Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
285/07.1TBMIR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR COMUM
REQUISITOS
DIREITO DE PASSAGEM MOMENTÂNEA
Data do Acordão: 04/08/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE MIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ARTºS 1349º C.CIV.; 381º CPC
Sumário: I – São características comuns das providências cautelares a provisoriedade, a instrumentalidade e a sumario cognitio.

II – A provisoriedade da providência transparece tanto da circunstância de disponibilizar uma tutela distinta da que é fornecida pela acção principal de que é dependente, como da sua necessária substituição pela tutela que vier a ser definida nessa acção – artº 383º, nº 1, do CPC.

III – O objecto da providência cautelar não é a situação jurídica acautelada ou tutelada, mas, de harmonia com a sua finalidade, a garantia do direito, a regulação provisória da situação ou a antecipação da tutela requerida no respectivo procedimento – artº 384º, nº 3, CPC.

IV – As providências cautelares implicam uma apreciação sumária através de um procedimento simplificado – artº 384º, nºs 1 e 3, 385º, nºs 1 e 2, e 386º, nº 1, do CPC.

V – A finalidade das providências cautelares é a de evitar a lesão grave ou dificilmente reparável proveniente da demora na composição definitiva, é a de obviar ao periculum in mora – artº 381º, nº 1, do CPC.

VI – As providências não especificadas só podem ser requeridas quando nenhuma outra providência possa ser utilizada no caso concreto – princípio da subsidiaridade dessas providências (artº 381º, nº 2, CPC).

VII – A recusa do requerido em consentir na colocação, no seu prédio, do andaime e a entrada nele de trabalhadores, materiais e utensílios por parte do dono de prédio confinante – obrigação de dar passagem forçada momentânea (artº 1349º C. Civ.) - , cria receio fundado de lesão grave do direito real dos vizinhos, pelo que é adequado o recurso a uma providência cautelar para esconjurar o perigo que ameaça o direito de propriedade desses vizinhos e o dano que do decretamento dela resulta para o direito do requerido (que os requerentes deverão indemnizar) não excede o prejuízo que com ela se pretende evitar, não existindo providência nominada que ao caso caiba.

VIII – Em tais situações, não faz sentido o recurso ao processo de suprimento de consentimento regulado no artº 1425º do CPC.

Decisão Texto Integral:      

      Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

      1. Relatório.

      A... e cônjuge, B..., propuseram, no Tribunal Judicial da Comarca de Mira, contra C..., procedimento cautelar comum, pedindo a condenação do último a permitir a sua passagem momentânea pelo prédio daquele, possibilitando o acesso dos seus contratados, materiais, ferramentas, assim como a colocação de andaimes pelo período de um mês.

      Deduzida a oposição e realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, com fundamento no facto da providência cautelar não especificada mais que conservar o direito, exercê-lo-ia e de o processo próprio para levar a cabo a pretensão ser uma acção de suprimento consentimento (artº 1425.º ss. do Código de Processo Civil), processo, por sinal de jurisdição voluntária, com a potencialidade de ser bem expedito, julgou improcedente a providência e absolveu o requerido do pedido.

      Os requerentes pedem, por via do recurso de agravo, a revogação dessa decisão e a sua substituição por outra que decrete a providência, tendo condensado as suas alegações nas conclusões seguintes:


[…]

      O recorrido não respondeu.

      2. Factos provados.


[...]

      3. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos.

      3.1. Delimitação do objecto do recurso e enunciação das questões concretas controversas a decidir.

      Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

      Nestas condições, a questão concreta controversa que importa resolver é, assim, a de saber se a sentença impugnada deve ser revogada e, consequentemente, substituída por acórdão que decrete a providência.

      Tendo em conta o conteúdo da sentença cuja reapreciação é pedida e das conclusões da alegação dos recorrentes, a resolução da referida questão pressupõe o exame das finalidades e dos pressupostos das providências cautelares não especificadas e a determinação do seu objecto e do da causa de que constituem dependência.

