Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
501/01.3TAAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: ASSISTENTE
CONSTITUIÇÃO
PROVA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Data do Acordão: 07/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ÁGUEDA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 69º,70º E 127º CPP
Sumário: 1. O despacho que admite a constituição de assistente apenas faz caso julgado rebus sic stantibus.
2. A legitimidade para intervir como assistente afere-se inicialmente pelo teor da denúncia, subsequentemente prende-se com a natureza do crime a que se refere a acusação ou o requerimento para a instrução ou a decisão recorrida.
3. As presunções judiciais não são meios de prova mas raciocínios lógicos/mentais firmados em regras de experiência de que o julgador se serve para a descoberta da verdade.
O art.º 127º do CPP não proíbe o uso desses raciocínios lógico/dedutivos, nem a nossa lei processual penal faz qualquer referência a requisitos especiais no uso da prova indiciária.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra:
I-
1- Nos referidos autos de processo comum A … foi absolvido da prática dum crime de desobediência qualificada p. e p. pelo art.º 348/1e 2 do Código Penal e condenado pelo crime de abuso de poder p. e p. pelo art.º 26º/1 da Lei nº34/87 de 16/7 na pena de 6 meses de prisão convertida em igual tempo de multa à taxa diária de €10.
2- O arguido recorre desta sua condenação. E já no decurso do julgamento recorrera dos despachos em que a participante B... fora admitida como assistente e daquele em que, já no decurso do julgamento, o juiz se recusou a rever tal admissão face aos crimes por que o arguido se encontrava acusado.
2.1- Conclusões no recurso intercalar
1) A B... em 18/2/2003 requereu a sua constituição como assistente no NUIPC 652/01.4TAAGD que corria no DIAP de Coimbra. Esse inquérito teve inicio numa denúncia efectuada pela secção de S... do partido socialista entregue na PJ, ao qual foi atribuído o n.º 253/01.7JAAVR, onde era denunciado o arguido, então presidente da C.... No âmbito desse inquérito estava em investigação a prática pelo arguido dum crime de peculato.
2) Foi declarada cessada a conexão e ordenada a separação dos inquéritos supra referidos, passando a correr separadamente os dois inquéritos no DIAP de Coimbra – 652/01.4TAAGD e 253/01.JAAVR — e em 20/12/2005 no inquérito 652/01.4TAAGD foi ordenada a extracção e criação dum inquérito autónomo — o que tem o n.º 501/01.3TAAGD, ou seja, os presentes autos onde foi deduzida acusação contra o arguido em 30/04/2006 pela pratica dum crime de desobediência qualificada e ainda dum crime de abuso de poderes.
3) Em 2/5/2003 foi proferido despacho de admissão da assistente no âmbito do inquérito 652/01.4TAAGD, ou seja, cerca dum ano e meio antes de ter sido ordenada a extracção e criação do inquérito autónomo com o n.º 501/01.3TAAGD.
4) Pela denunciante nunca foi requerida a constituição de assistente no processo 501/01.3TAAGD, ou seja, nos presentes autos onde o arguido está acusado da prática dum crime de desobediência qualificada e também dum crime de abuso de poderes.
5) Pelo que a sua admissão como assistente só é válida e eficaz no processo onde foi requerida (652/01) e em mais nenhum processo, até porque por força da conexão os vários processos constituíam um só. E com a cessação da conexão e separação passaram a constituir processos aut6nomos e independentes. Aliás, se se sufragar a tese constante do despacho recorrido de que o despacho a admitir a constituição de assistente proferido no âmbito do inquérito 652/01 é plenamente valido e eficaz para o processo 501/01 onde nunca foi requerida a constituição de assistente, somos confrontados com a realidade de que a B... será assistente no inquérito 652/01onde requereu a sua admissão e onde foi proferido o despacho de admissão e também nestes autos em que o arguido está acusado de crimes diversos [desobediência qualificada e abuso de poderes] e onde nunca foi proferido qualquer despacho a admiti-la como assistente.
6) Tal situação é inadmissível até porque enquanto se verificou a conexão de processos bastava que algum dos crimes referidos nos processos que estavam conexos permitissem a constituição como assistente para que a mesma pudesse ser admitida. Todavia, separados os processos nada impede que sejam analisados se os pressupostos que levaram a admissão dessa constituição como assistente se mantêm para o processo que foi separado e que passou a constituir um processo autónomo. E por maioria de razão essa análise impõe-se quando a separação dos processos ocorre em momento em que nem sequer havia sido deduzida acusação (esta ocorreu a 30/4/2006, decorridos mais de três anos sobre a constituição como assistente requerida a 18/2/2003 e deferida a 2/5/2003 no âmbito doutro processo com este inicialmente conexo) contra o arguido ainda para mais por crimes completamente distintos dos que estava indiciado no outro processo aquando da conexão.
7) Aceitar a posição sustentada no despacho recorrido é concluir que a admissão da constituição como assistente a valida «ad aeternum» apesar de ter sido requerida e proferida noutro processo e que não carece de aferição no caso em concreto, isto é, no processo autónomo que resultou da cessação da conexão e posterior separação de processos. Essa interpretação não tem cabimento nos artigos 68, 29 e 30 do CPP. Além de que não salvaguarda os direitos e garantias do arguido consagrados no artigo 32º da CRP porque esta deixa de poder reagir contra um despacho que foi proferido num processo que não é aquele em que está a ser julgado.
8) Cessada a conexão, a denunciante sempre poderia ter requerido a sua constituição como assistente. Porém não o fez e assim não pode agora ver-se-lhe reconhecida a qualidade de assistente neste processo que nada tem a ver com o processo onde foi admitida a sua intervenção nessa qualidade, onde estavam em causa crimes que não são os que constam da acusação que acabou por ser deduzida no âmbito do processo 501/01.
9) Devia ter sido indeferida a intervenção da B... como assistente nestes autos.
10) No que respeita ao despacho que admitiu a constituição como assistente proferido no processo 652/01e não obstante o que se acabou de referir sobre a sua validade e eficácia no processo que aqui se julga ( 501/01) com todo o respeito por melhor opinião caso seja entendido que o mesmo tem aplicação neste processo, então não podemos deixar de referir que andou mal o juiz ao admitir nestes autos a constituição como assistente requerida pela B….
11) É que aqui não pode ser admitida a requerida constituição porque o arguido vem acusado de ter praticado um crime de desobediência qualificada pp. pelo artigo 348º do Código Penal e dum crime de abuso de poderes pp. pelo artigo 26ºda Lei n. ° 34/87 de 6 de Julho, ambos de natureza pública.
12) O artigo 68/1 alínea a) do CPP ao determinar que podem constituir-se assistentes no processo penal «os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (…)», consagrou um conceito estrito de ofendido. Ofendido será assim a parte particularmente ofendida; o cidadão directo e pessoalmente ofendido.
13) Aliás esta interpretação coincide com o entendimento unânime na doutrina - vide entre outros Prof. Figueiredo Dias, in Processo Penal, vol I, Coimbra Editora, pág. 513 e Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol I, pág. 312 e 313. Este último refere de forma inequívoca que «só se considera ofendido, para efeitos do disposto no artigo 68/1 alínea a) o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime e que, por isso, nem todos os crimes têm ofendido particular, só o tendo aqueles cujo objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular um particular».
14) 0 conceito de ofendido consagrado pelo legislador é assim restritivo e é esse o entendimento que tem sido acolhido pela jurisprudência, podendo-se citar entre outros, acórdão da RC de 29/1/ 1992, C.J. (1992), Tomo I, p. 111 e sgs. onde se lê: «Não é ofendido, para efeitos de constituição de assistente, qualquer pessoa que tenha sido prejudicada com a prática do delito, mas apenas aquele que seja titular do interesse que constitui o objecto jurídico imediato desse delito»; e acórdão da RP de 24/10/1990, BMJ 400, 735.
15) Nos crimes imputados ao arguido o bem jurídico por eles protegido - o interesse público do Estado em que as autoridades e os seus agentes sejam obedecidos nos seus mandatos legítimos ( no crime de desobediência qualificada) e a autoridade e credibilidade da administração do Estado e dos seus funcionários e titulares de cargos políticos ( no crime de abuso de poderes) não pode ser reconduzido a uma titularidade de um particular em concreto. Como refere Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense no crime de desobediência qualificada o «bem jurídico tutelado é a autonomia intencional do Estado».
