Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
321/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. ARTUR DIAS
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
Data do Acordão: 03/30/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTº 1380º, Nº 1 DO CÓDIGO CIVIL, ARTº 28º DO DECRETO LEI Nº 385/88, DE 25/10, ARTºS 416ºA 418º E 1410º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:

I- A comunicação referida no artº 416º do Código Civil não tem que obedecer a qualquer forma especial, mas tem de ser feita pelo obrigado a dar preferência, pessoal e directamente ao titular do respectivo direito, devendo conter os elementos essenciais para a motivação e determinação de contratar ou não.
II- A essencialidade dos elementos deve ser aferida em termos de razoabilidade no confronto do caso concreto, mas inclui, por regra, o preço, as condições de pagamento e a identidade do comprador potencial preterido.
III- Não pode ser confundido projecto de venda com intenção de venda, nem a comunicação exigida pelo artº 416º do Código Civil com uma mera proposta negocial de venda feita ao titular do direito de preferência.
IV- Fundando-se a preferência em contiguidade ou confinância (artigo 1380º, nº 1 do Código Civil), se é comunicada à cabeça de casal da herança titular do direito a intenção de venda por determinado preço e com determinadas condições de pagamento, não há renúncia, apesar da passividade desta, se só depois se oferece e vende a terceiro, ainda que pelo mesmo preço e nas mesmas condições.
Decisão Texto Integral:

APELAÇÃO nº 321/04
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Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. RELATÓRIO
A HERANÇA JACENTE, e deixada por óbito de AA e mulher BB, que foram do lugar de Pereiras, freguesia de Bodiosa, da Comarca de Viseu, representada pelos seus únicos, exclusivos e universais herdeiros:
1) CC, solteira, maior, residente em DD Alemanha e, quando em Portugal, no lugar de Pereiras, freguesia de Bodiosa, concelho de Viseu;
2) EE casada com FF, residentes em GG Alemanha e, quando em Portugal, na Estrada Nacional HH;
3) II casada com JJ, residentes em KK França e, quando em Portugal, no lugar de LL, Sátão;
4) MM, casado com NN, residentes na OO, concelho de Viseu,
intentou acção declarativa de preferência, com processo comum e forma sumária, contra:
1) PP e mulher, QQ, residentes na SS Brasil; e
2) TT, e mulher, UU, residentes na VV Porto,
pedindo a condenação:
- de todos os RR. a reconhecerem que a herança, ora Autora, é dona, legítima proprietária, senhora e possuidora do prédio referido e identificado no artigo 5° da petição inicial, bem como a reconhecerem e verem declarado o direito de preferência, a favor da dita herança na compra e venda do prédio referido e identificado, nos artigos 10° e 11° da petição inicial;
- dos 2ºs RR., compradores, a abrirem mão, a favor da mesma herança, do prédio referido e identificado no artigo 11° da petição inicial, mediante o recebimento do respectivo preço de alienação, sisa, e mais despesas.
Para tanto, em síntese, foi alegado que os 1ºs RR., por escritura pública de compra e venda outorgada no 2º Cartório Notarial de Viseu, dia 24 de Julho de 2001, venderam aos 2ºs RR., que compraram, um terreno de pinhal e mato, com terra de cultura com oliveiras, sita ao OUTEIRO, freguesia de Bodiosa, do concelho de Viseu, com a área de 810 m2, a confrontar do norte com YY, do sul e poente com WW e do nascente com AA («de cujus» marido), inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3382, com o valor patrimonial de 2.564$00, e o valor declarado de 350.000$00; que, pertencendo à herança A. um prédio rústico com aquele confinante e encontrando-se reunidos os demais requisitos previstos no artº 1380º do Cód. Civil, tem ela direito de preferência, que pretende exercer, na compra e venda indicada; e que, além disso, o prédio transaccionado fora objecto de contrato verbal de arrendamento rural aos autores da herança, arrendamento esse que, falecidos primitivos arrendatários, continuou na pessoa da filha CC que convivia com o pai há vários anos.
Os RR. TT e mulher contestaram pugnando pela improcedência da acção, porquanto a herança A., a quem foi dado conhecimento, nas pessoas da respectiva cabeça de casal e de outros herdeiros, do projecto, condições e demais elementos da venda, mostrou-se desinteressada, assim tendo renunciado à preferência.
A A. respondeu defendendo a improcedência da excepção invocada e concluindo como na petição inicial.
