Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
185/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: DANOS PATRIMONIAIS
PRESUNÇÃO DE CULPA
CONTRATO DE SEGURO
NULIDADE
Data do Acordão: 05/30/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARA MISTA DE COIMBRA - 2ª SECÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 492.º, N.º 1 E 493.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL E ARTIGO 446.º DO CÓDIGO COMERCIAL.
Sumário: 1. O artigo 492.º, n.º 1, do Código Civil não estabelece uma responsabilidade objectiva do proprietário, mas uma mera presunção de culpa.
2. No art. 493.º, n.º 1, do Código Civil, não se responsabiliza o proprietário, mas sim quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar.

3. Se ocorreram danos num rés-do-chão de um prédio em propriedade horizontal, provindos da rotura dum termoacumulador no primeiro andar, o inquilino responde por eles, nos termos do artigo 493.º, n.º 1 do Código Civil. O proprietário pode responder nos termos d artigo 492.º, n.º 1.

4. Para a presunção de culpa do art. 492.º do Código Civil funcionar é necessário provar-se que a “ruína”, total ou parcial, decorre de vício de construção ou de defeito de conservação.

5. Demonstrando-se que o termoacumulador, instalado numa fracção habitacional, em que ocorreu uma fuga de água, causadora de danos nas fracções inferiores, é “já muito antigo”, compete aos proprietários da fracção em que o mesmo está instalado demonstrar que procederam à sua normal manutenção/inspecção.

6. O tomador de seguro deve declarar todas as circunstâncias de que ele deverá razoavelmente ter conhecimento e que deva esperar que influenciem a avaliação, aceitação e manutenção do risco por um segurador prudente.

7. Não se pode dizer que se esteja perante alterações de circunstâncias, ou que era expectável, para um segurado normal e prudente, ter que ser participado à seguradora o facto de ter arrendado a fracção habitacional, que deixou de ser a sua residência principal.

8. O art. 446.º do Código Comercial – embora imponha ao segurado o dever de participar ao segurador os factos e circunstâncias supervenientemente agravantes do risco nos 8 dias seguintes à sua ocorrência – apenas tem em mente as alteração do risco que consistam num aumento apreciável ou permanente do risco ou que conduzam a um aumento do prémio.

9. Não sendo esse o caso do segurado que arrendou a fracção habitacional, deve manter-se a validade do seguro e a consequente responsabilidade da seguradora.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório
A..., com sede na Rua Principal, Telhado, Figueira do Lorvão, Penacova, instaurou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra B... e esposa, C..., residentes na Rua Carlos Seixas, 223, 2º esq., em Coimbra, e Companhia de Seguros D..., com sede na Rua Andrade Corvo, 32, em Lisboa, pedindo a sua condenação solidária a pagar-lhe a quantia de 24.786,85 euros, acrescida de juros desde a citação.
Alegou para tal que se dedica à comercialização de mobiliário e tem instalado um estabelecimento comercial na fracção “J” do prédio urbano sito na Rua Brigadeiro Cardoso, n.º 340, em Coimbra; e que os réus B... e esposa são donos da fracção “H” desse prédio, fracção que se situa por cima do seu estabelecimento comercial.
No dia 6.2.02, o termoacumulador existente na fracção “H” rebentou e provocou uma inundação no seu estabelecimento, que danificou a quase totalidade do mobiliário ali exposto para venda, no valor global de 18.810,49 euros; para além disso, danificou a instalação eléctrica, cuja reparação importou em 660,59 euros, as paredes e o tecto da fracção, importando a sua reparação e pintura em 1.199,05 euros; que na limpeza da fracção despendeu a quantia de 116,72 euros; e que para a realização de tais trabalhos manteve encerrado o estabelecimento durante 15 dias, deixando de auferir os lucros que realizaria, num total de 4.000 euros.
Alegou ainda que o réu B... celebrou com a ré Companhia de Seguros D..., relativamente ao imóvel/fracção “H”, um contrato de seguro do ramo risco múltiplo, SPS Habitação mais, o qual cobre os danos causados pelo sinistro ocorrido no dia 06/02/02.

