Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
907/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONTRATO DE SEGURO DE CARTA
VALIDADE
EFICÁCIA
DISTINÇÃO DE SEGURO DE GARAGISTA
Data do Acordão: 07/13/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DECRETO-LEI Nº 105/94, DE 23 DE ABRIL E ARTº 2º, Nº 4, DO D.L. Nº 522/85, DE 31 DE DEZEMBRO
Sumário: I – Não demonstrando a seguradora ter remetido ao segurado o aviso a que alude o Decreto-Lei nº 105/94, de 23 de Abril (então em vigor e que estabelecia normas relativas ao pagamento dos prémios de seguros), alertando para a data e valor a pagar, com as consequências do não pagamento, não se pode considerar que o contrato foi automaticamente resolvido, por falta de pagamento do prémio, tendo, antes, que se concluir que, dada a duração do contrato e sua renovação automática, ele se mantinha em vigor à data do acidente dos autos.
II – O seguro de carta (ou de automobilista) distingue-se do seguro de garagista, quanto à natureza e âmbito de cobertura, visto que é um seguro facultativo (cfr. artº 2º, nº 4, do D.L. nº 522/85, de 31 de Dezembro) e cobre a responsabilidade civil emergente da utilização do veículo em qualquer circunstância, enquanto o último é obrigatório (cfr. nº 3 do mesmo artigo), circunscrevendo a garantia da responsabilidade civil aos casos em que o segurado utiliza o veículo por virtude das suas funções, no âmbito da sua actividade profissional.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A... e B... intentaram, em 29/02/2000, pelo Tribunal da comarca de Pombal, acção com processo ordinário contra C..., pedindo a condenação desta a pagar ao 1º autor a quantia de 1.013.700$00 e à 2ª a de 3.698.121$00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais por eles sofridos, em consequência do acidente de viação ocorrido em 09/08/1997, ao Km 142,5 da E.N. 1, em Ranha, Pombal, entre o motociclo de matrícula 60-91-GC, propriedade do 1º autor e por ele conduzido, levando como passageira a 2ª autora, e o veículo ligeiro de passageiros de matricula 31-39-KC, pertencente a D... e conduzido por E..., e seguro na ré (apólice nº 150454), ficando o acidente a dever-se a culpa exclusiva deste último condutor.
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A ré contestou, por excepção, invocando a sua ilegitimidade, visto o veículo KC ser conduzido por E... na qualidade de comerciante de automóveis, o qual tinha um seguro de carta de condução com a companhia de seguros F..., S.A., titulado pela apólice nº 43225, e por impugnação, defendendo a improcedência da acção, em virtude de o acidente se ficar a dever a culpa exclusiva do autor Luís Filipe.
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Os autores responderam e requereram a intervenção da companhia de seguros F..., a qual interveio nos autos, requerendo a sua absolvição do pedido, por não existir qualquer seguro de carta à data do acidente.
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A ré respondeu à contestação da interveniente, concluindo como na contestação.
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O Instituto de Solidariedade e Segurança Social interveio nos autos para requerer o reembolso da quantia de 238.680$00, que pagou à sua beneficiária B..., acrescida dos juros legais.
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A ré C... contestou o pedido de reembolso, invocando a excepção da prescrição do exercício do direito por parte do interveniente Instituto de Solidariedade.
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Foi proferido o despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes as excepções (prescrição e ilegitimidade) invocadas pela ré C..., e foram seleccionados os factos considerados assentes e os que constituem a base instrutória, sem reclamações.
Posteriormente, vieram os autores requerer a intervenção do Fundo de Garantia Automóvel, para a hipótese de se considerar que nenhuma das seguradoras é responsável, e a Portugal Previdente – Companhia de Seguros, S.A., seguradora do motociclo 60-91-GC, para ressarcir a autora Ana Catarina caso venha a ser decidido que a culpa do acidente se deveu ao condutor desse motociclo.
Tal pedido de intervenção foi indeferido por despacho de 02/07/2002.
Os autores foram submetidos a exame médico no Instituto Nacional de Medicina Legal, Delegação de Lisboa.
Teve, depois, lugar o julgamento, com gravação da prova e durante o qual foi ordenado, oficiosamente, o aditamento à Base Instrutória dos quesitos 77º a 82º.
Decidida a matéria de facto controvertida, sem reclamações, foi proferida a sentença, que condenou a ré C..., em relação ao autor Luís Filipe, a reparar o motociclo ou o valor em dinheiro necessário à sua reparação e a pagar-lhe, a título de indemnização, a quantia de 2.057,57 €, no que se refere à autora Ana Catarina, a pagar, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia de 18.446,15 €, e a reembolsar o I.S.S.S. da quantia de 1.190,53 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal.
