Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
166/08.1TATMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: INJÚRIA
IMPUTAÇÃO DE CRIME
PROVA DA VERDADE DE FACTOS E DE JUÍZOS DE VALOR
Data do Acordão: 09/30/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TOMAR – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 180º, 2 B) , 181º CP
Sumário: 1. A imputação a alguém de um crime – facto censurável ao mais alto nível do mínimo ético imprescindível à vida em sociedade - é, só por si, injuriosa.
2. Reconhece a ilicitude da imputação quando se justificando a mesma com a prova da verdade. Carece de sentido provar a verdade de uma imputação que previamente se negou.
3. Não se admite prova da verdade, por impossibilidade de produção se prova sobre juízos de valor, mas apenas sobre factos.
4. A imputação de um facto depende da manifestação exterior em que esse mesmo acto se materializa. Constitui algo de objectivo, um acontecimento da vida real, fenómeno da natureza ou manifestação concreta dos seres vivos, em particular os actos praticados pelas pessoas ou os seus comportamentos – daí que possa provar-se que aconteceram, uma vez que se trata de realidades objectivas.
5. A formulação de um juízo constitui a manifestação de uma opinião de quem o emite, portanto profundamente subjectiva, produto de determinada reflexão e da sua perspectiva das coisas e do mundo.
Decisão Texto Integral: I.
A arguida, M..., recorre da sentença em que o tribunal recorrido decidiu condená-la:

- pela prática, em autoria material, de um crime de injúria, p.p. nos arts. 181º do C.P., na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 12 (doze euros) perfazendo a multa global de € 600 (seiscentos euros); ---

- a pagar ao demandante a quantia total de € 1500,00 (mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da sentença, até integral pagamento. ---
*
Na motivação do recurso formula as seguintes CONCLUSÕES:
a) Os elementos probatórios recolhidos em audiência de julgamento e demais elementos dos autos, não permitem concluir que a arguida proferiu as expressões que o douto Tribunal considerou provadas;
b) O douto Tribunal não fundamenta justificadamente as razões de tais conclusões;
c) A expressão “obrigado pelo que mandaste fazer ao meu carro, tenho os dois pneus furados” não integra o conceito de injúria, pois que em tal expressão não está contido um juízo de valor;
d) Sempre a conduta do arguido não deveria ser punida, nos termos do nº. 2, alínea b) do art. 180º, do Código Penal.
e) A sentença recorrida padece do vício referido no artigo 410º, n.º 2 c) do C.P.P.
f) Foram violados os artigos 181º, nº 2, alínea b), 40º e 71º do C.P., 18º da C.R.P. e 566º do CC.
Termos em que deve a douta sentença ser revogada, absolvendo-se a arguida das acusações formuladas.
Caso assim não se entenda, deverá a pena aplicada ao recorrente ser alterada no que respeita à sua medida concreta e o montante indemnizatório fixado reduzido.
*
Na resposta o digno magistrado do MºPº pronuncia-se no sentido da total improcedência do recurso, alegando, em síntese conclusiva, que; a sentença recorrida se encontra devidamente fundamentada quanto à decisão da matéria de facto, não merecendo censura o juízo valorativo da prova em que repousa; não existe circunstância que afaste a punibilidade da conduta; a multa e respectiva taxa diária aplicadas mostram-se ajustadas à matéria de facto provada e critérios legais aplicáveis.
*
No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex. Mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer concordante com a resposta, dizendo que embora a recorrente não cumpra os ónus legais de especificação, não se justifica o convite ao aperfeiçoamento porquanto é compreensível a pretensão do recorrente, concluindo pela total improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP.
Corridos os vistos e realizado o julgamento, em conferência, mantendo-se a validade e regularidade afirmadas no processo, cumpre decidir.
A apreciação das questões suscitadas exige que se tenha presente a matéria dada como provada pelo tribunal recorrido, com a respectiva motivação.