Foi proferido despacho saneador em que se entendeu verificarem-se todos os necessários pressupostos processuais e se relegou para final o conhecimento da excepção da renúncia.
Feita a selecção dos factos já assentes e organizada a base instrutória, seguiram-se as fases da instrução e do julgamento, tendo sido realizada a respectiva audiência, em cujo âmbito foi proferido o despacho de fls. 190, assim se decidindo a matéria de facto controvertida.
Foi proferida a sentença de fls. 192 a 195, julgando a acção improcedente e absolvendo os RR. do pedido.
Inconformada, a A. recorreu, tendo o recurso sido admitido como apelação, com efeito devolutivo.
Na alegação de recurso apresentada a apelante formulou as conclusões seguintes:
1) Não foi dado conhecimento, à herança, através de todos os herdeiros, do projecto da venda e cláusulas do respectivo contrato, nos termos do artigo 416°, n.° 1 do Código Civil;
2) A prova de que foi dado conhecimento, à Autora (ora recorrente), da intenção da venda, pelo preço de 350.000$00, engloba, em si própria, e por essência, a prova provada, de que, à herança não foi comunicado o projecto da venda e as respectivas cláusulas do mesmo contrato de compra e venda;
3) E o conhecimento de qualquer das cláusulas v.g. pessoa do comprador; forma de pagamento; data da respectiva escritura, etc., por parte da herança, poderia ser essencial e (ou) determinante para a decisão de a herança preferir (ou não ?!...);
4) Acresce que há contradição flagrante, óbvia e manifesta, entre o que ficou provado, nos quesitos 11°, 12° e 13 e o que ficou provado nos quesitos 15° e 16°;
5) Neste sentido, é evidente que, se não ofereceram à CC, a venda do prédio, pelo preço de 350.000$00; nem à EE e marido FF, com as mesmas condições de pagamento, que os mandatários dos vendedores tinham oferecido à cabeça de casal da herança de XX, - como poderiam todos eles mostrar-se desinteressados, e acrescentarem que os outros herdeiros também não estavam interessados?!...;
6) Acresce ainda, que a contradição, entre o que vem provado, nos quesitos 11°, 12° e 13° e o provado, nos quesitos 18°, 19°, 20° e 21°, é mais flagrante, e «mais contraditória»;
7) Neste sentido, é evidente que, se nada foi oferecido, à CC, nem à irmã EE e marido FF, - como poderiam eles recusar o preço, ou deixar terminar o prazo; ou como podiam eles dizer alguma coisa; ou confirmar que nenhum dos herdeiros estavam interessados, em comprar;
8) A prova dos quesitos 14° e 17° não era possível por testemunhas, nos termos do artigo 394°, n.° 1 do Código Civil, uma vez que existe documento escrito, v.g. procuração e cabeçalho da petição, quanto à residência duma e doutros; e existe documento escrito quanto à pretensão da herança v. g. a acção proposta;
9) A prova de renúncia, no presente caso, é impossível, por testemunhas, uma vez que só todos os herdeiros, conjuntamente, é que podiam renunciar;
10) Também, perante a prova feita, de comunicação de intenção, não se pode fazer qualquer prova de renúncia, pois que não se pode renunciar àquilo que se não conhece;
11) ASSIM, foram violadas, por má interpretação e aplicação, as normas jurídicas dos artigos 416° e 394°, n.° 1 do Código Civil; e do artigo 712°, n.° 4, por força do estipulado artigo 792°, n°. 1, ambos do Código de Processo Civil.
Os apelados responderam defendendo a manutenção da sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à apreciação e decisão deste Tribunal foram colocadas essencialmente três questões: (1) contradição entre pontos determinados da matéria de facto; (2) inadmissibilidade de prova testemunhal a alguns quesitos da base instrutória; e (3) inexistência de renúncia ao direito de preferência.