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Inconformada, interpôs a ré C... recurso de apelação, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1 – A apelante não concorda com alguns dos pontos tidos como assentes e provados na Fundamentação de Facto.
2 – No ponto 50 da Fundamentação de Facto diz-se que E... teve a dado momento um contrato de seguro de carta, celebrado com a F....
3 – É dito que a apólice referente ao mesmo seguro foi emitida, bem como certificado de seguro, recibo e carta que foi enviada uma carta ao segurado E....
4 – Tais factos encontram-se prejudicados pelo depoimento da testemunha da F..., Domingos Tojal Soares.
5 – No seu depoimento, à pergunta quanto à celebração de um contrato de seguro celebrado entre E... e a F..., afirma que “É verdade. Fez um seguro de carta com a Royal com início em 12/04/1996”.
6 – À pergunta que lhe foi feita quanto ao que aconteceu com tal seguro, a mesma testemunha responde que “Pelos elementos, e poucos, que n´s temos, este segurado nunca pagou qualquer seguro, nem o primeiro nem o segundo. Nunca pagou absolutamente nada”. Mais afirma que “… quando a acção chegou à AXA (por motivos de fusão com a F...) eu vi-me aflito porque não tínhamos nada , desapareceu o processo, desapareceu o contrato, desapareceu tudo (…). Nós, com a questão da fusão, tudo o que era deste senhor, desapareceu”.
7 – A única coisa que existe nos autos é uma cópia dessa carta, sem qualquer prova de que a mesma terá, efectivamente, sido enviada.
8 – Quando lhe foi perguntado se a Royal, de facto, enviou cartas ao segurado com aviso de falta de pagamento, a testemunha apenas afirma que “(…) a única coisa que poderei dizer, terá o valor que tem, nesse aspecto, e dos poucos, a Royal estava melhor do que nós, a AXA, porque mandava sempre cartas e nós não mandamos (…). Mas eu não tenho prova nenhuma”.
9 – Em relação aos print`s informáticos que a testemunha diz ter para fazer prova da anulação do mesmo contrato, estando estes também juntos aos autos, são documentos com uma má impressão, de cor escura. Quando, na audiência de julgamento é confrontado com esse facto, responde “O que eu sei é que não tenho documentos nenhuns”.
10 – É-lhe perguntado se, através daqueles print`s consegue ver se houve carta e se essa foi registada, ou se tem a carta registada na sua posse, responde “(…) nada, nada, nada (…) se o Sr. Dr. Me perguntar qual a data em que foi a carta registada, isso eu não sei (…) Neste momento nós estamos fragilizados”.
11 – Face a esta reprodução da prova gravada em audiência de julgamento, parecem estar as conclusões da Fundamentação de Facto feridas de algum erro.
12 – O ponto 52 da mesma Fundamentação tem-se por provado que foi enviada carta ao Sr. E..., quando, por tudo quanto ficou exposto fácil é de concluir que tal não se pode apurar, bem como fácil será também de concluir que não se prova o envio da mesma carta.
13 – A ora apelante arguiu a existência de um contrato de seguro de carta celebrado com o condutor do veículo KC, o que se conseguiu provar por documentos juntos aos autos, tais como, a apólice e o certificado de seguro.
14 – A F... arguiu a anulação do mesmo por falta de pagamento. Porém, não conseguiu provar os motivos para tal anulação. Ora, pelo plasmado no artº 342º do C.Civil, cabia à F... a prova de tal anulação para fazer valer o que havia alegado, o que não se verificou.
15 – Face ao exposto, e uma vez que se tem como provado o início, mas já não o fim do contrato de seguro de carta, presume-se a existência, ainda hoje, do mesmo contrato, nos termos do artº 349º do C.Civil.
16 – Então, como existe este seguro de carta a favor do condutor do veículo KC, e estando o mesmo a conduzi-lo dentro do âmbito da sua actividade, tal como ficou provado no ponto 49 da Fundamentação, é este o seguro que cobre o risco nesta situação, logo o que responde pelas indemnizações devidas pelos danos resultantes do mesmo sinistro.
17 – Sobre este entendimento, para além do previsto nos artºs 2º, nº 3, e 15º do DL 522/85, de 31 de Dezembro, assim se tem concluído na mais diversa Jurisprudência. A título de exemplo: Ac. R.P. de 6/02/1991; Ac. S.T.J. de 08/07/1993; Ac. R.P. de 17/04/1991, Ac. S.T.J. de 21/10/1992.
