Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
97/16.1T9CNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELENA BOLIEIRO
Descritores: FALTA DE MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO;
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 10/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (J L CRIMINAL DE CANTANHEDE)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 374.º, 379.º E 410.º DO CPP
Sumário:
I – Para aquilatar a decisão tomada pelo tribunal a quo quanto à demonstração da referida factualidade, em ordem a aferir se a mesma padece do vício do erro notório suscitado no recurso, é indispensável saber quais as concretas provas que o levaram a concluir naquele sentido probatório e conhecer o percurso lógico e racional que efectuou na sua apreciação e valoração, conducente à convicção formada.
II – Daí a relevância da fundamentação de facto que obrigatoriamente deve constar da sentença, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do julgador, nos termos previstos no artigo 374.º, n.º 2.
III – A omissão assim detectada é causa de nulidade da sentença recorrida, conforme determina o artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, em resultado do que se impõe proceder ao seu suprimento através da reformulação da decisão, de modo a que nela conste a indicação da concreta prova que relevou para o apuramento da apontada matéria de facto e qual o percurso lógico e racional que o tribunal a quo seguiu na sua ponderação e valoração até chegar a tal resultado probatório.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – Relatório
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo Local Criminal de Cantanhede, o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum com intervenção do tribunal singular do arguido X, com os demais sinais dos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.os 1 e 3 do Código Penal.
Realizada a audiência de julgamento, o tribunal a quo proferiu sentença em que condenou o arguido pela prática de um crime falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.os 1 e 3 do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de 5,00 € (cinco euros), num total de 1 000,00 € (mil euros).
2. Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido que, no termo da motivação, formulou as seguintes conclusões (transcrição):
A …
Termos em que a Sentença ora recorrida deverá ser revogada por outra que absolva o arguido da prática do crime que vem acusado, ou se assim VV. Exa.s não entenderem, se diminua a pena aplicada ao arguido, assim se fazendo sã e serena JUSTIÇA!”.

3. Admitido o recurso, a Digna Magistrada do Ministério Público veio responder, pugnando pelo seu não provimento e formulando no termo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“I…
Termos em que, com os fundamentos invocados, se deve manter a douta sentença recorrida, como é de JUSTIÇA!”

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.° do Código de Processo Penal (doravante CPP), emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e consequente confirmação da sentença recorrida.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta.
6. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre agora decidir.
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II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do CPP que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões formuladas na motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar Na doutrina, cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113. Na jurisprudência, cf., entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág.242; de 03-02-1999, in BMJ 484, pág.271; de 28-04-1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193. , sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso Cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28-12-1995.

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Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, são as seguintes as questões a decidir:
- Erro notório na apreciação da prova.
- Subsunção dos factos ao tipo base do artigo 360.º, n.º 1 do Código Penal.
- A excessiva medida da pena aplicada.
Oficiosamente, esta Relação irá analisar a seguinte questão:
- Nulidade da sentença por falta de fundamentação quanto à decisão sobre a matéria de facto [artigo 379.º, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 374.º, n.º 2, ambos do CPP].
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2. A sentença recorrida.
2.1. Na sentença proferida pelo tribunal a quo foram dados como provados os seguintes factos:
“No dia … ”.

2.2. Por sua vez, inexistem factos não provados.
2.3. Quanto à fundamentação da matéria de facto, escreveu-se na sentença recorrida que (transcrição):
“A convicção do Tribunal no tocante aos factos praticados pelo arguido baseou-se na conjugação e análise crítica da Prova: (dos autos) Documental: 1. Certidão extraída do processo comum singular n.º 21/13.3GACNT, a fls. 2 a 10; 2. Transcrição das declarações do arguido, a fls. 16 a 27 e 3. Certificado do Registo Criminal do arguido, a fls. 50 a 52, atenta a ausência do arguido”.