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3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
Na 1ª instância foi considerada provada a factualidade seguinte:
3.1.1. Por escritura pública outorgada no dia 13 de Agosto de 2001, constante de fls. 17 a 18 verso, do livro de notas para escrituras diversas n° 53-I, do primeiro cartório notarial de Viseu, CC, EE, II e MM foram habilitados como herdeiros de AA e mulher BB (al. A) da matéria de facto assente);
3.1.2. A herança aberta por óbito de AA e mulher BB é titular de um prédio rústico, composto de pinhal com mato e terra de sequeiro com videiras, oliveiras e fruteiras, sito ao Outeiro, freguesia de Bodiosa, concelho de Viseu, a confrontar do Norte com YY, do Nascente com ZZ, do Sul com WW e do Poente com AB, com a área de 776 m2, inscrito na matriz predial sob o artigo 3381 (al. B) da matéria de facto assente);
3.1.3. Por escritura pública outorgada no dia 24 de Julho de 2001, constante de fls. 54 a 55, do livro para escrituras diversas n° 296 – H, do 2° cartório notarial de Viseu, Luís Mendes dos Santos, na qualidade de procurador de PP e mulher QQ, declarou vender a AC, casado com AD, sob o regime de comunhão de adquiridos, pelo preço de trezentos e cinquenta mil escudos, um terreno de pinhal e mato com terra de cultura com oliveiras, sito ao Outeiro, freguesia de Bodiosa, concelho de Viseu, com a área de oitocentos e dez metros quadrados, a confrontar do Norte com YY, do Sul e Poente com WW e do Nascente com AA, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3382, o qual declarou aceitar a venda (al. C) da matéria de facto assente);
3.1.4. Este prédio é contíguo com o prédio da referida herança, com o qual confronta pelo lado Nascente (al D) da matéria de facto assente);
3.1.5. Por contrato meramente verbal andava arrendado a AA e mulher BB, há mais de 20 anos, tendo continuado como rendeiro o “de cuius” marido após o falecimento da sua mulher (al. E) da matéria de facto assente);
3.1.6. Depois do falecimento do “de cuius” marido, a herança continuou com o arrendamento na pessoa da sua filha CC que convivia com o seu pai há vários anos (al F) da matéria de facto assente);
3.1.7. O contrato tinha por objecto o cultivo do prédio, corte do mato e poda das árvores por parte dos rendeiros, mediante contrapartida de metade da azeitona das oliveiras e metade das uvas das videiras (al. G) da matéria de facto assente);
3.1.8. Com o negócio jurídico mencionado em 3.1.3., os réus compradores despenderam o valor global de 401.445$00 (al. H) da matéria de facto assente);
3.1.9. Os réus vendedores comunicaram, por diversas vezes à herança, ora autora, na pessoa dos seus herdeiros e representantes, a intenção de vender o prédio pelo preço de 350.000$00 (Resposta ao ponto 1° da base instrutória);
3.1.10. Os réus vendedores não deram conhecimento das cláusula e condições do contrato, o que também não fizeram os réus compradores (Respostas aos pontos 2° e 3º da base instrutória);
3.1.11. A herança aberta por óbito de XX, sogro e pai dos réus compradores, é titular de um prédio que confronta directamente com prédio referido em 3.1.3. (Resposta ao ponto 4° da base instrutória);
3.1.12. Quando os primeiros réus resolveram vender, consultaram a cabeça de casal da herança de XX, a qual respondeu negativamente em virtude de as partilhas ainda não estarem formalizadas (Respostas aos pontos 5° e 6° da base instrutória);
3.1.13. E sugeriu aos mandatários dos vendedores que consultassem os segundos réus, uma vez que, nas partilhas projectadas, o prédio confinante passaria a pertencer a estes (Respostas aos pontos 7° e 8° da base instrutória);
3.1.14. A proposta feita à cabeça de casal da herança de XX era de 350.000$00, a pagar no acto da escritura (Respostas aos pontos 9° e 10° da base instrutória);
3.1.15. A CC vive em comunhão de mesa e habitação com a irmã Maria de Lurdes e o marido desta, FF (Resposta ao ponto 14° da base instrutória);
3.1.16. Todos os herdeiros da herança autora sempre se mostraram desinteressados pela razão de ainda não terem formalizado as partilhas (Respostas aos pontos 15° e 16º da base instrutória);
3.1.17. Após a propositura da acção os outros herdeiros têm confirmado que não lhes interessou, nem interessa o exercício do direito de preferência (Resposta ao ponto 17° da base instrutória);
3.1.18. O preço pedido – 350.000$00 – também foi recusado pela CC, pela irmã e pelo cunhado (Resposta ao ponto 18° da base instrutória);
3.1.19. Os mandatários dos primeiros réus deram-lhe um prazo que terminou na Páscoa de 2000 (Resposta ao ponto 19° da base instrutória);
3.1.20. Como nada disseram durante esse período, os mandatários dos primeiros réus ofereceram o prédio aos segundos réus, confirmando-lhes que nem a CC, cabeça de casal, nem nenhum dos outros herdeiros estavam interessados em comprar (Respostas aos pontos 20° e 21° da base instrutória).