18 – O seguro de carta responde pelos danos causados pelo seu titular no exercício da sua actividade.
19 – Face a uma correcção da matéria de facto dada como provada, como existe o referido seguro de carta, do qual é titular o condutor do KC à altura do acidente, é este que terá de responder pelos danos resultantes do mesmo sinistro, bem como é o responsável pelo ressarcimento dos danos causados nos autores.
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A interveniente F... contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso e a confirmação da sentença recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Na 1ª instância foi dado como provado, com interesse para a decisão do presente recurso, o seguinte:
- No dia 09/08/1997, pelas 01H20M, ocorreu um acidente de viação na E.N. 1, ao Km 142,5, em Ranha, concelho de Pombal – al. A) dos Factos Assentes.
- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em A), o veículo ligeiro de passageiros, de matricula 31-39-KC, propriedade de D..., era conduzido por E... e o motociclo de matrícula 60-91-GC era conduzido por A..., e era transportada a segunda autora, Ana Catarina – al. B).
- Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 4109670151254, o proprietário do veículo KC transferiu para a ré C... a responsabilidade dos danos causados a terceiros emergentes da circulação daquele veiculo – al. C).
- O condutor do veículo KC fazia-o na qualidade de electricista-auto – resp. ao qº 54º da Base Instrutória..
- O segurado da ré C... tinha entregue o veiculo KC a E... para que este o levasse a uma oficina de Castro Daire para que aí (o mesmo Pedro José) viesse a proceder à reparação de alguns danos existentes no veículo a nível de farolim traseiro – qº 55º..
- E... celebrou, para segurar o risco inerente ao exercício da sua actividade, um seguro “vulgo” de carta de condução com a seguradora F..., S.A., titulado pela apólice nº 432225 – qºs. 77º e 78º.
- No âmbito do referido seguro, foi emitida apólice, com início em 12/04/96 e validade de um ano, conforme fls. 527 dos autos, certificado de seguro conforme fls. 529, bem como recibo, conforme fls. 528, tendo sido enviada a carta de fls. 531 a E..., onde lhe comunicam ser a seguradora credora da quantia de 119.225$00, por falta de pagamento dos prémios, dando-lhe um prazo até 13/11/96 para efectuar tal pagamento antes de recorrer a tribunal para a sua cobrança – qºs. 80º, 81º e 82º.
Com base nos documentos de fls. 527/531, e nos termos do artº 659º, nº 3, importa ter em consideração mais o seguinte:
- Na apólice do contrato de seguro a que se faz alusão nas respostas aos quesitos 77º, 78º, 80º, 81º e 82º, e de que se encontra cópia a fls. 527, consta, entre outros elementos, o seguinte: data de emissão - 96/06/07; início do contrato - 12/04/96; duração do mesmo - 384 dias e anos seguintes; características do veículo: marca – diverso; matrícula – diversos; categoria – seguro de carta; riscos garantidos – responsabilidade civil; capitais seguros – 120.000.000$00.
- No certificado de seguro a que se faz alusão nas respostas aos quesitos 80º a 82º, e de que se encontra cópia a fls. 529, consta, entre outros elementos, como seguro - seguro de garagista e como categorias de veículos seguros - veículos até 2.500 kgs de peso bruto.
- A carta a que se faz alusão nas respostas aos quesitos 80º, 81º e 82º, e de que se encontra cópia a fls. 531, tem o timbre de Fernando Brochado Coelho e Maria Teresa Brochado Coelho, Advogados, intitulando-se mandatários de F... Assurance
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).

Começa a recorrente por dizer que não concorda com alguns dos pontos tidos como assentes e provados na Fundamentação de Facto.
Parece-nos haver da parte da recorrente uma certa confusão entre a decisão proferida sobre a matéria de facto (que incide sobre os pontos controvertidos constantes da Base Instrutória) e a Fundamentação de Facto da sentença, que reproduz a matéria de facto constante dos Factos Assentes e das respostas dadas aos pontos da Base Instrutória.
Cremos que, face ao conteúdo das conclusões da alegação da recorrente - nomeadamente ao socorrer-se das declarações de uma testemunha, Domingos Tojal Soares -, o que ela pretende é impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto
Até porque só esta pode ser impugnada, nos termos dos artºs 690º-A e 712º.
Uma vez que os depoimentos foram gravados, vejamos se se mostram cumpridos os ónus impostos pelo aludido artº 690º-A.
