Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
786/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
CHEQUE
ENDOSSO IMPRÓPRIO
Data do Acordão: 10/18/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU - 4º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 23º DA LEI UNIFORME SOBRE CHEQUES
Sumário: Mesmo no caso do endosso denominado impróprio o cheque continua a valer como título cambiário e o portador pode intentar judicialmente uma acção (ou execução) para obter o seu pagamento, uma vez que pode exercer todos os direitos resultantes do cheque, embora estes não lhe sejam transmitidos (artº 23º da Lei Uniforme Sobre Cheques).
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A... deduziu, em 17/06/2002, embargos de executado na Execução Ordinária nº 360/02, a correr termos pelo 4º Juízo Cível de Viseu, em que é exequente o B..., e executado o ora embargante, pedindo a procedência dos embargos nos termos dos artº 813º, als. a) e g), ex vi 815º do Código de Processo Civil, invocando a prescrição da obrigação cambiária, a inexequibilidade do título executivo (cheque), bem como a impropriedade do endosso.
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O embargado contestou, pugnando pela improcedência dos embargos.
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A acção foi decidida no saneador, com a improcedência dos embargos, em virtude de terem sido julgadas improcedentes as excepções invocadas pelo embargante.
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Inconformado, interpôs o embargante recurso de apelação, rematando a sua alegação com as seguintes (extensas) conclusões:
A) Na sentença recorrida, o Juiz a quo entendeu não se encontrar verificada a invocada excepção da prescrição do direito de acção cambiária por entender que, dentro do prazo legal de seis meses, o recorrido BCP apresentou participação criminal contra o embargante, assim interrompendo o decurso do prazo prescricional previsto no artº 52º da LUCH.
B) Proferido despacho de não pronúncia nos referidos autos em 19/10/2001 foi o mesmo cheque dado à execução em 13/05/2002.

C) Entendeu o MMº Juiz a quo aplicar o preceituado no artº 3º, nº1 e 2 do Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Nov., que estabelece que “nos processos por crime de emissão de cheque sem provisão cujo procedimento criminal se extinga por virtude do disposto neste diploma, a acção civil por falta de pagamento pode ser instaurada no prazo de um ano a contar da notificação do arquivamento do processo ou da declaração judicial de extinção do procedimento criminal.
D) O prazo legal de um ano para instaurar a acção civil estabelecido pelo artº 3º nº 1 e 2 do D.L. nº 316/97, apenas se considera aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
E) De acordo com o disposto no artº 5º as alterações introduzidas pelo referido diploma entraram em vigor em 01/01/1998.
F) O cheque apresentado à execução tem aposta a data de 12/10/99, tendo o embargado BCP apresentado a participação criminal em 14/03/2000.
G) Demonstrado que à data da entrada em vigor das alterações introduzidas ao D.L nº 454/91, de 28/12, o procedimento criminal ainda não se encontrava pendente, terá de concluir-se, no caso sub judice, pela inaplicabilidade das disposições transitórias, maxime do preceituado no artº 3º, nº 1 e 2 do D.L. nº 316/97.
H) A acção executiva foi apenas instaurada em 13/05/2002, pelo que, há muito havia já decorrido o prazo legal de seis meses estabelecido no artº 52º da Lei Uniforme para a prescrição do direito de acção cambiária.
I) O entendimento de que a participação criminal interrompe o decurso do prazo de prescrição do direito de acção cambiária, apenas faria sentido se o procedimento criminal pela emissão de cheque sem provisão revestisse natureza pública.
J) Atento o preceituado no artº 306º, nº 1 e artº 323º, nº 1 e 4 do Cód. Civil, conjugado com o Princípio da Alternatividade, aplicável aos crimes de natureza semi-pública, ao embargante BCP não estava vedada a possibilidade de deduzir o pedido de indemnização cível em separado, intentando a acção cível (declarativa ou executiva) perante o tribunal civil.
L) Nestes termos, considerando a data do termo do prazo de apresentação (20/10/1999) e a data da instauração da acção executiva (13/05/2002), não ocorrendo qualquer causa interruptiva ou suspensiva da prescrição, há muito que se encontrava esgotado o prazo de seis meses, sendo manifesta a verificação da excepção da prescrição do direito de acção cambiária.