Quer dizer, o interesse protegido e o interesse público do Estado em que as autoridades e os seus agentes sejam obedecidos nos seus mandatos legítimos e não o interesse das pessoas a quem o acatamento da decisão pudesse aproveitar
16) E no crime de abuso de poderes o bem jurídico tutelado é a autoridade e credibilidade da administração do Estado e dos seus funcionários e titulares de cargos políticos ao ser afectada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços e titulares de cargos políticos. Corresponde na sua essência ao princípio fundamental da organização do Estado consagrado na CRP, mais concretamente no artigo 266/2.
17) Pelo que os interesses protegidos no crime de abuso de poderes não são os interesses dos particulares em concreto mas o interesse público em geral, aplicando-se pois os considerandos efectuados em relação ao crime de desobediência.
18) Assim sendo, no caso em concreto a requerente nunca poderá ser considerado ofendida ou lesada. Não são os interesses da requerente que a lei quis proteger com as incriminações em causa.
19) Consequentemente, não deveria o juiz ter admitido a intervenção da B... como assistente nos crimes de desobediência qualificada e de abuso de poderes.
20) A interpretação efectuada pelo tribunal de que no caso terá de se considerar válida a constituição de assistente, viola o artigo 68/1 alínea a) e n.º 3 alínea a) do CPP e é inconstitucional por afrontar o artigo 32°/7 da CRP.
21) Deve ser revogado o despacho recorrido que admitiu a constituição de B... como assistente.
2.2- Conclusões no recurso da sentença –
1) Com base nos depoimentos do arguido, da assistente, das testemunhas D..., E..., F..., G..., H..., I... e J..., conjugados com os documentos juntos aos autos, mais concretamente com:
a) Os contratos celebrados entre a Câmara Municipal e K… e auto de consignação da obra e de suspensão dos trabalhos pelo dono da obra de fls. 881 a 886 e 889 a 892 dos autos;L…., para reposição de pavimentos a microbetào em arruamentos na zona envolvente ao Rio S... entre pontes — arranjo urbanístico de fls. 887 a 888; todos eles reveladores da existência de obras distintas — arruamento e passeio e edificação do Centro de Canoagem, bem como do inicio daquelas obras em momentos diferentes e da suspensão do inicio da obra do centro de canoagem ate a concessão da posse administrativa.
b) Com o oficio de 8/5/2000 enviado pela C... à assistente a propor a aquisição do prédio em causa pela via negocial, sendo que se tal não fosse possível seria realizada a expropriação litigiosa (documento de fls. 42 e 43).
O teor deste ofício revela desde logo que da parte do arguido nunca existiu qualquer intenção de obter para a C... um benefício ilegítimo, tendo dado cumprimento as regras do Código das Expropriações, para adquirir a propriedade do terreno.
Com o oficio de 30/10/2000 enviado pela C... ao Ministério do Ambiente e Ordenamento do Território (fls. 142 a 143) a comunicar que iria requerer a expropriação litigiosa do prédio por impossibilidade de aquisição do mesmo pela negociação amigável, solicitando a declaração de utilidade publica da expropriação, com carácter de urgência, bem com a posse administrativa. O que revela pelos motivos acabados de expor em b) que da parte do arguido nunca existiu qualquer intenção de obter para a C... um beneficio ilegítimo.
Com a declaração n.º 202/2002, publicada no DR II Série (fls. 717) a declarar a utilidade da expropriação e a autorizar a posse administrativa (onde se faz expressa menção à margem do domínio publico hídrico);
e) Com o ofício enviado pelo Ministério do Ambiente (Instituto da Água), datado de 31/05/2007, por solicitação do juiz (despacho de 15/05/200, acta de audiência de julgamento) a informar que o troço de terreno em causa (onde está o arruamento e passeio) integra o domínio público fluvial pertencente ao Estado (fls. 1094). Como tal o arruamento e passeios não estão construídos em qualquer faixa de terreno pertencente a herança, impugna-se a transcrita matéria de facto dada como provada nas alíneas "d", "e", "g", "h", "j" e "l", da decisão de facto;
2) Por consequência, deverá a decisão de facto ser alterada considerando-se os factos acima impugnados como não provados porquanto não foi produzida qualquer prova em audiência de julgamento que o arguido tenha praticado do crime de abuso de poderes. Existiu, isso sim, por parte do juiz um notório erro na apreciação da prova (artigo 410/ 2 do CPP).
3) Os depoimentos prestados que alicerçaram a convicção e decisão de facto não conduzem à prova dos factos supra impugnados em "I". Se tivesse sido efectuada uma correcta interpretação dos depoimentos acima referidos conjugada com os documentos juntos aos autos e referidos nas alíneas "a", "b", "c", "d" e "e", da parte "II" deste recurso teria de ser absolvido o arguido do crime de abuso de poderes.
4) Efectivamente prescreve o artigo 26/1 da Lei 34/87 que "O titular de cargo público que abusar dos poderes ou violar os deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo a outrem, será punido com prisão (...)". Ora dos depoimentos acima indicados na motivação em "II" ter-se-á de concluir que o arguido não lidou directamente com o cabeça de casal e muito menos com a assistente. Os contactos para aquisição do prédio pertencente à herança foram encetados entre aqueles o vereador N... (assim o disse o arguido e confirmou H...) e que existiram 3 obras independentes e distintas entre si e executados por sociedades diferentes; a 1ª a construção dum muro de protecção na margem do rio S... entre as duas pontes ocorrida em 1998; a 2ª o arruamento e passeio entre as duas pontes em 2000; e a 3ª o Centro de Canoagem iniciada após a publicação (28/06/2002) da declaração de utilidade publica e concessão da posse administrativa à C... — assim o disse o arguido e o confirmaram a assistente e as testemunhas D..., E..., F... e H.... - Veja-se o contrato de adjudicação celebrado com a L…(reposição de pavimentos a microbetäo em arruamentos na zona envolvente ao rio S... entre pontes - arranjo urbanístico — Rua Dr. Manuel Pinto), de fls. 887 e 888 dos autos; o contrato de adjudicação da celebrado em 09/08/2000 com a K…(construção do centro de Canoagem), de fls. 882, e autos de suspensão dos trabalhos pelo dono da obra de 09/08/2000 e segts. (fls. 884e 885) e de consignação dessa obra em 25/09/2002 (fls. 886).
Não existiu pois a execução de quaisquer infra-estruturas do centro de canoagem. O arruamento, conforme consta do contrato — fls. 887 e 888 — nada tem a ver com o centro de canoagem e nem sequer foi executado pela mesma empresa (este foi construído pela L…e o centro foi executado pelas K…).
Além disso é indesmentível que a construção do Centro de Canoagem só teve o seu início após a declaração de utilidade pública e a concessão da posse administrativa a Câmara Municipal de Aquela (fls. 717).
5) Irrefutável também que a Câmara Municipal iniciou o processo de aquisição do prédio pertencente à herança de M... – tentou a expropriação pela via amigável (oficio 8/5/2000, fls. 42 e 43). Como a mesma não logrou obter o acordo da assistente procedeu à expropriação litigiosa do prédio pertencente à herança (fls. 142 e 143), sendo que foi objecto de expropriação a totalidade do prédio (que segundo a matriz tem 2700 m2, fls. 717).
6) Assim não podem subsistir quaisquer dúvidas de que o arguido em representação da Câmara Municipal e em cumprimento da deliberação do executivo de 18/04/2000 (fls. 881), deu cumprimento aos formalismos legais para aquisição da propriedade privada por utilidade pública, mais concretamente dando inicio a toda a tramitação processual decorrente do Código das Expropriações
7) Além de que a expropriação abrangeu todo prédio com base nos elementos matriciais existentes (se a área é superior a que consta da matriz teriam os interessados de proceder a sua alterag5o), não sendo possível proceder a expropriação de parcelas ou áreas que não constam da matriz. A construção do Centro de Canoagem só teve o seu início em 25/9/2002 (auto de consignação da obra de fls. 886), isto é, após a declaração de utilidade pública e a concessão da posse administrativa. Pelo que sobre a Construção do Centro de Canoagem nada haverá a apontar à conduta do arguido.
8) Subsiste a questão da execução do arruamento, passeios e iluminação eléctrica. Esta como já se demonstrou nada tem a ver com o centro de canoagem e muito menos tem a ver com qualquer infra-estrutura do centro de canoagem — como mal se deu como provado na sentença recorrida.
