Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
210/09.5TBTCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
DELIBERAÇÃO SOCIAL
DIVIDENDOS
Data do Acordão: 12/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.9, 21, 22, 58, 217, 294 CSC, 236, 334, 980 CC
Sumário: 1. - Os arts.217 nº1 e 294 nº1 do CSC, ao estatuírem a regra da repartição de, pelo menos, metade dos lucros de exercício, têm natureza supletiva, não requerendo qualquer exigência específica para a derrogação da mesma, a não ser a sua previsão directa ou indirecta no contrato social, ou a tomada de deliberação em sentido diverso e com a maioria legalmente fixada.

2. - Não sendo alegados e provados factos integradores de exercício abusivo do direito de voto (artigo 58º, nº 1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais), é válida a deliberação tomada em assembleia geral de sociedade anónima, por maioria simples do capital social da sociedade, no sentido de não serem distribuídos dividendos, deliberação fundada em cláusula do contrato social que comete à assembleia geral a decisão sobre o destino dos lucros de exercício após dedução de previsões e reservas, nos termos da lei e que permite que a totalidade dos lucros de exercício seja levada a reservas.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A (…) instaurou acção declarativa sob forma sumária contra P.D.L. – (…) S.A. pedindo a anulação da deliberação tomada na assembleia geral da ré, a 16 de Junho de 2009, no sentido de a totalidade dos lucros distribuíveis serem afectados à constituição de reservas livres e a condenação da ré ao pagamento ao autor da quantia de € 7.682,99, a título de lucros relativos ao exercício de 2008, acrescida de juros à taxa legal contados desde o dia da citação até efectivo e integral pagamento.

            O autor alega para fundamentar as suas pretensões, em síntese, que é titular de 498750 acções com o valor nominal de € 1,00, sendo o capital social da ré no montante de € 1.226.460,00 e que, em assembleia geral da ré, realizada a 16 de Junho de 2009, accionistas da ré, representando 50,025 % do capital social da ré, sem o seu voto, deliberaram levar a reservas todo o lucro líquido apurado no exercício de 2008, no montante global de € 32.431,00.

            A ré foi citada para, querendo, contestar no prazo e com a cominação legal aplicável.

            A ré contestou pugnando pela validade substancial da deliberação impugnada pelo autor, alegando que a mesma foi tomada em conformidade com o disposto no artigo 14º dos estatutos da ré, previsão contratual que constitui uma derrogação ao disposto no artigo 294º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, concluindo pela total improcedência da acção.

            O autor impugnou os documentos oferecidos pela ré com a contestação.

            Fixou-se o valor da causa em € 30.809,00, determinando-se que a acção prosseguisse os seus termos sob a forma ordinária, sendo ambas as partes notificadas para reforçarem a taxa de justiça inicial.

            Após o reforço das taxas devidas, designou-se audiência preliminar na qual se frustrou a tentativa de conciliação das partes

Em conclusão adrede aberta após a realização da audiência preliminar, lavrou-se decisão que julgou improcedente a acção, sendo a ré absolvida do pedido.

            Inconformado com esta decisão, o autor interpôs recurso de apelação contra a mesma pugnando pela sua revogação e pela procedência da acção, oferecendo as seguintes conclusões:

“A - Foi deliberado, na assembleia geral da R. de 16 de Junho de 2009, com votos correspondentes a 50,025% do capital social, não distribuir lucros pelos sócios, destinando-se os lucros distribuíveis à constituição de reservas livres.

B - Tal deliberação não respeita o direito subjectivo do recorrente à distribuição de, pelo menos, 50% dos lucros distribuíveis.

C - O objectivo fundamental de qualquer sociedade é o de realizar lucros, repartindo-os entre os sócios (artigo 980.º do CC e artigo 21.º, n.º 1, a) do CSC).

D - A regra prevista no artigo 294.º, n.º 1, do CSC é a de que deve ser distribuído ao accionista metade do lucro distribuível, podendo tal regra ser afastada: a) por deliberação em contrário por maioria de 3/4; b) por cláusula estatutária em contrário.

