Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
30/2000.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIRECÇÃO EFECTIVA DE VIATURA
Data do Acordão: 10/10/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 503º, Nº 1, DO C.CIV.
Sumário: I – Nos termos do artº 503º, nº 1, do C. Civ., aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.

II – A direcção efectiva envolve um poder material de uso e destino do veículo e não depende do domínio jurídico sobre este, podendo existir sem esse domínio, da mesma forma que tal domínio pode existir sem ela, pois essa direcção intencional e expressamente qualificada pela lei como efectiva se identifica com o poder real (de facto) sobre o veículo em causa.

III – Tem correntemente a direcção efectiva do veículo o proprietário, o usufrutuário, o adquirente com reserva de propriedade, o comodatário, o locatário, o que furtou, o condutor abusivo e, de um modo geral, qualquer possuidor em nome próprio.

IV – O garagista (ou seu comissário) que utilize o veículo por virtude das suas funções e no âmbito da sua actividade profissional, tem a direcção efectiva do mesmo, o que significa que o respectivo proprietário, ao entregá-lo para recolha, reparação ou revisão, perde a direcção efectiva da viatura.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


1. RELATÓRIO
A... e marido B..., residentes em Outeiro, Louriçal, Pombal, intentaram acção declarativa de condenação, com processo comum e forma ordinária, contra a Companhia de Seguros C..., com sede na Rua Andrade Corvo, nº 32, 1069-014, Lisboa, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia total de Esc. 3.233.594$00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Para tanto, em síntese, os AA. alegaram que nas circunstâncias de tempo, lugar e modo que indicam, ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente o motociclo LZ-56-14, tripulado pelo Autor marido e onde se fazia transportar a Autora, e o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula 36-19-HM, seguro na Ré, sendo que a culpa na sua produção é de atribuir ao condutor deste veículo, de nome João Cordeiro, que seguia em sentido contrário e efectuou uma manobra de mudança de direcção sem atender ao motociclo que aí seguia, vindo a nele embater; que daí resultaram para os Autores diversos danos, que descrevem, entre os quais ferimentos que os obrigaram aos necessários tratamentos, mencionando o valor de Esc. 900.594$00 de danos patrimoniais e de Esc. 500.000$00 de danos não patrimoniais, estes do Autor, e Esc. 1.500.000$00 para a Autora, mantendo-se ainda hoje lesões, a liquidar posteriormente; e que o motociclo ficou danificado, sem possibilidade de reparação, tendo um valor de Esc. 180.000$00.
A Ré contestou por excepção, sustentando que o seguro com ela celebrado não cobre os riscos do acidente, pois que o veículo se encontrava numa oficina em reparação, tendo saído o proprietário desta com o mesmo sem autorização ou conhecimento do dono do veículo. Contestou também por impugnação, alegando não saber as circunstâncias em que ocorreu o acidente, bem como a extensão dos danos sofridos pelos Autores. Concluiu defendendo a sua absolvição do pedido.
Os Autores replicaram, dizendo não saber se são verdadeiros os factos alegados pela Ré e, para a eventualidade de o serem, à cautela, requereram a intervenção provocada do Fundo de Garantia Automóvel e do condutor do ligeiro de mercadorias, João Cordeiro.
Admitidas as intervenções, foram os intervenientes citados, tendo ambos contestado, o Fundo de Garantia Automóvel pugnando pela sua absolvição do pedido e o João Cordeiro defendendo ser parte ilegítima, por ter utilizado o veículo com autorização do proprietário, sendo certo que a sua actividade normal não é a de reparação de veículos, razão por que não celebrou qualquer seguro que cubra essa actividade. Por impugnação, sustentou ainda não ser o único e exclusivo responsável pela produção do acidente.
Foi proferido despacho saneador, seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória.
No seguimento do relatório pericial junto aos autos, a Autora deduziu incidente de liquidação do pedido, peticionando € 27.709,37 de danos futuros decorrentes da sua incapacidade e mais € 22.518,03 de danos não patrimoniais (estes a acrescer aos já pedidos, a este título, na p.i.).
Posteriormente, a mesma Autora ampliou o seu pedido, de forma a englobar a quantia de € 7.347,41 de consultas, tratamentos, deslocações e ordenados.