Que a construção desse arruamento, passeio e iluminação eléctrica nada tem a ver com o centro de canoagem resulta do contrato de adjudicação celebrado com a L…. (reposição de pavimentos a microbetäo em arruamentos na zona envolvente ao rio S... entre pontes - arranjo urbanístico — Rua 22), de fls. 887 e 888 dos autos. Sendo esta matéria corroborada pelos depoimentos das testemunhas E... e F....
Também não restam dúvidas que esse arruamento foi executado sobre (pelo menos parte dele) um caminho público (ou pelo menos por onde qualquer um lá passava) existente ao longo da margem do rio S... entre as duas pontes que conduzia ás piscinas municipais. Assim o referiram o arguido, as testemunhas I..., J... e H....
9) Ora competia à acusação provar que a faixa de terreno onde está construído o arruamento, passeios e colocada a iluminação eléctrica pertence ao prédio da herança e que o arguido tinha conhecimento de que a mesma era pertença da herança, pois só assim ficaria demonstrada a actuação dolosa por parte do arguido.
9) Da prova produzida tal matéria não pode ser dada come assente quanto mais não seja porque o arguido referiu que na perspectiva da Câmara e por informação do director ou delegado da Direcção Regional do Ambiente de Aveiro (Eng.º O…) lhe referiu que essa margem (onde foi construído o arruamento e passeio) pertencia ao domínio publico hídrico e não pertencia ao prédio da herança.
E além disso, a juiz ordenou por despacho de 15/05/2007 a notificação do Instituto da Água, enviando a identificação do prédio para informar se as margens do rio são de domínio publico ou se são particulares, tendo aquele Instituto respondido por oficio que se encontra junto aos autos a fls. 1094.
Consta desse ofício o seguinte: "A área assinalada na planta doc. 5A confina com Rio S... que nesse troço é um curso água flutuável. Assim, nos termos dos artigos 5. ° e 6. °, o leito e margens do rio nesse local integram o domínio público fluvial pertencente ao Estado, sendo que: (...) b)Nos termos do artigo 10.°, por margem entende-se uma faixa de terreno contígua ou sobranceira a linha que limita o leito das águas, faixa que, no caso em apreço, por se tratar de águas flutuáveis, tem a largura de 30 metros.
E no ponto 2 desse mesmo ofício refere-se ainda: "Todavia, em conformidade com o disposto no artigo 15, os particulares podem obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos e margens com as características acima mencionadas desde que intentem a correspondente acção judicial (...) não tendo sido identificada a existência de procedimento desta natureza para o local ora em causa".
11) Quer isto dizer que a faixa de terreno onde foi construído o arruamento e o passeio integra o domínio publico fluvial do Estado e a demonstrá-lo está também o auto de inspecção ao local constante da acta de audiência de julgamento de 27/6/2007, onde se lê: " Efectuada a edição da largura da estrada, de acordo com o auto de ratificação constatou-se que efectivamente tinha 15,70 metros"
Consequentemente, o arruamento está construído muito para ce dos 30 metros de largura da faixa do domínio público fluvial do Estado. Pelo que, não podia ter sido considerado assente que o mesmo foi executado no prédio pertencente a herança.
12) Também não podem subsistir quaisquer dúvidas de que não ficou provada a actuação dolosa do arguido. O arguido sempre referiu que na perspectiva da Câmara e por informação do director ou delegado da Direcção Regional do Ambiente de Aveiro (Eng.º O…) lhe referiu que essa margem (onde foi construído o arruamento e passeio) pertencia ao domínio público hídrico e não pertencia ao prédio da herança.
Só por isso tais obras do arruamento e passeio marginal ao Rio S... (que nada tem a ver com o Centro de Canoagem) são que foi ordenada a execução dessas obras. A demonstrá-lo está que no que respeita ao Centro de Canoagem nada foi executado sem que a declaração de utilidade pública e concessão da posse administrativa tivesse sido concedida à Câmara.
13) Assim nunca a juiz poderia ter considerado provada a factualidade impugnada.
14) Na verdade da prova documental e testemunhal não ficou provado o dolo específico que faz parte integrante do tipo legal do crime de abuso de poder consagrado no artigo 26 da Lei n.º 34/87. Efectivamente, o citado preceito legal reclama um dolo específico pois que os seus fins ou motivos fazem parte do tipo. Esse dolo específico de modo algum ficou demonstrado. Aliás do que foi trazido ao processo nas alíneas "a", "b", "c", "d" e "e", da parte "II" e da primeira conclusão deste recurso, só poderia ter conduzido a que não fosse dada como provada a factualidade impugnada, tendo por isso existido um erro na apreciação desta prova.
15) Além de que tais elementos probatórios sempre deveriam ter sido analisados e contrabalançados e ponderados com os demais existentes no processo, e tal não aconteceu. Veja-se que o julgador em relação à informação prestada pelo Instituto da Água de que a faixa em discussão pertence ao domínio fluvial do Estado (fls. 1094) que por si foi ordenada por considerar necessário a descoberta da verdade, com uma ligeireza aterradora a "remete para o lado" dizendo que "é matéria que extravasa manifestamente o âmbito destes autos".
16) Ainda que não competisse ao arguido provar a sua inocência, analisados elementos probatórios que temos vindo a descrever não poderia ter sido julgada provada a matéria factual que aqui foi objecto de impugnação.
E se ainda assim essa prova não fosse plenamente ilustrativa do não cometimento do crime de abuso de poder, sempre a mesma serviria para revelar de forma clara que a actuação do arguido não foi dolosa e de que o tipo especifico do crime de que este vem acusado não ficou provado. Ou pelo menos o contrabalanço de tais elementos probatórios que são contraditórios sempre teriam em razão do princípio constitucional «in dubio pro reo» de pender em benefício do arguido.
17) Além de que na decisão recorrida houve um erro notório na apreciação da prova e uma incorrecta interpretação do artigo 26 da Lei n.º 34/87, e, por consequência, uma inadequada aplicação deste preceito.
19) E afinal deveria ter sido o arguido absolvido do crime de abuso de poderes.
20) Se assim não se entender, na decisão recorrida foi violado o principio «in dubio pro reo».
21) Dando cumprimento ao disposto no artigo 412/ 5 do CPP, vem este expressamente declarar que mantém interesse na subida e apreciação do recurso retido.

3- Respondeu o Ministério Público pelo infundado dos recursos. No mesmo sentido vai o parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto.
4- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir!
II
1- Decisão de facto inserta na sentença –
a) Factos provados -
a) O arguido exerceu o cargo de Presidente da C... entre Janeiro de 1998 e Janeiro de 2003.
b) Em determinada altura, a C... decidiu construir junto ao rio S... um Centro Municipal de Canoagem, conseguindo a aprovação do correspondente projecto pelo Programa Prosiurb. Para implantação desse Centro, interessava à Câmara o terreno conhecido por “Espertina”, sito na margem esquerda do rio S..., junto à ponte do R, freguesia de R.
c) A propriedade desse terreno, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 3297º e descrito na Conservatória do Registo Predial de S... sob o número 63003, encontrava-se registada a favor de M..., falecido em 27/03/1997.Relativamente à herança deste, foi requerido pela herdeira B... Inventário Facultativo a que coube o nº331/97 do 1º Juízo do Tribunal Judicial de S.... O referido terreno faz parte da relação de bens constante desse inventário (verba nº24), apresentada pelo cabeça-de-casal P.... Pelo menos até Abril de 2005 a herança manteve-se indivisa.
d) Em momento não concretamente apurado iniciaram-se contactos entre o cabeça-de-casal P... e a C..., através do vereador Dr. N…e do arguido, Presidente da Câmara, para debater os termos de uma possível venda daquele terreno para a construção do Centro de Canoagem. Datada de 11 de Abril de 2000, P..., na qualidade de cabeça-de-casal, subscreveu uma carta que enviou ao arguido dando-lhe conta de que à excepção da herdeira B... todos os outros herdeiros acordaram em vender à Câmara de S... o imóvel por 2.500$00/m2. Ciente da posição assumida pela herdeira B..., o arguido, na qualidade de Presidente da Câmara, dirigiu-lhe um ofício datado de 8/05/2000 em que refere o acordo com os restantes co-herdeiros e em que a “notifica” de que “a Câmara pretende adquirir a sua quota parte no prédio, ao preço (...) de 2.500$00/m2”, advertindo-a ainda de que na falta de resposta ou em caso de recusa, se diligenciará pela expropriação litigiosa da respectiva quota parte do prédio. Alegando motivos vários, entre eles o valor proposto que entendia irrisório, a herdeira B... deu resposta negativa ao arguido, por carta de 2/06/2000.
e) Pese embora todo este circunstancialismo e não se tendo o mesmo entretanto alterado, a C..., através do arguido, seu Presidente, deu ordens para se iniciar a construção de infra-estruturas do Centro de Canoagem, concretamente a realização de arruamento e passeios, no terreno em causa, pertencente à herança indivisa aberta por óbito de M....