Dispõe esta norma (na redacção anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto, atenta a data da propositura da acção) que, quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente obrigatoriamente especifique, sob pena de rejeição, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e quais os concretos meios probatórios, constantes da gravação, que impunham decisão diversa da recorrida e que, neste último caso, sob pena de rejeição do recurso, proceda à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação desses meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas.
Resulta deste normativo que devem ser indicados com clareza os pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, por referência à Base Instrutória onde estão enquadrados e, por outro lado, devem ser transcritas, mediante escrito dactilografado, as passagens da gravação desses meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas.
Ora, no presente caso, a recorrente não deu cumprimento à condição indicada em segundo lugar, pois não procedeu à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação do depoimento da testemunha Domingos Tojal Soares que invoca como fundamento do erro na apreciação das provas.
Assim sendo, há que rejeitar o recurso sobre a matéria de facto com base no depoimento da testemunha, conforme vem invocado pela recorrente, mantendo-se, por isso, a decisão proferida sobre tal matéria na 1ª instância.
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Alega a recorrente que a F... arguiu a nulidade do contrato de seguro de carta celebrado com o condutor do veículo KC, mas não conseguiu provar os motivos para tal anulação e, por isso, uma vez que se tem como provado o início, mas já não o fim do mesmo contrato, presume-se a sua existência, ainda hoje, desse contrato, sendo ele que responde pelas indemnizações devidas pelos danos resultantes do sinistro, em virtude de ter ficado provado que o condutor conduzia o veiculo dentro do âmbito da sua actividade.
Existem aqui duas questões a apreciar:
- Existia contrato de seguro de carta, válido e eficaz, à data do acidente.
- A condução do veículo KC era exercida no âmbito desse seguro.
1º questão.
A companhia de seguros F... afirmou no seu articulado que o seguro de carta vigorou durante cinco meses, entre 12 de Abril e 16 de Agosto de 1996, tendo sido por ela rescindido por falta de pagamento do prémio inicial, pelo que na data em que ocorreu o acidente não era o condutor do KC seu segurado há mais de um ano.
A prova da rescisão do contrato por falta de pagamento do prémio, tratando-se de facto impeditivo do direito invocado, competia àquela seguradora, de acordo com o disposto no artº 342º, nº 2, do Código Civil.
Esses factos foram incluídos nos pontos 78º a 82º da Base Instrutória, tendo-se provado, como se recorda, que E... (condutor do veículo KC) celebrou, para segurar o risco inerente ao exercício da sua actividade, um seguro de carta de condução com a seguradora F..., titulado pela apólice nº 432225, com início em 12/04/1996, com a duração de 384 dias e anos seguintes, e que lhe foi enviada uma carta, com o timbre de dois advogados, que se intitulam mandatários da F..., onde lhe é comunicado ser a seguradora credora da quantia de 119.225$00, por falta de pagamento dos prémios, dando-lhe um prazo até 13/11/1996, para efectuar tal pagamento antes de recorrer a tribunal para a sua cobrança.
Extrai-se deste factualismo que aquela seguradora não demonstrou, como lhe competia, que, na sequência dessa carta, o E... não pagou a quantia em dívida, e, muito menos, que rescindiu o contrato com ele celebrado.
É certo que, à data do acidente, vigorava o Decreto-Lei nº 105/94, de 23 de Abril, que estabelecia normas relativas ao pagamento dos prémios de seguros.
De acordo com este diploma, a seguradora encontrava-se obrigada, até 10 dias antes da data em que o prémio ou fracção era devido, a avisar, por escrito, o tomador de seguro, indicando essa data e o valor a pagar, devendo, obrigatoriamente constar desse aviso as consequências da falta de pagamento do prémio, nomeadamente a data a partir da qual o contrato era automaticamente resolvido, recaindo sobre a seguradora, em caso de dúvida, o ónus da prova relativo a esse aviso (artº 4º). Na falta de pagamento do prémio ou fracção na data indicada nos respectivos avisos, o tomador de seguro constituía-se em mora e, decorridos que fossem 60 dias após aquela data, o contrato seria automaticamente resolvido, sem possibilidade de ser reposto em vigor (artº 5º).
Ora, no presente caso, a F... não provou - já que nem sequer alegou - que tenha remetido ao E... o aviso em questão, alertando para a data e valor a pagar, com as consequências do não pagamento.
Assim como, embora tenha alegado, também não provou, como já dissemos, a falta de pagamento do prémio.
