Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
615/22.6T8SCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR COMUM
REQUISITOS
FUNDADO RECEIO DE LESÃO GRAVE DO DIREITO INVOCADO
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 04/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SANTA COMBA DÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 226.º, 4, B); 362.º, 1 E 2; 365.º, 1; 368.º, 1 E 2; 374.º, 1; 560.º E 590.º, 1, DO CPC
Sumário:                1. O decretamento de uma providência cautelar comum depende da concorrência dos seguintes requisitos: a) probabilidade séria da existência do direito invocado (fumus boni júris); b) fundado receio de que outrem, antes de a ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum ín mora); c) adequação da providência à situação de lesão iminente; d) não existência de providência específica que acautele aquele direito; e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.

2. Relativamente ao perigo de insatisfação desse direito aparente deverá recair um juízo, senão de certeza e segurança absoluta, ao menos de uma forte e convincente probabilidade.         

3. Deverá ser indeferindo liminarmente o procedimento cautelar comum cuja alegação inicial contem factos insuficientes e de sentido contrário ao preenchimento do mencionado segundo requisito.

Decisão Texto Integral:
Relator: Fonte Ramos
1.º Adjunto: Alberto Ruço
2.º Adjunto: Vítor Amaral

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

            I. AA e marido BB, instauraram o presente procedimento cautelar comum contra CC e DD, pedindo que seja decretada providência cautelar inominada e, em consequência, que lhe seja autorizado, “na qualidade de proprietária”, “concluir a obra iniciada, com a colocação da rede de arame entre as estacas colocadas na divisória/extrema entre o prédio da requerente e dos requeridos e ao longo da sua extensão, divisória/extrema essa identificada no documento n.º 3 e seus anexos e na planta mandada elaborar pelo requerido ora junta como documento n.º11 e 12” [a)], e bem assim, “concluir a obra de colocação de um portão no local de entrada do prédio de que é proprietária, identificado no artigo 1º e seguintes desta peça, entrada essa identificada também no documento n.º 10 e na planta que se encontra junta aos autos como documento n.º 11 e 12” [b)] e “desobstruir a entrada do seu prédio rústico, identificado nos presentes autos, removendo qualquer objeto que se encontre a perturbar, no todo ou em parte, ou que impeça a entrada no mesmo pela via pública, conforme alegado nos autos.” [c)].

            Alegaram, nomeadamente:

            a) A requerente é proprietária e possuidora do prédio rústico inscrito na matriz predial rústica n.º ...32 da freguesia e concelho ... (anteriormente sob o n.º ...1 da freguesia ...), descrito e inscrito em seu nome.

            b) Este prédio confina de nascente e sul com os dois prédios dos requeridos (inscritos na matriz predial sob os antigos n.ºs 9 e 10 da freguesia ...), também de sul com a estrada camarária e de poente com EE, tendo aqueles dois prédios sido vendidos em 20.10.2008[1] pela requerente aos requeridos.

            c) No prédio inscrito na matriz com o n.º 10 os requeridos construíram uma casa, tendo o outro prédio continuado rústico.

            d) A descrição geográfica dos aludidos prédios está cabalmente identificada no levantamento topográfico junto aos autos, mandado elaborar pelos requeridos - com as indicações geográficas, confrontações, áreas e demais elementos por estes fornecidos - e que instruiu o processo de licenciamento de construção da sua casa; a referida planta revela a linha divisória de demarcação a nascente do prédio dos requerentes com o prédio dos requeridos do lado poente (ao longo da qual estão colocadas as estacas-marcos de vedação e demarcação), mas também a parte da entrada do prédio dos requerentes onde se inclui a entrada e o acesso à restante parte do imóvel, local onde pretendem colocar o portão e que os requeridos agora - e só agora - estão a obstruir.

            e) Pela parte do prédio da requerente que constitui a entrada do seu prédio, visível na planta anexa, sempre passaram trabalhadores contratados pela requerente e seus antepassados, carros de bois, rebanhos de ovelhas para pastar, tratores e alfaias agrícolas.