E - A doutrina nacional (bem como o Acórdão do TRP citado) considera que a cláusula do pacto social que afaste o regime supletivo, dispondo diversamente sobre a distribuição de metade do lucro, tem de cumprir certos requisitos específicos:

a) ser expressa, no sentido de ocorrer mais do que uma mera reprodução da regra de competência da Assembleia para a destinação dos lucros;

b) regular especificamente a matéria da distribuição dos lucros, obrigando à distribuição (total ou parcial) ou proibindo-a (total ou parcialmente);

c) determinar a maioria com que a assembleia pode deliberar sobre a não-distribuição dos lucros (simples? 3/4? unanimidade?).

F - A cláusula 14.ª dos Estatutos da R. não cumpre as exigências que a doutrina tem exigido para que se possa derrogar o regime legal supletivo atinente à obrigatoriedade de distribuição de, pelo menos, metade do lucro distribuível.

G - Tal cláusula limita-se a reproduzir ou repetir sincopadamente, à semelhança do que acontece com inúmeras normas estatutárias, aquilo que é estabelecido em várias normas do CSC, designadamente as relativas à competência genérica da assembleia geral relativa à aplicação de resultados e à possibilidade de constituição de reservas livres e às normas do POC sobre provisões, não sendo uma norma pensada para derrogar a disposição supletiva do artigo 294.º.

H - O n.º 2 da cláusula 14.º do pacto apenas regula, redundante e desnecessariamente, a matéria de competência deliberativa dos sócios quanto à constituição de reservas. Sucede que a lei impõe obstáculo de índole procedimental à afectação integral dos lucros de exercício a reservas livres consubstanciado na previsão de maioria qualificada.

I – Ou seja, em termos materiais, a lei admite a afectação total dos lucros a reservas livres; em termos procedimentais, tal deliberação só será válida se, no caminho para que a ela se chegue, se obtenha maioria qualificada. A lei admite que a regra procedimental supletiva seja alterada, prevendo-se, designadamente, no pacto social a maioria simples.

J – uma cláusula – como a que está em causa – que reproduze, de forma lata e sem qualquer conteúdo conformador, para uma assembleia futura a deliberação sobre a distribuição dos lucros, não consubstancia cláusula derrogatória do regime legal procedimental supletivo, o que conduz, afinal, à exigência de que a deliberação futura de tal assembleia seja tomada por maioria de 3/4 (nos termos previstos no artigo 294.º do CSC, cujo regime supletivo não foi afastado contratualmente).

K – Uma cláusula com carácter genericamente remissivo, que remete, de forma lata e sem conteúdo conformador, para uma assembleia futura a deliberação sobre a distribuição dos lucros, não consubstancia cláusula derrogatória do regime supletivo, o que conduz, afinal, à exigência de que a deliberação futura de tal assembleia seja tomada por maioria de 3/4 (nos termos da 2.ª excepção do artigo 294.º).

L - Com efeito, sustenta parte da doutrina que a cláusula estatutária diferente, permitida pelo n.º 1 do artigo 294.º, tem de ter por objecto imediato a medida da repartição do lucro distribuível não podendo consistir na atribuição a futuras assembleias da competência para deliberar sobre a matéria.

M - Ou seja, tal cláusula não pode remeter para uma futura deliberação dos sócios a definição da medida do lucro a distribuir porque desse modo não se estará a derrogar o que é supletivo na norma – a distribuição aos accionistas de metade do lucro do exercício –, mas a regra imperativa, destinada a proteger as minorias, que impõe a maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social.

N - Pois a ideia de que o lucro é um direito individual para protecção das minorias exigia que tal direito não pudesse ser afastado por deliberação de uma maioria qualquer; mas esse desiderato seria posto em causa se fosse admitida uma cláusula estatutária atribuindo à assembleia, que reúne anualmente para aprovas as contas sociais, competência para, por maioria simples, deliberar sobre a aplicação dos resultados; por isso, essa cláusula é ilegal: o direito do sócio a metade do lucro de exercício distribuível, embora renunciável, só poderá ser afastado por deliberação dos sócios tomada por maioria qualificada.

