Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
353/16.9T9LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REQUISITOS
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 03/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J I CRIMINAL – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º; 287.º E 309.º DO CPP
Sumário: I – O requerimento para abertura da instrução do assistente deve estruturar-se como uma acusação, dele tendo que constar, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido e as normas legais aplicáveis.

II – Significa isto que nos segmentos da narração dos factos e da indicação das disposições legais aplicáveis, o requerimento de abertura de instrução do assistente deve estruturar-se, substancialmente, como uma verdadeira acusação, como uma acusação alternativa à que, na perspectiva do requerente da instrução, foi, mas não devia ter sido, omitida pelo Ministério Público.

III – Quando o requerimento não contém o quis, o quid, o ubi, o quibus auxiliis, o quomodo e o quando, definidores da indispensável narração – estando, consequentemente, ferido de nulidade –, a instrução carece de objecto, o que – independentemente de determinar ou não, a sua inexistência jurídica (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Verbo, 2000, pág. 151) – conduz à inadmissibilidade legal desta fase do processo.

IV – Assim, in casu, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelos assistentes deveria conter, além do mais, a narração dos factos, imputados ao arguido, preenchedores de qualquer uma das modalidades da acção típica descrita e do dolo do agente.

V – Os assistentes nenhuma matéria levaram ao requerimento que pudesse preencher o tipo subjectivo do crime em questão, sendo completamente omisso, como se viu, quanto ao dolo do arguido.

VI - A carência de objecto determina a inadmissibilidade legal da instrução o que constitui, como é sabido, causa de rejeição do requerimento (art. 287º, nº 3).

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


No processo nº 353/16.9T9LRA que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo de Instrução Criminal de Leiria – Juiz 3, em que são ofendidos, … e …, e arguido, …, a Digna Magistrada do Ministério Público proferiu, em 17 de Setembro de 2017, despacho de arquivamento dos autos por ter entendido inexistirem indícios suficientes de prática do crime denunciado nos autos.

Em 22 de Março de 2018 os ofendidos requereram a constituição como assistentes e a abertura da instrução.

Por despacho 28 de Junho de 2018 foram os ofendidos admitidos a intervir nos autos como assistentes.

Ainda em 28 de Junho de 2018, a Mma. Juíza de instrução proferiu despacho de rejeição do requerimento para abertura da instrução apresentado pelos assistentes, com fundamento na inadmissibilidade legal da instrução.


*

Inconformados com a decisão, recorreram os assistentes, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1 – O presente recurso tem como objecto o Despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal.

2 – O Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal "a quo" considera no seu despacho de rejeição que "não se pode considerar válido o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes, já que não respeita o disposto no artigo 283.º n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal"

3 – Considerando ainda o Tribunal "a quo" que "os assistentes não fizeram constar do seu requerimento uma acusação contra o arguido, com a descrição de factos que tenham sido praticados pelo mesmo, com a concreta identificação dos bens alheios destruídos ou danificados em consequência da conduta do denunciado. Ou seja, o requerimento de instrução é omisso no que concerne a narração de factos indispensáveis à responsabilização criminal do denunciado".

4 – A par dos requisitos do art. 287 do CPP em que o requerimento de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter em súmula as razões de facto e de direito de discordância relativamente a não acusação, a indicação dos actos de instrução que pretende levar a efeito, os meios de prova não considerados, bem cerno a remissão para o art. 283 n.º 3 alíneas b) e c) do CPP.

5 – Na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, os Assistentes requereram a abertura de instrução, na qual narraram os factos criminalmente censuráveis, o modo como tiveram conhecimento deles, o contexto em que tais factos ocorreram e a intervenção do arguido … nos mesmos e, para tal, apresentaram e requereram a correspondente produção de prova, cumprindo assim, o disposto no n.º 2 do art. 287 do CPP.

6 – Ou seja, os assistentes narraram como tomaram conhecimento dos factos, os bens que foram danificados e os prejuízos sofridos.

7 – Indicaram testemunha (…) com conhecimento direto dos factos, a qual, além do mais referiu " … sabe que o denunciante explorava uns terrenos na …, pertencente à O (....) e plantava bacelos naquele local para reproduzi-los. Recorda-se que há cerca de 1 ano (não se recordando em que data), passou no local mencionado e viu uma máquina giratória a limpar uma vala dos respetivos terrenos e ao ser efetuado os trabalhos reparou que foi danificado uma grande parte dos bacelas que ali estavam (já em época para efetuar o respetivo corte)".