            f) Nunca os requeridos, até ao dia 27.7.2022, perturbaram ou colocaram em causa a posse exclusiva do prédio da requerente (nunca se arrogaram qualquer direito ou pretensão sobre a parte do prédio que agora ocuparam e obstruíram) ou a demarcação existente e assinalada na linha de demarcação identificada na planta por eles mandada elaborar (marcos-estacas das extremas colocados pelo requerente e requerido, de comum acordo).

            g) Aquando dos preparativos para colocação de um portão na entrada do prédio da requerente bem como de novas estacas na linha de demarcação existente foram a requerente e sua filha surpreendidas com a aparição no local do requerido, acompanhado de advogado, que disseram aos trabalhadores, que estavam a realizar os trabalhos de colocação das novas estacas e de uma rede de proteção, que a obra estava embargada, e que aquela porção de terreno lhe pertencia, assim como a entrada, exigindo que fosse parada a obra.

            h) Os trabalhos foram suspensos de imediato e a requerente aguardou (continua a aguardar) pela comunicação judicial de ratificação do embargo.

            i) No dia 02.11.2022 a requerente reiniciou os trabalhos para acabar de colocar a rede e colocar o portão.

            j) Nessa data, apareceu no local o requerido conduzindo um trator, estacionando-o na entrada do prédio dos requerentes, obstruindo a passagem, tendo depois, munido de uma enxada[2], numa atitude ameaçadora e desafiante, dito em alta e viva voz e num tom agressivo: “Isto é meu e a entrada também”.

            k) O presente procedimento justifica-se considerados os incidentes descritos nos art.ºs 23º e seguintes da petição inicial (p. i.), alguns dos quais presenciados por elementos da GNR, «uma vez que a ser dada na altura da ocorrência dos factos, resposta ao esbulho, ameaçador de violência, praticado pelo requerido, e vontade não faltou, alguém estaria possivelmente morto e alguém estaria na prisão. / Por esta gama de razões, têm os requerentes justo receio de com nova tentativa de acabamento da obra serem confrontados possivelmente com uma repetição do sucedido, até com contornos mais graves, caso o Tribunal não decrete as medidas adequadas à proteção dos presentes no local aquando dos trabalhos de acabamento da obra. / De resto, não satisfeito com o seu procedimento, dois dias depois, 6ª feira dia 04 de Novembro o requerido colocou duas pedras de grande porte na entrada do prédio dos requerentes, como atesta o documentos n.º 6 facto que impede a entrada de máquinas para os serviços agrícolas a executar no prédio dos requerentes, tendo também justo receio de verem os prejuízos avolumarem-se pela impossibilidade de agriculturação do prédio pois as máquinas não passam com a entrada obstruída pelos requeridos

            l) Até que os requeridos demonstrem e comprovem cabalmente os direitos a que se arrogam não têm de ser os requerentes a suportar as ações daqueles, não sendo legítimo nem exigível que os requerentes continuem esbulhados e privados dos seus direitos até que a ação principal transite em julgado.

            m) Os requerentes estão, pois, impedidos de entrar no seu prédio através do local por onde sempre entraram, tal como sempre entraram os seus antepassados, pois os requeridos obstruíram a passagem sem ter qualquer título, ou ordem judicial que lho facultasse, impedindo assim a passagem de máquinas para o interior do prédio dos requerentes para o agricultar e explorar, com o inevitável avolumar de prejuízos.

            n) Os requeridos continuam a impedir a conclusão da obra já iniciada, circunstância que está a provocar prejuízos aos requerentes pois já despenderam quantias avultadas sem poderem ver a obra concluída e com a agravante de a mesma ter sido embargada.

            o) Receiam que os requeridos venham a causar-lhes lesões ainda mais graves do que as que já causaram e que com toda a certeza serão de difícil reparação.

            O Tribunal a quo, por decisão de 25.11.2022, “rejeitou liminarmente a presente providência cautelar”.

            Inconformados, os requerentes apelaram formulando as seguintes conclusões:

            1ª - Constam dos artigos 11, 33º, 34º, 35º e conclusões a estes artigos, as necessárias e justificativas alegações de que o procedimento dos requeridos não só ofende o direito de propriedade dos requerentes, mas também lhes causa fundado receio de que antes da ação principal ser proposta ou na pendência dela lhes cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito, estando cumprido o requisito do artigo 362º do Código de Processo Civil (CPC).