      Para recusar a providência a decisão impugnada adianta dois argumentos: a procedência da providência mais do conservar o direito, exercê-lo-ia; o processo próprio para levar a cabo a pretensão é uma acção de suprimento do consentimento (artº 1425.º ss. do Código de Processo Civil), processo, por sinal, de jurisdição voluntária, com a potencialidade de ser bem expedito. Deste raciocínio extraiu a conclusão que não se trata de uma providência antecipatória ou conservatória, o que inviabiliza a procedência do procedimento.

      Demonstrando-se que qualquer destas razões não colhe e que se verificam, no caso, os requisitos de que a lei faz depender a concessão da providência, a revogação da decisão recorrida é meramente consequencial. É a essa demonstração que se dirigem as considerações subsequentes.

      3.2. Finalidades e pressupostos da providência cautelar não especificada.

      Como é natural, nem sempre a regulação dos interesses conflituantes pode aguardar o proferimento de uma decisão definitiva do tribunal que resolva, de modo definitivo, o conflito. Por vezes, torna-se necessário obter uma composição provisória da situação controvertida antes da decisão definitiva.

      Nos termos gerais, tal composição provisória justifica-se sempre que ela seja necessária para assegurar a utilidade da decisão ou a efectividade da tutela jurisdicional (artº 2 nº 2, in fine, do CPC).

      Na verdade, o direito fundamental, de matriz constitucional, de acesso aos tribunais inclui, desde logo como sua dimensão ineliminável, o direito de acção (artº 20 nº 1 da CR Portuguesa). Mas o direito de acesso aos tribunais e de acção não é garantia suficiente. A tutela disponibilizada pelos tribunais deve ser efectiva (artº 20 nº 5 da CR Portuguesa). O princípio da efectividade da tutela judicial não é garantido apenas quando os direitos são efectivamente violados – mas igualmente quando exista o perigo dessa lesão. O princípio da tutela judicial efectiva exige, por isso, a existência de procedimentos cautelares de carácter urgente, destinados, precisamente a esconjurar o perigo de lesão dos direitos.

      Maneira que pode dizer-se que a todo o direito corresponde uma acção ou um procedimento não apenas para fazê-lo reconhecer – mas igualmente destinada a prevenir a violação dele ou a assegurar o efeito útil daquele reconhecimento (artº 2 nº 2 do CPC).

      A tutela processual provisória decorrente das decisões provisórias e cautelares é instrumental perante as situações jurídicas decorrentes do direito substantivo, porque o direito processual é meio de tutela dessas situações. A composição provisória realizada através da providência cautelar não deixa de se incluir nessa instrumentalidade, porque também ela serve os fins gerais de garantia que são prosseguidos pela tutela jurisdicional[1].

      A composição provisória que a providência cautelar torna disponível pode visar uma de três finalidades: aquela composição pode justificar-se pela necessidade de garantir um direito, de definir uma regulação provisória ou de antecipar a tutela requerida. Sempre que a tutela provisória se legitime pela exigência de garantir um direito, deve tomar-se uma providência que garanta a utilidade da composição definitiva, quer dizer, uma providência de garantia.

      Características comuns das providências cautelares são a provisoriedade, a instrumentalidade e a sumario cognitio.

      A provisoriedade da providência transparece tanto da circunstância de disponibilizar uma tutela distinta da que é fornecida pela acção principal de que é dependente, como da sua necessária substituição pela tutela que vier a ser definida nessa acção (artº 383 nº 1 do CPC); o objecto da providência cautelar não é a situação jurídica acautelada ou tutelada, mas, de harmonia com a sua finalidade, a garantia do direito, a regulação provisória da situação ou a antecipação da tutela requerida no respectivo procedimento (artº 384 nº 3 do CPC); as providências cautelares implicam uma apreciação sumária através de um procedimento simplificado. (artº 384 nºs 1 e 3, 385 nºs 1 e 2, 386 nº 1 do CPC)[2].

      A finalidade conspícua das providências cautelares é a de evitar a lesão grave ou dificilmente reparável proveniente da demora na composição definitiva, é a de obviar ao periculum in mora (artº 381 nº 1 do CPC). O periculum in mora é nitidamente um elemento constitutivo da providência requerida; a falta dele obsta ao seu decretamento.