A ré seguradora, na contestação, aceitou o contrato de seguro outorgado com os donos da fracção “H” e a participação da inundação e danos na fracção “J”, mas alegou que eles não informaram que eram emigrantes e a fracção estava arrendada, pelo que o contrato se considera automaticamente resolvido. Mais referiu que o termoacumulador não rebentou; a água libertou-se por avaria daquele equipamento, que, sendo antigo, sofreu destemperamento na estrutura do metal interno de aquecimento de água; por outro lado, aquele equipamento não integra a fracção na sua origem, tendo sido instalado pelos seus donos, o que o exclui do âmbito do contrato, que abrange a fracção e não o recheio. Aduz que os prejuízos, no entanto, atingiram apenas o valor de 10.926,18 euros.

Os réus B... e esposa admitem a inundação provocada na fracção da autora e discordam da extensão dos danos.
Sustentam, porém, que a responsabilidade sempre caberá à seguradora, uma vez que na proposta de seguro referiram que a sua residência e local de cobrança do seguro era a Rua Alexandre Herculano, 1, 1º, o que não criou nem alterou o risco, continuando a fracção a ser ocupada para a residência do inquilino. Referem que as suas declarações não contiveram qualquer omissão e defendem que as cláusulas do artigo 12º são nulas, por permitirem a resolução do contrato sem motivo justificado.

Na réplica, a autora rebate a posição das rés e defende que a causa da fuga da água do termoacumulador não se deveu a avaria, sendo certo que, mesmo em tal caso, é sobre o proprietário das coisas móveis e imóveis que incumbe o dever de manutenção, conservação e vigilância.

Realizada a audiência, a Mm.ª Juíza, julgou a acção parcialmente procedente, condenando solidariamente os réus, B..., C... e Companhia de Seguros D..., a pagar à autora, A..., a quantia de 18.053,07 euros, e ainda a que se vier a fixar ulteriormente quanto aos danos derivados do encerramento do estabelecimento comercial até ao valor de 4.000 euros, sendo a responsabilidade da seguradora limitada a 17.692,01 euros, quantias a que acrescem juros de mora, à taxa anual de 4%, desde a citação até efectivo pagamento, no mais absolvendo os demandados do pedido.

Inconformada com tal decisão, interpôs a R. Companhia de Seguros D..., recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue a acção improcedente.

Termina a sua alegação com conclusões em que, em síntese, sustenta:

- Não ficaram provados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual dos seus segurados, uma vez que, para funcionar a presunção de culpa do art. 492.º do CC, teria que ficar provado que a rotura do termoacumulador se ficou a dever a vício de construção ou defeito de conservação, sendo que tal matéria – defeito de conservação – não foi nos autos sequer alegada.

- Ignorava a apelante que os seus segurados, na vigência do contrato de seguro, haviam emigrado e dado de arrendamento o local seguro, circunstâncias caracterizadoras do risco na proposta do contrato de seguro e que não lhe foram oportunamente comunicadas pelos segurados, o que implicou a imediata resolução do contrato de seguro e a sua desvinculação contratual

Os AA. responderam, terminando as suas contra-alegações sustentando, em síntese, que não ocorrem quaisquer nulidades, vícios, deficiências ou erros de julgamento, devendo a sentença ser mantida na íntegra.