            2ª - Do despacho recorrido fez a Sr.ª juíza estagiária constar factos que são apenas do seu conhecimento e que não lhe foram trazidos pelas partes, tais como a existência, como refere, de outras vias de entrada no prédio dos requerentes, apesar destes demonstrarem o contrário no artigo 5º da petitório e demais documentos juntos a este.

            3ª - Pretendem os requerentes saber quais são essas entradas e quem a informou acerca das mesmas, tal como pretendem saber onde se baseia a Sr.ª juiz estagiária para dizer que os requerentes pretendem vedar o terreno todo quando apenas o pretenderam fazer no local assinalado no petitório e no pedido neste formulado.

            4ª - Estão reunidos e plasmados no petitório da providência requerida todos os requisitos que o artigo 362º do CPC exige e ainda todos os outros que a Sr.ª Juíza estagiária faz constar no despacho recorrido, violando o despacho recorrido este normativo legal pois o mesmo foi respeitado pelos requerentes.

            5ª - A presente providência é adequada à situação de lesão eminente que os requerentes pretendem acautelar.

            6ª - Nenhum direito dos requerentes é lesado pelo decretamento da providência uma vez que o direito de propriedade dos requerentes já foi reconhecido pelos requeridos antes da ação que levaram a cabo, estando provada por confissão a demarcação assinalada pelas estacas cuja colocação está relatada no petitório.

            7ª - Por isso não há que falar em proporcionalidade da providência porquanto em nada esta prejudica os requeridos pois não lhes causará qualquer dano. Não lhes causando prejuízo não faz sentido falar-se no dano aos requeridos, que com a mesma se pretende evitar, pois é apenas o dano causado e a causar aos requerentes que tem de ser salvaguardado.

            8ª - De momento os requerentes não podem quantificar nem determinar os danos em toda a sua extensão que a ação dos requeridos lhes causou e vai causar se esta providência não for decretada, pois só com a colheita se saberá o seu valor, e para isso têm de entrar as máquinas, certo é que tal indeterminação é causada pelos requeridos que com a sua atitude impedem a entrada das máquinas indispensáveis ao granjeio e colheita da azeitona.

            9ª - Em consequência, só em liquidação de sentença se poderão liquidar a extensão dos prejuízos que ocorrerão com o não decretamento da providência.

            10ª - O despacho recorrido viola de forma extensiva o direito de propriedade dos requerentes, violando os artigos 1311º do CC e 62º da Constituição da República Portuguesa que tutelam a defesa do direito de propriedade.

            11ª - Direito este que está também provado por confissão dos requeridos patente nos documentos juntos mais concretamente pelas plantas constantes da certidão junta como doc. n.º 14, mandadas elaborar pelos requeridos.

            12ª - Os documentos juntos comprovam a ofensa desse direito pelos requeridos e as consequências danosas da lesão consubstanciada na impossibilidade de colheita e granjeio do prédio, consequências danosas essas que são de muito difícil reparação devido à demora da ação principal que certamente estará pendente vários anos.

            13ª - A manter-se o despacho recorrido agrava a situação de litígio entre requerentes e requeridos, sendo claro que estes se sentirão incentivados na atitude e no seu procedimento. Não sendo os requeridos possuidores, mas sim intrusos, ocupantes, irão motivar reações que de certeza lhes serão adversas.

            14ª - Considerarão os requeridos a sua ação premiada pela Sr.ª juiz estagiária! E acharão com toda a certeza meritória a sua ação obstrutiva, que colheu a “bênção” da Sr.ª juíza estagiária.

            15ª - E por isso consideramos que a função reguladora e disciplinadora dos tribunais nas relações sociais está comprometida com a decisão recorrida que, a manter-se, constituirá mais um notório descrédito para o sistema judicial, além de lesiva dos direitos dos requerentes.