8 – Esta testemunha tem conhecimento direto dos factos, pois que:

- conhece as parcelas de terreno arrendadas e exploradas pela sociedade denunciante;

- Passou nos terrenos explorados pelos denunciantes na … e viu uma máquina giratória a limpar uma vala dos respetivos terrenos, sendo que, ao ser efetuado este trabalho,

- reparou que foi danificada uma grande parte dos bacelos que ali estavam (já em época para efetuar o respetivo corte);

- Reconheceu o operador da respetiva máquina, como sendo um senhor (…) que vive na zona de …;

- O … (e não …) confirmou que é o único manobrador de máquinas que reside em …;

- O … confirmou e afirmou ter feito trabalhos para o arguido nos terrenos em causa na …, nomeadamente, limpeza de valas e ribeiros e colocação de manilhas, para drenar águas pluviais

9 – O arguido é proprietário dos terrenos em causa; a assistente, arrendatária. A atuação do arguido foi voluntária e consciente, sabendo que, com a sua conduta, a plantação de vinha ficava destruída.

10 – O arguido não podia desconhecer o arrendamento (que vigora há mais de 15 anos), não desconhecia as plantações lá efetuadas pela assistente "vinha para produção de porta enxertos de videira". E, mesmo assim, não hesitou em contratar uma máquina agrícola, que transitou, ocupou e "limpou" os terrenos arrendados, arrasando e destruindo as plantações.

11 – O arguido tinha consciência da ilicitude dos factos, bem como sabia e quis os atos que praticou.

12 – Tendo em conta estes considerandos e analisado o requerimento de abertura de instrução, o mesmo dá cumprimento a todas as imposições legais, contendo uma estrutura acusatória, enumerando os factos praticados pelo arguido, que integram a prática do crime de dano, e por isso, suscetíveis de aplicação de uma pena.

13 – O Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal "a que", ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução, com fundamento em inadmissibilidade legal, violou o disposto nos art. 283 e 287 do CPP.

NESTES TERMOS e nos mais de direito e sempre com o douto suprimento de V. Exas., deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido substituindo-se por outro que decida admitir o requerimento apresentado pelos assistentes e declarando-se aberta a Instrução, sendo assim feita uma correta aplicação da Lei e da Justiça.


*

            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1º - Sendo a instrução requerida pelo assistente, como sucede no caso em análise, é aplicável ao respetivo requerimento, por força da parte final do n.°2 do artigo 287.°, o disposto no artigo 283.°, n.°3, alíneas b) e c), ambos do CPP, o que significa que o mesmo terá de conter, sob pena de nulidade:

- “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”

- “a indicação das disposições legais aplicáveis”.

2º - No requerimento de abertura de instrução deduzido nos autos deparamos com a omissão relativa à narração dos elementos objetivos e subjetivos respeitantes ao crime de dano p. e p. pelo artigo 213º, n°. 2, al. a) do C. Penal, sendo que o conceito de valor consideravelmente elevado encontra-se definido no artigo 202°, al. b), do mesmo diploma, como sendo aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.

3º - Como refere o Mmo. Juiz de Instrução Criminal os assistentes apenas fizeram constar do seu requerimento a descrição das diligências realizadas no inquérito, fazendo a sua apreciação em relação à prova produzida em ordem a concluir que existiam indícios suficientes para imputar ao arguido a prática do crime de dano. Os assistentes não fizeram constar do seu requerimento uma acusação contra o arguido, com a descrição de factos que tenham sido praticados pelo mesmo, com a correta identificação dos bens alheios destruídos ou danificados em consequência da conduta do denunciado. Ou seja, o requerimento de instrução é omisso no que concerne a narração de factos indispensáveis à responsabilização criminal do denunciado.

4º - Assim sendo, não se mostrando cumpridos todos os requisitos previstos nos artigos supramencionados, enferma aquele de nulidade, a qual não é uma nulidade meramente formal, mas afeta a própria instrução, e, portanto, seria sempre inexequível e legalmente inadmissível. 

5º - Tal requerimento não é suscetível de aperfeiçoamento, não podendo o juiz suprir as omissões como a que se verifica no caso concreto, e que consubstancia uma nulidade. Admitir o anómalo aperfeiçoamento da acusação ou do requerimento da abertura de instrução, constituiria uma violação do princípio do acusatório, ao ver a entidade julgadora a ter funções de investigação antes do julgamento, o que o atual C.P.P. não pretende. 

6º - Pelo exposto, não se verificando a violação de qualquer preceito legal, nomeadamente os mencionados artigos 283º e 287º, ambos do CPP, deverá o presente recurso ser julgado improcedente.                     

            Porém, decidindo, V.Exª farão a costumada JUSTIÇA.


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            Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto acompanhou a resposta do Ministério Público e concluiu pelo não provimento do recurso.

            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.


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  Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se o requerimento para abertura da instrução padece ou não, de deficiência que determine a sua rejeição, por inadmissibilidade legal desta fase processual, como foi decidido. 


*

Para a resolução da questão importa ter presente o teor do despacho recorrido, que é o seguinte:

“ (…).

Nos presentes autos vieram os assistentes requerer a abertura de instrução, requerendo que o arguido … seja pronunciado pela prática de um crime de dano p. e p. pelo artigo 213º, nº. 2, al. a), por referência ao artigo 202º, al. b) ambos do Código Penal.