M) Mesmo sufragando o entendimento de que a participação criminal tinha a virtualidade de interromper o decurso do prazo prescricional, o direito de acção cambiária não deixaria, ainda assim, de se encontrar prescrito.
N) Contrariamente ao aduzido na sentença, o embargado BCP foi notificado da decisão instrutória de não pronúncia através de oficio remetido pelo T.I.C. do Porto datado de 22/10/2001 (cfr. nota de notificação de fls., junta na contestação como doc. 2).
O) Pelo menos a partir da notificação do despacho de não pronúncia o embargado deixou de estar legalmente impossibilitado de exercer o direito de acção cambiária, iniciando-se o decurso do prazo de prescrição estabelecido no artº 52º da LUCH – artº 306º, nº 1 e 323º, nº 1 e 4 do C. Civil.
P) A acção executiva foi instaurada no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu em 13/05/2002, ou seja, posteriormente ao decurso do prazo legal de seis meses previsto no artº 52º da Lei Uniforme.
Q) Prescrito o direito de acção cambiária, o documento apresentado à execução não preenche os requisitos exigidos pelo artº 46º al. c) do C.P.Civil, razão pela qual o mesmo carece de força executiva, inexiquibilidade invocada nos termos do disposto na al. a) do artº 813º do C.P.Civil.
R) O embargado (por lapso diz-se embargante) BCP não é legítimo portador do cheque, nem se poderá considerar que lhe foram transmitidos quaisquer direitos por via de endosso.
S) Atento o princípio da literalidade e abstracção imanentes à relação cartular, o que se constata da análise do “cheque” é a inscrição “D – C” no verso, com o número de conta bancária, seguido da assinatura da beneficiária.
T) Pela menção “depósito em conta” apenas se conclui que a transmissão ao embargado BCP apenas se operou para cobrança do cheque, nos termos do disposto nos artºs 16º e 23º da LUCH, configurando um endosso por procuração ou para cobrança.
U) Tratando-se de um endosso impróprio, este não transmite ao endossado os direitos inerentes ao cheque, não havendo transmissão do crédito cambiário, já que este apenas tem por finalidade habilitar o endossado a exercer, na qualidade de mandatário, os direitos emergentes do cheque – artº 23º da LUCH.
V) O embargado não poderá ser considerado legítimo portador e titular do direito de crédito incorporado no cheque nos termos alegados na p.i., já que, tratando-se de um



endosso impróprio, apenas detém um mandato para cobrança e o titular continua a ser o endossante.
X) Prescrito o direito de acção cambiária, não poderão ser transmitidos por via de endosso os direitos inerentes ao “cheque prescrito” visto que o mesmo já não vale enquanto tal.
A sentença recorrida violou, além do mais, o disposto nos artºs 16º, 19º, 23º e 52º da LUCH; 3º, nº 1 e 2 do D.L. nº 316/97, 46º, al. c) e 813º, al. a) do C.P.Civil e 306º e 323º do C. Civil.
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O embargado absteve-se de contra-alegar.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Com interesse para a decisão do presente recurso, e tendo em conta os documentos juntos aos autos, importa destacar o seguinte:
1º - No processo principal foi dado à execução um cheque sacado sobre o Banco Santander (agência de Viseu), com o nº 8065282219, no montante de 15.450.000$00, com a data de 12/10/1999, por A..., à ordem de MAN PORTUGAL, Ldª.
2º - Apresentado a pagamento no dia 15/10/1999, foi o mesmo devolvido, com a menção de “falta de provisão”, em 18/10/1999.
3º - Apresentado, de novo a pagamento em 20/10/1999, foi o mesmo devolvido, com a menção de “motivo devolução”, em 21/10/1999.
4º - No verso do cheque encontra-se a assinatura de um gerente de “MAN Veíc. Ind. (Portugal), Soc. Unip., Ldª”, a beneficiária.
5º - O ora embargado, B..., apresentou, em 14/04/2000, queixa-crime contra o ora embargante pela emissão do cheque referido em 1º, que deu origem ao inquérito nº 609/00.2 TAVNG, do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, no qual foi deduzida acusação e requerida a abertura de instrução, tendo sido proferida decisão em 19/10/2001, que absolveu o arguido da instância.