            16ª - O despacho recorrido enferma de uma grosseira nulidade, subsumível e sancionada pelo disposto no artigo 615º n.º 1 al. d) do CPC, porquanto a Sr.ª Juiz estagiária invoca factos inexistentes para fundamentar a sua decisão os quais o processo não lhos revela, conhecendo questões de facto que os autos neste momento não lhe permitem conhecer.

            17ª - Decisão recorrida não enumera os factos que especifica, não referindo os pontos a que sobre os factos se pronuncia, o que nos termos do artigo 615º n.º 1 al. b constitui nulidade insanável do despacho recorrido, violador da lei.

            18ª - A recorrente considera incorretamente julgada toda a matéria de facto contida na decisão recorrida, que enumeramos nos pontos 1-A, B, C, D, E destas alegações, conforme exige o artigo 640º do CPC.

            19ª - Constando do processo meios de prova que impõem necessariamente uma decisão diversa da que foi proferida, tais como fotografias, plantas topográficas e certidão de registo predial e da Câmara Municipal ..., que não foram consideradas no despacho recorrido e que impõem decisão diversa da que foi proferida, cf. estatui o art.º 640º n.º 1 al. b) do CPC.

            20ª - Nos termos do art.º 640º n.º 1 al. c) deve ser proferida decisão que ordene produção de prova uma vez que desconhecemos como se fizeram constar do despacho recorrido factos inexistentes relativos a vias de entrada no prédio e vedações do mesmo naquele despacho contidos sem se justificar como e quais, em violação do art.º 615º, n.º 1 al. b) e c) do CPC.

            21ª - Pode este Tribunal da Relação nos termos e com os poderes que lhe são conferidos pelo disposto no artigo 662º al. b) e c) do CPC ordenar a produção de novos meios de prova, nomeadamente os que constam e são requeridos no petitório da providência, requerendo-se assim a anulação da decisão recorrida, pois não constam do processo os elementos de prova que sustentem os factos alegados no despacho recorrido, respeitantes a outras vias de acesso e vedação do prédio dos requerentes. Sob pena de violação do princípio da verdade material a que o Tribunal deve obedecer.

            22ª - Os requerentes instauraram a presente providência com audição prévia dos requeridos; mantendo a sua posição, pedem a revogação do despacho recorrido, ordenando-se o prosseguimento dos autos com a citação dos requeridos para se pronunciarem, seguindo-se não só a legal produção de prova que este Tribunal decida ordenar, além da já requerida, mas também os demais trâmites legais.

            Os requeridos[3] deduziram oposição e responderam à alegação concluindo pela improcedência do recurso. 

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa decidir, sobretudo, se se justifica a decretada rejeição/indeferimento liminar do procedimento.


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            II. 1. Para a decisão releva, e é suficiente, o que se descreve no relatório que antecede.

            2. Com a reforma processual civil operada pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, as providências cautelares não especificadas - meio residual de proteção de direitos ameaçados - foram eliminadas e substituídas por um «procedimento cautelar comum», do qual consta a regulamentação dos aspetos comuns do “direito cautelar”.

Esta providência tem o seu âmbito de aplicação definido no art.º 362º do CPC[4].

Segundo o n.º 1 deste preceito, “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”.

Refere o n.º 2 do mesmo art.º: “O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor”.

Instituiu-se, assim, conforme consta do relatório daquele diploma legal, “uma verdadeira ação cautelar geral para a tutela provisória de quaisquer situações não especialmente previstas e disciplinadas, comportando o decretamento das providências conservatórias ou antecipatórias adequadas a remover o «periculum in mora» concretamente verificando e a assegurar a efetividade do direito ameaçado, que tanto pode ser um direito já efetivamente existente, como uma situação jurídica emergente de sentença constitutiva, porventura ainda não proferida”.

Por sua vez, dispõe o art.º 368°, n.° 1: “A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão”.

E o n.º 2 do mesmo art.º estabelece: “A providência pode (...) ser recusada pelo tribunal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar”.