Pretendem os assistentes reagir contra o despacho do Ministério Público que determinou o arquivamento dos autos ao abrigo do disposto no artigo 277º, nº. 2 do Código de Processo Penal.

Impõe-se pois apreciar e decidir se o requerimento apresentado pelos assistentes para a abertura de instrução cumpre os requisitos exigidos para ser admitido nos autos.

De acordo com o disposto no artigo 286º, nº. 1 do Código do Processo Penal “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

Dispõe o artigo 287º, nº. 1 al. b) do CPP que a instrução pode ser requerida pelo assistente se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

De acordo com o disposto no artigo 287º, nº. 2 do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda, aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) (...)”.

Dispõe a alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal que “a acusação contém, sob pena de nulidade a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.

Sendo que de acordo com a al. c) do artigo 283º, nº. 3 do Código de Processo penal a acusação contém, sob pena de nulidade “ A indicação das disposições legais aplicáveis.”.

Do cotejo dos preceitos legais citados resulta que o requerimento da abertura de instrução apresentado pelos assistentes tem de conter a indicação dos factos que fundamentam a sujeição do arguido a julgamento, assim como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Deve assim ser semelhante a uma acusação pública, por força da remissão operada pelo art. 287.º, n.º 2 para o art. 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal. Importa referir que abstendo-se o Ministério Público de acusar, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente terá de conter uma verdadeira acusação, para possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório, bem como a elaboração da decisão instrutória.

Compreende-se tal exigência já que, não havendo acusação pública, cabe ao assistente no requerimento de abertura da instrução delimitar os factos que serão objecto de apreciação em sede de instrução.

Tal exigência impõe-se em nome de princípios fundamentais do processo penal que têm também assento constitucional, nomeadamente o direito de defesa e a estrutura acusatória do processo penal (artigo 32º da Constituição da República).

Desta delimitação do objecto do processo resulta o estabelecido nos art. 303º, nº. 3 e 4 e artigo 309º, nº. 1, ambos do C.P.P., que proíbe a pronúncia do arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento do assistente para a abertura de instrução, assim como os factos que representem uma alteração não substancial dos alegados nesse requerimento só podem ser atendidos caso seja observado o mecanismo processual previsto no nº. 1 desse art.303º.

Nesse sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 358/2004 (DR, II, de 28 de Junho de 2004).

O entendimento de que o requerimento para a abertura de instrução formulado pelo assistente deve corresponder a uma acusação é unânime na jurisprudência (Ac. do S.T.J. de 25.10.2006 e 12.03.2009, in www.dgsi.pt/jstj).

Face ao que se deixa exposto, conclui-se que a acusação deduzida pelo assistente tem de conter para além das razões de facto e de direito que fundamentam a discordância relativamente ao arquivamento, a narração dos factos que integram os crimes pelos quais o assistente pretender ver pronunciado o arguido, o que se revela essencial para o exercício do direito de defesa do arguido e por outro lado porque é função desses factos que se define o objecto da instrução, dado que o juiz de instrução não poderá conhecer de factos que não constem do requerimento apresentado par a abertura de instrução.

No caso concreto os assistentes pretendem que o denunciado seja pronunciado pela prática de crime de dano.

Determina o artigo 213º, nº. 2, al. a) do Código Penal que:

“ 2 – Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia:

a) De valor consideravelmente elevado; é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.

 O conceito de valor consideravelmente elevado encontra-se definido no artigo 202º, al. b) do Código Penal, como sendo aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.

Com o referido preceito teve-se a intenção de abranger todas as hipóteses de dano, independentemente do seu objecto (móvel ou imóvel) ou dos meios utilizados.

No que concerne ao conceito de coisa alheia importa referir que para efeitos de crime de Dano, é apenas aquela cujo direito de propriedade é pertença de outrem que não o agente.

O crime de dano tanto pode ser praticado por acção ou omissão, não sendo relevante o processo que leva à ocorrência do dano, tanto podendo ser usados meios mecânicos, animais ou o fogo.

O dano consuma-se apenas com a destruição, com a danificação, desfiguração ou no tornar não inutilizável a coisa.

O crime de dano só é punido a título de dolo, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal.

No caso a representação e vontade de “destruir, danificar, desfigurar, ou tornar não utilizável” coisa alheia, sabendo que praticava um ilícito penal.

O dolo desdobra-se nos chamados elementos intelectual (representação, previsão ou conhecimento dos elementos do tipo de crime) e volitivo (vontade de realização daqueles elementos do tipo objectivo) nas modalidades nas 3 modalidades previstas no art. 14º do C. Penal – actuação com intenção de realizar o facto típico (dolo directo); aceitação da realização dos elementos do tipo objectiva como consequência necessária da conduta (dolo necessário); e conformação ou indiferença pela realização do resultado previsto como possível (dolo eventual).