A Ré e os intervenientes deduziram oposição.
Foram admitidos os pedidos de liquidação e de ampliação do pedido, com aditamento de novos quesitos à base instrutória.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferido o despacho de fls. 462 a 465, decidindo a matéria de facto controvertida.
Pela sentença de fls. 467 a 479 foi decidido:
1. Absolver o interveniente, Fundo de Garantia Automóvel, do pedido formulado nos autos pelos Autores;
2. Absolver o interveniente, João Cordeiro, do pedido formulado nos autos pelos Autores;
3. Condenar a Ré, Companhia de Seguros C..., a pagar:
a) Ao Autor, B..., a título de indemnização por danos de natureza patrimonial por ele sofridos, a quantia de € 623,50 (seiscentos e vinte e três euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento;
b) À Autora, A...:
1) A título de indemnização por danos de natureza patrimonial, a quantia de € 40.822 (quarenta mil, oitocentos e vinte e dois euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento;
2) A título de indemnização por danos de natureza não patrimonial, a quantia de € 15.000 (quinze mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a presente decisão até efectivo pagamento;
4. Absolver a Ré, Companhia de Seguros C...., da parte do pedido não incluída supra em “3”.
Inconformada, a R. Companhia de Seguros C.... interpôs recurso que foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Na alegação apresentada a apelante formulou as conclusões seguintes:
1) Vem provado que o veículo “39-19-HM” foi entregue, pelo filho do proprietário deste, ao João Cordeiro para que este o reparasse, bem como provado vem que o João Cordeiro se dedicava à reparação de máquinas agrícolas e pontualmente era solicitado para proceder à reparação de veículos automóveis;
2) Como provado vem que o João Cordeiro ficou convencido que o problema do veículo era relacionado com as velas e que, se assim fosse, teria de se deslocar à Guia a fim de adquirir novas velas;
3) Vem, igualmente, provado que o João Cordeiro foi autorizado pelo proprietário do veículo a deslocar-se à Guia para adquirir as referidas velas e que teria necessariamente de passar pelo Outeiro do Louriçal;
4) Vem, também, provado que o João Cordeiro decidiu passar nas instalações de Lino do Sacramento Jordão para proceder ao levantamento duma peça que havia encomendado, sendo neste momento que se verificou o acidente com o veículo conduzido pelos A.A.;
5) Vem finalmente provado que o acidente ocorreu quando o João Cordeiro efectuava uma manobra de mudança de direcção à esquerda para se dirigir a uma residência existente no local sem previamente verificar que em sentido contrário circulava o veículo onde os A.A. seguiam, manobra essa súbita e inesperada;
6) Perante tais factos reconheceu a douta decisão recorrida que a autorização não abrangeu, expressamente, a utilização do veículo “36-19-HM” para ir buscar uma peça que nada tinha a ver com o veículo tendo sido esta que levou a que se fizesse a manobra excepcional de mudança de direcção de onde veio a derivar a colisão;
7) Mas admitiu, igualmente, que dada a forma como foi efectuada a entrega, no âmbito da vontade de “desenrascar” de quem utilizou o veículo, aceite por quem entregou, dificilmente se compreenderia que aquele não pudesse, se a questão tivesse sido colocada, utilizar o veículo para o fim de ir buscar uma peça a um estabelecimento que ficava no trajecto normal que tinha de seguir, ainda que com necessidade de parar do outro lado da estrada;
8) O que levou o Meritíssimo Juiz “”a quo” a concluir que a direcção efectiva do veículo se manteve em quem a outorgou para ser arranjado num acto de “desenrasque”;
9) Salvo o devido respeito, a decisão deveria ter sido diversa;
10) Na verdade, o João Cordeiro alterou o percurso que estava autorizado a seguir no seu próprio interesse ou, preferindo-se, da sua própria oficina e não estava autorizado a fazê-lo;
11) Ora, sendo assim, na altura em que o acidente ocorreu, é o proprietário da oficina que detêm a direcção efectiva da viatura e quem responde pelas perdas e danos causados a terceiros enquanto o veículo lhe estiver confiado;