Por isso, não podemos considerar que o contrato foi automaticamente resolvido, tendo, antes, que se concluir que, dada a duração do contrato e sua renovação automática, ele se mantinha em vigor à data do acidente dos autos.
2ª questão.
Mas, estando o contrato em vigor, abrangeria ele a condução levada a efeito pelo E... na altura do acidente, de molde a responsabilizá-lo pelos danos provenientes desse mesmo acidente?
Na sentença recorrida excluiu-se a responsabilidade da F... com os seguintes argumentos:
Face ao que se provou, apenas se pode afirmar que a condução do veículo era feita pelo facto de o proprietário o ter entregue para ser levado para uma oficina, onde seria reparado. Assim, será legitimo perguntar se o trajecto efectuado estava já no âmbito da actividade de electricista-auto do seu condutor, podendo entender-se o facto provado de que o fazia nessa qualidade, com o facto, também provado, que havia sido entregue para o levar para uma oficina.
Mas, ainda que se admita que o fazia já nessa qualidade de elecrticista-auto, sempre importaria saber se essa actividade estava ou não no âmbito da cobertura do contrato celebrado pelo condutor do veículo com a interveniente F... em 1996 (seguro de carta) – e não se sabe por falta de prova no processo das suas cláusulas.
Antes de mais convém esclarecer que, embora conste do certificado de seguro - de que se encontra cópia a fls. 529 – como sendo de garagista o seguro contratado entre o E... e a F..., o que conta é o que consta da respectiva apólice, e que é que tal seguro é um seguro de carta.
Entre esses dois seguros existem diferenças, quanto à natureza e âmbito de cobertura: o seguro de carta (ou de automobilista) é facultativo (cfr. artº 2º, nº 4, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro) e cobre a responsabilidade civil emergente da utilização do veículo em qualquer circunstância, enquanto o seguro de garagista é obrigatório (cfr. nº 3 do mesmo artigo), circunscrevendo a garantia da responsabilidade civil aos casos em que o segurado utiliza o veículo por virtude das suas funções, no âmbito da sua actividade profissional (cfr. Ac. R.P. de 17/04/1991, CJ, T2-297).
Resulta deste esclarecimento que o presente caso está abrangido pelo contrato de seguro celebrado entre o E... e a F..., uma vez que o mesmo cobria a condução, pelo primeiro, de qualquer veículo automóvel, desde que incluído na categoria referida na respectiva apólice (veículos de peso bruto até 2.500 kg.) – não se tendo provado que o veículo ligeiro 31-39-KC tinha peso bruto superior a 2.500 Kg.
Mas, ainda que se exigisse que o E... conduzisse esse veículo por virtude das suas funções, no âmbito da sua actividade profissional, até isso se provou, como se vê das respostas aos quesitos 54º e 55º da Base Instrutória, segundo as quais, o condutor do KC (E...) o fazia – ou seja, conduzia tal veículo – na qualidade de eléctricista-auto, tendo-lhe sido entregue pelo segurado da ré C... para que o levasse a uma oficina de Castro Daire para que aí, o E..., viesse a proceder à reparação de alguns danos existentes no veículo a nível de farolim traseiro. Que isto é assim, no que diz respeito ao âmbito do seguro, resulta até da circunstância de a F..., no seu articulado, nada dizer relativamente a esse aspecto, invocando apenas a inexistência do contrato de seguro na altura do acidente.
Por outro lado, não obstante estarmos perante um seguro facultativo, tal facto não tem qualquer implicação a nível de cobertura, uma vez que, como vimos, o capital seguro correspondia, na altura, ao do seguro obrigatório (120.000.000$00), imposto pelo artº 6º do Decreto-Lei nº 522/85, com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 3/96, de 25 de Janeiro.
Conclui-se, assim, que o contrato de seguro celebrado entre o E... e a F... era, à data do acidente, válido e eficaz, abrangendo a condução do mesmo E..., enquanto condutor do veículo KC e interveniente no acidente, sendo aquela seguradora responsável pelas consequências desse acidente, no que diz respeito aos danos dele emergentes.
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Por isso, terá o recurso de proceder, com a absolvição da ré C... do pedido e a condenação, em sua substituição, da F....
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em dar provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida na parte em que condenou a ré C... nos pedidos formulados pelos autores e pelo I.S.S.S., a qual é absolvida de tais pedidos, condenando-se, em sua substituição, a F... no pagamento das importâncias arbitradas na sentença aos autores e I.S.S.S.
Custas, nesta e na 1ª instância, a cargo da F....