3. As denominadas providências cautelares destinam-se a acautelar o efeito útil de determinada ação - impedir que, durante a pendência de qualquer ação declarativa ou executiva, a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela.[5]

Destinando-se a prevenir o perigo da demora inevitável no processamento normal da ação, o procedimento cautelar necessita de ter uma estrutura bastante mais simplificada, sendo que, ao apreciar os pressupostos da providência em causa, o juiz não poderá exigir, na prova da existência e da violação do direito do requerente, nem na demonstração do perigo de dano que o procedimento se propõe evitar, o mesmo grau de convicção que se requer na prova dos fundamentos da ação.[6]

Pressupondo ou visando a efetiva conjugação da segurança e da celeridade decisória, o decretamento de uma providência cautelar comum depende da concorrência dos seguintes requisitos:

a) Probabilidade séria da existência do direito invocado [o requerente deve alegar e provar que tem um direito ou interesse juridicamente relevante relativamente ao requerido, embora no procedimento cautelar não seja necessário um juízo de certeza, mas apenas de verosimilhança ou de aparência do direito - fumus boni juris];

b) Fundado receio de que outrem, antes de a ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito [o procedimento cautelar tem por fim obviar ao perigo da demora da declaração e execução do direito, afastando o receio do dano jurídico, através de medidas que limitam os poderes ou impõem obrigações àqueles que se encontram em conflito com o requerente da providência - periculum ín mora];

c) Adequação da providência à situação de lesão iminente [que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efetividade do direito ameaçado];

d) Não existência de providência específica que acautele aquele direito [tipificadas nos art.ºs 377º a 409º].

A estes quatro requisitos principais, acresce uma derradeira exigência: que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.[7]

 4. Com a petição do procedimento cautelar, oferecerá o requerente prova sumária do direito ameaçado e justificará o receio da lesão (art.º 365º, n.º 1).

O fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável (periculum in mora) tem de provir de factos que atestem perigos reais e certos, relevando tudo de uma apreciação ponderada regida por critérios de objetividade e de normalidade - a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer ação; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito.[8]

Não é um qualquer incómodo que poderá legitimar o decretamento de uma providência cautelar, esse ‘incómodo’ terá que ser um verdadeiro, grave e dificilmente reparável prejuízo, de forma que, se não for prevenido ou eliminado, possa obliterar o próprio direito a defender na ação principal, tornando esta inútil. Assim, não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contraparte. Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm essa virtualidade de permitir ao tribunal, mediante solicitação do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão.

Compreende-se o cuidado posto pelo legislador ao restringir a concessão da tutela provisória, sendo esse mesmo cuidado que deve guiar o juiz quando se debruça sobre a situação sujeita à apreciação jurisdicional. De facto, tratando-se de uma tutela cautelar decretada, por vezes, sem audição prévia do requerido, não é qualquer lesão que justifica a intromissão na esfera jurídica do requerido com a intimação para se abster de determinada conduta ou com a necessidade de adotar determinado comportamento ou de sofrer um prejuízo imediato e relativamente ao qual não existem garantias de efetiva compensação em casos de injustificado recurso à providência cautelar (art.º 374º, n.° 1).[9]

5. Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560º (art.º 590º, n.º 1).

6. Na situação em análise, os requerentes encontravam-se a executar obras num terreno de que se arrogam proprietários, mas os requeridos, invocando que esse terreno (máxime, esse trato de terreno) lhes pertence em exclusivo, tentaram/tentam impedir a sua realização.

            Os requerentes invocam, ainda, que a paralisação das obras e a obstrução do local de passagem [com a colocação de “duas pedras de grande porte” (sic) e um monte de gravilha], e a manutenção desse estado de coisas, tudo, imputável aos requeridos, acarreta-lhes danos/prejuízos - “lesões ainda mais graves do que as que já causaram e que com toda a certeza serão de difícil reparação” -, em razão dos valores já despendidos nas obras e do impedimento do cultivo e exploração do seu prédio rústico.          

Ora, podendo-se concluir que os requerentes não deixaram de alegar factos suficientes para sustentar (se indiciados) a verificação do primeiro requisito para o decretamento da providência requerida - probabilidade séria da existência do direito invocado (aparência/verosimilhança do direito feito valer em juízo) -, porém, o mesmo não se poderá dizer quanto à invocação/alegação de factos necessários à afirmação do segundo requisito supra enunciado, relativo ao fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do pretenso direito dos requerentes, face à delonga normal do processo correspondente (periculum in mora), porquanto não vemos aduzidos, na petição inicial, factos concretos corporizando o aludido requisito.