      As providências cautelares reclamam apenas uma prova sumária do direito ameaçado, quer dizer, a demonstração da probabilidade da existência do direito para o qual se reclama tutela provisória, e do receio da sua lesão (artºs 381 nº 1, 384 nº 1, 387 nº 1, 403 nº 2, 407 nº 1 e 423 nº 1 do CPC). Quanto á intensidade da prova basta, portanto, uma mera justificação ou um fumus iuris.

      No caso, estamos face a providência cautelar não especificada (artº 381 nº 1 do CPC).

As providências não especificadas só podem ser requeridas quando nenhuma outra providência possa ser utilizada no caso concreto: nisto consiste o princípio da subsidiariedade dessas providências (artº 381 nº 2 do CPC)[3]. Não é lícito aplicar empregar este processo cautelar em caso a que corresponda processo cautelar típico[4].

      Além do requisito relativo à subsidiariedade, o decretamento deste tipo de providência depende da reunião, no caso, de pressupostos específicos: o fundado receio de que outrem, antes da proposição da acção ou no decurso dela, cause lesão grave ou de difícil reparação ao direito do requerente; a adequação da providência concretamente requerida à efectividade do direito ameaçado; o excesso considerável do dano que se pretende evitar relativamente ao prejuízo decorrente da sua concessão (artºs 381 nº 1 e 387 nºs 1 e 2 do CPC).

      Apesar da sua atipicidade, e, consequentemente da indeterminação do seu campo de aplicação, as providências cautelares comuns terão, em regra, como finalidade a regulação provisória de uma situação e a antecipação de uma tutela definitiva.

      No caso, os requerentes visam com a providência obter a antecipação de tutela do seu direito. A identificação desse direito será feita na discussão do ponto relativo ao objecto da providência e da acção definitiva de que constitui dependência.

       3.3. Objecto da providência e da acção principal.

      O objecto da providência cautelar não é a situação jurídica acautelada, mas de harmonia com a sua finalidade, por exemplo, a antecipação da tutela definitiva. Na verdade, mesmo quando através da providência se antecipa a tutela definitiva, o objecto da providência continua a ser não a situação cuja tutela se antecipa – mas a própria antecipação dessa tutela para a situação. A circunstância de os objectos da providência cautelar e da acção principal serem distintos explica, por exemplo, que entre a providência e a acção definitiva não ocorra uma situação de litispendência e que a decisão proferida na primeira não seja vinculativa na segunda (artºs 383 nº 4, 497 nº 1 e 498 nº 1 do CPC).

      Cada prédio é necessariamente vizinho de outro. Os conflitos entre os titulares de direito sobre prédios constituem por isso uma inevitabilidade.

      A solução de conflitos entre prédios contíguos pode operar através das restrições ou de limitações de direito privado, que delimitam negativamente o direito real atingido[5]. À restrição relativamente ao titular do direito real delimitado correspondem posições activas, maxime verdadeiros direitos subjectivos em relação aos terceiros, beneficiários da excepção à proibição geral de não intervenção na situação de afectação em que se encontram as coisas, em relação aos titulares direitos sobre elas.

      As relações de vizinhança redundam em conflitos entre titulares de direitos sobre prédios vizinhos, decorrendo do exercício de um direito no próprio prédio que se repercute no exercício do direito no prédio vizinho.

      Entre as restrições de direito privado do direito real de propriedade conta-se a limitação imposta directamente pela lei e cunhada por ela com o nome de passagem forçada momentânea (artº 1349 do Código Civil). A designação é enganadora: a restrição compreende várias realidades que nada têm a ver com uma passagem em si, como por exemplo, levantar andaime, colocar objectos, etc. (artº 1349 nº 1 do Código Civil).

      A previsão da restrição refere-se apenas ao acesso para reparar algum edifício ou construção. Porém, ela deve ser interpretada extensivamente de modo a que a sua estatuição valha igualmente para obras de diversa natureza, como por exemplo, o levantamento mesmo da construção, ou a sua demolição[6]. Essencial é sempre que a utilização do prédio alheio seja indispensável: se houver outro meio de realização da obra, ainda que mais oneroso, não assiste ao terceiro o direito subjectivo em que, relativamente a ele, se resolve a restrição.

      Como a restrição é imposta directamente por lei e não exige, portanto, a prévia constituição de uma servidão ou uma autorização judicial, a recusa do proprietário no acesso seu prédio constitui um acto ilícito: verificados os demais pressupostos, é mesmo admissível o recurso, pelo interessado à acção directa (artº 336 do Código Civil).