A que acresce um elemento emocional que é dado, em princípio, pela consciência da ilicitude.

Da leitura do requerimento apresentado para a abertura de instrução verifica-se que os assistentes não descrevem factos que possam integrar em termos objectivos e subjectivos a prática de tal ilícito.

Os assistentes apenas fizeram constar do seu requerimento a descrição das diligências realizadas no inquérito, fazendo a sua apreciação em relação à prova produzida em ordem a concluir que existiam indícios suficientes para imputar ao arguido a prática do crime de dano.

Os assistentes não fizeram constar do seu requerimento uma acusação contra o arguido, com a descrição de factos que tenham sido praticados pelo mesmo, com a correcta identificação dos bens alheios destruídos ou danificados em consequência da conduta do denunciado.

Ou seja, o requerimento de instrução é omisso no que concerne a narração de factos indispensáveis à responsabilização criminal do denunciado.

Importa pois referir e como já se deixou exposto que os factos que não constem do requerimento apresentado para a abertura de instrução não podem ser considerados pelo juiz de instrução na decisão a proferir. Ora a referência ao elemento subjectivo constitui um elemento indispensável ao preenchimento dos elementos típicos do crime de dano. No entanto o requerimento apresentado pelos assistentes é omisso na referência a factos que preencham o elemento subjectivo. Sobre a necessidade de constar no requerimento de abertura de instrução do assistente a referência dos elementos subjectivos pode citar-se a este respeito o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.05.2013, processo nº. 875/11.8 TATNV.C1, disponível em www.dgsi.pt/jtrc onde se pode ler que “ Assim o dolo, enquanto elemento subjectivo constitutivo de um tipo legal de crime, deve constar da acusação, e, consequentemente, também do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, nos termos do disposto nos artigos 287º, nº. 2 e 283º, nº. 3 ambos do CPP” “Sendo o requerimento para a abertura de instrução omisso em relação aos factos consubstanciadores do tipo objectivo e subjectivo de um determinado crime, tem de ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do artigo 287º, nº. 3 do CPP”.

A este respeito importa ter ainda em consideração o Acórdão nº. 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 20.11.2014 e publicado no DR, I, série de 27.01.2015 o qual uniformizou jurisprudência nos seguintes termos “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º do CPP”.

Ora como já se deixou exposto na instrução, requerida pelo assistente na sequência de uma decisão de arquivamento, o requerimento apresentado para esse efeito pelo assistente constitui uma acusação alternativa.

Assim considera-se que a jurisprudência fixada no Acórdão nº. 1/2015 tem aplicação no caso de instrução requerida pelo assistente, sendo que neste caso a acusação deduzida pelo assistente terá que conter a narração dos factos de natureza objectiva e subjectiva necessários ao preenchimento do ilícito.

Ora em nossa opinião os factos alegados pelos assistentes no RAI não se afiguram suficientes para se poder considerar que do requerimento apresentado consta uma narração ainda que sintética e precisa dos factos constitutivos do crime de dano. Sendo que como já se deixou exposto tal exigência se impõe em nome de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente o direito de defesa e a estrutura acusatória do processo penal.

Importa ainda sublinhar que no caso não há lugar a qualquer convite para aperfeiçoamento do RAI e na sequência da Jurisprudência fixada pelo Ac nº. 7/2005, de 12 de Maio de 2005, publicado no Diário da República, I Série – A, nº. 212, de 4 de Novembro de 2005, nos termos da qual se fixou a jurisprudência no sentido de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº. 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

O convite ao aperfeiçoamento contende com o princípio das garantias de defesa do arguido, consagrado no art. 32º, nº. 1 da CRP.

Com efeito a apresentação do requerimento da assistente para a abertura da instrução para além do prazo previsto no art. 287º do CPP violaria as garantias de defesa do arguido, pois estabeleceria um novo prazo para a abertura de instrução, sendo que tal se aplica aos casos em que há total omissão da narração dos factos, como quando a omissão é apenas parcial.

O nº. 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal estabelece que o requerimento para a abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Na inadmissibilidade legal da instrução insere-se o requerimento apresentado para a abertura de instrução apresentado pelo assistente e que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos imputados ao arguido e pelos quais se pretende que o mesmo seja pronunciado.

Pelo exposto, não se pode considerar válido o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes, já que não respeita o disposto no art.º 283º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal, aqui aplicável por remissão do n.º 2 do art.º 287º do mesmo diploma legal.

Pelo exposto, rejeita-se por inadmissibilidade legal o requerimento apresentado pelos assistentes para a abertura de instrução (art. 287º, nº. 3 do CPP).

Sem custas.

(…)”.


*

            Para a resolução da questão suscitada no recurso importa ter presente o teor do requerimento para abertura da instrução apresentado pelos assistente, que é o seguinte:

            “ (…).