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3. Apreciando.
No presente recurso suscita-se oficiosamente a nulidade da sentença por falta de fundamentação quanto à decisão sobre a matéria de facto
Nela entronca a questão invocada no recurso de que o tribunal a quo errou na apreciação da prova, ao considerar demonstrado sem qualquer suporte probatório que o arguido faltou à verdade nas declarações que prestou em audiência de julgamento, pelo que não deveria ter sido condenado na forma agravada prevista no n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal, mas, tão só, pelo tipo base descrito no n.º 1 do mesmo normativo.
Atendendo à sua natureza e aos efeitos da eventual procedência, levando a que a análise das questões invocadas no recurso fique prejudicada, cumpre, antes do mais, conhecer da referida nulidade.
Pois bem.
§ 1. Consagrada no artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, a fundamentação constitui uma garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, funcionando como condição de legitimação externa das decisões dos tribunais, ao permitir a verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que as determinaram. Cf. Acórdão do STJ de 16-03-2005, proferido no processo n.º 05P662 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.
Para além disso, assume no processo penal uma função estruturante das garantias de defesa do arguido, na medida em que assegura o conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, de modo a facultar a opção reactiva (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos, revelando-se, assim, essencial para o exercício do direito ao recurso. Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 147/00, de 21-03-2000, disponível na Internet em <http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/>.
Consequentemente, serve também um propósito intraprocessual voltado para a reapreciação das decisões que caracteriza o sistema recursório, pois permite ao tribunal superior conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico contido em tais decisões, para efectuar o seu próprio juízo no âmbito da sindicância que cumpre realizar. Cf. Acórdão do STJ de 16-03-2005, atrás indicado.
Conforme estabelece o artigo 374.º, n.º 2 do CPP, a fundamentação da sentença consiste na enumeração dos factos provados e não provados, bem como na exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
No âmbito da decisão sobre a matéria de facto, a exigida fundamentação tem em vista a explicitação do processo de formação da convicção do julgador e isso pressupõe, para além da indicação dos meios de prova que relevaram nesse iter decisório, a referência ao exame crítico da prova que serviu para formar a convicção, dando a conhecer de modo conciso, mas com suficiência bastante, o percurso lógico e racional efectuado em sede de apreciação e valoração da prova que conduziu à demonstração (ou não) da factualidade objecto da decisão recorrida.
Quanto a este segundo aspecto, a fundamentação supõe, pois, a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas produzidas, dos motivos que sustentam determinada opção por um ou outro dos meios de prova, dos fundamentos da credibilidade reconhecida às declarações e depoimentos e do valor de documentos e exames, ou seja, de tudo o que o julgador privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio que seguiu e das razões da sua convicção. Cf. Acórdão do STJ de 16-03-2005, atrás indicado.
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§ 2. Revertendo ao caso sub judice, verifica-se que o tribunal a quo considerou preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.os 1 e 3 do Código Penal, imputado ao arguido.
Segundo dispõe o n.º 1 do citado normativo, quem, como testemunha, perante tribunal ou funcionário competente para receber depoimento como meio de prova, prestar depoimento falso, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias.
De acordo com o tipo agravado descrito no n.º 3, se o facto referido no n.º 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou de multa até 600 dias.
No recurso o arguido sustenta que não deveria ter sido condenado na forma agravada prevista no citado n.º 3, mas, tão só, pelo tipo base descrito no n.º 1.
Para tanto alega que nos presentes autos não há qualquer prova de que o depoimento que prestou na audiência de julgamento do processo n.º 21/13.3GACNT é falso, nem é feita referência a qualquer prova que permita avaliar qual dos seus dois depoimentos – se o do inquérito, se o do julgamento – não está conforme à realidade.
Pondo, assim, em causa a apreciação da prova que conduziu à decisão de dar como assente que “o depoimento prestado em sede de audiência de julgamento é falso, o que o ora arguido não ignorava”, elemento que se revela essencial para o preenchimento do tipo agravado previsto no n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal.
Na sentença recorrida o tribunal a quo fez constar que, para formar a sua convicção, se baseou na prova documental dos autos, tendo neste contexto indicado a certidão extraída do processo comum singular n.º 21/13.3GACNT de fls.2 a 10, a transcrição do depoimento do arguido de fls.16 a 27 e o CRC de fls.50 a 52.
A prova considerada, constituída pelos citados elementos, é, pois, unicamente documental, sendo que, como também vem referido na decisão sob recurso, o julgamento dos autos foi realizado na ausência do arguido.