      A actuação do terceiro sobre o prédio alheio pode ser danosa. Naturalmente, reconhece-se ao proprietário do prédio sujeito à restrição o direito de ser indemnizado (artº 1249 nº 3 do Código Civil). Trata-se caracteristicamente de responsabilidade por facto lícito.

      Na técnica da lei, é o proprietário que permite a entrada no seu prédio, embora esteja obrigado à permissão, portanto, a consentir no acto (artº 1349 nº 1 do Código Civil). E se não consentir?

      Se o proprietário não consentir, a ideia que logo ocorre é a de reconhecer ao interessado o direito de pedir judicialmente o seu suprimento, através do processo especial de jurisdição voluntária de suprimento de consentimento no caso de recusa (artº 1425 do Código de Processo Civil).

      Mas esta ideia não é juridicamente exacta.

      É verdade que a lei adjectiva admite que, quando para a realização de um acto jurídico é requisito necessário o consentimento de certa pessoa e esta o recusar, se possa suprir judicialmente a falta desse consentimento. Poderia, por isso, pensar-se que é sempre licito suprir o consentimento, qualquer que seja o acto jurídico de que se trate. No entanto, a verdade é que o processo de suprimento do consentimento não foi organizado para qualquer acto – mas apenas para o pedido de suprimento do consentimento, nos casos em que a lei o admite (artº 1425 nº 1, in fine, do Código Civil).

      É, portanto, à lei substantiva e não à lei adjectiva que compete fixar os casos em que a recusa ou a falta de consentimento pode ser suprida. E o princípio geral não pode ser senão este: o consentimento só pode ser suprido judicialmente quando a lei reguladora do respectivo acto jurídico permitir o suprimento. Se a lei nada disser a tal respeito, tem de concluir-se que o suprimento é inadmissível[7].

      Maneira que face a um acto concreto de recusa de consentimento necessário para prática de um acto jurídico, o primeiro problema a resolver, inteiramente de direito substancial, é o de saber se o consentimento pode ser suprido. Se a resposta for negativa, e, portanto, se se pedir, através daquele processo especial o suprimento de um consentimento que, segundo a lei substantiva, não pode ser suprido, a acção deve improceder visto que o autor não tem o direito de suprir o consentimento.

      A lei substantiva admite o suprimento do consentimento, v.g. dos pais ou do tutor no casamento de menor de 18 anos e maior de 16 anos e dos cônjuges nos casos em que o consentimento conjugal é legalmente exigido (artºs 1612 nºs 1 e 2 e 1684 nº 3 do Código Civil) – mas a verdade é que não admite o suprimento do consentimento do proprietário na entrada por terceiro no seu prédio.

      Da restrição de vizinhança imposta ao proprietário resulta para o terceiro interessado um direito – mas esse direito não é, seguramente, o de fazer suprir judicialmente o consentimento do titular do direito do direito real sobre o prédio a ela sujeito.

      A faculdade de acesso, objecto da restrição de vizinhança apontada, é reconhecida a todo aquele que tenha um direito de gozo, seja ele real ou não, sobre o prédio onde pretenda realizar as obras.

      Na espécie sujeita, o direito que os requerentes pretendem acautelar através do procedimento é o seu direito real de propriedade sobre prédio imediatamente contíguo ao do réu, dado que é favor desse direito real de gozo que se deve entender estabelecida, no caso, a restrição do direito de idêntica natureza imposta ao requerido.

      Portanto, ao interessado a quem seja recusada, nas condições assinaladas, o consentimento na actuação sobre prédio alheio, não se coloca verdadeiramente uma alternativa entre o procedimento cautelar e o processo de suprimento daquele consentimento: a lei substantiva não lhe reconhece este último direito.

Nestas condições, a providência cautelar que vise antecipar a tutela do direito real de gozo ameaçado não é dependência do processo de suprimento, dado que esta acção não disponibiliza a tutela definitiva correspondente – mas da acção que tenha directamente por objecto aquele mesmo direito real e, eventualmente – como a recusa do proprietário é um acto jurídico ilícito – o dever de indemnizar o interessado do dano sofrido em consequência dela (artº 483 nº 1 do Código Civil).