               1º O arquivamento do processo colheu o seu fundamento no facto de que " … inexistem neste momento indícios suficientes de que o arguido tenha praticado os factos investigados".

Mais pode ler-se no Despacho de arquivamento que "não quer isto significar que o arguido não tenha praticado tais factos, mas sim que não se logrou demonstrar, com a segurança subjacente a um despacho acusatório, a sua autoria, sendo que uma acusação neste concreto redundaria, por força do principio in dúbio pro reo, numa absolvição.".

3º Porém, pela insuficiência do Inquérito vem contrariar-se tal Decisão de arquivamento, pois a mesma não é verdadeira nem é justa.

4º Os queixosos apresentaram queixa contra … pela prática de um crime de dano qualificado, p. e p. pelo art. 213, n.º 2 al. a) por referência ao art. 202, al. b), ambos do Código Penal.

5º O queixoso … é sócio e gerente da queixosa sociedade … cujo objeto social se centra, entre mais, na produção e comercialização de plantação vitícolas.

6º Desde 2003, que a queixosa … é arrendatária de 2 parcelas de terreno sitas no lugar de …, freguesia de O (....), concelho de (....), sendo que desde essa data, aí procedeu à plantação de campo de pés mães (vinha para produção de porta enxertos de videira)

7º Destas 2 parcelas de terreno é proprietário o arguido …, a quem é pago anualmente a correspondente renda.

8º No dia 9 de Janeiro de 2016, o denunciante … foi questionado por pessoas próximas se tinha conhecimento de terem andado máquinas a movimentar terras nas referidas parcelas de terreno.

9º Nessa sequência, o denunciante deslocou-se ao local e verificou que o campo onde se encontravam os pés mães plantados estava arrasado, tendo as vinhas mãe sido levantadas e totalmente danificadas.

10º As testemunhas indicadas pelos denunciantes – … e … – confirmaram a exploração das referidas parcelas de terreno pela sociedade denunciante e os prejuízos sofridos em montante superior a € 50.000,00.

11º A testemunha …, indicada pelos denunciantes, é testemunha com conhecimento direto e efetivo dos factos.

12º Esta testemunha …, inquirida em sede de inquérito no dia 11 de Janeiro de 2017, referiu, além do mais que " … sabe que o denunciante explorava uns terrenos na …, pertencente à … e plantava bacelas naquele local para reproduzi-los. Recorda-se que há cerca de 1 ano (não se recordando em que doto], passou no local mencionado e viu uma máquina giratória a limpar uma vala dos respetivos terrenos e ao ser efetuado os trabalhos reparou que foi danificado uma grande parte dos bacelas que ali estavam (já em época para efetuar o respetivo corte)".

13º A testemunha … declarou ainda que "passou naquele local durante 3 dias", desconhecendo no entanto, quantos mais dias lá andou a máquina giratória.

14º Esta testemunha reconheceu o operador da respetiva máquina como sendo um senhor de nome …, sendo seu conhecido, sabendo que reside para os lados de …, S (....).

15º Foi solicitado à GNR que procedesse à identificação de …, o que, em consequência veio a GN R informar que em … não é conhecida pessoa com tal nome, informando no entanto que aí reside …, ligado ao ramo das máquinas agrícolas.

16º Inquirido o …, esclareceu a confusão com o nome (… e …), afirmando que antes tinha uma empresa chamada …". e talvez daí o …", confirmando no entanto, ser ele o único operador de máquinas residente em ….

17º E confirmou e afirmou também esta testemunha …, conhecer o arguido …, como o dono da Quinta do … e que, talvez no ano de 2015, foi contratado pelo arguido, para uns trabalhos de limpeza de valas e ribeiros e colocação de manilhas nos terrenos da …

18º O arguido …, quando interrogado negou a prática dos factos.

19º O M.P. no despacho de arquivamento refere que não resultou apurada em sede indiciária, que o autor do crime fosse o arguido.

20º Ora, em nosso modesto entender, parece-nos que ressalta à evidência, pelos depoimentos prestados, que o arguido praticou os factos descritos, pelos quais terá que ser pronunciado. Vejamos,

21º Lê-se no despacho de arquivamento que a única testemunha com eventual (sublinhado nosso) conhecimento direto dos factos foi …, mas o seu depoimento, no confronto com o depoimento prestado por …., não é apto a sustentar a autoria do crime indiciado como sendo do arguido.

22º Sem razão.

