Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
974/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. RUI BARREIROS
Descritores: ARRESTO
Data do Acordão: 05/18/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALBERGARIA A VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ART. 619.º C. C. E SEG. E ART.º 406.º C. P. C. E SEG.
Sumário:

I - Num procedimento cautelar, relativamente aos factos que sustentam a pretensão, exige-se uma simples justificação, ou seja, uma prova sumária, superficial, perfunctória (prova simplesmente informatória, como refere Manuel de Andrade, em “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, pág. 193).
II – Não é de indeferir a pretensão cautelar de um credor, com fundamento em falta de actualidade do perigo pelo facto do seu crédito ser antigo ou por haver outros credores. O receio do credor só deixa de ser actual quando age já depois de terem surgido circunstâncias que puseram em perigo a satisfação do crédito.
Decisão Texto Integral:
Acórdão:
I – Relatório.
...
3. Pedido: arresto do direito e acção à herança aberta por óbito de F e de E, falecidos ..., pais da requerida, a quem cabe um quarto da mesma, por forma a garantir o montante em divida, de 9.163,65 euros.
4. Causa de pedir: dívida da requerida a favor do requerente e receio deste de perda de garantia patrimonial.
5. Inquiridas testemunhas, foi proferida decisão a indeferir a pretensão do requerente, por falta do requisito da actualidade do justificado receio de perda da garantia patrimonial.
6. Desta decisão, recorreu o recorrente, concluindo as suas Alegações pela forma seguinte:
«1.º No que respeita à matéria de facto recorrida:
...
2.º O recurso ao procedimento cautelar de arresto justifica-se pelo risco que corre o Recorrente em perder para sempre a garantia patrimonial do seu crédito, garantia essa que residindo no património da ora Recorrida, sendo este parco, senão mesmo, inexistente, poderá ser inviabilizada se o único bem que se conhece da Recorrida - direito à herança por morte dos pais, que consiste apenas numa casa - for vendido.
3.º o douto despacho de que se recorre fundamenta-se na não verificação do segundo pressuposto da providência cautelar de arresto – justificado receio de perder a garantia patrimonial - ora, perante a prova produzida este justificado receio existe, é eminente e actual;
4.º No caso sub judice, apesar do crédito do agravante já existir há mais de dois anos, só agora é que está verdadeiramente posto em causa, pois o bem que pretende acautelar é o único bem conhecido da Recorrida que poderá servir para pagar ao Recorrente; para além deste facto pelos depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas resultou que a Requerida tem outras dívidas, sendo provável que assim que receba o montante que lhe cabe pela venda da casa dos pais dissipe e/ou transfira o seu património.
...
II – Fundamentação.
8. Factos dados por provados.
«O Requerente adquiriu por trespasse, ..., a exploração de um estabelecimento comercial de café e snack bar, ... .
Cedeu a exploração à requerida em meados do ano de 2000, não tendo, porém, para o efeito, realizado escritura pública de cessão de exploração, como era na altura exigido pela lei.
A requerida tomou posse do café e explorou-o durante cerca de um ano e meio, mediante pagamento de uma renda mensal, tendo utilizado todos os móveis, utensílios e mercadorias que se encontravam no aludido estabelecimento dos quais ficaram descritos na relação que consta do documento n.º 2 - Relação de Existências.
Enquanto explorava o estabelecimento comercial, a requerida começou a atrasar o pagamento das rendas, ... . Algumas das rendas relativas ao período em que a requerida explorou o café não foram pagas.
A requerida fechou o café sem pagar as rendas atrasadas (art. 14º).
...
O requerente reiniciou a exploração do estabelecimento alguns meses depois de o mesmo ter sido encerrado pela requerida e procedeu a reparações (art. 24º).
O requerente tentou várias vezes obter da requerida o pagamento das rendas em atraso e do valor da diferença das existências. Tem aguardado a satisfação do seu crédito.
Existem outros credores da requerida.
Os pais da requerida já faleceram, deixando quatro filhos, incluindo a requerida, e lhes pertencia uma casa que foi posta à venda» [1].
8. O Direito.
O recorrente põe em causa a matéria de facto dada como provada e a decisão tomada, defendendo que estão verificados os requisitos suficientes para que seja decretado o arresto.
8.1. Relativamente à primeira parte do recurso.
Há uma dificuldade que é a de, praticamente, não se conseguir ouvir a gravação, quer porque a intensidade do som é baixa, quer porque ele é acompanhado e, às vezes, absorvido por ruídos; na verdade, há partes que, pura e simplesmente, não se conseguem ouvir.