12) Acresce que, independentemente da modéstia da oficina e do veículo ter sido confiado no âmbito da vontade de “desenrascar” a verdade é que se realizou um contrato de empreitada que se traduziu na entrega da viatura “36-19-HM” à oficina do João Cordeiro para reparação;
13) Assim, o João Cordeiro tinha de se ater ao que contratualmente estava estipulado e que era a realização dessa reparação a que se somava a autorização de deslocação à Guia para o fim específico da aquisição de velas destinada a assegurar tal reparação;
14) Ao utilizar o trajecto autorizado para fim diverso que implicou uma alteração do percurso normal há violação do que contratualmente ficou acordado;
15) E, no caso vertente, relevante, porquanto foi na concretização dessa alteração de percurso, traduzida em manobra de mudança de direcção, que o acidente ocorreu;
16) Assim, não só o João Cordeiro incumpriu o contrato de empreitada como, no momento do acidente, era ele quem detinha a direcção efectiva (traduzida na livre disposição) do veículo “36-19-HM”;
17) Consequentemente a Ré C..., seguradora de tal veículo, deveria ter sido absolvida do pedido, respondendo pela indemnização o Fundo de Garantia Automóvel;
18) Não o entendendo assim, a douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 1208º, 406º nº 1 e 503º do Código Civil e 2º e 21º do Decreto – Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro;
Os intervenientes Fundo de Garantia Automóvel e João Cordeiro responderam, defendendo a manutenção da sentença recorrida.
Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.
***

2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada a questão de saber quem detinha, no momento do acidente, a direcção efectiva do veículo automóvel de matrícula 36-19-HM: se o respectivo proprietário, caso em que o contrato de seguro titulado pela apólice nº 000561790, através do qual o mesmo transferiu para a Portugal Previdente – Companhia de Seguros, actualmente fundida na R., cobrirá a responsabilidade civil por danos resultantes do acidente; ou se o João Cordeiro, a quem a viatura foi entregue nos termos constantes dos autos, hipótese em que o contrato de seguro referido não cobrirá as consequências do acidente e, face à inexistência de seguro por parte do João Cordeiro, é accionada obrigação de garantia de satisfação das indemnizações que recai sobre o Fundo de Garantia Automóvel (artº 21º e seguintes do Dec. Lei nº 522/85, de 31/12).
Com efeito, como resulta seguro da alegação de recurso da apelante, não vem por esta posta em causa, não constituindo, por isso, objecto do recurso, a verificação dos elementos ou requisitos – facto, ilicitude, culpa, danos e nexo de causalidade entre o facto ilícito e os danos – da responsabilidade civil do condutor da viatura automóvel (João Cordeiro).

***

3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
Não tendo sido impugnada a decisão de facto nem havendo fundamento para oficiosamente a alterar, considera-se definitivamente assente a factualidade dada como provada na 1ª instância e que é a seguinte:
3.1.1. No dia 24 de Abril de 1999, cerca das 15.30 horas, na EN 342, ao Km 3100, no lugar de Outeiro do Louriçal, ocorreu um acidente de viação. No dia, hora e local mencionados, o Autor B... circulava no sentido Carriço/Louriçal, conduzindo o motociclo de sua propriedade, matrícula LZ-56-14, a uma velocidade não superior a 40 Km/hora, pela metade direita da estrada, atento o seu sentido de marcha. Nele seguia igualmente como passageira a Autora A... ( Resp. aos ques. 1º, 2º, 3º, 4º e 5º;);
3.1.2. Em sentido contrário circulava o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula 36-19-HM, registado em nome de José Rolo da Silva Jordão e conduzido por João Cordeiro, nas circunstâncias referidas infra em 38, 39, 41, 42, 43 ( nas respostas aos quesitos 62º a 68º;) ( Resp. ao ques. 6º;);
3.1.3. A dada altura, o referido João Cordeiro, vindo como se fosse do lado do Louriçal, iniciou uma manobra de mudança de direcção à esquerda, para se dirigir a uma residência existente no local. Fê-lo, porém, sem previamente verificar que, em sentido contrário, circulava o veículo onde os Autores seguiam ( Resp. 7º e 8º;);