****

II.
A decisão do tribunal recorrido em matéria de facto é a seguinte:
A) Matéria de facto provada.-----
--- - Da acusação - -----

---1. No dia 15 de Setembro de 2007, pelas 15 horas, na Associação Recreativa das …, enquanto decorria o almoço de aniversário da colectividade, a arguida, dirigindo-se ao assistente, proferiu as seguintes expressões “És um merda”, “ordinário”, “Não vales nada”, “Obrigado pelo que mandaste fazer ao meu carro – tenho dois pneus furados”. ----
---2. Factos estes ocorridos numa pequena aldeia ( …), de onde o assistente é natural, frequentou a escola primária, faz parte da direcção da colectividade e é conhecido de toda a gente.-
---3. As expressões descritas foram proferidas com o propósito de atingir o assistente na sua honra, bom nome e dignidade, perante as pessoas suas conhecidas e numa pequena povoação. ---
---4. Tendo a arguida conhecimento da ilicitude da sua conduta, bem sabendo que esta lhe era proibida por lei. ---
*
--- Apurou-se ainda, que:-----
---5. Na altura dos factos o assistente e a arguida encontravam-se em processo de separação entre si, e encontram-se actualmente divorciados;----
---6. Imediatamente antes da prática dos factos acima descritos a arguida havia constatado que dois dos pneus da sua viatura automóvel encontravam-se furados, o que lhe causou bastante nervosismo; ----
---7. A arguida é professora de …, e declarou auferir cerca de € 2.200 de retribuição mensal; ----
---8. Vive sozinha, em casa própria, e paga € 700 mensais de prestação bancária; ---
---9. Possui viatura automóvel própria da marca VW Golf, do ano de 2007; ------10. Tem como habilitações literárias o mestrado em Engenharia Civil; ---
---11. Não possui antecedentes criminais registados. ------
*
--- - Do pedido de indemnização civil - -----
--- Para além dos factos acima descritos, provou-se que: - ---
---12. O demandante sentiu desgosto e humilhação com as expressões proferidas pela demandada, na presença de amigos e conhecidos do primeiro.
*
--- B) Factos não provados-----
--- Com interesse para a decisão da causa, não se provou que a arguida dirigiu ao assistente as expressões “és um cachopo”, e “ranhoso”. ----
*
--- C) Motivação da decisão de facto -----
--- A convicção do tribunal quanto à prova da matéria de facto resultou das declarações do assistente conjugadas com os depoimentos das testemunhas F… e J… que presenciaram os factos e relataram as expressões mencionadas no ponto 1. dos factos provados e bem assim o desgosto e humilhação sentidos pelo demandante. ---
--- Esclareceram que os factos ocorreram num almoço realizado na associação recreativa de …, onde estavam muitas pessoas, e que a arguida aparentava estar muito nervosa devido ao facto de lhe terem furado dois pneus do carro. ----
Ambas depuseram de forma clara e objectiva, sem hesitações ou contradições, merecendo credibilidade. ----
--- Por seu turno as testemunhas T…, S… e A… mencionaram apenas que a arguida estava nervosa devido ao estado dos pneus, fizeram apenas referencia à expressão “Obrigado pelo que mandaste fazer ao meu carro” mas admitiram que pudessem ter havido outras expressões que não tivessem ouvido. --
--- A arguida, em sede de declarações, apenas admitiu ter dirigido ao assistente a expressão “Muito Obrigado pelo que mandaste fazer ao meu carro – tenho dois pneus furados”, negando as demais, o que em face da demais prova produzida não se revelou suficiente. -----
--- Quanto às condições económicas da arguida consideraram-se as suas declarações.------
--- A ausência de antecedentes criminais encontra-se certificada nos autos.-