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3.2. De direito
3.2.1. Contradição entre pontos determinados da matéria de facto
A apelante defende que existe contradição entre, por um lado, as respostas dadas aos quesitos 11º, 12º e 13º e, por outro, as respostas dadas aos quesitos 15º, 16º, 18º, 19º, 20º e 21º.
Nos quesitos 11º, 12º e 13º perguntava-se se, por virtude da resposta da sogra e mãe dos 2°s Réus, os mandatários dos vendedores ofereceram a CC, na qualidade de cabeça-de-casal, a venda do prédio pelo mesmo preço (11º), com as mesmas condições de pagamento (12º), igual oferta tendo feito à irmã EE e ao marido FF (13º).
A todos os referidos quesitos foi dada resposta «não provado».
Com os quesitos 15º, 16º, 18º, 19º, 20º e 21º pretendia saber-se se todos eles (CC, EE e FF) se mostraram desinteressados pela mesma razão de não terem formalizado as partilhas (15º), se acrescentaram que os outros herdeiros também não estavam interessados uma vez que o prédio da herança referido na al. B) tinha ficado para os três (16º), se o preço pedido – 350.000$00 – também foi recusado pela CC, pela irmã e pelo cunhado (18º), se os mandatários dos 1ºs RR. lhe deram um prazo que terminou na Páscoa de 2000 (19º), e se, como nada disseram durante esse período de tempo, os mandatários dos 1ºs RR. ofereceram o prédio aos 2ºs RR. (20º), confirmando-lhes que nem a CC, cabeça de casal, nem nenhum dos outros herdeiros estavam interessados em comprar (21º).
Aos dois primeiros quesitos (15º e 16º) foi dada a seguinte resposta conjunta: «provado apenas que todos os herdeiros da herança autora sempre se mostraram desinteressados pela razão de ainda não terem formalizado as partilhas»; e aos restantes foi dada a resposta «provado».
É certo que a resposta «não provado» dada a um quesito significa apenas e só isso mesmo: que se não provou o facto referido no quesito. Não significa que se tenha provado o contrário.
Ou seja, a resposta «não provado» dada aos quesitos 11º a 13º não faz com que possa ser dado como assente que os mandatários dos 1ºs RR. não tenham oferecido à CC, na qualidade de cabeça de casal, à irmã EE e ao cunhado FF, a venda do prédio pelo preço (esc. 350.000$00) e nas condições (pagamento no acto da escritura) em que o haviam oferecido à cabeça de casal da herança de XX (sogra e mãe dos 2ºs RR.).
No entanto, não deixa de revelar algum grau de contradição que, não se tendo provado a mencionada oferta, se tenha provado que todos os herdeiros (da herança de AA e mulher BB) se mostraram desinteressados pela razão de ainda não terem formalizado as partilhas; que o preço (350.000$00) tenha sido recusado pela CC, pela irmã e pelo cunhado; que os mandatários dos 1ºs RR. lhe tenham dado um prazo que terminou na Páscoa de 2000; e que, como nada disseram durante esse período de tempo, os mandatários dos 1ºs RR. tenham oferecido o prédio aos 2ºs RR., confirmando-lhes que nem a CC nem qualquer dos outros herdeiros estavam interessados em comprar.
Não tendo a audiência de discussão e julgamento sido objecto de gravação a contradição apontada determinaria, em princípio, a anulação da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto (artº 712º, nº 4, do CPC), o que apenas não sucederá se for possível concluir que a eventual alteração das respostas a todos ou a alguns dos quesitos em questão sempre seria irrelevante para a solução do litígio.
Essa questão será adiante analisada.
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3.2.2. Inadmissibilidade de prova testemunhal a alguns quesitos da base instrutória
A apelante defende que não era admissível a produção de prova testemunhal à matéria dos quesitos 14º e 17º, onde era perguntado se a CC vive em comunhão de mesa e habitação com a irmã EE e marido FF (14º) e se, após a propositura da acção, os outros herdeiros têm confirmado que não lhes interessou nem interessa o exercício do direito de preferência (17º).
A invocada inadmissibilidade decorreria, na tese da apelante, do disposto no artº 394º, nº 1 do Cód. Civil, servindo para o efeito de documentos insusceptíveis de ser contrariados a petição inicial, em cujo cabeçalho são indicadas para a CC e para a irmã e cunhado residências separadas e distintas e as procurações individualmente outorgadas, das quais resulta igual separação e distinção de moradas.