O - A deliberação impugnada é anulável, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 58.º, n.º 1, alínea a) e 294.º, ambos do CSC, tendo a sentença que ora se sindica incorrido em errada interpretação do direito aplicável e, em consequência, incorrido em violação dos artigos 58.º e 294.º do CSC.”

            A ré ofereceu contra-alegações em que sustenta a total improcedência do recurso.

            Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

A única questão a decidir é a de saber se a deliberação tomada em assembleia geral da ré, a 16 de Junho de 2009, por uma maioria de accionistas representativos de 50,025% do capital social da ré, no sentido de não haver lugar a quaisquer lucros do exercício de 2008 enferma ou não do vício de anulabilidade, por violação de lei substantiva.

3. Fundamentos de facto resultantes da decisão a quo que não foram objecto de qualquer impugnação, não havendo qualquer fundamento legal para a sua alteração oficiosa nesta instância


3.1

P.D.L. (…), S.A. é uma sociedade anónima cujo objecto social é a extracção, transformação e comercialização de granitos, afins e outras rochas.

3.2

A (…) é titular de 498.750 acções do capital social da P.D.L. – (…), S.A. cujo montante é de € 1.256.460,00 (um milhão duzentos e cinquenta e seis mil quatrocentos e sessenta euros), constituído por acções ao portador, com o valor nominal de € 1,00 (um euro), encontrando-se tal capital dividido nas seguintes proporções:

a) F (…) – 49,925%;

b) A (…) – 49,875%;

c) B (…) – 0,05%;

d) C (…) – 0,05%;

e) N (…) – 0,05%;

f)  C (…) – 0,05%.


3.3

Com data de 8/05/2009, no sítio da internet Publicações Online de Acto Societário e de outras entidades, in http://publicacoes.mj.pt, foi publicada a seguinte convocatória:

Assembleia-geral anual (…) a ter lugar no próximo dia 16 de Junho de 2009, pelas 12 horas, na sede social da PDL – (…), S.A., sita no ..., ..., com a seguinte ordem de trabalhos:

1.º - Deliberar sobre o Relatório de Gestão e Contas do Exercício de 2008;

2.º - Deliberar sobre a aplicação de resultados;

3.º - Proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da Sociedade;

4.º - Aprovação da remuneração dos Órgãos Sociais para o ano de 2009, com efeito retroactivo à data de 1 de Janeiro de 2009;

5.º - Ratificação das deliberações sociais adoptadas na assembleia-geral de 21 de Março de 2009.


3.4

No dia 21 de Março de 2009 teve lugar uma primeira assembleia geral anual e nela foram aprovadas, com os votos favoráveis dos accionistas (…) as seguintes deliberações:

1.º - Aprovação do Relatório de Gestão e Contas do Exercício de 2008;

2.º - Deliberada a aplicação de resultados, destinando-se € 1.622 a reserva legal e € 30.809,00 a resultados transitados;

3.º - Aprovada a administração e fiscalização da sociedade;

4.º - Aprovada a remuneração dos Órgãos Sociais para o ano de 2009, com efeito retroactivo à data de 1 de Janeiro de 2009.


3.5

Na assembleia-geral de 16 de Junho de 2009, a sociedade, para além de deliberar novamente relativamente a matéria sobre a qual já havia deliberado na reunião de 21 de Março de 2009, deliberou ainda ratificar as deliberações tomadas na primeira assembleia.

3.6

No âmbito da assembleia-geral referida em 3.3 e no que concerne ao ponto 2 da ordem de trabalhos, foi deliberado, com os votos favoráveis dos accionistas (…), correspondentes a 50,025% do capital social, levar a reservas todo o lucro líquido apurado do exercício de 2008, no montante de € 32.431,00 sendo € 1.622,00 para reserva legal e € 30.809,00 para resultados transitados.

3.7

O artigo 14.º dos estatutos da P.D.L. (…), S.A., sob a epígrafe “atribuição de resultados”, prevê que:

1 – Os lucros líquidos da sociedade apurados em cada exercício depois de deduzidos ou reforçadas as previsões[1] e reservas impostas por Lei, terão a aplicação, para reservas ou dividendos que a Assembleia Geral deliberar.