23º Desde logo, a testemunha (....) não tem "eventual conhecimento direto". A testemunha … tem conhecimento direto dos factos, pois:

- conhece as parcelas de terreno arrendadas e exploradas pela sociedade denunciante;

- Passou nos terrenos explorados pelos denunciantes na Quinta do …e viu uma máquina giratória a limpar uma vala dos respetivos terrenos, sendo que, ao ser efetuado este trabalho,

- reparou que foi danificada uma grande parte dos bacelos que ali estavam (já em época para efetuar o respetivo corte);

- Reconheceu o operador da respetiva máquina, como sendo um senhor (…) que vive na zona de …, S (....);

- O … (e não …) confirmou que é o único manobrador de máquinas que reside em …, S (....);

- O … confirmou e afirmou ter feito trabalhos para o arguido nos terrenos em causa na Quinta do …, nomeadamente, limpeza de valas e ribeiros e colocação de manilhas, para drenar águas pluviais

24º Refere ainda o despacho de arquivamento no que respeita aos depoimentos das testemunhas … e …, que) "de facto, estamos perante dois depoimentos contraditórios, em que não resulta evidente qualquer interesse no desfecho deste inquérito, os quais pecam por falta de concretização no que tange à data em ocorreram os factos, sendo que o … falha ainda quanto à identificação correta do individuo que viu a manobrar a máquina giratória, nos termos relatados, o que o fragiliza".

25º Sem razão.

26º No que toca ao indivíduo manobrador de máquinas, a testemunha …, confirmou que fez os trabalhos para o arguido, confirmou que é o único manobrador de máquinas residente em …, confirmou o seu nome (…) e esclareceu a "confusão" com o sobrenome (…).

27º No que tange à data dos factos, parece-nos que aqui, também, não poderá haver dúvidas quanto ao período de tempo em que ocorreram.

28º Em jeito de desabafo, parece-nos, no entanto, perfeitamente aceitável que passado este tempo, as testemunham não consigam precisar/concretizar a data da sua ocorrência (a queixa deu entrada em Fevereiro/2016 e o despacho de arquivamento foi notificado em Fevereiro/2018).

29º No entanto, para a concretização da data da ocorrência dos factos, os mesmos terão ocorrido ou no final do ano de 2015, como refere a testemunha … (… "talvez em 2015"), ou no início de 2016, como refere a testemunha …, a qual foi inquirida em 11/Janeiro/2017, tendo a mesma referido "há cerca de um ano atrás".

30º O denunciante … teve conhecimento dos factos no dia 9 de Janeiro de 2016 (veja-se o artigo 11 da participação criminal), pelo que, os factos só poderão ter ocorrido nos primeiros dias do ano de 2016 (antes do dia 9 de Janeiro), ou no final do ano de 2015.

31º Tendo a testemunha … confirmado e afirmado ter sido contratado pelo arguido para proceder a trabalhos de limpeza de valas e ribeiros com uma máquina giratória nos terrenos na …, poder-se-ia, em fase de inquérito, ter solicitado à testemunha que juntasse aos autos cópia da fatura/recibo de tais trabalhos, no sentido de se confirmar a data dos mesmos. Solicitação que se irá fazer agora.

32º Perante tudo o que ficou atrás explanado, revela-se que a posição assumida pelo M.P. de arquivamento dos presentes autos, é desajustada à legalidade e à realidade dos factos, pelo que deve o arguido, tendo em conta os factos atrás descritos, ser pronunciado pelo crime de dano.

33º A negação dos factos por parte do arguido, não pode levar, por si só, ao arquivamento dos autos.

34º Repare-se que o arguido nem sequer aflorou, aquando do seu interrogatório, que havia contratado uma máquina giratória para limpeza de valas e ribeiros e colocação de manilhas naqueles terrenos.

               Pelo exposto deve o arguido … ser pronunciado pelo crime p e p. pelo artigo 213, n.º 2, al. a), por referência ao artigo 202, al. b).

(…)”.


*

 1. A instrução é uma fase intermédia e facultativa do processo comum, que tem como objecto a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1, do C. Processo Penal). In casu, tendo sido requerida pelos assistentes, visaria a comprovação judicial da decisão que ordenou o arquivamento do inquérito [por procedimento não dependente de acusação particular].

A referida comprovação judicial é feita por intermédio da conjugação e ponderação dos meios de prova produzidos – quer em sede de inquérito, quer no decurso da instrução – em ordem a ajuizar da existência ou não, de indícios suficientes da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança sendo, a final, formalmente explicitada na decisão instrutória. Por isso se dispõe no art. 308º, nº 1 do C. Processo Penal – código a que pertencerão todas as disposições legais seguidamente citadas sem menção de origem – que, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. E consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (nº 2 do art. 283º, aplicável ex vi, nº 2 do art. 308º).

Porém, o presente recurso não tem por objecto a questão da suficiência ou insuficiência dos indícios mas antes uma outra, que lhe é prévia, e que é a de saber quais os requisitos essenciais que deve observar o requerimento para abertura de instrução e as consequências da sua inobservância.

2. Dispõe o art. 287º, no seu nº 2:

O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º. Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.