Na sequência desta determinação, E..., legal representante das sociedades “R..., Lda.” e “L…”, a partir de 29/08/2000 fez deslocar para o terreno em litígio veículos e funcionários daquelas, bem como máquinas, equipamentos e materiais vários – areia, cimento, brita, manilhas –, iniciando então diversos tipos de trabalhos, como terraplanagem, compactamento de terras, abertura de valas, entre outros.
f) Em face disto, em 15/09/2000, B... intentou uma Providência cautelar contra o C… e a “R...”, a que coube o nº382/00, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de S.... Requeria a restituição provisória da posse do terreno à herança a que pertencia, devendo os requeridos desocupá-lo, requerendo ainda a suspensão imediata dos trabalhos que ali se realizavam.
Mesmo depois de citados os requeridos, as obras continuaram o seu curso. No âmbito daquela providência cautelar foi por duas vezes acordada entre as partes a suspensão da instância, com paragem das obras. Apesar disso, os trabalhos nunca cessaram completamente, continuando, por outro lado, a depositar-se materiais no terreno e a fazer-se aí movimentação de máquinas.
g) Entretanto, já com as obras (referidas em e)) em curso, concretamente em 30/10/2000, o Presidente da Câmara oficiou então ao Ministro do Ambiente e Ordenamento do Território – Secretaria de Estado da Administração Local, referindo que a Câmara “vai proceder à construção de um Centro de Canoagem, junto à Ponte do R, em S..., encontrando-se a obra já adjudicada”. Dá conta da urgência da realização das obras, para que o C…“não perca o direito à comparticipação já concedida”, bem como da “impossibilidade de negociação amigável” do terreno em que se pretende implantar o Centro. Requereu “a declaração de utilidade pública da expropriação do prédio rústico denominado “Espertina”, bem como “a declaração da urgência da expropriação, por se tratar de obra de interesse público e consequente direito à posse administrativa”.
A Declaração nº202/2002, que tornou público o Despacho do Sr. Secretário de Estado da Administração Local que declarou a utilidade pública da expropriação e autorizou a posse administrativa, foi publicada na II Série do Diário da República de 28/06/2002.
h) Mas entretanto as obras foram continuando naquele terreno, sob as ordens do arguido, o que foi sendo constatado ao longo dos meses, designadamente entre finais de 2000 e Julho de 2001. Para ali se foram deslocando trabalhadores, máquinas e materiais, quer da Câmara de S..., quer de empresas por esta contratadas, as referidas “R…” e “L..., SA”, prosseguindo com trabalhos diversos na construção das referidas infra-estruturas, arruamento e passeio, do Centro de Canoagem, sempre segundo as determinações do arguido. Durante este período a referida B... por diversas vezes fez chegar ao arguido, bem como ao E..., cartas por si subscritas, em que referia, além do mais, continuar o terreno a pertencer à herança e intimando-os a abandonar o local, dele retirando tudo o que lá haviam colocado. Tais missivas não surtiram qualquer efeito.
i) Em 13/07/2001 foi proferida sentença nos mencionados autos de Embargo nº382/00. Julgando-se procedente a providência, decretou-se a restituição provisória da posse do terreno em causa à herança a que pertencia, devendo os requeridos C… e “R...” de imediato desocupá-lo de “pessoas, máquinas, equipamentos e materiais de construção aí depositados e ainda não incorporados em obra, abstendo-se de qualquer acto futuro de entrada, ocupação, utilização ou passagem temporária pelo mesmo, designadamente de gruas ou outro equipamento sobre o seu espaço aéreo, assim como a colocação, através de equipamento instalado em terrenos confinantes ou na via fluvial, de quaisquer materiais sobre esse terreno”. Mais se decidiu “decretar a suspensão imediata de todas as obras, trabalhos e serviços em curso no terreno, pelos requeridos, em toda a sua área (até à beira do rio)”. A decisão em causa mandou lavrar o respectivo Auto de Embargo, o que aconteceu no dia 18/07/2001, na presença de todos, mandando ainda advertir “os requeridos – na pessoa dos seus legais representantes – de que incorrerão no crime de desobediência qualificada p. e p. pelo art. 348º, nº2, do Código Penal, caso infrinjam a providência decretada – (art. 391º do Código de Processo Civil)”. A sentença foi regularmente notificada às partes, assim ficando o ora arguido perfeitamente ciente das determinações dela constantes.
O arguido estava perfeitamente ciente do teor da decisão do Tribunal de S..., proferida nos autos de Providência Cautelar nº382/00, do 2º Juízo, decisão essa da qual fora regularmente notificado, sabendo que ela tinha sido proferida por quem para tanto tinha legitimidade e que se a não acatasse incorreria em responsabilidade criminal.
j) Todavia, entre os dias 12/09/2001 e 19/09/2001, no cumprimento de ordens do arguido, para o terreno em causa deslocaram-se funcionários da Câmara de S... que ali estacionaram o veículo onde se faziam transportar, de matrícula XX-XX-XX, daquela Câmara, descarregando equipamento e material. Esses funcionários procederam à colocação, nesse terreno, de um candeeiro de iluminação pública, instalando o respectivo poste, globos e lâmpadas. Esta ocorrência deu origem a mais uma decisão proferida na Providência Cautelar referida, condenando-se o C… a retirar ou destruir o candeeiro e demais materiais eléctricos instalados.
O recurso interposto da decisão judicial referida em i), admitido com efeito meramente devolutivo, foi julgado improcedente, por acórdão de 12/12/2001, que manteve o despacho recorrido.
l) Ao longo do tempo e no que aos factos em apreço concerne o arguido foi demonstrando sempre um total desrespeito pelo cumprimento de determinadas regras e formalidades que se lhe impunha observar, enquanto Presidente da Câmara .
Na verdade, com a justificação de que a construção do Centro de Canoagem se mostrava urgente e ser de grande utilidade para o desenvolvimento desportivo do concelho, o arguido desconsiderou por completo o facto de o terreno em causa ser propriedade privada e de não se mostrar a Câmara de S..., por qualquer forma, devidamente autorizada a dele se apropriar, invadindo-o com máquinas e materiais, e nele iniciando trabalhos diversos, com vista à construção do mencionado Centro.
O arguido não logrou adquirir o terreno aos seus proprietários (herdeiros) – que sabia em litígio – e só requereu a Declaração de utilidade pública da expropriação em 30/10/2000. Todavia, excedendo por completo os seus poderes enquanto autarca, deu ordens para se iniciarem obras, abertura de estrada e passeios, em Agosto de 2000. E foi determinando ao longo dos meses a sua continuação nas circunstâncias relatadas, apesar, pois, das vicissitudes com que se foi deparando e que lhe impunham até que cessasse a sua actuação, valendo-se da sua posição como Presidente da Câmara e escudando-se nas justificações acima referidas.
Sabia porém, que estas não legitimavam a sua actuação nem os fins pretendidos, uma vez que a questão da posse e propriedade do terreno não estava decidida e que a não podia ultrapassar sem mais. Estava ciente, pois, de que o benefício que as obras em causa poderiam aportar para a Câmara e seus munícipes, se revelava, nas condições descritas, ilegítimo.
Assim agindo, extravasando o âmbito dos seus poderes em desrespeito pelo direito de propriedade relativo ao terreno em causa e demais formalidades que quanto a tal deveria observar, o arguido pôs igualmente em causa a imagem da própria Câmara Municipal – que deve ser de eficácia, mas também de respeito pela Lei e por todos os munícipes. O arguido conhecia bem o carácter criminalmente censurável das suas condutas, o que não o impediu de as levar a cabo de modo livre e voluntário.
m) Não obstante os factos supra referidos, o arguido era estimado pela população e considerado um presidente zeloso, dedicado e disponível e no meio social em que se insere é tido por pessoa séria, honesta, respeitada e respeitador.
n) O arguido já foi julgado e condenado pela prática de crime de denegação de justiça e prevaricação praticado em 24/03/1999, por sentença datada de 25/02/2002, transitada em julgado em 20/12/2002.
b) Factos não provados -
Não se provaram quaisquer outros factos, designadamente não se provou que:
1- Que o arguido não acatou a decisão judicial (proferida na Providência cautelar nº382/00), em recurso mas com efeito meramente devolutivo e que tenha actuado em desrespeito por tal decisão, sabendo que incorria em responsabilidade criminal.
c) Motivação -
A convicção do Tribunal formou-se com base na análise e ponderação de toda a prova produzida em audiência, designadamente nas declarações do arguido e assistente, depoimento das testemunhas, inspecção ao local realizada e nos documentos juntos aos autos, mais concretamente:
Os factos provados constantes de a) resultam das declarações do arguido que assim os confessou, sendo que a qualidade de presidente da Câmara além de ser facto público, resulta também dos vários documentos juntos aos autos.