3.1.4. Tal veículo encontrava-se já muito próximo do local onde o João Cordeiro iniciou a pretendida manobra ( Resp. ao ques. 9º;);
3.1.5. E fê-lo súbita e inesperadamente ( Resp. ao ques. 10º;);
3.1.6. O Autor ainda accionou os travões do seu motociclo. Contudo, não conseguiu evitar que este fosse embater na parte lateral direita do HM ( Resp. aos ques. 11º e 12º;);
3.1.7. A colisão ocorreu na faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito dos Autores ( Resp. ao ques. 13º;);
3.1.8. João Cordeiro não se apercebeu que circulava em sentido contrário ao seu o motociclo LZ ( Resp. ao ques. 73º;);
3.1.9. No local ficou a marca de uma travagem com 12 metros realizada pelo veículo conduzido pelo Autor ( Resp. ao ques. 74º;);
3.1.10. O João Cordeiro veio a imobilizar o veículo que conduzia fora da faixa de rodagem ( Resp. ao ques. 77º;);
3.1.11. A estrada, no local, apresenta-se em recta e a faixa de rodagem tem uma largura de 4,70 m ( Resp. aos ques. 14º e 15º;);
3.1.12. O tempo estava bom ( Resp. ao ques. 16º;);
3.1.13. Do violento embate resultou a queda do motociclo e a projecção dos Autores para o solo ( Resp. ao ques. 17º;);
3.1.14. A Autora A..., em consequência da queda sofreu fractura do perónio e da tíbia direita, com ferida da face antero-exterior do joelho do mesmo lado ( Resp. ao ques. 23º;);
3.1.15. Do acidente resultou para a Autora traumatismo craniano, com perda de conhecimento ( Resp. ao ques. 32º;);
3.1.16. Foi transportada ao Hospital de Pombal, onde recebeu os primeiros socorros, tendo, de imediato, sido transferida para o Centro Hospitalar de Coimbra, onde ficou internado até 30.4.99 ( Resp. aos ques. 24º e 25º;);
3.1.17. Esteve com a perna engessada até 14.7.99, data em que o gesso foi retirado e colocada bota belta com tacão, que utilizou durante 60 dias ( Resp. aos ques. 26º e 27º;);
3.1.18. Iniciou tratamento de fisioterapia em 20.9.99 ( Resp. ao ques. 28º;);
3.1.19. Continua a deslocar-se com a ajuda de canadianas ( Resp. ao ques. 29º;);
3.1.20. A Autora tem dores na perna direita, com limitação da mobilidade articular ( Resp. ao ques. 30º;);
3.1.21. A Autora apresenta marcha claudicante, por encurtamento do membro inferior direito em 2,5 centímetros, cicatriz de 4 x 0,6 centímetros na face interna do joelho direito e vestígios cicatriciais numa zona de 5 x 2 centímetros na face anterior do mesmo joelho (Resp. aos ques. 31º e 83º;). Apresenta, ainda, a Autora, limitação da mobilidade do tornozelo direito, fractura consolidada da tíbia direita, consolidada em posição viciosa e artrose ligeira do tornozelo direito, com rarefacção óssea ( Resp. ao ques. 84º;);
3.1.22. A Autora apresenta perturbações neuróticas de ansiedade, fobia e depressão, compatível com síndrome pós-traumático comocional, que se traduz por uma incapacidade no seu funcionamento ocupacional, social e familiar. A Autora continua a ter acompanhamento médico, por esse facto ( Resp. aos ques. 34º, 35º e 85º;);
3.1.23. A Autora apresenta incapacidade permanente parcial de 28% ( Resp. ao ques. 81º;);
3.1.24. Apresenta um dano estético de grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade ( Resp. ao ques. 82º;);
3.1.25. Aquando do acidente, era uma mulher activa e saudável, tratando da casa e dos três filhos ( Resp. ao ques. 38º;);
3.1.26. A Autora, face à sua situação clínica, contratou uma mulher para fazer os serviços domésticos no período compreendido entre 6 de Maio e Agosto de 1999, inclusive, no que despendeu um total de Esc. 428.000$00 ( Resp. aos ques. 40º e 41º;);
3.1.27. A Autora, desde Setembro de 1999, porque não consegue realizar todos os trabalhos domésticos, contratou os serviços de uma mulher, a qual trabalha oito horas por semana, auferindo Esc. 400$00/hora ( Resp. ao ques. 42º;). A Autora já gastou, em ordenados de uma empregada doméstica, a quantia acrescida de € 4.800 ( Resp. ao ques. 90º;);
3.1.28. A Autora gastou, em deslocações várias para consultas, tratamentos e exames médicos, Esc. 76.790$00 ( Resp. ao ques. 43º;);