De acordo com o nº 1 do artº 394º do Cód. Civil, “é inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.° a 379.° quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”.
A petição inicial e as procurações invocadas não são documentos autênticos. E, não podendo a respectiva autoria e assinatura deixar de ser imputadas exclusivamente aos representantes da herança autora, não revestem relativamente aos RR. de qualquer valor probatório especial que os impeça de provar, designadamente através de testemunhas, quaisquer factos que eventualmente contradigam os respectivos teores.
Ou seja, não negando à petição inicial e às procurações a classificação de documentos, ainda que numa acepção muito ampla, o que temos como seguro é que não são documentos autênticos ou documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º do Cód. Civil, não reunindo virtualidades capazes de impedir que a parte contrária contradiga os seus teores, mesmo com recurso à prova testemunhal.

A apelante defende ainda que não era admissível a prova testemunhal relativamente à alegada renúncia ao direito de preferência, cuja validade dependeria da existência de documento livre e conscientemente assinado por todos os interessados na herança autora.
Segundo o artº 393º, nº 1 do Cód. Civil, “se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal”.
No entanto, nos termos do artº 219º do referido Código, o princípio geral é o da liberdade de forma, devendo as excepções a tal princípio resultar da lei. E, não resultando da lei qualquer exigência de forma especial para a renúncia ao direito de preferir, esta pode revestir qualquer forma, verbal ou escrita, expressa ou tácita Ac. Rel. Porto de 15/03/83, in CJ, VIII, II, 223; Ac. Rel. Évora de 7/4/88, in CJ, XIII, II, 254; Ac. Rel. Porto de 27/6/91, in CJ, XVI, III, 267; Ac. STJ de 9/10/97, in CJ(STJ), V, III, 55..
Nada impedia, portanto, que a alegada renúncia ao direito de preferir tivesse revestido apenas a forma verbal e, consequentemente, que sobre ela fosse produzida prova testemunhal.
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3.2.3. Inexistência de renúncia ao direito de preferência
Face aos factos provados e ao disposto nos artºs 1380º, nº 1 do Cód. Civil e 28º do Dec. Lei nº 385/88, de 25/10 (Lei do Arrendamento Rural), não há dúvidas de que a herança autora tinha direito de preferência na venda do rústico acima identificado no ponto 3.1.3..
De resto, há, nessa parte, unanimidade, já que os RR. não negam a existência de tal direito.
O que defendem e foi acolhido na sentença sob recurso é que a herança autora renunciou ao exercício desse direito, o qual, assim, se extinguiu.
A apelante, obviamente, tem entendimento diverso, considerando que inexistiu qualquer renúncia válida e que, por isso, não lhe tendo sido dada oportunidade de preferir, o faz através desta acção.
Ao direito de preferência fundado na confinância é aplicável, por força do nº 4 do artº 1380º do Cód. Civil, o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º, com as necessárias adaptações, o mesmo sucedendo relativamente ao direito de preferência baseado em arrendamento rural Arrendamento Rural Anotado, Aragão Seia e Costa Calvão, 1980, pág. 74..
Manda o artº 416º:
1. Querendo vender a coisa que é objecto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato.
2. Recebida a comunicação, deve o titular exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade, salvo se estiver vinculado a prazo mais curto ou o obrigado lhe assinar prazo mais longo.
Ou seja, se o obrigado a dar preferência quiser vender a coisa sobre a qual a preferência recai, deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato. Se não for cumprida essa obrigação, omitindo-se a pertinente comunicação, o titular do direito tem à sua disposição a acção prevista no artº 1410º do Cód. Civil.
A comunicação aludida não tem de obedecer a qualquer forma especial Ac. Rel. Porto de 28/11/89 e de 27/6/91, in CJ, XIV, V, 197 e CJ, XVI, III, 267; Ac. STJ de 9/10/97 in CJ(STJ), V, III, 55., mas tem de ser feita pelo obrigado a dar preferência Ac. STJ de 28/5/96 e de 2/3/99 in CJ(STJ), IV, II, 93 e CJ(STJ), VII, I, 131. pessoal e directamente ao titular do respectivo direito Ac. Rel. Porto de 15/3/83 in CJ, VIII, II, 223., devendo conter os elementos essenciais para a motivação e determinação de contratar ou não por parte daquele, essencialidade essa a aferir em termos de razoabilidade no confronto do caso concreto, mas incluindo, em regra, o preço, as condições de pagamento e a identidade do comprador potencial preterido Ac. Rel. Porto de 15/3/83 in CJ, VIII, II, 223; Ac. Rel. Coimbra de 12/10/99 in CJ, XXIV, IV, 30; Ac. STJ de 9/10/97 e de 6/5/98 in CJ(STJ) V, III, 55 e CJ(STJ) VI, II, 72.