***

III.
Nos termos do art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Impondo o legislador ao recorrente, determinados ónus de especificação / fundamentação não só na identificação, concreta dos pontos em que discorda da decisão recorrida, como ainda dos fundamentos materiais que são susceptíveis de “impor” decisão diversa da recorrida – cfr. art. 412º, n.º3 e 4 do CPP.
Aliás sendo as decisões judiciais fundamentadas sob pena de nulidade (art. 374º e 379º do CPP) a procedência do recurso obriga a que se demonstre a insubsistência dessa mesma fundamentação
Constituindo entendimento uniforme, atenta ainda a natureza do recurso (não um novo julgamento mas a reapreciação do julgamento de determinadas questões efectuado previamente e pelo tribunal recorrido em decisão fundamentada – se não o for é nula) que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso - cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173, fazendo eco da jurisprudência uniforme daquele alto tribunal.
Sem prejuízo, naturalmente, da apreciação das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º, n.º2 do CPP, de acordo como o Ac. STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.
Impondo o legislador ao recorrente determinados ónus de especificação no sentido de identificar, com um mínimo de rigor, não só os erros - in procedendo ou in judicando - que aponta à decisão de que recorre, bem como as razões de facto e de direito susceptíveis de impor decisão diversa da recorrida, numa argumentação minimamente persuasiva, á luz dos critérios legais em vigor e dos princípios da interpretação das leis são susceptíveis de convencer o tribunal de recurso da bondade da sua argumentação do recorrente e da insubsistência daquela que vem plasmada na decisão impugnada – cfr. art. 412º do CPP, designadamente os n.ºs 3 e 4, relativos à impugnação da matéria de facto.
É assim ao recorrente, salvas as questões de conhecimento oficioso, que incumbe rebater o iter valorativo em que assenta a decisão recorrida (no pressupostos de que esta é fundamentada e não o sendo é nula) que incumbe demonstrar a insubsistência da decisão recorrida e do percurso valorativo em que repousa.

No caso, como é bem salientado no douto parecer, no que toca à impugnação da matéria de facto o recorrente cumpre defeituosamente esse ónus – invocando, aliás, com a mesma linha de argumentação de desacordo com a matéria dada como provada, simultaneamente, a falta de fundamentação, o vício de erro notório na apreciação da prova e a valoração da prova.
Como que pretendendo chegar a conclusões distintas, com o mesmo fundamento nuclear o que em processo civil, a formular pedidos incompatíveis com a mesma causa de pedir.

Todavia, não permitindo o convite ao aperfeiçoamento a modificação da fundamentação do âmbito do recurso mas apenas suprir deficiências das conclusões (situação clarificada pela actual redacção do art. 416º, n.ºs 3 e 4 do CPP na sequência de arestos do TC relativos ao aperfeiçoamento) - sob pela de se transformar o aperfeiçoamento na oportunidade de um novo recurso que poderia nem ser aquele que é querido pelo recorrente mas aquele que o tribunal de recurso, melhor, o relator a quem compete o convite, pudesse entender adequado).
Assim não se justificava, no caso, o convite, por ser compreensível a perspectiva material da recorrente que constitui o lastro/fundamento das pretensões formuladas.
*

Começa a recorrente por alegar que “Os elementos probatórios recolhidos em audiência de julgamento e demais elementos dos autos, não permitem concluir que a arguida proferiu as expressões que o douto Tribunal considerou provadas”.
Para logo de seguida afirmar que o tribunal recorrido “não fundamenta justificadamente as razões de tais conclusões”.
Esta última asserção, a verificar-se, constitui nulidade da sentença, nos termos previstos no art. 379º do CPP, que constitui questão prévia, susceptível de prejudicar a apreciação de mérito – a ausência de fundamentação impede a sindicância do mérito dessa motivação / fundamentação que não existe.
O dever de fundamentação de todos os despachos judiciais encontra-se consagrado genericamente no art. 158º do CPC e agora especificamente no Art. 97º, n.º4 do CPP (redacção dada pela Lei 59/98) que postula: Os actos decisórios são sempre fundamentados devendo especificar os motivos de facto e de direito da decisão. Em conformidade com imposição expressamente cominada pelo art. 205º, n.º1 da Constituição da República na redacção saída da revisão de 1997.
Como refere Marques Ferreira in Jornadas de Direito Processual Penal do C.E.J., O Novo Código de Processo Penal, ed. Almedina, p. 229-230, “de acordo com os princípios informadores do Estado de Direito Democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado nos arts. 32º, n.º1 e 21º da Constituição a fundamentação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico e racional que lhe subjaz. E extraprocessualmente deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade”.
O art. 374º do CPP, enunciando os requisitos da sentença, estabelece no seu n.º2 (redacção introduzida pela lei 59/98): Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Por sua vez o art. 379º do CPP postula:
1. É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no artigo 374º, n.ºs 2 e 3, alínea b)”. (…)