      As providências cautelares, já se disse, têm por função obter uma composição provisória. São, por isso, dependência de uma acção cujo objecto é a própria situação acautelada ou tutelada, que tanto pode ser declarativa como executiva (artº 388 nº 1 do CPC). Por força desse nexo de dependência, a providência caduca se a acção principal for julgada improcedente, se o réu ou requerido for nela absolvido da instância ou o autor ou requerente a não propuser dentro do prazo legal (artº 389 nº 1 c) e d) do CPC).

      A providência cautelar pode ser pedida mesmo quando não esteja pendente nenhuma acção (artº 383 nº 1, in fine, do CPC). Desta possibilidade decorre, por sua vez, a de a acção principal nunca chegar a ser proposta.

      Caso isso suceda, a lei declara a caducidade da providência, mas a verdade é que essa caducidade nem sempre produz efeitos práticos (artº 389 nº 1 a) do CPC). Isso sucederá sempre que, apesar da caducidade da providência, por a acção principal não ter sido instaurada, o requerente tenha atingido completamente os seus objectivos. Exemplo característico será o caso de a providência se destinar a esconjurar uma situação de perigo temporalmente situada ou delimitada ou se esgotar ou compuser definitivamente a situação jurídica acautelada. Assim, se o requerente obtém a condenação de abstenção do requerido a outorgar no dia x uma escritura pública ou realizar na data y um dado evento - apesar da caducidade da providência, a verdade é que o fundamental efeito jurídico visado pela providência foi inteiramente alcançado.

      Uma consequência do problema estrutural da morosidade da justiça portuguesa é o recurso cada vez mais frequente às providências cautelares como forma de solucionar litígios, sobretudo quando essas providências antecipem a tutela definitiva que só com acção a principal deveria ser disponibilizada ou tornem essa tutela definitiva dispensável[8].

      Este efeito perverso pode ser limitado com a responsabilidade que a lei impõe ao requerente face ao requerido, no caso de caducidade da providência resultante da não proposição da acção principal (artº 390 do Código Civil). Mas a verdade é que essa responsabilidade não compreende todas as situações de caducidade da providência cautelar.

      Em todo o caso, em vista da resolução do caso do recurso, a ideia a reter é a seguinte: a dependência da providência cautelar perante a acção principal não é, do ponto de vista da sua eficácia, absoluta: essa dependência não impede, por isso que, em certas hipóteses, a providência possa substituir todos os efeitos da acção principal correspondente[9].

      Mas esta constatação – ao contrário do sucederia caso devesse admitir-se sem reserva a doutrina sustentada na decisão impugnada - não impede, sob pena de entorse grave do direito à tutela judicial efectiva, o recurso ao procedimento cautelar. Não só não o impede como, aliás, o impõe, porque esse recurso é, a mais das vezes, a única forma de assegurar a tutela do direito sujeito a uma situação de perigo.

Isto serve, de um aspecto, para mostrar que os argumentos expendidos na sentença cuja bondade se examina - relativos à acção adequada à tutela definitiva do direito que os requerentes pretendem acautelar através da providência e à identidade do objecto do procedimento e da acção principal - não procedem, e, de outro, para explicar a jurisprudência que, com o apoio da doutrina, admite, no caso figurado no processo, o recurso à providência cautelar não especificada[10]

      A leitura da matéria de facto julgada provada pelo tribunal que proferiu a decisão recorrida mostra que a parede poente da casa edificada pelos recorrentes – que confina imediatamente com o prédio do requerido – se encontra por acabar, faltando-lhe o revestimento destinado à sua selagem ou impermeabilização, para cuja execução é, em absoluto, necessária a colocação, naquele prédio, pelo prazo de um mês, de um andaime e a entrada nele de trabalhadores, materiais e ferramentas, actuação em que o requerido não consente.

      Por virtude da ausência de revestimento e a consequente exposição directa da parede às chuvas, a água infiltra-se no interior do edifício, tornando-o húmido, gerando manchas e fundos, e impedindo a conclusão dos restantes trabalhos. Esse risco é exponencial se considerarmos mal saímos ainda da estação do inverno, e em que, portanto, a probabilidade de queda de chuva intensa e forte é maior.