Na verdade, nomeadamente, se, por um lado, não se invocam os danos concretos (e correspondente discriminação qualitativa e quantitativa) inerentes à paralisação dos trabalhos/obras que os requerentes pretendiam executar no local, nem se justifica e esclarece a eventual urgência da sua execução, por outro lado, quanto à passagem em causa, é irrecusável que os requerentes apenas referem que ficaram “impedidos de entrar no seu prédio através do local por onde sempre entraram”, mas não que ocorra impossibilidade absoluta (ou sequer relativa) de aceder ao seu prédio rústico (por outro lado), mormente considerada a alegada confinância, de sul, com a estrada municipal.[10]

E é manifestamente insuficiente o demais aduzido para corporizar o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do pretenso direito dos requerentes.

7. Inviabilizada a demonstração do perigo de insatisfação desse direito aparente - segundo requisito relativamente ao qual sempre seria necessário um juízo, senão de certeza e segurança absoluta, ao menos de probabilidade mais forte e convincente[11] -, justificava-se, assim, o indeferimento liminar do procedimento, o que, obviamente, na falta de uma solução assente no consenso (razoabilidade e bom senso), não afasta as demais possibilidades previstas na lei civil adjetiva, inclusive, a ação declarativa comum.

8. Daí, nada será de objetar ao entendimento da 1ª instância, quando refere, designadamente:

- Faltou alegar os factos integradores de uma situação de “periculum in mora”, o que exige a quantificação e qualificação dos danos decorrentes da conduta dos requeridos.

            - Importava invocar uma real, efetiva e objetiva lesão, e que o consequente dano ou prejuízo era relevante, irreparável ou de difícil reparação.

            - Não se conclui que o comportamento dos requeridos ameace séria e irremediavelmente o direito de propriedade dos requerentes, uma vez que não se verifica que a entrada do prédio em questão se faça apenas pelo lado que ficou obstruído.

            - Havendo outro acesso ao prédio, também o eventual impedimento da cultura não consubstancia prejuízo da demora do processo.

            - Não se alcançando que os requerentes se encontram numa situação de justo e fundado receio de que outrem, antes de a ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a seus direitos (periculum in mora), não estão verificados os pressupostos do art.º 362º, n.º 1, do CPC, sendo esta providência cautelar manifestamente inviável.  

            9. Desde há muito se considera que no feito submetido a juízo, a narração há de conter, “pelo menos, os factos pertinentes à causa e que sejam indispensáveis para a solução que o autor quer obter: os factos necessários e suficientes para justificar o pedido”.

            A narração deve conter os factos necessários e suficientes para justificar o pedido do autor, os factos verdadeiramente relevantes.

            A propósito de factos pertinentes ou pertencentes à causa a Ordenação dá-nos um exemplo curioso de facto impertinente: é o de o autor pedir ao réu o pagamento de cem cruzados e alegar para isso que o réu é obrigado a dar-lhos porque o Papa está em Roma (liv. 3º, tít. 53, § 2º).

            Não se trata propriamente de facto impertinente, trata-se de causa de pedir absurda.

            Omitir factos essenciais, factos indispensáveis para a procedência do pedido, é comprometer irremediavelmente o êxito da ação; sobrecarregar a petição com factos estranhos à causa ou inteiramente inúteis para o julgamento dela, é complicar a demanda, torná-la densa e pesada, indispor o tribunal e, o que é pior, abafar e sufocar factos verdadeiramente úteis numa amálgama indigesta, e porventura inextricável, de factos irrelevantes.