Embora não esteja sujeito a forma específica, o requerimento para abertura da instrução deve conter sempre, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância quanto à acusação ou não acusação. E no que especialmente respeita ao requerimento apresentado pelos assistentes, a lei impõe ainda que dele constem as especificações previstas nas als. b) e c) do nº 2 do art. 283º.

Assim, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente – que se destina, como vimos, a obter a comprovação judicial da decisão do Ministério Público em se abster de acusar em procedimento por crime público ou semipúblico – deve obrigatoriamente conter, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e ainda, a indicação das disposições legais aplicáveis

Significa isto que nos segmentos da narração dos factos e da indicação das disposições legais aplicáveis, o requerimento de abertura de instrução do assistente deve estruturar-se, substancialmente, como uma verdadeira acusação, como uma acusação alternativa à que, na perspectiva do requerente da instrução, foi, mas não devia ter sido, omitida pelo Ministério Público.

A justificação desta exigência é fácil de fazer. O objecto do processo é definido, brevitatis causa, pela acusação que nele tenha sido deduzida e portanto, pelos concretos factos imputados ao arguido (cfr. art. 339º, nº 4). A estrutura acusatória do processo penal e a salvaguarda das garantias de defesa do arguido impõem a definição do thema decidendum e a sua tendencial imutabilidade.

Se o Ministério Público se absteve de acusar por crime público ou semipúblico e o assistente pretende, ao requerer a instrução, que o arguido seja levado a julgamento, será o respectivo requerimento a definir o objecto da instrução e portanto, a balizar não só o âmbito da investigação a levar a efeito pelo juiz de instrução como o da própria decisão instrutória. E se dúvidas houvesse sobre a sujeição do juiz de instrução à vinculação temática definida pelo requerimento de abertura de instrução, elas são completamente dissipadas pela lei do processo que, no seu art. 309º, nº 1, comina com nulidade a decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos naquele requerimento.

Em suma, temos como inquestionável que o requerimento para abertura da instrução do assistente se deve estruturar como uma acusação, dele tendo que constar, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido e as normas legais aplicáveis.

3. E quais as consequências de o requerimento para abertura da instrução do assistente não constituir, substancialmente, uma acusação, por nele ter sido omitida, além do mais, a narração dos factos ou de parte deles, imprescindíveis para o preenchimento do tipo imputado?

Quando o requerimento não contém o quis, o quid, o ubi, o quibus auxiliis, o quomodo e o quando, definidores da indispensável narração – estando, consequentemente, ferido de nulidade –, a instrução carece de objecto, o que – independentemente de determinar ou não, a sua inexistência jurídica (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Verbo, 2000, pág. 151) – conduz à inadmissibilidade legal desta fase do processo (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 737).

Ora, a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento (art. 287º, nº 3).

4. Revertendo para a questão sub judice, da leitura do requerimento para abertura da instrução apresentado pelos assistentes e ora recorrentes resulta que nada há a censurar ao decidido no despacho recorrido. Explicando.

a. Os assistentes pretendem ver o arguido pronunciado pela prática de um crime de dano qualificado, p. e p. pelos arts. 213º, nº 1, a) do C. Penal.

O dano qualificado é um crime comum, de execução livre, de dano e de resultado, que tutela o bem jurídico propriedade, e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo, na parte em que agora releva:

[Tipo objectivo]

- A destruição, total ou parcial, a danificação, a desfiguração ou a inutilização de coisa alheia de valor elevado;

[Tipo subjectivo]

- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade (em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal).   

Assim, in casu, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelos assistentes deveria conter, além do mais, a narração dos factos, imputados ao arguido, preenchedores de qualquer uma das modalidades da acção típica descrita e do dolo do agente.

b. Atentemos então na narração feita pelos assistentes no requerimento.

No artigo 5º os assistentes alegaram: o assistente é sócio e gerente da assistente tendo esta por objecto social, além do mais, a produção e comercialização de plantas vitícolas.

Nos artigos 6º e 7º os assistentes alegaram: desde 2003 que a assistente é arrendatária de duas parcelas de terreno, situadas no lugar do …, freguesia de O (....), concelho de (....), pertencentes ao arguido, a quem é paga, anualmente, a renda correspondente, parcelas onde a assistente plantou um campo de pés mães ou seja, uma vinha para produção de porta enxertos de videira.

No artigo 9º os assistente alegaram: no dia 9 de Janeiro de 2016 o assistente teve conhecimento de terem andado máquinas a movimentar terras nas referidas parcelas de terreno.

Nos artigos 10º e 11º os assistentes alegaram: o assistente deslocou-se ao local e constatou que o campo onde se encontravam plantados os pés mães estava arrasado, tendo as vinhas sido levantadas e ficado totalmente danificadas, tendo a assistente sofrido um prejuízo superior a € 50.000.