Tal dificuldade não obsta a que tomemos posição sobre a pretensão do requerente.
Uma das razões é porque a prova que é exigível num procedimento cautelar não é a mesma que para uma acção; por outro lado, o interesse primordial é o de afastar, em favor do requerente, o perigo da demora em agir na defesa do seu crédito; satisfeito este, há, posteriormente, espaço para melhor averiguação dos factos e correcção, se necessário for, do que foi julgado mais perfunctoriamente, para além de eventual responsabilidade por uma iniciativa processual temerária.
Assim, há que dar o devido valor ao que o requerente afirma e aos documentos que junta, o que ajudará a suprir as deficiências da prova testemunhal; não só neste caso, pelas referidas deficiências, mas em geral, pela natureza da decisão e da prova exigível.
Da matéria factual que o recorrente quer ver alterada, há duas que têm importância para a sua pretensão: o valor dos prejuízos e, sobretudo, o facto de estarem a decorrer negociações para a venda do único bem que a requerida virá a receber em herança de seus pais; ... .
...
8.1.2. Com base no documento nº 3, dever-se-ia ter dado como provado o alegado no artigo 10º do R.I.: «a renda acordada pela exploração do referido estabelecimento foi de 175.000$00 (872,90 euros) mensais, acrescida de IVA à taxa de 17% (148,39 euros) que totaliza 204.750$00 (1.021,29 euros) a pagar mensalmente».
Através do referido documento, pode dar-se como provado, para efeitos de decretamento de um arresto, o referido montante, como renda da cedência da exploração.
8.1.3. Com base no mesmo documento, dever-se-ia ter dado como provado o alegado no artigo 13º do R.I., que «o último mês pago foi o de Abril de 2001».
Apesar do documento ser da autoria do requerente-recorrente, admite-se que faça prova suficiente desse facto, no âmbito de um procedimento cautelar, na medida em que dificilmente haverá pessoas que testemunhem quer o pagamento, quer a falta de pagamento de uma renda (a não ser que sejam “convocados” expressamente para esse fim) e, natural será que o credor guarde o documento que iria entregar ao devedor, mas que não entregou por falta de correspectividade.
...
8.1.9. Do depoimento das testemunhas, dever-se-ia ter dado como provado que «a casa que constitui a herança por morte dos pais da requerida ainda não foi vendida estando a “ ... decorrer negociações” para a sua venda», em vez de «os pais da requerida já faleceram, deixando quatro filhos, incluindo a requerida, e que lhes pertencia uma casa que foi posta à venda».
A resposta dada restringe a que foi alegada e entra em matéria não alegada (os pais da requerida deixaram 4 filhos), a qual exige, essa sim, uma prova mais cuidada.
E a verdade é que a matéria alegada resulta do que as testemunhas depuseram. Na motivação da matéria de facto, diz-se: «sobre este facto, note-se que a única testemunha com conhecimento directo, Sr, esclareceu que viu o anúncio da venda desde a passada Primavera».
Ora, nem de propósito, esta é matéria com importância para a decisão e, na gravação, está preenchida por ruído. À pergunta «ela (a requerida) não tem nada», a testemunha Sr disse que os pais tinham falecido e, pelo que se dizia, tinham alguns bens, «inclusivamente têm a casa». Segue-se o ruído e, a seguir é formulada a pergunta: «quantos meses esteve sem pagar, cuja resposta também não se ouve, embora a Srª Juíza tenha repetido: «um ano?».
Portanto, a testemunha disse a referida frase no espaço em que não se ouve.
Contudo, o facto da testemunha ter sabido que a casa já tinha sido posta à venda na Primavera - o que permitiu concluir pela falta de actualidade no receio da perda da garantia patrimonial, como se verá -, não significa que o mesmo se passasse com o requerente, que pode ter sabido em momento diferente. E é essa a conclusão que se tem de tirar, no contexto de um procedimento cautelar, repete-se, do depoimento da testemunha Mr, que afirmou que a casa «irá ser posta à venda» e da testemunha Jr que disse «consta-se lá que está à venda», repare-se, à pergunta «a tal casa antiga parece que esteve à venda».
Assim, dar-se-á como provada a matéria alegada.
...
8.2. Relativamente à segunda parte do recurso.
Entendeu a primeira instância que a providência não procedia por falta do requisito da actualidade: «todavia, o 2º pressuposto da providência cautelar de arresto já referido, o justificado receio da perda de garantia patrimonial, não resulta verificado face à factualidade apurada. Com efeito, tal receio, para poder considerar-se fundado e, assim, poder justificar uma decisão provisória tendente a obstar aos eventuais prejuízos resultantes da demora da decisão definitiva, terá de ser actual, resultar de circunstâncias presentes».