6º - O queixoso, BCP, foi notificado do despacho de arquivamento por carta expedida pelo Tribunal em 16/11/2001, e em 13/05/2002 deu entrada no Tribunal Judicial de Viseu o requerimento executivo.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Começa o recorrente por alegar que aquando da instauração da acção executiva há muito havia decorrido o prazo legal de seis meses estabelecido no artº 52º da LUC para a prescrição do direito de acção cambiária, já que, ao contrário do que se entendeu na sentença, à data da entrada em vigor das alterações introduzidas ao DL nº 454/91 pelo DL nº 316/97 ainda não se encontrava pendente o procedimento criminal.
No saneador/sentença recorrido entendeu-se que aquando da propositura da acção executiva ainda não se tinha verificado a prescrição da acção cambiária, com base nas seguintes considerações:
O cheque, que tem a data de 12/10/99, foi apresentado em 15/10/99 e devolvido por falta de provisão em 18/10/99; o embargado apresentou, em 14/04/2000, queixa-crime, tendo sido deduzida acusação, requerida a abertura da instrução e proferida decisão que absolveu o arguido; o embargado foi notificado desse despacho por carta de 16/11/01, e em 13/05/2002 deu entrada o requerimento executivo; dado que ao caso se aplica o disposto no artº 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 316/97, e não tendo, aquando da propositura da acção executiva, decorrido ainda o prazo de um ano prevista nessa norma, não se verifica qualquer prescrição.
Não podemos concordar com esta decisão.
O referido artº 3º dispõe, na parte que aqui interessa:
1 - Nos processos por crime de emissão de cheque sem provisão cujo procedimento criminal se extinga por virtude do disposto neste diploma, a acção civil por falta de pagamento pode ser instaurada no prazo de um ano a contar da data da notificação do arquivamento do processo ou da declaração judicial de extinção do procedimento criminal.


2 - Para o efeito do disposto no número anterior, o tempo decorrido entre a data de apresentação da queixa e a data de notificação aí referida não prejudica o direito à instauração da acção civil.
Este normativo aplica-se apenas aos processos pendentes, destinando-se a facilitar o exercício da acção civil por falta de pagamento, como fluí expressamente do preâmbulo do diploma, onde se refere que “as alterações agora introduzidas ao Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, vão ter importantes incidências nos processos pendentes, que serão decididos de acordo com as regras gerais de natureza substantiva e processual. Considerou-se, porém, necessário acautelar as consequências civis da extinção do procedimento criminal e, por isso, se consagram disposições transitórias em ordem a facilitar o exercício da acção civil por falta de pagamento”.
Ora, o Decreto-Lei nº 316/97 entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1998 (artº 5º), enquanto a queixa-crime relativa ao cheque dos autos foi apresentada em 14/04/2000, pelo que o processo de inquérito dela resultante não se encontrava pendente naquela primeira data.
O referido artº 3º, ao contrário do que se entendeu na decisão recorrida, não era, portanto, aplicável ao caso, não sendo de considerar o prazo de um ano nele previsto para a instauração da acção civil.
Há, assim, que ter em atenção o prazo de seis meses previsto no artº 52º da LUC.

Mas, será que, por força deste normativo, é de concluir que, aquando da instauração da acção executiva, já se encontrava prescrita a acção cambiária ?
Entendemos que não, pelas considerações que vão ser expostas e que se louvam, essencialmente, no Acórdão do S.T.J. de 14/01/2003 (Proc. 02A4017, in www.dgsi.pt), que, com a devida vénia, vamos seguir de perto e reproduzir, em parte.
O recorrido podia ter proposto a acção cível logo que o cheque foi devolvido por falta de provisão, formulando pedido de indemnização cível em separado, perante o tribunal civil, visto o crime não ser público (cfr. artº 11º-A, nº 1, aditado ao DL nº 454/91, de 28 de Dezembro, pelo DL nº 316/97, de 19 de Novembro), e, portanto, não ser aplicável o princípio da adesão (artºs 71º e 72º, nº 1, al. c), do Código de Processo Penal).