O local e a data da celebração do contrato não são elementos essenciais (Ac. Rel. Coimbra de 12/10/99, já citado)..
Não pode ser confundido projecto de venda com intenção de venda Ac. Rel. Coimbra de 12/4/88 in CJ, XIII, II, 61., nem a comunicação exigida pelo artº 416º do Cód. Civil com uma mera proposta negocial de venda feita ao titular do direito de preferência, ainda que antes de a qualquer outra pessoa.
Se bem vemos, para que o titular do direito de preferência possa verdadeiramente determinar-se a exercer ou não esse direito é indispensável que o obrigado à preferência tenha já um projecto de venda estável, isto é, um comprador para a coisa, por preço e em condições já acordadas, de tal forma que se o titular do direito o não exercer baste formalizar o negócio já perfeito, ainda que sob condição.
A não ser assim, a comunicação não passará de uma proposta negocial, eventualmente contendo todos os elementos essenciais excepto, naturalmente, a pessoa do comprador.
Aliás, fundando-se a preferência em contiguidade, tal como em compropriedade, a pessoa do futuro vizinho ou consorte é claramente um elemento determinante, capaz de influir definitivamente na decisão de preferir ou não.
Revertendo ao caso dos autos, sucede que a versão dos RR. é a de que ofereceram o prédio à herança de XX, por nela estar integrado um prédio confinante e, tendo-lhes sido mostrado desinteresse, ofereceram-no, pelo mesmo preço e nas mesmas condições, à herança autora, na pessoa da CC, enquanto cabeça de casal e da irmã EE e cunhado FF, enquanto interessados, só depois o oferecendo e vendendo aos RR. compradores.
Ora, se bem vemos, para que à herança autora fosse verdadeiramente dado o direito de preferência, deveriam os vendedores, após chegarem a acordo com os compradores, ter feito àquela a comunicação prevista no artº 416º do Cód. Civil, fornecendo-lhe todos os elementos essenciais susceptíveis de influenciar a decisão, incluindo as pessoas dos compradores.
Ou seja, mesmo admitindo que se tinha provado integralmente a versão dos RR., a comunicação feita à herança autora não seria válida e eficaz, do que sempre decorreria a irrelevância da eventual renúncia daquela.

Do que fica exposto resulta que a anulação da decisão da 1ª instância relativa à matéria de facto, fundada na contradição apontada no ponto 3.2.1. supra, e a repetição do julgamento nessa parte não passariam de um acto inútil já que, fosse qual fosse o resultado do novo julgamento, sempre a excepção peremptória da renúncia ao direito de preferência improcederia, procedendo a acção.
Com efeito, não havendo dúvidas, como foi já dito, de que a herança autora é titular do invocado direito de preferência e não tendo o mesmo sido extinto, designadamente pela alegada renúncia, não poderá a acção deixar de proceder e os RR. de ser condenados no pedido.
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4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência:
a) Revogar a sentença recorrida;
b) Julgar improcedente a excepção peremptória da renúncia ao direito de preferência invocada pelos RR.;
c) Julgar a acção procedente e, por isso:
1) Condenar os RR. a reconhecerem que da herança autora faz parte o prédio rústico composto de pinhal com mato e terra de sequeiro com videiras, oliveiras e fruteiras, sito ao Outeiro, freguesia de Bodiosa, concelho de Viseu, a confrontar do Norte com YY, do Nascente com ZZ, do Sul com WW e do Poente com AB, com a área de 776 m2, inscrito na matriz predial sob o artigo 3381;
2) Declarar que a herança autora é titular do direito de preferência na compra e venda do prédio rústico composto de pinhal e mato com terra de cultura com oliveiras, sito ao Outeiro, freguesia de Bodiosa, concelho de Viseu, com a área de oitocentos e dez metros quadrados, a confrontar do Norte com YY, do Sul e Poente com WW e do Nascente com AA, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3382 e condenar os RR. a isso reconhecerem;
3) Condenar os RR. compradores a abrirem mão, a favor da herança autora, do prédio acabado de referir, mediante o recebimento do respectivo preço, sisa e demais despesas.
As custas, quer da acção, quer da apelação, são a cargo dos RR./apelados.
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