O recorrente defende que, sendo a dívida já de 2001, só agora surgiu o receio de perda de garantia patrimonial: «só no momento em que soube que estariam a decorrer negociações, ..., é que teve o receio de perder para sempre a satisfação do seu crédito, uma vez que, repita-se, é o único bem que a Recorrida tem/terá capaz de liquidar o montante que tem em dívida para com o Recorrente».
Pensamos que o recorrente tem razão.
Quando se exige, como elemento constitutivo da providência requerida, o periculun in mora [2], é certo que lhe está subjacente a característica da actualidade, pois não se pode dizer que haja danos derivados da demora da tramitação processual [3] se é o requerente que não age a tempo de acautelar o seu direito. Mas, aí, temos de distinguir a acção do credor em geral, daquele que está em perigo de perder o seu crédito; pode um credor conviver mais ou menos tempo com a dívida e, a certa altura, ver-se na necessidade de agir com celeridade, porque, só nessa altura, surgiram circunstâncias que tornaram vulnerável o seu crédito que, até aí, não oferecia perigo. Para um credor, pode ser relativamente indiferente cobrar o seu crédito ou deixá-lo a correr o tempo, quer por a cobrança de juros afastar qualquer prejuízo, quer por haver garantia que dê segurança à cobrança [4].
O direito não exige que um credor, pelo facto de o ser, aja logo assim que o respectivo exercício possa ter lugar, pelo que não podemos estar de acordo com a afirmação do despacho recorrido: «... o requerente refere que o alegado crédito ... existe desde Maio de 2001 ... . Não se compreende assim porque motivo apenas mais de 2 anos passados concluiu existir perigo de perder a garantia patrimonial do seu crédito, ...». Deve antes dizer-se que o direito põe à disposição do credor um meio rápido para acautelar a demora do processo quando surgem e logo que surjam circunstâncias que o justifiquem, tenha o crédito a duração que tiver.
Conforme ensina Alberto dos Reis, o arresto preventivo tem em vista o perigo de insatisfação do direito [5] e não o seu exercício logo que possível. Repare-se no exemplo que o citado Mestre dá: «A é credor de B; em certa altura o devedor começa a decair de fortuna, começa a vender os bens ... . Logo que A se aperceba de tal situação, está indicado que requeira contra B arresto ...» [6]; em certa altura da existência do crédito, tenha ele a duração que tiver, mas logo que surja o perigo de o perder.
Portanto, uma coisa é a existência e duração de um crédito, o que não tem a ver com o accionamento de uma providência cautelar, outra coisa diferente é a existência de uma circunstância que ponha em perigo a satisfação desse crédito, o que já tem a ver com uma actuação cautelar.
Se não fosse assim, estar-se-iam a criar condições para uma maior e acentuada conflitualidade nas relações entre os cidadãos, quando a tendência actual é precisamente a contrária: diversificação de meios de dirimir conflitos.
No despacho recorrido, logo a seguir à anterior transcrição, diz-se o seguinte: «..., tanto mais que, de acordo com o referido pelas testemunhas hoje inquiridas, os comportamentos da requerida que poderiam fundamentar o receio do requerente também há já vários meses se vinham verificando (designadamente, a mencionada circunstância de a requerida ter outras dívidas, evitar os contactos com o requerente ...)». Ou seja, já não se trataria do crédito ter vários anos, mas dos indícios da devedora não querer pagar já serem antigos.
Mas, ainda assim, há diferença entre recusa de pagamento e perda de garantia patrimonial, conforme referem Alberto dos Reis e António Abrantes Geraldes [7].
...
III – Decisão.
Nestes termos, concedem provimento ao agravo, pelo que revogam o despacho recorrido para que seja substituído por outro que decrete o requerido arresto.
Custas pelo vencido a final.

-----------------------------------------
[1] - a esta matéria, acresce a que vai ser aditada e consta do nº 8.1.10.
[2] - Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo processo Civil, Lex, 1997, 2ª edição, pág. 232. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora afirmam que o periculum mora constitui verdadeira condição da acção (Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 180).
[3] - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 8.
[4] - o que até impede o recurso a procedimento cautelar, conforme refere António Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume, “Procedimentos Cautelares Especificados”, Almedina, 2001, pág. 178.
[5] - Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, vol. II, pág. 6.
[6] - Obra e volume citados na nota anterior, pág. 10, penúltimo §. O sublinhado é nosso.
[7] - Obras e volumes citados, págs. 18 e 19 e 177, nota 295, respectivamente.