A factualidade referida em b) resulta das declarações do arguido e, bem assim, dos documentos juntos a fls. 142 a 146, fls. 394 a 404, fls. 668 a 682, e de fls. 893 que a atestam.
Os factos referidos em c), no tocante à propriedade e identificação do terreno, resultam da certidão de fls. 35 a 37 e de fls. 38 a 40, e, no tocante à instauração do inventário, respectivo requerente e cabeça-de-casal e bens que integram a herança e estado do processo, resultam da certidão do respectivo processo judicial junta a fls. 22 a 33 e de fls. 797, sendo certo que, além de tais factos resultarem da prova documental referida que não foi impugnada, também resultaram das declarações da assistente B... e seu marido D... e das testemunhas P..., H... e Y..., todos herdeiros da referida herança e que assim de forma unânime o declaram.
Os factos referidos em d), resultam inequívocos dos documentos juntos a fls.147 a 148, 149 a 150, 41, 42 a 44 e 45 a 54, que são, respectivamente a carta enviada ao arguido pelo cabeça-de-casal, a acta de reunião de herdeiros, o ofício enviado pela Câmara e resposta da assistente e comprovativos de envio e recepção, cuja autenticidade, autoria e recepção não foram por que forma postas em causa, nem pelo arguido, nem pela assistente, nem pelas testemunhas, e, pelo contrário, é matéria que também resulta do depoimento da assistente e da testemunha seu marido D... e, sobretudo, da testemunha P..., que, com conhecimento directo da matéria em causa, por nela ter participado, se revelou uma testemunha extremamente credível, por ter feito depoimento que se afigurou rigoroso, isento e imparcial, assim servindo para fundamentar a convicção do Tribunal quanto a esta factualidade. Efectivamente e no que a esta matéria diz respeito pese embora a posição assumida pelo arguido e parcialmente corroborada pela testemunha H..., seu secretário pessoal enquanto presidente da Câmara, de que o arguido não estaria ao corrente de toda a situação e que era um vereador (falecido entretanto) que efectuaria todos os contactos e teria o domínio da situação, o certo é que tal posição não mereceu credibilidade, nem relevo porquanto o citado P..., declarou ter tido contactos igualmente com o arguido e depois porque, independentemente do arguido enquanto Presidente da Câmara ter optado por ler ou não aquilo que assinou e a correspondência que lhe era dirigida, o certo é que no processo constam inúmeras e já referidas comunicações dirigidas e recebidas pelo arguido e expedidas e assinadas pelo arguido, sendo certo que dos jornais locais, juntos a fls. 467 a 472 e 496 consta claramente toda a situação envolvendo o terreno, o que faz com que não seja credível que o presidente da Câmara não soubesse aquilo que o povo todo (pelo menos o que lia jornais) sabia.
A factualidade constante de e) resulta por um lado do depoimento do arguido, que deu conta do tipo de obras e dos três momentos e tipos de intervenções que tiveram lugar no terreno em questão e bem assim das entidades que procederam a essas obras, do documento de fls. 887 a 888 e das declarações da testemunha E..., legal representante das referidas sociedades “R..., Lda.” e “L..., SA”, que dessa factualidade deu conta e bem assim das fotografias de fls. 61 a 84 e 110 a 119, que permitem visualizar o tipo de veículos, materiais e trabalhos realizados.
Os factos constantes de g), além de terem sido confessados pelo arguido, provam-se pelo teor dos vários documentos juntos aos autos, concretamente dos juntos a fls. fls. 717, que é cópia da publicação no Diário da República da Declaração de Utilidade Pública, fls.668 a 682, 711 a 722, que são cópia do ofício referido e de elementos vários do processo de expropriação.
Os factos constantes de f), h) e i), resultam, por um lado, da prova documental existente nos autos, designadamente, das certidões do processo judicial referido, concretamente: de fls. 353 e 141, actas, respectivamente de 10/11/2000 e de 12/03/2001, onde no âmbito da providência cautelar as partes acordaram na suspensão da instância por comprometendo-se a Câmara, nessa diligência representada pelo arguido a não executar quaisquer outros trabalhos no imóvel. De fls. 501 a 549, que correspondem a peças processuais do processo, designadamente à sentença, ao auto de embargo, e à notificação assinada pelo arguido (fls. 601), decisão subsequente à violação do embargo e bem assim de fls. 584 a 609, acórdão do Tribunal da Relação que confirmou a decisão de embargo.
Ora, as comunicações várias assinadas pela assistente e dirigidas ao arguido e por este recebidas e a outras entidades e constantes, por exemplo, de fls. 45 a 54 (datada de 2/06/2000), fls. 85 a 109 (datada de 4/09/2000), e todas as fotografias juntas aos autos, desde as de fls. 55 a 60, vista do prédio antes da intervenção, passando pelas de fls. 61 a 84, 110 a 119, 193 a 203, 210 a 220, 243 a 246, 266 a 270, que são um registo fotográfico da maior utilidade e permitem, sem margens para grandes versões alternativas, concluir que, as obras de arruamento e passeios começaram, continuaram e basicamente finalizaram, enquanto a instância processual dos autos de providência cautelar era suspensa com a obrigação por parte da Câmara, representada pelo arguido, de não continuar os trabalhos e enquanto a assistente apelava em todas as direcções para que as mesmas se suspendessem.
Assim, e no tocante a esta matéria e a esta factualidade, não obstante a prova testemunhal produzida nesse sentido, concretamente o depoimento da assistente, e das testemunhas D..., P..., T... e U..., que mereceram credibilidade, a abundante prova documental existente, e não impugnada, permite, sem necessidade de apelo à prova testemunhal, que o Tribunal dê estes factos por provados.
No tocante aos factos referidos em j), além de o arguido ter admitido a colocação do referido candeeiro, e das testemunhas V... e G..., funcionários da Câmara Municipal que efectuaram a dita intervenção terem corroborado, de forma que se afigurou credível, tal factualidade, sempre resultariam, documentados fotograficamente nas fotografias de fls. 293 a 301, que de forma que não deixa margem para dúvidas retratam o sucedido, sendo que no tocante à decisão subsequente ao embargo se remete para a fundamentação supra.
No tocante aos factos constantes de l) os mesmos resultam provados pela conjugação de diversos elementos e meios de prova, analisados no seu todo e segundo critérios de lógica, razoabilidade e à luz da experiência comum e da normalidade do acontecer. Vejamos mais em pormenor:
Desde logo há que referir que fundamenta também esta a factualidade, como sua acessória, a constante de e) a j) dos factos provados cujo teor aqui se dá por reproduzido e reproduzida também a respectiva fundamentação.
Assim, e como supra se referiu é inequívoco que o arguido ciente, no mínimo, da existência de litígio quanto à titularidade do terreno e da pendência de processo judicial onde se comprometeu a suspender os trabalhos no dito terreno, nunca o fez e logrou ter a estrada e passeios abertos no terreno que sabia em litígio.
Por outro e lado e no que toca ao facto de o terreno ser propriedade privada até ao rio, resulta dos depoimentos da assistente B..., e das testemunhas D..., P... e U..., que declararam que os terrenos sempre (até às obras nas margens) foram cultivados até ao rio, dos documentos de fls. 1106, 1107 e 1108, que são fotografias de vistas áreas do prédio datadas do período de 1910 a 1944 e 1989 a 1990, sendo que fls. 1108 é um postal da própria Câmara Municipal impresso em 1990, que atestam claramente que nessas fotografias e pelo menos até 1990 o terreno em questão foi cultivado até ao rio e que não existia no local qualquer estrada, caminho ou servidão. Ou seja, claras estas fotografias no sentido de corroborar a versão das testemunhas de acusação e de infirmar a versão do arguido e das testemunhas de defesa que declaram o contrário. De referir que as fotografias juntas a fls. 1101 a 1103, além de não mostrarem efectivamente o terreno em questão (com excepção da de fls. 1103 a cores), pois mostram apenas os terrenos contíguos situados depois da ponte, são imagens do século 19, pelo que em nada infirmam as fotografias do século 20 juntas e supra referidas.