2 – Os lucros de cada exercício poderão até à sua totalidade ser levados a reservas.

4. Fundamentos de direito

Nos termos do disposto no artigo 9º, nº 3, do Código das Sociedades Comerciais, “os preceitos dispositivos desta lei só podem ser derrogados pelo contrato de sociedade, a não ser que este[2] expressamente admita a derrogação por deliberação dos sócios.”

Esta norma cria um regime jurídico específico para as disposições supletivas do Código das Sociedades Comerciais, apenas permitindo a derrogação de tais disposições por força do disposto no contrato social ou quando neste se preveja a derrogação por deliberação dos sócios. Este regime jurídico justifica-se por força da natureza plurilateral do contrato de sociedade e ainda porque o que consta do contrato de sociedade implica, necessariamente, a unanimidade dos outorgantes do contrato de sociedade.

A previsão legal que analisamos não exclui a derrogação de normas supletivas do Código das Sociedades Comerciais por simples deliberação dos sócios[3], nos casos em que a previsão dispositiva em causa preveja ela própria tal possibilidade[4]. Assim sucede, nomeadamente, nos artigos 151º, nº 1, 191º, nº 2, 217º, nº 1 e 294º, nº 1, todos do Código das Sociedades Comerciais.

Qualquer sócio ou accionista tem o direito de quinhoar nos lucros (artigo 21º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais), sendo a participação nos lucros, na falta de preceito especial ou convenção em contrário, segundo a proporção dos valores nominais das respectivas participações no Capital (artigo 22º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais).

Exceptuando o caso dos sócios de indústria, no que tange a responsabilidade, nas relações internas, pelas perdas sociais da sociedade em nome colectivo (artigo 178º do Código das Sociedades Comerciais[5]), é nula a cláusula que exclui um sócio ou accionista da comunhão nos lucros ou que o isente de participar nas perdas (artigo 22º, nº 3, do Código das Sociedades Comerciais), bem como a que deixar ao critério de terceiro a divisão dos lucros (artigo 22º, nº 4, do Código das Sociedades Comerciais).

O escopo lucrativo é um objectivo contratual dos sócios ou accionistas, não sendo, contudo, um elemento essencial do contrato de sociedade[6].

 Importa “distinguir o direito geral e abstracto à repartição dos lucros (..), o chamado direito ao lucro que é imposto pelo fim lucrativo do contrato de sociedade, e o direito concreto, o chamado direito ao dividendo (…), que já é um verdadeiro direito subjectivo, um direito de crédito reclamável em juízo, que surge apenas após ter sido deliberada, em assembleia geral, a sua distribuição”[7].

Seguindo o autor que temos vindo a citar, nas “sociedades por tempo indeterminado, pensamos, porém, que seria naturalmente patológica a constituição exagerada de fundos de reserva eventuais, com o consequente diferimento indefinido dos lucros de cada exercício; nem parece correcta a afirmação de que só o lucro final é efectivo, não passando os lucros periódicos (ou de exercício) de meros lucros presumíveis e, portanto, “em boas contas, só aqueles deveriam ser repartidos pelos sócios conglobados com os demais valores do activo””[8].

Em termos de normalidade, face à imposição legal de verificação anual da situação da sociedade, os lucros de exercício, havendo-os, são distribuídos anualmente pelos sócios ou accionistas, sem prejuízo da constituição de reservas eventuais, de acordo com uma administração prudente e de molde a fazer face às sempre variáveis circunstâncias da conjuntura económica.

A fim de evitar uma “ditadura” da maioria sobre a minoria, o legislador previu, supletivamente, para as sociedades por quotas e para as sociedades anónimas, a regra da repartição de pelo menos metade dos lucros de exercício (artigos 217º, nº 1 e 294º, nº 1, ambos do Código das Sociedades Comerciais[9]).

A interpretação doutrinal e jurisprudencial dos dois normativos que se acabam de citar está longe de ser pacífica doutrinal e jurisprudencialmente.