No caso vertente, como se vê do excerto correspondente, supra reproduzido, a decisão recorrida encontra-se perfeitamente fundamentada.
Especificando, relativamente às afirmações que a recorrente questiona, que teve por fundamento “as declarações do assistente conjugadas com os depoimentos das testemunhas Fernando Marques e Júlio Freitas que presenciaram os factos e relataram as expressões mencionadas (...) Ambas depuseram de forma clara e objectiva, sem hesitações ou contradições, merecendo credibilidade”.
Ou seja o tribunal fundou a sua convicção no identificado conteúdo de testemunhos (para além do depoimento do queixoso) que confirmaram na íntegra as expressões em causa - para além daquelas que são admitidas pela própria recorrente.
Acrescentando-se – adiantando caminho para a reapreciação do valor probatório dos testemunhos - que nem em audiência, nem agora em fase de recurso foi aventada, sequer, qualquer razão ou relação com algum dos sujeitos processuais, que pudesse, de alguma forma, retirar objectividade e isenção aos depoimentos das testemunhas em que o tribunal fundou a sua convicção.
E que a recorrente passa “em branco”, diga-se, na fundamentação do recurso.
Mas o tribunal recorrido ponderou ainda os depoimentos das «testemunhas T…, S… e A… mencionaram apenas que a arguida estava nervosa devido ao estado dos pneus, fizeram apenas referencia à expressão “Obrigado pelo que mandaste fazer ao meu carro” mas admitiram que pudessem ter havido outras expressões que não tivessem ouvido».
Testemunhas que tendo confirmado – apenas – ter ouvido a expressão admitida pela não puseram todavia em causa que esta tivesse proferido todo o acervo de expressões dadas como provadas, admitindo que pudessem ter proferidas.
Valoração que, diga-se, se ajusta ao “móbil” apresentado pela própria arguida. Sendo contraditória a versão da arguida de que, ao confrontar o ofendido com a imputação de um facto altamente censurável (furar voluntariamente os pneus do carro), se limitasse a “agradecer-lhe” o facto que reprovava veementemente, tanto mais atenta a situação de conflito pré-existente entre ambos.
Assim a motivação, ainda que sintética é clara e exaustiva, além de apreciar criticamente os depoimentos em função da razão de ciência e credibilidade dos depoentes, deixando perfeitamente claro o iter lógico-dedutivo da apreciação e valoração da prova em que repousa, de forma a permitir a sua sindicância pelos interessados bem como pelo tribunal de recurso.
Aliás a recorrente depois de dizer que a sentença não é fundamentada, passa, precisamente, a questionar essa mesma motivação que antes negara existir.
Sendo pois manifestamente insubsistente o recurso neste âmbito.
*
Aponta a recorrente à decisão recorrida, depois, o vício de erro notório na apreciação da prova.
A negação da motivação da sentença (questão acabada de analisar) evidencia que a recorrente, não tendo argumentos para rebatê-la, opta por ignorá-la, passando ao lado do mérito dessa apreciação.
Na mesma linha, na falta de argumentos de natureza substancial a recorrente a recorrente avança para o vício de erro notório de apreciação/valoração da prova.
Postula o art. 410º n.º2 do CPP:
Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
(…)
c) Erro notório na apreciação da prova.
Incidindo sobre a decisão da matéria de facto os vícios do art. 410º não se confundem com a reapreciação da prova, com base no registo da prova produzida oralmente em audiência ou de outros meios de prova incorporados nos autos, nos termos previstos nos artigos 412º e 431º do CPP.