3.1.29. A Autora gastou em tratamentos de fisioterapia 13.500$00, em consultas médicas, 103.000$00, em exames médicos, 23.850$00, nuns óculos 22.000$00, em medicamentos 20.154$00 e em taxas moderadoras 9.300$00 ( Resp. aos ques. 44, 45º, 46º, 47º, 48º e 49º;);
3.1.30. A Autora despendeu, ainda, em exames médicos a quantia acrescida de € 1.998,14 e, em deslocações para consultas, tratamentos e exames médicos a quantia acrescida de € 256,45 ( Resp. aos ques. 86º e 87º;);
3.1.31. Como consequência do encurtamento do membro inferior direito, a Autora teve de adaptar o sapato direito de cada par que adquiriu, tendo já despendido para o efeito a quantia de € 276,33 ( Resp. ao ques. 88º;);
3.1.32. A Autora tem, igualmente, de usar palmilhas ortopédicas, no que gastou a quantia de € 16,49 ( Resp. ao ques. 89º;);
3.1.33. O Autor trabalhava com o pedreiro por conta de outrem, de segunda a sexta-feira, auferindo quantia não concretamente apurada ( Resp. aos ques. 50º e 51º;);
3.1.34. O motociclo do Autor tinha, antes do acidente, o valor de cerca de 125.000$00 e que a reparação dos danos que sofreu foi orçada em Esc. 150.614$00 ( Resp. aos ques. 54º e 55º;);
3.1.35. O Autor marido conduzia o motociclo LZ sem estar habilitado com carta de condução ( Assente, por confissão;);
3.1.36. O LZ tinha um valor venal de 125.000$00 e os seus salvados valiam 25.000$00 ( Resp. aos ques. 60º e 61º;);
3.1.37. No início da manhã do dia 24 de Abril de 1999, o veículo de matrícula 36-19-HM foi entregue a João Cordeiro, pelo filho do proprietário de nome Reinaldo Mota Jordão, numas instalações da sua propriedade, sitas na Rua da Filarmónica no Louriçal, as quais são constituídas por um pequeno e modesto barracão, onde à data do acidente em causa nos autos, o mesmo prestava essencialmente serviços de reparação de máquinas agrícolas, tendo cessado essa actividade em Janeiro do corrente ano ( Resp. ao ques. 62º;);
3.1.38. Só muito pontualmente o João Cordeiro era solicitado para “desenrascar” avarias ocorridas com veículos automóveis ( Resp. ao ques. 63º;);
3.1.39. João Cordeiro não tinha celebrado qualquer contrato de seguro respeitante aos riscos da actividade referida supra em “37” e “38” ( Resp. ao ques. 78º;);
3.1.40. Foi-lhe dito pelo Reinaldo que o veículo tinha dificuldades em pegar sempre que ficava algum tempo sem funcionar ( Resp. ao ques. 64º;);
3.1.41. O João Cordeiro assim que ouviu tais palavras comentou com o Reinaldo que, se fosse um problema de velas este teria que sair para as adquirir, uma vez que de momento não tinha nenhuma vela nas instalações. João Cordeiro, ao ver o veículo, ficou convencido de que o problema deste se relacionaria com as velas ( Resp. ao ques. 65º e 68º;);
3.1.42. E, como naquela manhã, um dos seus filhos se tinha deslocado a Pombal no seu veículo, João Cordeiro logo foi advertindo Reinaldo Jordão que muito provavelmente teria que se deslocar no HM para adquirir as referidas velas, se o seu diagnóstico prévio estivesse correcto. Face ao referido, Reinaldo João disse que tinha pressa em resolver o problema do veículo HM e que poderia utilizá-lo para se deslocar e ir buscar as velas ( Resp. aos ques. 66º e 67º;);
3.1.43. Assim, ao início da tarde daquele Sábado, conduzindo aquele veículo automóvel, o João Cordeiro deslocou-se à Guia, onde habitualmente se encontra aberto aos Sábados à tarde um estabelecimento comercial de venda de peças de automóvel, denominado por Guipeças ( Resp. ao ques. 69º;);
3.2.44. Uma vez que iria passar necessariamente pelo Outeiro do Louriçal para chegar à Guia, e dado que tinha encomendado a Lino Sacramento Jordão uma peça para reparação de um motor, o João Cordeiro decidiu parar nas instalações daquele para proceder ao levantamento da referida peça, tendo sido neste momento que se verificou o acidente com o veículo conduzido pelos Autores ( Resp. ao ques. 70º;);
3.1.45. A Autora nasceu em 28/08/1962 ( Doc. de fls. 369 dos autos;);
3.1.46. Por contrato de seguro juridicamente válido a 24 de Abril de 1999, titulado pela apólice nº 000561790, José Rolo da Silva Jordão transferiu para a Portugal Previdente – Companhia de Seguros, actualmente fundida na R., a responsabilidade civil por danos causados pelo veículo 36-19.HM ( Al. A), dos factos assentes;).