Para alguns, os sócios ou accionistas teriam sempre garantido o direito a quinhoar relativamente a cinquenta por cento do lucro distribuível em cada exercício[10]. Em abono desta tese argumenta-se com a razão de ser na participação numa sociedade que leva a que deva estar assegurada, com a regularidade possível, a distribuição dos rendimentos entretanto gerados. Tratar-se-ia do entendimento que melhor harmonizaria os interesses dos sócios em receberem a remuneração do capital que investiram e o interesse social no reforço dos capitais próprios.

Outros sustentam que os normativos em causa são supletivos em toda a sua extensão, exigindo contudo uma derrogação expressa daquelas previsões fixando-se uma percentagem diversa da legalmente prevista mediante cláusula constante do contrato social[11], ou prevendo-se no contrato social a possibilidade de supressão da distribuição dos dividendos ou de uma deliberação da assembleia geral que incida sobre esta matéria, com uma certa maioria[12] ou mediante deliberação tomada por maioria qualificada de pelo menos três quartos dos votos correspondentes ao capital social.

Finalmente, sustentam outros que os normativos em análise são supletivos, não requerendo qualquer exigência específica para a derrogação da regra legalmente prevista, a não ser a sua previsão directa ou indirecta no contrato social, ou a tomada de deliberação em sentido diverso e com a maioria legalmente fixada. Nesta interpretação admite-se que o contrato social preveja que a assembleia geral delibere sobre a distribuição dos dividendos, entendendo-se, nesta hipótese, que a assembleia geral poderá, por maioria simples, tomar uma deliberação que, por exemplo, decida não distribuir quaisquer dividendos[13].

Esta última é a interpretação que nos parece melhor se conformar com a letra da lei, com a regra geral da liberdade contratual, na vertente da livre conformação do conteúdo dos contratos (artigo 405º, nº 1, do Código Civil) e com os interesses dos sócios ou accionistas pois que, outorgando um contrato social ou participando numa sociedade que contenha uma cláusula social deste teor, o sócio ou accionista sabem que competirá à maioria dos titulares de quotas ou de acções representativas do capital social a definição do destino dos dividendos[14].

Nos casos em que a deliberação sobre o destino dos dividendos seja tomada em prejuízo da sociedade e de outros sócios, restará ao sócio prejudicado, se for caso disso, a instauração de acção de anulação da deliberação social, ao abrigo do previsto no artigo 58º, nº 1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais.

No caso em apreço, a deliberação impugnada baseou-se na cláusula catorze do contrato social da ré, do seguinte teor:

1 – Os lucros líquidos da sociedade apurados em cada exercício depois de deduzidos ou reforçadas as previsões e reservas impostas por Lei, terão a aplicação, para reservas ou dividendos que a Assembleia Geral deliberar.

2 – Os lucros de cada exercício poderão até à sua totalidade ser levados a reservas.

Importa interpretar esta cláusula aplicando os critérios vazados no artigo 236º do Código Civil, ainda que numa feição mais objectivista[15].

A cláusula interpretanda insere-se num capítulo intitulado “Atribuição de Resultados”.

Este elemento sistemático aponta no sentido do fim precípuo da cláusula ter sido a definição de regras próprias para a atribuição de resultados e não apenas reproduzir uma norma de competência como é a do artigo 376º, nº 1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais.

Os accionistas, face a esta inserção sistemática da cláusula em apreço, terão a percepção imediata do escopo de tal norma.

A cláusula compõe-se de duas previsões distintas: na primeira, comete-se à assembleia geral que delibere sobre o destino dos lucros líquidos de cada exercício, depois de deduzidas as previsões ou reservas impostas por lei; na segunda, permite-se que a totalidade dos lucros do exercício seja convertida em reservas.