Constituem vícios relativos à estrutura interna da sentença, emergindo do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
Repercutindo-se todavia os seus efeitos ao nível da decisão de mérito, uma vez que a sua consequência típica é o reenvio para novo julgamento - cfr. art. 426º do CPP.
Em conformidade com a letra da lei apenas se verificam quando “resultem do texto da própria decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum” – cfr. jurisprudência citada por SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 68.

Constituindo “vícios ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confecção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão” – cfr. Ac. STJ de 07.12.2005, CJ-STJ, tomo III/2005, p. 224.
Daí que sejam de conhecimento oficioso – cfr. acórdão para uniformização de jurisprudência do STJ de 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95.
O erro notório na apreciação da prova constitui “um vício de raciocínio na apreciação das provas evidenciado pela simples leitura da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio” – cfr. Ac. STJ de 03.06.1998, processo n.º 272/98, citado por SIMAS SANTOS / LEAL HENRIQUES, Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 5ª ed., p. 68.
Verificando-se, por ex., quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica do homem médio, não se poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena não arguidos de falsos – cfr. Ac. STJ 10-03.99, SASTJ n.º 29, p. 73. Ou quando se dão como provados factos que face às regras da experiência comum e à lógica corrente não se podiam ter verificado Ac. STJ 02.06.99, proc. 354/99, citado por Maia Gonçalves, em anotação ao art. 41º do seu C. Anotado, 13ª ed..
Existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis – cfr. Simas Santos e Leal Henriques, C.P.Penal Anotado, II vol., pág. 740.
Ora, no caso, o erro apontado pelo recorrente não se enquadra, minimamente no critério definido, tratando-se antes de discordância da valoração da prova.
*
Depois de negar a existência de fundamentação e de invocar um vício lógico de erro aparente, ostensivo, face ao texto da própria decisão e regaras da experiência, questiona a recorrente, por último (por ordem lógica, que não a indicada nas conclusões, inversa), tendo por base nos três sucessivos “rounds” sempre a mesma discordância da apreciação da prova pelo tribunal, que os “elementos probatórios não permitam concluir que a arguida proferiu as expressões que o tribunal considerou provadas”.
Pretendendo que se dê como provado apenas e exclusivamente, aquilo que ele própria assumiu – que na perspectiva final da absolvição tem como penalmente atípico – tal discordância é contraditória, antes de mais, com a falada ausência de motivação, que é clara e a recorrente bem entendeu, tanto que manifesta a sua discordância da mesma.
Ora, como bem refere o douto parecer, o recurso da decisão da matéria de facto não pode constituir um segundo julgamento, mas apenas o meio para corrigir eventuais erros da decisão recorrida.
O que exige que tais erros sejam devidamente identificados – a fim de que o tribunal de recurso posa deles conhecer – e ainda que seja demonstrado, com base numa argumentação minimamente persuasiva, o erro apontado, a fim de que o tribunal de recurso possa sindicar a bondade da argumentação, á luz dos critérios legais em vigor. Sendo a sentença, como tem que ser, fundamentada, ao recorrente cabe rebater o mérito dessa mesma motivação. Posto perante uma sentença formalmente válida, por fundamentada e logicamente escorreita, impõe-se, para que seja revogada, que sejam rebatidos com base em razões materiais minimamente persuasivas, os seus fundamentos materiais.
Nomeadamente, quando se trata de meios de prova sujeitos ao critério supletivo da livre apreciação enunciado no art. 127º do CPP, que a decisão viola os critérios de racionalidade, razoabilidade e senso comum ali enunciados.
No caos em apreço, embora manifestando discordância, certo é que a recorrente, negando liminarmente a existência da fundamentação, não rebate os fundamentos em que repousa.
Como se adiantou supra em sede de apreciação da nulidade da sentença (pela alegada falta de fundamentação), o tribunal fundou a sua convicção no identificado conteúdo de testemunhos (para além do depoimento do queixoso) que confirmaram na íntegra as expressões em causa - para além daquelas que são admitidas pela própria recorrente.
Sendo certo que nem em audiência, nem agora em fase de recurso foi aventada, sequer, qualquer razão ou relação com algum dos sujeitos processuais, que pudesse, de alguma forma, retirar objectividade e isenção aos depoimentos das testemunhas em que o tribunal fundou a sua convicção.
Aliás a motivação do recurso passa “em branco”, diga-se, os aludidos meios de prova, legais, valorados de forma objectiva e racional.
E que os depoimentos das testemunhas T…, S… e A… não puseram todavia em causa, admitindo que pudessem ter proferidas as expressões que dizem não ter ouvido.
Não põe a recorrente em causa o conteúdo dos depoimentos em que assenta nem a valoração crítica da prova ou a violação de princípios ou critérios de apreciação da prova, designadamente o critério supletivo legal ínsito no art. 127º do CPP.
Não especifica, designadamente, quais os meios de prova suscepíveis de impor decisão diversa da recorrida. E, como se viu, nenhum depoimento invalida ou contraria aqueles em que a sentença se apoia – dizem que não ouviram mas não põem em causa que pudessem ter existido tais expressões ou que as testemunhas eu as relataram pudessem ter, de alguma forma, razões para imputar falsamente a sua produção à arguida.
Ajustando-se a valoração do tribunal recorrido ao “móbil” apresentado pela própria arguida, à contraditoriedade da versão da arguida de que, ao confrontar o ofendido com a imputação de um facto altamente censurável (furar voluntariamente os pneus do carro), se limitasse a “agradecer-lhe” o facto que reprovava (!) veementemente, tanto mais atenta a situação de conflito pré-existente entre ambos.
Assim a valoração subjacente à decisão, ao contrário da proposta (?) pela recorrente, obedece aos critérios legais de valoração da prova.
Nada há, pois a censurar à decisão recorrida, em termos de matéria de facto, uma vez que assenta em meios de prova legais, produzidos em audiência com exercício amplo do contraditório e valorados de forma objectiva e racional, em conformidade com os critérios legais de apreciação da prova.
*