***

3.2. De direito
3.2.1. Direcção efectiva
Nos termos do artº 503º, nº 1 do Cód. Civil, aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
A direcção efectiva do veículo constitui uma fórmula de natureza normativa, envolvendo um poder real ou material de utilização e destino desse veículo, com a inerente faculdade, quer de manutenção ou conservação, quer de superintendência ou vigilância[ Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 3ª edição, pág. 316.].
A fórmula, aparentemente estranha, usada na lei – ter a direcção efectiva do veículo – destina-se a abranger todos aqueles casos em que, com ou sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objectiva, por se tratar das pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas, tomar as providências para que o veículo funcione sem causar dano a terceiros[ P. Lima – A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, pág. 486.].
A direcção efectiva envolve um poder material de uso e destino do veículo[ Ac. STJ de 18/05/2006 (Relator: Cons. Sebastião Povoas), in www.dgsi.pt/jstj.] e não depende do domínio jurídico sobre este, podendo existir sem esse domínio, da mesma forma que tal domínio pode existir sem ela, pois essa direcção intencional e expressamente qualificada pela lei como efectiva se identifica com o poder real (de facto) sobre o veículo em causa[ Ac. STJ de 28/09/2004 (relator: Cons. Silva Salazar), in www.dgsi.pt/jstj.].
Tem correntemente a direcção efectiva do veículo o proprietário, o usufrutuário, o adquirente com reserva de propriedade, o comodatário, o locatário, o que o furtou, o condutor abusivo e, de um modo geral, qualquer possuidor em nome próprio[ P. Lima – A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, pág. 485. Cfr. ainda o já citado Ac. STJ de 18/05/2006, em cujo sumário se afirma expressamente que a propriedade faz presumir a direcção efectiva.].

No caso de o veículo ter sido entregue pelo proprietário numa garagem para efeito de recolha, reparação ou revisão, suscita-se a questão de saber se a direcção efectiva permanece no proprietário ou se passa para o garagista.
A este propósito há que ter presente o artº 2º do Dec. Lei nº 522/85, preceito que, sob a epígrafe «Sujeitos da obrigação de segurar», preceitua:
1. A obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a referida obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário.
2. Se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no aludido diploma, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das mencionadas pessoas.
3. Estão ainda obrigados os garagistas, bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exerçam a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempenagem ou de controle do bom funcionamento de veículos, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional.
4. Podem ainda, nos termos que vierem a ser aprovados por norma regulamentar do Instituto de Seguros de Portugal, ser celebrados seguros de automobilista.
Convém ainda ponderar a norma do artº 15º do referido Dec. Lei nº 522/85, segundo a qual no caso de, relativamente ao mesmo veículo, existirem vários seguros, efectuados ao abrigo do artigo 2º, responde, para todos os efeitos legais, o seguro referido no nº 3 ou, em caso de inexistência deste, o referido no nº 4 ou, em caso de inexistência destes dois, o referido no nº 2 do mesmo artigo.