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

II – Fundamentação de Facto
São os seguintes os factos apurados – cronologicamente alinhados – com relevo para a apreciação do “fundo” do recurso:
1. A autora, constituída por escritura pública de 27.12.93, matriculada na CRP de Penacova sob o n.º 178/940106, dedica-se à comercialização de mobiliário.
2. A autora tem um estabelecimento comercial de venda de mobiliário instalado na fracção designada pela letra “J”, correspondente ao rés-do-chão, lado esquerdo, do prédio urbano sito no n.º 340 da Rua Brigadeiro Correia Cardoso, em Coimbra, inscrito na matriz predial da freguesia de Santo António dos Olivais sob o n.º 7261 e descrito na CRP sob o n.º 01047/210987.
3. Os réus B... e esposa são donos e legítimos possuidores da fracção, para habitação, designada pela letra “H”, correspondente ao 1º andar, lado esquerdo posterior, do prédio urbano sito no n.º 340 da Rua Brigadeiro Correia Cardoso, em Coimbra, inscrito na matriz predial da freguesia de Santo António dos Olivais sob o n.º 7261 e descrito na CRP sob o n.º 01047/210987.
4. A fracção dos réus B... e esposa localiza-se por cima da fracção onde a autora tem instalado o seu estabelecimento comercial de venda de mobiliário
5. Em Fevereiro de 2002, ocorreu na fracção “J” uma inundação. Em 7.2.02, a autora participou uma inundação nas suas instalações à PSP e à ré D.... Em 6.3.02, a autora apresentou à ré D... um relatório dos móveis, candeeiros, estofos e decorações danificados.
6. O réu B... celebrou com a ré Companhia de Seguros D..., relativamente ao imóvel/fracção “H”, um contrato de seguro do ramo risco múltiplo, SPS Habitação mais, titulado pela apólice n.º 941/30538068.
7. O contrato aludido em 6. garante, além do mais, os riscos de danos por água, abrangendo os danos causados aos bens seguros, de carácter súbito ou imprevisto, em consequência de rotura, defeito, entupimento ou transbordamento da rede interna de distribuição de água e esgotos do edifício (incluindo nestes os sistemas de esgoto de águas pluviais onde se encontrem os bens seguros), assim como dos aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água do mesmo edifício e respectivas ligações. Salvo convenção em contrário, devidamente expressa nas Condições Particulares, e pagamento do respectivo sobreprémio, não ficam garantidos os sinistros ocorridos em habitações não permanentes, sem prejuízo do disposto no ponto 17 do artigo 4º (Cobertura Base).
8. No contrato identificado em 6. está inserida uma cláusula que determina que o segurado participe à seguradora quaisquer factos ou circunstâncias que alterem as condições do risco do seguro, no prazo de oito dias a contar da data em que deles tenha conhecimento, podendo a seguradora aceitar ou não a modificação do risco e alterar o prémio. No caso de falta de comunicação do tomador do seguro no prazo marcado ou da inexactidão das declarações por ele prestadas, o seguro produzirá efeitos, mas, em caso de sinistro, a indemnização final reduzir-se-á proporcionalmente à diferença do prémio cobrado e aquele que cobrará para o risco agravado. Se se provar a má fé do tomador do seguro e que as omissões ou falsas declarações pudessem ter influído na manutenção do contrato, este considerar-se-á automaticamente resolvido, com efeito à data em que comunicação deveria ter sido efectuada ou naquela em que as falsas declarações foram prestadas.
9. Na proposta de seguro os réus B... e esposa declararam como residência e local de cobrança a Rua Alexandre Herculano, n.º 1, 1º, em Coimbra. Nos elementos para a caracterização do risco assinalaram com um x a menção residência principal.
10. Em 8.2.02 o réu B... participou à ré D... uma inundação em virtude de ruptura do cilindro de aquecimento de água instalado na fracção “H” e fugas de água, que provocaram infiltrações ao nível da fracção “J”.
11. Em 6 de Fevereiro de 2002, o termoacumulador existente na fracção “H” sofreu uma ruptura com fuga de água.
12. E provocou uma inundação que se espraiou para a fracção “J”.
13. A ruptura com fuga de água do termoacumulador ocorreu durante a madrugada, numa altura em que não se encontrava qualquer pessoa na fracção “J”.
14. A água originada pela ruptura do termoacumulador escorreu, durante horas, para a fracção “J.
15. Inundando-a, sem ser possível acudir ao mobiliário que lá se encontrava.
16. Inundação que determinou que o tecto e as paredes da fracção “J” apresentassem manchas de humidade e pintura descascada.
17. Foi necessário demolir e substituir as placas existentes no tecto falso e proceder à pintura de tectos e paredes.
18. No que a autora despendeu a quantia de 1.199,05 euros.
19. E os roupeiros, mesas de cabeceira, camas, cómodas, escrivaninhas, cadeiras, sapateiras, móveis para televisão, cadeirões, sofás, espelhos, mesas, estantes secretárias, arcas, aparadores, porta CD´s, colunas cristaleiras e louceiros, que se encontravam expostos para venda, incharam com água, apodreceram e ficaram destruídos.
20. O valor total desses móveis era de 16.077,34 euros.
21. Em virtude da inundação a instalação eléctrica da autora, tomadas e projectores afixados no tecto para iluminação, ficaram encharcados em água e foi necessário proceder à sua limpeza e reparação.
22. O que importou em 660,59 euros.
23. A autora teve de mandar proceder à limpeza do imóvel e à aspiração de água que se encontrava no pavimento.
24. O que lhe implicou custos no valor de 116,72 euros.
25. Para a realização das obras e reparações a autora manteve encerrado o estabelecimento durante 15 dias.
26. Nesse período, a autora não auferiu os lucros correspondentes, de valor não apurado.
27. A fracção “H” estava arrendada, em 6.2.02, a E....
28. O réu B... estava emigrado e, na proposta de seguro, não está mencionado o arrendamento da fracção.
29. Em 6 de Fevereiro de 2002, libertou-se água do termoacumulador de 75 litros, da marca “Termobrasa”, instalado na despensa, adstrita à cozinha da fracção “H”, vertendo águas.
30. O imóvel em que se insere a fracção “H” foi construído em meados do ano de 1987( Na resposta ao quesito 23.º escreveu-se “1997”; porém, trata-se de manifesto lapso, decorrente da R. D... (art. 20.º), decerto também por lapso – uma vez que o registo da escritura da propriedade horizontal do imóvel é de 21/09/87 (cf. fls. 17) – ter invocado “que o imóvel foi construído em 1997”.).
31. Em 6 de Fevereiro de 2002, as diversas fracções do edifício têm instalados esquentadores e termoacumuladores.
32. O termoacumulador, devido ao seu uso e estado (trata-se dum equipamento já muito antigo), sofreu um destemperamento na estrutura de metal interno de aquecimento de água; facto que não é visível do exterior do equipamento( Facto que se adiciona e do qual se explicará, infra, a razão do seu adicionamento.).