Resulta expresso e inequívoco do documento junto a fls. 1085, que é um ofício da C..., dirigida ao cabeça-de-casal da já identificada herança, a testemunha P..., onde a Câmara pede, em 26/07/1999, autorização aos herdeiros para a construção dum muro de suporte na margem esquerda do rio, e onde consta expressamente que a Câmara sabe que o terreno marginal ao rio nesse local é pertença da herança, efectivamente, nesse ofício, cuja autoria e genuinidade não foi posta em causa, pode ler-se “a construção deste muro, e atendendo a que o terreno marginal ao Rio nesse local é pertença da família que representa, não nos dará qualquer direito de reivindicação de posse de qualquer parcela (....) Como tal, solicitamos que junto da maioria dos herdeiros nos seja dada a competente autorização, não só para a construção do muro da margem, como a utilizar uma faixa de 3m para as máquinas poderem trabalhar na sua construção”. Ou seja, em Julho de 1999, durante o mandato do arguido enquanto presidente da Câmara, a Câmara assumia declaradamente que não tinha qualquer direito sobre tal terreno e que o mesmo era propriedade privada e que carecia de autorização dos herdeiros para nele intervir. E, note-se que sendo a obra de suporte da margem do rio, nesta altura ainda a Câmara não configurava a tese, que tentou ser defendida em audiência do domínio público hídrico.
De referir também que, pela conjugação do documento de fls. 41, que é uma planta da Câmara Municipal e pelo teor do ofício referido em d) e constante de fls. 42 e fazendo as contas relativamente ao preço por metro quadrado proposto resulta que a Câmara, nessa altura pelo menos, em Maio de 2000, assumia que o terreno em questão tinha 3564m2 e que ia até ao rio (como se vê da planta fls. 42). No entanto, pelo teor de fls. 142 e planta de fls. 146, em Outubro de 2000, a mesma Câmara já considerava que o terreno tinha 2700m2 e já não ia até ao rio (como se vê da planta de fls. 146), Ou seja, ao longo do processo referente a este terreno a Câmara foi mudando de opinião quanto, quer às dimensões, quer quanto à configuração, quer quanto à propriedade do terreno em causa, o que mais contribui para a convicção que permitiu dar os factos constantes de l) como provados e reforçar a credibilidade do depoimento da assistente e das testemunhas D... e P....
Haverá agora que fazer um reparo final à questão, suscitada pelo arguido de as obras em questão e a parcela de terreno em questão pertencer ao domínio público hídrico. A questão do domínio público hídrico, é matéria que extravasa manifestamente o âmbito destes autos e sobre a qual o Tribunal não emitirá qualquer juízo, no entanto, sempre se dirá que, mesmo que existisse domínio hídrico público no tocante à margem do rio em questão não se encontra registada qualquer servidão administrativa, nem existe qualquer título de utilização ou concessão, conforme resulta da conjugação entre o despacho de fls. 1043 a 1044 e ofícios de fls. 1073 e 1074 e as respostas de fls.1094 e 1096. Ou seja, conclui-se que, mesmo que houvesse o tal domínio hídrico público nem assim estaria legitimada a utilização de tal terreno, por não ter sido requerido, nem concedido título de utilização ou concessão à Câmara.
Os factos referidos em m) resultam, essencialmente, do depoimento da testemunha X..., ilustre advogado desta Comarca, cuja palavra merece grande credibilidade face à lisura, lealdade e honestidade intelectual com que sempre actuou no âmbito de processos deste Juízo, resultando tais factos igualmente do depoimento das testemunhas I..., Presidente da Junta de Freguesia no período de 2001 a 2005, e H..., que foi secretário pessoal do arguido enquanto presidente da Câmara no período entre 1998 a 2001, que de forma unânime e merecedora de credibilidade dessa factualidade deram conta.
Os factos constantes de n) e referentes a antecedentes criminais resultam do Certificado de registo criminal de fls.1020 a 1022.
Os factos não provados da acusação, concretamente o facto de o arguido ao mandar colocar os candeeiros saber e querer estar a desobedecer à decisão judicial sabendo que incorria em crime, acabam por assim resultar da aplicação do princípio do “in dúbio pro reo”, pois que foi criada uma dúvida séria sobre tal matéria, vejamos porquê: por um lado, o arguido negou ter tal intenção e antes ter determinado a recolocação de postes que haviam sido levados pelas cheias ocorridas, por outro lado, o facto constatado na inspecção ao local de o dito candeeiro se encontrar no limite do terreno, podendo haver quanto ao local onde foi colocado alguma dúvida sobre se o mesmo está dentro ou fora do dito terreno, e, finalmente e sobretudo pelo teor da acta de fls. 353 onde consta a autorização da assistente para a instalação de candeeiros de iluminação pública e efectuar a sua ligação, e bem assim o facto aceite por todos de por causa das cheias terem sido destruídos alguns postes, levante de forma que se afigura séria dúvida sobre este elemento. Efectivamente e não obstante objectivamente haver uma decisão judicial que considerou tal colocação como desrespeitadora do embargo, tal não significa, em termos penais, que o arguido tenha actuado dolosamente e assim e no tocante a esta matéria (dolo) ficou o Tribunal com dúvidas insanáveis e não logrou firmar um juízo de certeza quanto à verificação ou à não verificação dos factos, persistindo, de forma insuperável e após produção da prova, uma dúvida, que é insanável, razoável e objectivável, “a persistência da dúvida razoável [que, mantendo-se] após a produção da prova, tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido” (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, pág. 211-9), como impõe o princípio do in dubio pro reo, fundado no princípio da presunção da inocência, consagrado no art. 32º, nº 2 da C.R.P., assim sendo, tal dúvida irá necessariamente aproveitar ao arguido conduzindo a que os factos resultem como não provados.


2- No primeiro recurso o arguido discorda da admissão como assistente da participante, bem como dos despachos proferidos em acta de julgamento pelos quais o tribunal se recusou a rever tal admissão.
No segundo recurso o arguido discorda da decisão de facto.
3- Apreciação –
3.1- Do recurso intercalar-
3.1.1- B... apresentou uma participação contra A... e outros com o teor do escrito de fls. 3 a 21 (vol.I) na qual concluía ter o arguido, enquanto presidente da câmara, praticado os crimes de abuso de poder, de dano qualificado, de usurpação de imóvel e de alteração de marcos -, todos referidos à situação dum prédio da herança ilíquida e indivisa aberta por morte de M... de que a participante é um dos herdeiros.
Posteriormente, no inquérito, veio a ser admitida como assistente por despacho do JI [fls. 1012 (vol. 5)] com o seguinte teor: «Por estar em tempo, ter legitimidade, haver pago a taxa de justiça devida e encontrar-se representada por advogado, ao abrigo do disposto nos art.ºs 68º/1 alínea a), 3,4 e 70º/1 do Código de Processo Penal, admito a intervir nos autos como assistente B...».
3.1.2- Ainda na fase de inquérito o Ministério Público autonomizou os autos que deram origem ao presente processo, onde acusou o A… da prática de actos integradores dos crimes de desobediência qualificada e de abuso de poder previstos, respectivamente, nos art.ºs 348º do Código Penal e 26º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho.
3.1.3- Por despacho a fls. 1029, lavrado em acta de audiência de julgamento, o tribunal reconheceu que a admissão da participante como assistente nunca fora notificada ao arguido, pelo que ordenou que essa notificação se efectuasse de imediato.
Antes, porém, na mesma acta, o arguido requerera que «sobre o pedido de constituição de assistente que agora foi trazido a este processo e proferido em momento em que não existia acusação nem existia (m) quaisquer factos dos que aqui estão a ser discutidos e que foram trazidos pela acusação, seja indeferida a constituição requerida» [fls. 1032].
Sobre este requerimento, por despacho na acta, a juiz decidiu do seguinte modo: «(…) entende o tribunal que já houve uma decisão judicial a pronunciar-se sobre a constituição de assistente e independentemente da justeza dos fundamentos invocados pelo arguido entende o tribunal que proferida a decisão de admissão como assistente da participante, independentemente das vicissitudes do processo posteriormente a tal facto, não lhe é lícito alterar tal despacho. Assim, entende o tribunal que lhe está vedada a possibilidade de alterar o despacho já proferido, sendo que o mesmo não se pode classificar de mero expediente, só podendo vir a ser alterado pela via do recurso (…)».