De acordo com o disposto no nº 2 desta última norma, no caso de o procedimento criminal depender de queixa, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa vale como renúncia a este direito.
No presente caso, como o recorrido apresentou a participação criminal, tem que se concluir que não quis renunciar ao respectivo direito de queixa e que, portanto, não renunciou ao direito de enxertar no processo-crime, na devida oportunidade, pertinente pedido cível.
Estando em jogo um crédito de avultada importância 15.450.000$00, o recorrido não prescindiria de o reclamar, o que o recorrente não devia ignorar.
A participação crime consubstanciou, assim, um acto que exprimiu, directa, ou, pelo menos, indirectamente, a intenção de exercer o direito ao ressarcimento, pelo que se interrompeu a prescrição de seis meses prevista no referido artº 52º da LUC, por força do disposto no nº 1 do artº 323º do Código Civil.
Ora, como o cheque está datado de 12/10/1999 e foi devolvido por falta de provisão em 18/10/1999, quando a queixa-crime foi apresentada, em 14/03/2000, ainda não tinha decorrido o prazo de prescrição de seis meses do aludido artº 52º.
E, notificado do arquivamento do processo-crime por carta de 16/11/2001, instaurou o recorrido a execução em 13/05/2002, dentro, portanto, do prazo de seis meses após aquela notificação.
É, assim, de concluir que, ao contrário do que pretende o recorrente, a acção cambiária não prescreveu.
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Valendo, portanto, o cheque como título executivo (artº 46º, nº 1, al. c), do C.P.C.), fica prejudicado o conhecimento da questão da inexequibilidade do título executivo, também apresentada pelo recorrente nas suas conclusões.
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Finalmente, alega o recorrente que pela inscrição “D-C” (depósito em conta) no verso do cheque se conclui que a transmissão ao embargado BCP apenas se operou para cobrança do cheque, nos termos do disposto nos artºs 16º e 23º da LUC, configurando um endosso impróprio, o qual não transmite ao endossado os direitos inerentes ao cheque, não havendo transmissão do crédito cambiário, não podendo, assim, o embargado ser considerado legítimo portador e titular do direito de crédito

incorporado no cheque.
Também falece a razão ao recorrente no que a esta questão diz respeito.
O artº 17º da LUC dispõe que o endosso transmite todos os direitos resultantes do cheque.
Segundo Abel Pereira Delgado (Lei Uniforme Sobre Cheques, pág. 92), o endosso transmite todos os direitos cambiários incorporados no cheque e só esses, e tem uma função de transferência (artº 17º), uma função de garantia (artº 18º), uma função de legitimidade (artº 19º) e uma função de exclusão de excepções (artº 22º).
É certo que, de acordo com o disposto no artº 23º, quando o endosso contém a menção “valor a cobrar”, “para cobrança”, “por procuração”, ou qualquer outra menção que implique um simples mandato, o portador pode exercer todos os direitos resultantes do cheque, mas não lhe transmite tais direitos.
No entanto, como se vê deste normativo e como bem se refere na decisão recorrida, mesmo no caso do endosso denominado impróprio o cheque continua a valer como título cambiário e o portador pode intentar judicialmente uma acção (ou execução) para obter o seu pagamento, uma vez que pode exercer todos os direitos resultantes do cheque.

No presente caso, não podemos deixar de afastar a hipótese de estarmos perante um endosso impróprio – ainda que, como se viu, isso não retirasse legitimidade ao recorrido para instaurar a execução -, visto que, não obstante termos obtido fotocópia certificada do cheque, não vemos que o mesmo contenha, no verso, a inscrição “D - C”, indicativa da menção “depósito em conta”, que configuraria, no entender do recorrente, um endosso para cobrança.
Temos, assim, de concluir que estamos perante um endosso próprio e verdadeiro, que confere ao recorrido o direito de ser considerado portador legítimo do cheque, podendo exercitar os direitos cambiários nele incorporados.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, com custas pelo recorrente.