A fundamentação do recurso em matéria de direito supõe, liminarmente, a prévia procedência do recurso em matéria de facto – ou seja, que apenas disse ao ofendido “obrigado pelo que mandaste fazer ao meu carro, tenho os dois pneus furados”.
Ora, tendo improcedido a premissa fáctica em que assenta, tanto basta para a improcedência da conclusão que dela pretende retirar a recorrente em termos de direito.
De qualquer forma, acrescenta-se que a simples expressão reconhecida pela própria recorrente, quando diz “mandaste fazer” consiste em imputar ao queixoso, claramente, a autoria do facto que determinou a interpelação - “meu carro ...dois pneus furados”.
Nem outra conotação faria qualquer sentido, uma vez que objectivamente não se agradece (apesar da verbalização) um acto objectivamente censurável e reprovado, veementemente, pelo agente. Tanto mais que o facto transmitido era efectivamente de reprovar, por susceptível de integrar, mesmo, responsabilidade criminal – crime de dano, doloso.
Daí que a simples imputação a alguém de um crime – facto censurável ao mais alto nível do mínimo ético imprescindível à vida em sociedade - seja, só por si, injuriosa.
Aliás a recorrente, de tanto porfiar, acaba por reconhecê-lo quando, reconhecendo ter proferido a dita expressão, pretende todavia “justificá-la” com a causa de exclusão do art. 180º, 2, b) do CP – relativa à prova da verdade da imputação ou existência de fundamento sério para reputar a imputação como verdadeira.
O que equivale a reconhecer a ilicitude da imputação justificando-a todavia com a prova da verdade. Carece de sentido provar a verdade de uma imputação que previamente se negou.
Acresce, quando pretende justificar o facto, que a recorrente procede à “leitura” da dita expressão descontextualizando-a das circunstâncias em que foi proferida.
Sendo certo, como escreve Faria Costa (Comentário Conimbricence, tomo I, p. 612) “o cerne da determinação dos elementos objectivos (do crimes de injúria e/ou difamação) tem sempre de se fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização. Residindo aqui um dos elementos mais importantes para, repete-se, a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo”.
Ora, para além da dita expressão e da imputação de facto (ilícito penal) que contém, provou-se ainda que (em decorrência e sintonia com a mencionada imputação) dirigiu ao ofendido as expressões “és um merda”, “ordinário” e “não vales nada”.
Expressões que constituem juízos de valor e são objectivamente ofensivos.
Sendo comummente aceite que não admitem prova da verdade, por impossibilidade de produção se prova sobre juízos de valor, mas apenas sobre factos.
A este respeito, refere Faria Costa, em anotação ao art. 180º do CP, no Comentário Conimbricence, t.1, pp. 609 e segs. que “há interesse, e interesse real e efectivo, em saber distinguir um facto de um juízo, mormente quando se tiver de lidar com a específica causa de exclusão de ilicitude em que a questão de facto constitui um ponto nuclear”.