E manteve o que em despacho anterior proferido na mesma acta deixara consignado que «(…) bem ou mal, a dita B... foi validamente admitida a intervir como assistente nos presentes autos» [fls. 1030].
3.1.4- Os termos em que o recurso se apresenta parece ser uma reacção do arguido contra o conjunto de despachos judiciais supra referidos, i é, contra aquele em que a B... foi admitida a intervir nos autos de inquérito como assistente, bem contra aqueles que foram proferidos na acta de julgamento de 8/5/2007 em que a juiz se recusou a reapreciar tal admissão.
Quiçá estivesse subjacente ao pensamento da juiz do julgamento a ideia de que com a prolação do primeiro despacho em que se admitira a participante como assistente se formara caso julgado formal.
Mas não é assim já que a constituição da requerente como assistente deveria ter sido aferida crime a crime participado, pois se há crimes públicos que não admitem a constituição de particulares como assistentes outros há em que tal é admissível facultativamente (v. g. crime semi-públicos) e outros em que tal constituição é até obrigatória (v.g. crimes particulares) [art.º 68º/1 do CPP].
Ora o despacho que admitiu a requerente como assistente é tão genérico que nem constitui caso julgado. Trata-se de despacho tabelar onde concretamente não se aborda de fundo a legitimidade da requerente. E nesta matéria prevalece o «favor rei» sobre a estabilidade da instância.
Refere a propósito José António Barreiros Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, II, pág. 164) que «contrariamente com o que se passa com o estatuto do arguido, o do assistente é caracteristicamente dinâmico e reversível. Daí que possa acontecer que um indivíduo seja admitido como tal e em momento subsequente a essa admissão ver revogada essa qualidade por verificação da não existência de requisitos formais para tanto. Tal despacho apenas faz caso julgado rebus sic stantibus».
O julgamento sobre a legitimidade do requerente para intervir como assistente só garante o exercício formal dos poderes e direitos que lhe são cometidos por tal qualidade, mas não dispensa ou impossibilita julgamentos posteriores, designadamente no momento em que se deduz a acusação, se requer a instrução ou se interpõe recurso da decisão final.
Assim como a legitimidade para intervir como assistente se afere inicialmente pelo teor da denúncia, a legitimidade a apreciar subsequentemente prende-se com a natureza do crime a que se refere a acusação ou o requerimento para a instrução ou a decisão recorrida.
No caso, o arguido foi acusado pelo crime de desobediência qualificada e pelo crime de abuso de poder no exercício das suas funções de presidente da câmara .
3.1.5.1- Relativamente àquele crime ele foi absolvido e dessa absolvição não foi interposto recurso, pelo que quanto a este crime a discussão perdeu qualquer interesse já que os recursos são remédios para erros de decisão com repercussão no caso concreto.
De qualquer modo, porque o recorrente não limitou o tema do recurso intercalar, diremos que a doutrina e a jurisprudência são quase unânimes em não admitir quanto a este tipo a intervenção de particulares como assistentes com o fundamento em que o bem jurídico protegido pelo tipo é a «autonomia intencional do Estado», ou em sentido material, as exigências de legalidade, objectividade e independência que num Estado de direito há que garantir no exercício das funções públicas.
É certo que no acórdão da RLxª citado pelo MP [Ac de 3/10/2007/ proc 6227/07/3ª Secção, www.dgsi.pt] já se admitiu a constituição do particular como assistente num caso de desobediência qualificada por violação de providência cautelar não especificada. O referido acórdão segue de perto a doutrina do Acórdão 1/2003 do STJ publicado no DR I-A de 27/2/2003 a propósito da constituição de assistente no crime de falsificação. Contudo, a colagem a esta decisão do Ac. uniformizador parece-nos excessiva atenta a diversa formulação dos tipos.
Efectivamente no tipo da falsificação [art.º 256º do CP] fala-se na intenção de causar prejuízo a «outra pessoa», referência a que o Ac. uniformizador coloca a tónica para legitimar o ofendido à constituição de assistente. Ora, referência igual ou similar não se colhe no tipo do art.º 348º do Código Penal. Continuamos, pois, a seguir a orientação tradicional.
Seja como for, a questão perdeu interesse no processo já que o arguido foi absolvido por este crime e da decisão de absolvição não foi apresentado recurso.
3.1.5.2- Quanto ao crime de abuso de poder a constituição de «qualquer pessoa» como assistente está expressamente prevista na alínea e) do n.º1 do art.º 68º do Código de Processo Penal na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/98 de 25/8.
E quando cometido por titulares de cargos políticos em geral já o art.º 41º da Lei n.º 34/87 de 16/7 dispunha [e continua a dispor] que «(…) têm legitimidade para promover o processo penal o Ministério Público (…) e em subordinação a ele o cidadão ou entidade directamente ofendidos pelo acto considerado delituoso». Este é um preceito especial acautelado no corpo do n.º1 do art.º 68º do CPP.
Assim, nesta parte carece de razão o recorrente, pelo que é de manter a admissão de B... como assistente.
3.2- Do recurso da sentença –
3.2.1- O recorrente discorda de pontos concretos da decisão de facto, a saber, os indicados na sentença sob as alíneas d), e), g), h), j) e l) dos factos provados na base duma diversa valoração da prova.
Nesta linha de divergência invoca erro notório na apreciação da prova e violação do princípio «in dubio pro reo».
3.2.2- Começaremos pelo indicado vício de erro notório na apreciação da prova, no qual também cabe a violação do princípio «in dubio pro reo».
O vício há-de resultar do texto da sentença por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, sem o lançar de mão de outros elementos constantes dos autos excepção feita à prova tarifada.
E assim, diremos que o tribunal não violou o princípio «in dubio pro reo» já que do texto da sentença se retira que o tribunal não teve dívidas quanto aos factos que deu por provados e que comprometem o arguido com a prática do crime.
E não se manifesta por outra via erro notório na apreciação da prova, pois os factos provados são perfeitamente verosímeis e aceitáveis face às regras da experiência comum.
3.2.3- Quanto à decisão de facto confrontada com as provas constantes dos autos, nomeadamente a prova oral, transcrita em dois volumes, diremos o que se segue.
3.2.3.1- Em exórdio, breve quanto possível, diremos que não pode pedir-se ao tribunal de recurso que faça nesta matéria um segundo e novo julgamento arrasando por completo o decidido pela 1ª instância. O recurso deve entender-se como remédio jurídico a aplicar a pontos manifestamente mal julgados pois um novo julgamento em total alheamento do julgado na 1ª instância se oporiam quer os princípios da oralidade e da imediação quer um sentido de inutilidade das decisões em 1ª instância.
No julgamento o juiz deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal. Se a primeira ainda é susceptível de ser surpreendida pelo tribunal de recurso, este fica impossibilitado de se socorrer da segunda para complementar e interpretar aquela, com todas as consequências que daí advêm.
Por isso que a decisão quanto à matéria de facto só deva ser alterada quando seja evidente que as provas a que se faz referência na fundamentação não conduzam à mesma decisão, mas nunca quando havendo duas versões sobre os factos o juiz na 1ª instância optou por uma delas fundamentando-a racionalmente.
Não bastará, pois, ao recorrente dizer que determinados factos estão incorrectamente julgados. Será necessário demonstrá-lo nomeadamente face às regras da experiência comum.
O CPP consagra o princípio de que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador [art.º 127º]. Esta convicção é pessoal mas motivada em elementos que a tornem credível em conformidade com as regras da experiência, da lógica, da racionalidade, da razoabilidade.
E a prova necessária para a convicção do julgador não reside tanto na quantidade como na qualidade dos meios de prova produzidos. Como não reside na sua natureza directa ou indirecta.
O reapreciar a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido. Refere Paulo Saragoça da Matta que se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.
Diga-se também que a prova processual, ao invés do que ocorre com a demonstração no campo da matemática ou com a experimentação no âmbito das ciências naturais, não visa a certeza lógica ou absoluta mas apenas a convicção essencial às relações práticas da vida social. E note-se que a alínea b) do n.º3 do art.º 412º do Código de Processo Penal fala de provas que imponham decisão diversa.