Pese embora na sentença recorrida tenha indicado [toda] a prova a que atendeu, certo é que, em relação ao seu exame crítico, o tribunal a quo se limitou a referir que a convicção no tocante aos factos praticados pelo arguido se baseou na conjugação e análise crítica da prova, não efectuando a tal respeito qualquer tipo de explanação.
Ainda assim, aquele breve enunciado feito revela-se suficiente para motivar a sustentação probatória dos factos relativos ao conteúdo dos dois depoimentos que o arguido prestou no processo n.º 21/13.3GACNT, dele se inferindo que o tribunal a quo atendeu ao que objectivamente resulta dos elementos constantes da certidão junta a fls.2 a 10 e da transcrição de fls.16 a 27, inferência que, face à natureza da factualidade em causa e à prova que a suporta, não é difícil alcançar, o que, aliás, o próprio recorrente não questionou.
No entanto, já o mesmo não se pode dizer em relação ao facto dado como assente de que o depoimento prestado em sede de audiência de julgamento é falso, o que o ora arguido não ignorava, sendo que, quanto a este, não se divisa na sentença recorrida em que concretos elementos do acervo documental indicado o tribunal a quo se baseou para assim concluir, para além de que a decisão também não fornece qualquer elucidação sobre o percurso lógico e racional que o julgador efectuou em sede de apreciação e valoração da prova que serviu para formar a sua convicção no sentido de considerar demonstrada tal factualidade.
Tendo presente que o tribunal a quo assumiu sufragar a concepção objectiva da falsidade típica, verifica-se que a motivação que aduziu na sentença recorrida não permite compreender como chegou ao apuramento do acontecimento real com referência ao qual concluiu que é falso o depoimento que o arguido prestou na audiência de julgamento dos citados autos n.º 21/13.3GACNT, sendo certo que dos documentos indicados, juntos a fls.2 a 10 e 16 a 27, não constam elementos relativos à realidade processualmente alcançada em tais autos.
Aliás, a falta de motivação verificada tanto se faz sentir para quem segue aquele entendimento objectivo, em que releva a desconformidade entre a declaração e a realidade Assim, cf. A. Medina de Seiça, op. cit., páginas 473-478, e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed., Universidade Católica Editora, 2015, pág.1131. e importa alcançar a demonstração de um determinado acontecimento real com referência ao qual se confirma a inverdade do depoimento prestado, como para quem adopta a concepção orientada por um sentido subjectivo, em que a falsidade consiste na desconformidade entre a declaração e a ciência do declarante Assim, cf. Acórdão da Relação de Évora de 03-11-2015, proferido no processo n.º 49/13.3T3STC.E1 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>, que segue a posição de Nuno Brandão orientada para o sentido subjectivo de declaração falsa, em “Inverdades e consequências: considerações em favor de uma concepção subjectiva da falsidade de testemunho”. Anotação aos acórdãos da Relação do Porto de 30.01.2008 e da Relação de Guimarães de 29.06.2009, in RPCC 2010, 3, págs.477 e seguintes. Sufragando a concepção subjectiva, cf. ainda Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, Almedina, 2013, pág.403..
Ora, para aquilatar a decisão tomada pelo tribunal a quo quanto à demonstração da referida factualidade, em ordem a aferir se a mesma padece do vício de erro notório suscitado no recurso, é indispensável saber quais as concretas provas que o levaram concluir naquele sentido probatório e conhecer o percurso lógico e racional que efectuou na sua apreciação e valoração, conducente à convicção formada.
Daí a relevância da fundamentação de facto que obrigatoriamente deve constar da sentença, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do julgador, nos termos previstos no citado artigo 374.º, n.º 2, exigência que, como se vê, não foi observada pelo tribunal a quo.
A omissão assim detectada é causa de nulidade da sentença recorrida, conforme determina o artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, em resultado do que se impõe proceder ao seu suprimento através da reformulação da decisão, de modo a que nela conste a indicação da concreta prova que relevou para o apuramento da apontada matéria de facto e qual o percurso lógico e racional que o tribunal a quo seguiu na sua ponderação e valoração até chegar a tal resultado probatório.
Neste caso não pode a Relação substituir-se ao tribunal a quo e suprir a nulidade, pois se assim fizesse estaria a negar-se o único grau de recurso de que o arguido dispõe, violando-se o duplo grau de jurisdição exigido pelo artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. Cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 27-01-2010, proferido no processo n.º 649/08.3PQLSB.L1-3 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt/>.
Resta, por fim, referir que, face à sua natureza e consequências, a verificação da apontada nulidade prejudica o conhecimento das questões suscitada no recurso interposto pelo arguido.
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III – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em declarar nula a sentença recorrida por falta de fundamentação quanto aos aspectos acima indicados e, em consequência, determinar a sua substituição por outra sentença que supra a apontada nulidade, nos termos enunciados.
Sem tributação.

Coimbra, 24 de Outubro de 2018
(O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária – artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

Helena Bolieiro (relatora)

Brízida Martins (adjunto)