capaz” de cuidar desta, e, menos ainda, que a entrega desta a ele – enfim, a entrega ao seu pai – coloque em perigo a sua segurança, saúde, formação moral ou educação. Ocorre recordar que a morte da mãe da menor, não abriu, por muito que isso custe aos Apelantes, um processo de procura do “pai ideal” ou da “família ideal” para a colocar. A B... tem o seu pai e é em função dele que a sua vida se estruturará de futuro e só circunstâncias excepcionais, aqui ausentes, e não o simples desejo dos avós – que, sendo compreensível, não passa disso mesmo: o desejo dos avós – podem alterar essa situação.

Não colhe a este respeito falar da vontade da menor, porque a vontade da menor, nos termos em que foi manifestada neste processo e face ao circunstancialismo em que ocorreu (e remete-se aqui para a transcrição constante da nota 3.), não ultrapassa as razões que conduzem a considerar um menor de doze anos como naturalmente incapaz, sendo de sublinhar, aliás, sem que isto envolva qualquer crítica à opção aqui seguida de ouvir a menor, que é o maior, e não o menor, de 14 anos, que a lei manda ouvir, em princípio [Em princípio, porque podem existir “circunstâncias ponderosas” que desaconselhem essa audição.], nas questões de poder paternal (artigo 1901º, nº 2 do CC). Com efeito, todos os elementos contextualizadores dessa suposta manifestação de vontade da menor (relatórios de fls. 28/32 e 108/109 e declarações da técnica do IRS a fls. 72/73) apontam no sentido de uma muito limitada relevância da mesma.

E não colhe, enfim, a invocação do critério de julgamento próprio dos processos de jurisdição voluntária, como não sujeito a critérios de legalidade estrita (artigo 1410º do CPC), já que isto não significa, como sublinha Carlos Lopes do Rego, que à luz dessa não sujeição estrita, deva prevalecer a “[…] subjectividade e discricionariedade do julgador” [Comentários ao Código de Processo Civil, vol II, 2ª ed., Coimbra, 2004, p. 299.].

Emergindo do que se expôs a correcção da decisão apelada, e a improcedência das críticas que a ela dirigiram os Apelantes, restará confirmar a entrega da menor ao pai.

2.3.1. No mais objecto dessa decisão (regime de visitas aos avós [Estas actualizadas em função do acordo de fls. 233/234.] e injunções comportamentais a estes dirigidas), entende-se que a mesma realizou uma correcta interpretação do disposto no artigo 1887º-A do CC, cumprindo apenas sublinhar que a existência desse convívio, formalizado nos termos em que o foi, está sob reserva de não perturbar a integração da menor B... no agregado familiar do pai, sendo que cessará – deverá cessar – se, contrariamente ao desejado, constituir um elemento perturbador dessa integração.

No mesmo sentido, este Tribunal sublinha que qualquer decisão respeitante a uma possível educação religiosa da menor compete ao pai [Tal como compete a este, como se indicou na decisão, administrar os bens da menor.], nos termos dos artigos 1886º do CC e 11º, nº 1 da Lei da Liberdade Religiosa (Lei nº 16/2001, de 22 de Junho), devendo os Apelantes, como, aliás, nunca poderia deixar de ser, conformar-se com essa consequência do exercício do poder paternal relativamente à menor B....

2.4. Aqui chegados, resta-nos confirmar a decisão, com a consequente improcedência do recurso, formulando-se previamente a seguinte síntese conclusiva das razões dessa improcedência:

I – A morte da progenitora a quem a menor sua filha se encontrava confiada na sequência de divórcio do pai desta, implica, por aplicação do disposto nos artigos 1903º, 1904º e 1908º, este a contrario, todos do CC, que o poder paternal passe a competir ao progenitor sobrevivo, com a consequente entrega da menor a este;
II – Sendo esta a regra, a entrega da menor a terceiros, designadamente aos avós maternos, configurar-se-á como excepção a esta regra, dependendo (e é este o pressuposto desencadeador da excepção) da verificação de perigo, em função da entrega ao pai, para a segurança, saúde, formação moral e educação da menor, nos termos do artigo 1918º do CC.
III – A vigência da regra e o não preenchimento da excepção, significam que a morte do progenitor a quem a menor estava confiada desencadeia a entrega ao outro progenitor e não a abertura de um processo de determinação, entre todas as alternativas pensáveis de entrega, de qual a mais adequada;
IV – O “superior interesse do menor”, enquanto critério de decisão num conflito respeitante à custódia deste entre o pai (progenitor sobrevivo) e os avós, actua no quadro do preenchimento da facti species das apontadas regra e excepção.

III – Decisão

3. Assim, na improcedência da apelação, confirma-se integralmente a decisão impugnada [Actualizada, porém, sem prejuízo da ulterior evolução dos acontecimentos, no que toca ao regime de visitas dos avós, para o acordo homologado a fls. 234.].

Custas pelos Apelantes.

Coimbra,
(J. A. Teles Pereira)
(Jacinto Meca)
(Falcão de Magalhães)