Deferindo-se à assembleia geral o poder de deliberar sobre o destino dos lucros líquidos do exercício, depois de deduzidas as previsões ou reservas impostas por lei, qualquer accionista, conhecendo as regras gerais de funcionamento e de tomada de deliberações em assembleia geral das sociedades anónimas (artigo 386º do Código das Sociedades Comerciais), fica em condições de entender que as deliberações sobre essas matérias poderão ser validamente tomadas por maioria simples. O conhecimento da regra da maioria do capital no processo deliberativo das assembleias gerais das sociedades comerciais é intuitivo, dada a natureza económica do objecto social das sociedades comerciais. Pode assim concluir-se que o autor, face àquela primeira previsão estatutária, estava em condições de perceber exactamente o seu alcance, isto é, que a assembleia geral podia deliberar, por maioria simples, sobre o destino dos lucros líquidos do exercício, depois de deduzidas as previsões ou reservas impostas por lei.

A segunda previsão estatutária citada tem um texto tão inequívoco que nem o autor se atreve a contestar que possa ser tomada em assembleia geral da ré deliberação que destine a totalidade dos lucros de exercício a reservas, apenas insistindo que essa deliberação sempre teria que ser tomada por accionistas que representassem pelo menos três quartos do capital social. Porém, vimos já que a primeira previsão analisada permite que o destino dos dividendos possa ser decidido em deliberação tomada em assembleia geral com maioria simples do capital social da ré.

No caso em apreço, a deliberação cuja anulação é requerida pelo autor foi tomada com os votos favoráveis de accionistas que representavam 50,025 % do capital social de ré, tendo-se decidido levar a reservas todo o lucro líquido apurado do exercício de 2008, no montante de € 32.431,00 sendo € 1.622,00 para reserva legal e € 30.809,00 para resultados transitados.

A deliberação anulanda foi tomada com o voto favorável da maioria dos accionistas da ré, pelo que tem guarida no artigo 14º, do contrato social da ré, não enfermando de ilegalidade por violação do disposto no artigo 294º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, na interpretação que sufragamos e que antes expusemos.

Finalmente, o autor não alegou factos passíveis de integrar abuso de direito na tomada da deliberação (artigo 58º, nº 1, alínea b), do Código das Sociedades Comerciais), pelo que não é viável a invalidação da deliberação impugnada por esta via.

Por tudo quanto precede, conclui-se pela improcedência do recurso e pela integral confirmação da sentença recorrida.

5. Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por A (…) e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida datada de 11 de Junho de 2010; custas do recurso de apelação a cargo do recorrente, sendo a taxa de justiça fixada de acordo com a tabela I-B, anexa ao Regulamento das Custas Processuais.