A imputação de um facto depende da manifestação exterior em que esse mesmo acto se materializa. Constitui algo de objectivo, um acontecimento da vida real, fenómeno da natureza ou manifestação concreta dos seres vivos, em particular os actos praticados pelas pessoas ou os seus comportamentos – daí que possa provar-se que aconteceram, uma vez que se trata de realidades objectivas.
Por outro lado a formulação de um juízo constitui a manifestação de uma opinião de quem o emite, portanto profundamente subjectiva, produto de determinada reflexão e da sua perspectiva das coisas e do mundo.
Num ponto de vista gramatical juízo tem o significado de “efeito ou faculdade intelectual de julgar, função do espírito, operação do entendimento que permite julgar, apreciar, perceber a existência de uma relação entre pessoas, ideias ou coisas, destrinçar os atributos ou predicados existentes em algum sujeito... discernimento, inteligência” – Cfr. Grande Dicionário da Língua Portuguesa, José Machado, vol. III, p. 409-500.
No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências (Vol. G-Z, p. 2196-2197), juízo aparece como sinónimo de “capacidade intelectual de comparar; acto ou efeito de julgar, discernimento, entendimento, raciocínio... pensamento expresso sob a forma de proposição enunciativa... maturidade intelectual aliada a um comportamento responsável”.
Significando o juízo de valor (cfr. Dicionário citado) “opinião que encerra uma apreciação, uma classificação”.
Como refere, a dado passo da fundamentação, em excerto conclusivo a que se adere, o Ac. TC 201/2004 de 24.03.2004, DR IIS de 02.06.2004, p. 8554 “Tratando-se desde logo de uma convicção, é impossível, logo de um ponto de vista lógico, fazer a prova da verdade dessa convicção. O juízo de valor, enquanto apreciação pessoal e convicção de quem o emite é, pela natureza das coisas, indemonstrável”.
No mesmo sentido, citando decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e a melhor doutrina cfr. Oliveira Mendes, (O Direito à Honra, ed. ALmedidan., p. 64) e o Comentário Conimbricence ao CP em anotação ao preceito em causa.
Diga-se, por ultimo, que a própria recorrente, quando refere a dado passo da motivação (fls. 157 a meio da página) que “a arguida bem tentou provar a verdade da imputação, tendo apresentado queixa-crime, embora o inquérito tenha sido arquivado”, reconhece claramente que não conseguiu provar a verdade da imputação.
Ou seja, reconhece que tendo embora tentado, não provou verdade da imputação.
Por outro lado não resulta das circunstâncias do caso, minimamente (nem é isso que a recorrente alega, uma vez que apenas assume o “agradecimento” e não as restantes imputações provadas), que a recorrente tivesse fundamento sério para reputar a expressão como verdadeira – repare-se que não invoca qualquer circunstância objectiva, exógena, que pudesse conferir apoio a tal imputação, designadamente algum meio de prova concreto que pudesse apontar para a autoria do facto pelo queixoso. Ficando assim, como suporte, o seu “palpite” subjectivo, sem qualquer apoio em qualquer indício que pudesse conferir-lhe a consistência de “fundamento sério”.
Pelo que também nesta perspectiva se impõe a improcedência do recurso.
*