Nos artigos 11º a 14º os assistentes alegaram: a testemunha … passou no local, há cerca de um ano (por referência a 11 de Janeiro de 2017, data da sua inquirição no inquérito) e viu, nos três dias que lá passou, uma máquina giratória a limpar uma vala dos terrenos, trabalho que danificou grande parte dos bacelos, sendo operador da máquina um tal …, residente para os lados do ….     

Nos artigos 16º e 17º os assistentes alegaram: a testemunha … esclareceu que, tendo tido, em tempos, uma empresa denominada …, Lda., pudesse existir confusão com o seu nome, confirmou ser o único operador de máquinas residente em … e afirmou que, talvez em 2015, foi contratado pelo arguido, para fazer trabalhos de limpeza de valas e de ribeiros e colocação de manilhas nos terrenos da Quinta … que a este pertence.

A partir daqui o requerimento não contém já, a narração de factos, mas a apreciação crítica dos fundamentos invocados pelo Ministério Público, para despachar no sentido do arquivamento do inquérito.

Assim, nos artigos 18º e 19º os assistentes referem a negação da prática dos factos pelo arguido e a afirmação, no despacho de arquivamento, do não apuramento, em termos indiciários, do autor dos factos, nos artigos 20º a 26º referem a sua discordância quanto a esta afirmada inexistência de elementos de prova da autoria dos factos, dizendo que a testemunha … presenciou os actos causadores dos danos na vinha e conhecia o operador da máquina interveniente, e que a testemunha … confirmou ter feito trabalhos com uma máquina para o arguido, nos artigos 27º a 31º referem a sua discordância quanto à afirmada imprecisão da data dos factos, face aos depoimentos daquelas testemunhas, que os situam entre finais de 2015 e início de 2016 e à própria afirmação do assistente de que terá tido conhecimento da situação em 9 de Janeiro de 2016, e nos artigos 32º a 34º reafirmam a discordância com o arquivamento que não poderá resultar da negação do arguido e apontam a não referência por este, quando foi interrogado, da contratação da máquina giratória para os trabalhos mencionados.

Pois bem.

Desta narração de factos resulta, no essencial que os assistentes imputam ao arguido a prática dos seguintes factos:

- A assistente sociedade é, desde 2003, arrendatária de duas parcelas de terreno, situadas no lugar do …, freguesia de O (....), concelho de (....), pertencentes ao arguido, nas quais plantou uma vinha para produção de porta enxertos de videira;

- Em data não concretamente apurada, entre finais de 2015 e 9 de Janeiro de 2016, o arguido contractou a testemunha … para que este, com uma máquina giratória, efectuasse trabalhos de limpeza de valas e de ribeiros e colocação de manilhas, também, nas parcelas de terreno arrendadas à assistente;

- A testemunha … realizou os trabalhos e na sua execução levantou a vinha, danificando os bacelos e assim causando um prejuízo superior a € 50.000.

Sendo inquestionável que os pés de videira plantados nas parcelas de terreno pertenciam à arrendatária assistente – mas já não, ao assistente que, de acordo com os factos alegados no requerimento, é apenas sócio e gerente daquela – a factualidade objectiva descrita, embora lacunosa, é passível de preencher o tipo objectivo do crime de dano.

Porém, os assistentes nenhuma matéria levaram ao requerimento que pudesse preencher o tipo subjectivo do crime em questão, sendo completamente omisso, como se viu, quanto ao dolo do arguido. Ora, em qualquer caso, o dolo é imprescindível para, quer no termo da fase da instrução, na decisão instrutória, viabilizar a prolação de despacho de pronúncia, quer, como é evidente, na fase do julgamento pois que o crime de dano, em qualquer das suas modalidades, é um crime doloso. In casu, a questão ganha acrescida relevância pois foi um terceiro que operou a máquina causadora dos danos na vinha.

Temos, em suma, que o requerimento para a abertura da instrução não deu cumprimento ao disposto no art. 287º, nº 2 do C. Processo Penal pois dele não consta a narração, ainda que sintética, de todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, pois que os assistentes se limitaram à alegação dos factos objectivos do imputado crime de dano, omitindo, por completo, a alegação dos factos subjectivos, relativos ao dolo do arguido. 

A omissão é insusceptível de reparação, por não ser admissível o convite ao aperfeiçoamento do requerimento – Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005, DR, I-A, de 4 de Novembro de 2005 – o que significa que a instrução requerida pelos assistentes carece de objecto.

A carência de objecto determina a inadmissibilidade legal da instrução o que constitui, como é sabido, causa de rejeição do requerimento (art. 287º, nº 3).

Não merece pois, censura, o despacho recorrido, ao rejeitar o requerimento para a abertura da instrução apresentado pelos assistentes. 


*

III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça, individualmente, em 3 UCs. (arts. 515º, nºs 1, b) e 2 do C. Processo Penal e 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

Coimbra, 13 de Março de 2019

Acórdão integralmente revisto por Vasques Osório – relator – e Helena Bolieiro – adjunta.