Face ao conteúdo acima definido da expressão «direcção efectiva» e às disposições legais aludidas, afigura-se-nos, não sem dúvidas, que o garagista (ou seu comissário) que utilize o veículo por virtude das suas funções e no âmbito da sua actividade profissional, tem a direcção efectiva do mesmo. O que significa que o respectivo proprietário, ao entregá-la para recolha, reparação ou revisão, perde a direcção efectiva da viatura[ Neste sentido, Ac. Rel. Lisboa de 28/07/2005 (Relator: Des. Pimentel Marcos); Ac. Rel. Coimbra de 29/11/2005 (Relator: Des. Hélder Roque), Ac. STJ de 28/09/2004 (Relator: Cons. Silva Salazar), todos em www.dgsi.pt. Contra: Acórdãos da Rel. Coimbra de 3/12/91 (Relator: Des. Nunes da Cruz) e de 20/01/2004 (Relator: Des. Coelho de Matos), in CJ, XVI, V, 77/79 e CJ, XXIX, I, 12/14, respectivamente; e Ac. Rel. Porto de 20/04/93, in BMJ, nº 426, pág. 527.].
Neste sentido aponta a circunstância de o garagista gozar de direito de retenção (artºs 754º e seguintes do Cód. Civil), podendo negar a entrega do veículo enquanto o proprietário não pagar o custo da recolha, reparação ou revisão. Bem como a ausência de referência, na hierarquização das responsabilidades feita no artº 15º do Dec. Lei nº 522/85, ao seguro referido no nº 1 do artº 2º do mesmo diploma legal.

Contudo, como decorre da lei, nomeadamente do artº 2º, nº 3 do Dec. Lei nº 522/85, a responsabilidade do garagista, justificadora da respectiva obrigatoriedade de segurar, limita-se à utilização do veículo por virtude das suas funções e no âmbito da sua actividade profissional.
Se, estando o veículo na oficina para recolha, reparação ou revisão, o proprietário autorizar o garagista a utilizar o mesmo por motivo alheio às suas funções e fora do âmbito da sua actividade profissional, v. g., para dar um passeio, a direcção efectiva será do proprietário e, em caso de acidente, será o seguro deste a responder[ Ac. STJ de 15/01/2004 (Relator: Cons. Luís Fonseca), in www.dgsi.pt/jstj.].

Procurando aplicar os princípios e regras indicados ao caso concreto que nos ocupa, convém recordar a factualidade seguinte:
- No dia 24 de Abril de 1999, cerca das 15.30 horas, na EN 342, ao Km 3100, no lugar de Outeiro do Louriçal, ocorreu um acidente de viação. No dia, hora e local mencionados, o Autor B... circulava no sentido Carriço/Louriçal, conduzindo o motociclo de sua propriedade, matrícula LZ-56-14, a uma velocidade não superior a 40 Km/hora, pela metade direita da estrada, atento o seu sentido de marcha. Nele seguia igualmente como passageira a Autora A...;
- Em sentido contrário circulava o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula 36-19-HM, registado em nome de José Rolo da Silva Jordão e conduzido por João Cordeiro;
- A dada altura, o referido João Cordeiro, vindo como se fosse do lado do Louriçal, iniciou uma manobra de mudança de direcção à esquerda, para se dirigir a uma residência existente no local.
- No início da manhã do dia 24 de Abril de 1999, o veículo de matrícula 36-19-HM foi entregue a João Cordeiro, pelo filho do proprietário de nome Reinaldo Mota Jordão, numas instalações da sua propriedade, sitas na Rua da Filarmónica no Louriçal, as quais são constituídas por um pequeno e modesto barracão, onde à data do acidente em causa nos autos, o mesmo prestava essencialmente serviços de reparação de máquinas agrícolas, tendo cessado essa actividade em Janeiro do corrente ano;
- Só muito pontualmente o João Cordeiro era solicitado para “desenrascar” avarias ocorridas com veículos automóveis;
- João Cordeiro não tinha celebrado qualquer contrato de seguro respeitante aos riscos da actividade referida supra;
- Foi-lhe dito pelo Reinaldo que o veículo tinha dificuldades em pegar sempre que ficava algum tempo sem funcionar;
- O João Cordeiro assim que ouviu tais palavras comentou com o Reinaldo que, se fosse um problema de velas este teria que sair para as adquirir, uma vez que de momento não tinha nenhuma vela nas instalações. João Cordeiro, ao ver o veículo, ficou convencido de que o problema deste se relacionaria com as velas;
- E, como naquela manhã, um dos seus filhos se tinha deslocado a Pombal no seu veículo, João Cordeiro logo foi advertindo Reinaldo Jordão que muito provavelmente teria que se deslocar no HM para adquirir as referidas velas, se o seu diagnóstico prévio estivesse correcto. Face ao referido, Reinaldo João disse que tinha pressa em resolver o problema do veículo HM e que poderia utilizá-lo para se deslocar e ir buscar as velas;
- Assim, ao início da tarde daquele Sábado, conduzindo aquele veículo automóvel, o João Cordeiro deslocou-se à Guia, onde habitualmente se encontra aberto aos Sábados à tarde um estabelecimento comercial de venda de peças de automóvel, denominado por Guipeças;
- Uma vez que iria passar necessariamente pelo Outeiro do Louriçal para chegar à Guia, e dado que tinha encomendado a Lino Sacramento Jordão uma peça para reparação de um motor, o João Cordeiro decidiu parar nas instalações daquele para proceder ao levantamento da referida peça, tendo sido neste momento que se verificou o acidente com o veículo conduzido pelos Autores.