***

Carlos Gil ( Relator )
Fonte Ramos
Carlos Querido


[1] Referir-se-á esta designação às provisões previstas na conta 67 do POC?
[2] Discute-se se este pronome demonstrativo masculino introduzido por força de rectificação ao Código das Sociedades Comerciais operada pelo decreto-lei nº 280/87, de 08 de Julho em substituição do pronome demonstrativo feminino que constava da primeira publicação do Código das Sociedades Comerciais constituiu verdadeiramente uma rectificação, se foi uma alteração encoberta ou se resultou de simples lapso (sobre esta questão, veja-se, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Artigos 1º a 19º, Almedina 2009, Pinto Furtado, páginas 360 a 363).
[3] Por simples deliberação dos sócios não significa que para a aprovação da deliberação em causa baste uma maioria simples. Tudo dependerá da previsão legal que preveja a derrogação da norma supletiva, a qual poderá bastar-se com uma maioria simples (veja-se o artigo 151º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais), exigir uma maioria qualificada (vejam-se os artigos 217º, nº 1 e 294º, nº 1, ambos do Código das Sociedades Comerciais) ou requerer a unanimidade (artigo 191º, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais).
[4] Neste sentido veja-se, de novo, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Artigos 1º a 19º, Almedina 2009, Pinto Furtado, página 363.
[5] Nas sociedades por quotas e anónimas não são admitidas contribuições de indústria (artigos 202º, nº 1 e 277º, nº 1, ambos do Código das Sociedades Comerciais).
[6] Sobre esta questão e neste sentido veja-se, Curso de Direito das Sociedades, 5ª edição revista e actualizada, com a colaboração de Nelson Rocha, Almedina 2004, Jorge Henrique Pinto Furtado, páginas 138 a 144.
[7] Citação extraída, com exclusão das referências em alemão, do Curso de Direito das Sociedades, 5ª edição revista e actualizada, com a colaboração de Nelson Rocha, Almedina 2004, Jorge Henrique Pinto Furtado, página 144.
[8] Veja-se a obra que temos vindo a citar, página 145. A citação contida na parte final do parágrafo refere-se às Lições de Direito Comercial, Volume II, Universidade de Coimbra 1968 (e não 1958, como por lapso consta na nota 137 da obra onde foi exarada a citação), da autoria do Professor Doutor A. Ferrer Correia, com a colaboração de Vasco Lobo Xavier, Manuel Henrique Mesquita, José Manuel Sampaio Cabral e António A. Caeiro.
[9] A redacção destes dois normativos é praticamente igual, apenas divergindo, como não podia deixar de ser, na denominação do sujeito activo do direito aos dividendos e que no caso das sociedades por quotas é o sócio, enquanto nas sociedades anónimas é o accionista.
[10] Neste sentido, na doutrina, veja-se, Direito das Sociedades Comerciais, 4ª edição, Almedina 2010, Paulo Olavo Cunha, páginas 153 e 154 e 297 a 304. Na jurisprudência, aparentemente neste sentido, em obiter dictum, veja-se o acórdão da Relação de Évora de 09 de Novembro de 2006, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XXXI, tomo V, páginas 245 e 246.
[11] Neste sentido, na doutrina, veja-se, Direito aos Lucros, Almedina 1989, Manuel António Pita, páginas 157 e 158. Na jurisprudência vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 06 de Março de 1990 e de 02 de Julho de 1991, ambos publicados na Colectânea de Jurisprudência, respectivamente, no ano XV, tomo II, páginas 45 a 47 e no ano XVI, tomo IV, páginas 89 a 91.
[12] Neste sentido, segundo cremos, A Posição do Accionista Face aos Lucros de Balanço, Coimbra Editora 1996, Studia Iuridica, Filipe Cassiano dos Santos, páginas 124 a 129, especialmente as páginas 125 e 126. Este autor sustenta que a cláusula estatutária que se limita a deferir para a assembleia geral a competência para no final do exercício decidir sobre o destino dos lucros apurados não derroga a previsão do nº 1, do artigo 294º, do Código das Sociedades Comerciais, sendo antes uma mera reprodução da norma de competência legalmente prevista no artigo 376º, nº 1, alínea b), do mesmo diploma legal. Também neste sentido veja-se, Sociedades Comerciais e Valores Mobiliários, Coimbra Editora 2008, António Pereira de Almeida, páginas 140 a 151, especialmente na última página indicada.
[13] Neste sentido, a propósito da previsão legal referente às sociedades por quotas, veja-se Sociedades por Quotas, Volume I, 2ª edição, Almedina 1989, Raúl Ventura, página 336; relativamente às sociedades anónimas, veja-se Direito das Sociedades, II Das Sociedades em Especial, 2ª edição 2007, António Menezes Cordeiro, página 602, III e nota 1588 em que adere à interpretação sufragada nos acórdãos da Relação de Coimbra de 26 de Setembro de 2000, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XXV, páginas 24 a 27 e do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Maio de 2004, proferido no processo nº 04A1663, acessível no site da DGSI. Neste sentido vejam-se ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Janeiro de 1993, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, tomo I, 1993, páginas 5 a 10 e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Outubro de 2010, proferido no processo nº 191/07.0TBVRM.G1.S1 e acessível no site da DGSI.
[14] Nas sociedades comerciais, à semelhança do que sucede na sociedade política, a democracia, isto é a regra da maioria, é o menos mau dos regimes possíveis.
[15] Como é defendido pelo Professor António Pinto Monteiro, na Revista de Legislação de Jurisprudência, ano 136º, nº 3941, páginas 96 a 98, entendimento doutrinal que teve a adesão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Outubro de 2010, proferido no processo nº 191/07.0TBVRM.G1.S1 e acessível no site da DGSI.