Depois há que não desvalorizar a prova indiciária, embora seja de lidar com ela com cautelas. O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto como em prova indiciária de que se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova indiciária lhe mereça e as circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária. As presunções judiciais não são meios de prova mas raciocínios lógicos/mentais firmados em regras de experiência de que o julgador se serve para a descoberta da verdade. Apesar de nem sempre resultar explícita a sua intervenção, elas constituem um mecanismo necessário para levar o tribunal a afirmar a convicção de factos controvertidos. O art.º 127º do CPP não proíbe o uso desses raciocínios lógico/dedutivos, nem a nossa lei processual penal faz qualquer referência a requisitos especiais no uso da prova indiciária.
3.2.3.2- Tudo isto vem para se dizer que examinada a prova documental e lidos os dois volumes de transcrição dos depoimentos, não vemos que haja de alterar-se o decidido.
Quanto ao ponto d) a testemunha P... é claro ao referir ter tido contactos exploratórios com o arguido na qualidade aquele de cabeça-de-casal da herança a que pertencia o prédio e este na qualidade de presidente da Câmara. Contactos que diz terem sido reduzidos, tendo-os quase todos com o vereador N...; mas esclarecendo que este punha o presidente ao corrente.
Quanto ao ponto e) o arguido pretende, passe a expressão «tapar o sol com a peneira» insistindo em que foram três as empreitadas adjudicadas no local e que a construção do Centro de Canoagem só se iniciou após a declaração de expropriação por utilidade pública do prédio e a posse administrativa.
Mas é óbvio que todas as obras tinham como objectivo final a construção do Centro. E a obra que a sentença acentua neste ponto é precisamente a de construção do arruamento e passeios, feita muito antes de qualquer expropriação e à revelia da herdeira/assistente ou de quem quer que fosse o dono do terreno.
Lendo-se as declarações desta, confirmadas pelo depoimento do marido [D...], pessoas cujas declarações mereceram o crédito do tribunal, retira-se isso mesmo, ou seja, que os abusos se situam precisamente a montante do despacho expropriativo e nessas obras de arruamento, passeios e colocação de iluminação pública.
Não venha o arguido esgrimir com a área do prédio constante da matriz, pois mais crédito do que consta desta quanto à área do prédio são os depoimentos da assistente e das testemunhas P..., U... e T... sobre o seu amanho pelo «de cujus». Como se sabe, muitas das vezes as áreas matriciais não são rigorosas As matrizes foram gizadas com vista ao pagamento dos impostos; não mais do que isto..
Nem venha agora esgrimir com disposições legais, algumas delas até posteriores aos factos Lei 54/2005 de 15/11. , sobre a pertença dos terrenos marginais ao rio pois o arguido sabia qual a extensão que os herdeiros conferiam ao prédio e a extensão que amigavelmente o C…se dispunha a pagar-lhes ia até ao rio. De resto as confrontações documentais do mesmo vão até ao rio e não até às margens do rio. E essa invocada legislação admite como possível a pertença a privados dos terrenos marginais.
Note-se que mesmo que os terrenos marginais ao rio não fossem da herança mas do Estado O objecto deste processo não é, como é óbvio, a declaração da pertença de qualquer faixa de terreno., o tipo legal de crime encontrava-se perfectibilizado já que sabendo o arguido que não eram terrenos do C…neles mandou proceder às obras referidas sem qualquer autorização de quem de direito ou procedimento administrativo que a visasse Mantendo-se mesmo assim a legitimidade da denunciante para se constituir como assistente (art.º 68/1 alínea e) do Código de Processo Penal e art.º 41º da Lei n.º34/87. .
Ora foram nas obras de construção do arruamento e passeios que os desmandos do arguido mais se fizeram sentir como o referem a assistente e seu marido. Este não deixa de referir o pormenor da atitude de chacota do arguido que postado na ponte do rio «se ria» da atitude da testemunha quando fotografava no local o decurso dessas obras.
A prova documental e a prova testemunhal credível levam no sentido do decidido pela 1ª instância, decisão que se não infirma.
O arguido na ânsia de não deixar de implementar a rápida concretização do Centro de Canoagem não se coibiu de fazer «tábua rasa» da propriedade reivindicada como pertença alheia muito antes da efectuada expropriação.
E note-se que ao falarmos no «Centro de Canoagem», tal como o tribunal recorrido nos referimos a todas as obras feitas pelo C…no local antes mesmo da expropriação. Não se ignora que a assistente, tal como a testemunha seu marido, foram claros ao referirem que a construção do edifício do Centro só se iniciou com a expropriação por utilidade pública; mas os desmandos do arguido são anteriores a essa fase, como o acolheu e denota a sentença no impugnado ponto e).
Quanto às alíneas g) e h), tendo a providência cautelar sido requerida a 15/9/200 é apodíctico que algumas das acções do C…e do respectivo empreiteiro sobre o prédio são anteriores. Como todas são anteriores à publicação [a 28/6/2002] do despacho ministerial expropriativo aquelas que hão-de qualificar-se de ilegítimas porque não autorizadas por quem de direito.
Note-se que só a 30/10/2000 foi promovida pela Câmara a expropriação do prédio, sobre o qual [refere D...] a 29/8/2000 foram indiferenciadamente descarregados material de construção, equipamentos, tractores transportados num semi-trailler, betoneiras e equipamento diverso. Atente-se no número de invasões do terreno que esta testemunha e assistente referem. A prova é evidente e consta da fundamentação da decisão de facto constante da sentença.
Como correcta a fundamentação da factualidade vertida na alínea j) que para além do referido apoio documental também tem algum suporte nos depoimentos de V... e G..., funcionários camarários intervenientes nesses trabalhos.
Correcto também o referido sob a alínea l) que, em boa verdade é em boa parte dedutiva do anteriormente já provado como, aliás, o refere a motivação que lhe corresponde e a qual anuímos.
3.2.3.3- O dolo específico refere-o a sentença ao dar correctamente por provado que o arguido agiu com o propósito de aportar para a Câmara e seus munícipes os benefícios decorrentes do desfrute dessas obras que sabia implementadas em terreno cujos donos as não autorizaram e consequentemente ilegítimo o benefício daí retirado.
Mas ficou-lhe muito mal tal actuação em termos de dignidade e de probidade que devem ser apanágio das autoridades locais, mormente do presidente da câmara que se sabe ser a figura emblemática do C…e sobre quem incidem todas as atenções públicas dos munícipes.
De resto, é da experiência comum que quando o particular entra legitimamente em conflito com tais entes públicos, pouco ou nada reage perante os desmandos destes tal a desproporção de meios, nomeadamente materiais.
O arguido colocou em causa a sã credibilidade do exercício dos poderes municipais, invadindo de modo público e ostensivo propriedade legitimamente reivindicada por terceiro, pondo em causa a imparcialidade, a proporcionalidade e a justiça nesse exercício de poderes e dando uma má imagem do respeito que também dos poderes públicos devem merecer as legítimas pretensões dos particulares.
O arguido actuou fora do exigível condicionalismo legal ao invadir terrenos que não eram do C…sem título que legitimasse essa invasão, fazendo-o ostensivamente contra a vontade duma das herdeiras, obrigando-a a socorrer-se de instrumentos processuais de direito privado [a requerida providência cautelar] que apesar de deferida o arguido torneou.
Como detentor duma função pública desrespeitou a legalidade democrática procurando na sua actuação retirar as vantagens referidas na sentença.
No abuso de poder arranca-se duma noção abrangente de função pública, nele se podendo incluir tanto actos simples como complexos, informações, actos orais, actividades técnicas e todos aqueles actos que em ligação com outros constituam um todo com relevo prático/jurídico.
O arguido sabia dos malefícios que com a sua atitude causava à assistente, nomeadamente de âmbito psicológico de decorrência comum nestas situações.
Autores há que integram no tipo as próprias omissões, considerando que o abuso de poder pode consistir numa inacção que colmate um desmando dos agentes públicos subordinados ou no exercício tardio desse poder para a obtenção da finalidade pretendida.
E o benefício a que se reporta o tipo não carece de ser patrimonial, pelo que até se pode cometer o crime agindo com fins altruístas.
De resto, é irrelevante que o agente atinja o fim pretendido, ou seja, é irrelevante a efectiva verificação do dano ou da vantagem pretendidos. Trata-se dum crime de mera conduta.
III-
Decisão –
Termos em que se concede parcial procedência ao recurso intercalar negando legitimidade à denunciante B... para se constituir como assistente quanto ao crime de desobediência qualificada, crime de que -, de resto -, o arguido foi absolvido não havendo recurso dessa absolvição. No mais improcedem os recursos.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça que se fixa em 10 UCs .
Coimbra,