- Por contrato de seguro juridicamente válido a 24 de Abril de 1999, titulado pela apólice nº 000561790, José Rolo da Silva Jordão transferiu para a Portugal Previdente – Companhia de Seguros, actualmente fundida na R., a responsabilidade civil por danos causados pelo veículo 36-19-HM.

Da indicada factualidade resulta que ao João Cordeiro foi dada autorização expressa pelo filho do proprietário, em nome e representação deste, para utilizar o veículo na deslocação necessária à aquisição das velas indispensáveis à reparação do mesmo.
Daí concluiu o tribunal “a quo” na sentença recorrida que o proprietário mantivera a direcção efectiva e, portanto, que, por força do contrato de seguro, era a sua seguradora responsável.
Para tanto, desvalorizou a circunstância de, na deslocação, o João Cordeiro ter decidido parar nas instalações de Lino Sacramento Jordão, com vista ao levantamento de uma peça que tinha encomendado, tendo sido neste momento que se verificou o acidente.
Aí se afirma:
“É certo que, em boa verdade, a autorização não abrangeu, expressamente, a sua utilização para ir buscar uma peça que nada tinha a ver com o veículo, tendo sido esta que levou a que se fizesse a manobra excepcional de mudança de direcção de onde veio a derivar a colisão.
Porém, ainda assim, dada a forma como foi efectuada a entrega, no âmbito da vontade de “desenrascar” de quem utilizou o veículo, aceite por quem o entregou, dificilmente se compreenderia que aquele não pudesse, se a questão tivesse sido colocada, utilizar o veículo para o fim de ir buscar uma peça a um estabelecimento que ficava no trajecto normal que tinha de seguir, ainda que com necessidade de parar no outro lado da estrada”.
A apelante discorda, pondo o acento tónico na circunstância de a autorização não ter abrangido o desvio, consistente na paragem do outro lado da estrada, destinado à recolha da peça encomendada, alheia à reparação do veículo.
Mas parece-nos exagerada a posição da apelante.
Nas circunstâncias descritas nos autos é de presumir que, tendo o filho do proprietário autorizado a utilização da viatura para a deslocação necessária para a aquisição das velas, não deixaria de autorizar, se tal questão lhe tivesse sido colocada, o diminuto desvio destinado à recolha da peça encomendada.
Se a autorização tivesse de contemplar todas as eventualidades possíveis, teria, por absurdo, de permitir um eventual acidente, sob pena de, ocorrendo este, se argumentar que o mesmo não fora autorizado.
Ou seja, ao utilizar, devidamente autorizado, o veículo automóvel para ir adquirir as velas para a respectiva reparação, o João Cordeiro agiu como comissário do proprietário, em cuja esfera jurídica se manteve a direcção efectiva do veículo. E essa direcção efectiva não se interrompeu pela circunstância, a nosso ver irrelevante, de no trajecto o João Cordeiro ter decidido parar do lado da estrada oposto àquele em que seguia, para recolher uma peça que anteriormente encomendara.

Soçobram, pois, todas as conclusões da alegação de recurso, o que conduz à improcedência da apelação e à manutenção da sentença recorrida.
***

4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a sentença recorrida.
As custas são a cargo da apelante.