De cautela em cautela termina a recorrente a impugnar a mediada concreta da pena e o valor da indemnização arbitrados.

Também aqui, liminarmente, a pretensão da recorrente assenta na premissa da modificação da matéria de facto que não se verificou.

De todo o modo, sempre se dirá:

Numa moldura abstracta que prevê pena de prisão até 3 meses ou pena de multa até 120 dias, a sentença aplicou uma pena de multa que fixou em 50 dias, à razão diária de € 12.

Aplicou pois a pena de multa muito abaixo do meio-termo da respectiva moldura.

Equaciona a respeito a decisão recorrida

“ (…) na determinação da medida pena aplicável, deve o juiz fazer aplicação dos critérios consagrados nos artigos 40º, 71º e 72º do CP.

(…) no caso o grau de ilicitude situa-se acima da média, considerando o número de expressões proferidas e ainda que os factos foram praticados na presença de outras pessoas (…) O dolo é directo, de intensidade mediana, pois a arguida sabia que ofendia a honra e consideração de terceiros e ainda assim não se inibiu de proferir tais expressões (…) As necessidades de prevenção geral e especial não exigem relevantes cautelas (…) A favor da arguida milita o facto de estar inserida social e profissionalmente e de não ter antecedentes criminais (…) Também a circunstância de a arguida se ter deparado com dois pneus da sua viatura furados e de por isso ter ficado nervosa, embora não constitua causa de desculpa, deve ser ponderada como atenuante da censurabilidade que lhe deve ser dirigida”.

Ora a recorrente não justifica, com base na violação dos critérios legais ou na sua aplicação ao caso concreto, que não se verifiquem os fundamentos invocados na sentença.

Mostrando-se a pena doseada de forma perfeitamente parcimoniosa dentro do critério legal enunciado.

O mesmo se diga em relação à taxa diária, sabendo-se que a arguida “é professora de …, e declarou auferir cerca de € 2.200 de retribuição mensal” e não tem encargos familiares - “ Vive sozinha”. Situando-se taxa fixada abaixo de 1/3 do rendimento diário da arguida.
*

No que toca à indemnização civil a sentença recorrida, em juízo de equidade, com base nos critérios invocados dos artigos 496º-494º do C. Cvil aplicaável pró remissão do art. 129º do CP, arbitrou-a em € 1.500,00 – estando em causa, apenas danos não patrimoniais.

Mais fundamentando a sentença recorrida “(…) No caso dos autos, em face do quadro fáctico dado como provado, resulta incontestável que a actuação da arguida/demandada é ilícita, consubstanciada na imputação de factos e utilização de palavras ofensivas da honra e consideração do demandante, o que, para além consubstanciar, em abstracto, a prática de crime, ocasionou danos não patrimoniais a R… (…) Não resultam dúvidas acerca da culpabilidade da arguida/demandada. A sua conduta é censurável seja qual for o prisma por que a mesma se analise. Podia e devia ter agido de modo diverso (..) Uma vez que tal quantia foi fixada de forma actualizada, sobre a mesma apenas incidirão juros de mora a contar da data da sentença, à taxa legal em vigor”.

Ora a recorrente, mais uma vez não invoca a violação de critério legal, ou sequer a violação de critérios jurisprudenciais relevantes, dado que está em causa a formulação de um juízo de equidade.

Surgindo a quantia arbitrada como perfeitamente módica, atenta a natureza e relevo da ofensa, a situação sócio-económida da arguida, a sua formação moral, a actuação dolosa.

Sendo também nesta ponto a motivação do recurso de todo insubsistente.


**

IV.

Nestes termos decide-se negar provimento ao recurso, julgando-o totalmente improcedente. -----

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça, atento o labor a que deu causa, a total insubsistência e a situação económica da recorrente, em 9 (nove) UC.