      Neste contexto, a recusa do requerido em consentir na colocação, no seu prédio, do andaime e a entrada nele de trabalhadores, materiais e utensílios, cria receio fundado de lesão grave do direito real dos requerentes; a providência é adequada para esconjurar o perigo que ameaça aquele direito e o dano que do decretamento dela resulta para o direito do requerido – que os requerentes deverão indemnizar – não excede o prejuízo que com ela se pretende evitar, não existindo providência nominada que, no caso caiba.

      Ergo, estão reunidas todos os requisitos para que se decrete a providência pedida pelos recorrentes.

      Importa, portanto, revogar a decisão impugnada e decretar a providência pedida.

      Esta providência goza de garantia penal (artº 391 do CPC).

      O recorrido deverá suportar, porque sucumbe no procedimento e no recurso, as respectivas custas (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

      4. Decisão.

      Pelos fundamentos expostos, dá-se provimento ao recurso, revoga-se a sentença impugnada e, consequentemente, condena-se o requerido, C..., a permitir a passagem forçada momentânea dos requerentes, A... e cônjuge, B..., pelo seu prédio, composto por casa de habitação e logradouro, sito na Rua das Pedregueiras, nº 71, em Mira, possibilitando o acesso dos seus contratados, materiais, ferramentas e a colocação de andaimes, durante um mês.

Custas, do procedimento e do recurso, pelo recorrido.

                                                     08.04.08

                                               Henrique Antunes

                                               Gregório da Silva Jesus

                     Regina Rosa

[1] Rita Lynce de Faria, A Função Instrumental da Tutela Cautelar não Especificada, Lisboa, UCP, 2003, págs. 74 a 95. Na medida em que contribui decisivamente para o êxito dessa tutela, a composição provisória disponibilizada pela providência cautelar fundamentar-se, constitucionalmente, na garantia do acesso ao direito e aos tribunais (artº 20 nº 2 da CR Portuguesa).
[2] É o carácter sumário da cognição que justifica que certas providências possam ser decretadas sem audiência prévia da outra parte (artºs 3 nº 2, 394 e 408 nº 1 e 385 nº 1 do CPC). Nos casos em que entenda que não deve ouvir o requerido, o juiz deve, porém, sob pena de nulidade da decisão, fundamentar esse julgamento: cfr. Ac. do STJ de 30.04.96, CJ, STJ, 96, II, pág. 46.
[3] L. P. Moitinho de Almeida, Providências Cautelares Não Especificadas, págs. 17 e 18 e José dos Santos Silveira, Processos de Natureza Preventiva e Preparatória, págs. 73 e 74.
[4] Acs. RL de 31.1.61, JR, 1961, pág. 229, STJ de 22.3.74 e 15.1.80, BMJ nºs 235, pág. 237 e 293, pág. 230; Manuel Baptista Lopes, Dos Procedimentos Cautelares, págs. 95 e 96.
[5] António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Reprint, Lex, Lisboa, 1879 pág.419, Rui Pinto Duarte, Curso de Direito Reais, Principia, Cascais, 2002, pág. 75 e José Alberto González, Restrições de Vizinhança (de interesse particular), Quid Iuris, Lisboa, 2003 pág. 35.
[6] Henrique Mesquita, Direitos Reais, Coimbra, 1967, págs. 146 e 147 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2ª ed., vol. III, Coimbra Editora, pág. 184.
[7] José Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. II, Coimbra, 1982, pág. 459.
[8] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, págs. 49 e 50.
[9] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pág. 247.
[10] Acs. da RP de 17.01.73, BMJ nº 223, pág. 285, RC de 31.01.89, CJ, 89, I, pág. 52 e RL de 05.12.95, www.dgsi.pt. Na doutrina concorda com a solução, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pág. 244. Não parece que Mota Pinto, indicado pelos recorrentes nas suas alegações, deva ser convocado para o debate. Na verdade, compulsada a obra e o local indicado pelos agravantes – Direitos Reais, Almedina, Coimbra, 1976, pág. 245 – verifica-se que aquele autor se limita a descrever o conteúdo da restrição e a assinalar que se não trata de uma servidão.