            Por isso é que os nossos antigos praxistas formulavam este conselho: arrazoe quem quiser, mas articule quem souber. A moralidade desta máxima é a seguinte: são mais comprometedores e perigosos os erros cometidos nos articulados do que os cometidos nas alegações finais.[12]

            10. Transportados estes ensinamentos para a realidade dos presentes autos, também se dirá, sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário,  que algum do arrazoado da alegação de recurso [cf., por exemplo, a “conclusão 14ª”, ponto I., supra, mas, sobretudo, a fundamentação] deverá ficar confinado ao “mundo” que o originou, e a que pertence, e que, por exemplo, o alongado texto dos art.ºs 11º, 33º, 34º, 35º e a “conclusão” do art.º 37º da p. i. não contêm a factualidade (factos essenciais / relevantes) apta a corporizar os requisitos do procedimento que se decidiu intentar e da providência que se aparentou almejar.

            E se porventura algo de novo ficou a constar da alegação de recurso, sabemos que não era o meio, o tempo e a forma de o trazer a juízo.

            11. Não se podendo ser indiferente a situação similar à que decorre da fotografia junta como “documento 10”[13] (que amiudadas vezes se vê, principalmente, nas zonas rurais), pela aparente “imperatividade” e, porventura, até, “violência”, que nela se poderá perscrutar ou evidenciar, ainda assim, não se poderá/deverá abdicar de ver alegados os factos concretos que sustentem determinada pretensão feita valer em juízo, e foi isso, e apenas isso, o que a Mm.ª Juíza do Tribunal decidiu atuar, corretamente, ao abrigo do disposto nos art.ºs 226º, n.º 4, alínea b) e 590º, n.º 1, do CPC!

            Além do mais - reafirma-se -, dos factos concretos alegados pelos requerentes não se vê como seja possível perspetivar que o prejuízo alegado, a não ser acautelado previamente, criará uma situação de impossibilidade futura de reintegração específica da sua esfera jurídica, mesmo no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente.

            12. Insubsistente e inconsistente, pois, a alegação sobre as pretensas nulidades da decisão recorrida (“conclusões 16ª e 17ª”, ponto I., supra)[14], bem como a pretendida impugnação da decisão relativa à matéria de facto (“conclusões 18ª a 21ª”, ponto I., supra).

            13. Rematando: a decisão sob censura, ao rejeitar o procedimento cautelar, não merece qualquer reparo, soçobrando, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.         

            Custas pelos requerentes/apelantes.  


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12.4.2023


                       





[1] Retificou-se lapso manifesto - cf. documento de fls. 139/149.
[2] Corrigiu-se erro ortográfico.
[3] Citados nos termos e para os efeitos do n.º 7, do art.º 641º do CPC.
[4] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[5] Vide Antunes Varela, e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 23.
[6] Ibidem, pág. 24.
[7] Vide, entre outros, Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. III, 3ª edição, 2004, pág. 97 e seguinte e acórdão do STJ de 28.9.1999, in CJ-STJ, VII, 3, 42.
[8] Vide Lebre de Freitas, e Outros, CPC Anotado, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 2001, pág. 6.
[9] Vide Abrantes Geraldes, ob. e vol. cit., págs. 99 e seguintes.

[10] Alega-se na resposta à alegação de recurso: «E não o fazem porque não é a única entrada, para aquele prédio, pois como resulta do doc. 1 junto pelos requerentes, o prédio confronta, a norte com o caminho/estrada, sendo jocoso que os requerentes mencionem/questionem o tribunal se para acederem ao respetivo prédio necessitam de passar abusivamente por cima de outros prédios do vizinho. / Não precisam pois, desde logo, a norte confrontam com o caminho/estrada, conforme resulta de documento apresentado pelos mesmos. (...) para além de não alegarem que, aquela, é a única entrada para o seu prédio, nem sequer mencionam alguma dificuldade de aceder ao próprio prédio por qualquer outro lado, designadamente pelo caminho/estrada com o qual confronta, a norte. (...)». (sublinhado nosso)
[11] Vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. I, 3ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1982, págs. 621 e 682 e seguintes.
[12] Vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. II, 3ª edição (reimpressão), Coimbra Editora, 1981, págs. 351 e seguinte.
[13] Ou “documento n.º 6” (?) – cf. ponto I., alínea k), supra.
[14] Igualmente correto o despacho da Mm.ª Juíza do Tribunal a quo, de 27.01.2023, que concluiu pela não verificação de qualquer nulidade.