III – Fundamentação de Direito
Versam os autos, em síntese, sobre a concreta e seguinte situação:
Os RR B... e esposa são donos duma fracção habitacional – dada de arrendamento – em cujo termoacumulador ocorreu uma fuga de água, que causou uma inundação e estragos na fracção da A., situada imediatamente por baixo da fracção dos RR. B... e esposa; a R. D..., aqui apelante, é demandada na qualidade de seguradora dos RR. B... e esposa.
A apreciação e decisão do recurso, delimitado pelas conclusões da alegação da apelante (art. 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do CPC), passa pelas 2 seguintes questões: Por saber se ficaram provados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e, em caso afirmativo, por saber se o contrato de seguro se deve considerar resolvida, por causa e a partir da data da verificação dum agravamento, não participado, do risco.

Quanto à 1.ª questão – sobre a prova dos pressupostos da responsabilidade civil:
A discordância da apelante, em relação ao decidido, reside, nesta questão, no facto de – não se tendo alegado e/ou provado, segundo o apelante, o pressuposto de facto de que depende o funcionamento do art. 492.º, n.º 1, do CC – não poder ser feito uso da presunção de culpa constante de tal preceito legal, o que implica a irresponsabilidade dos RR B... e esposa e, em consequência, a irresponsabilidade da apelante.
Refira-se – por ser justo – que a interpretação e as considerações jurídicas que faz a propósito do art. 492.º, n.º 1, do CC são exactas e irrepreensíveis.
Efectivamente, o artigo 492.º, n.º 1, faz depender a presunção de culpa (e a respectiva inversão do ónus da prova) no mesmo contida da verificação de determinados pressupostos de facto( Cf. Ac. STJ de 28/04/77, in. BMJ 266.º, pág. 161.), mais exactamente, de o edifício ou obra haverem ruído por vício de construção ou defeito de conservação.
Por outras palavras e como é pacífico em toda a doutrina e jurisprudência, o art. 492.º, n.º 1, do CC não estabelece uma responsabilidade objectiva do proprietário, mas uma mera presunção de culpa.
A tal propósito, é o Prof. Vaz Serra, autor dos trabalhos preparatórios que conduziram ao texto actual do art. 492.º, completamente claro e explícito, designadamente quando deixou escrito:
“Pode dizer-se que, servindo a casa ou outra construção para satisfação de necessidades do seu proprietário, este deve, como contrapartida, suportar as desvantagens correspondentes e, entre elas, os danos que a casa ou outra construção causar. Mas este princípio não pode exagerar-se, só sendo aplicável onde um especial perigo inerente a coisas ou actividades de alguém aconselhe a afastar a regra geral da culpa como requisito da responsabilidade Se tal princípio fosse em absoluto verdadeiro, instaurar-se-ia a regra da responsabilidade objectiva.
Parece, pois, não dever aceitar-se a responsabilidade objectiva do proprietário.
Mas também a orientação do nosso Código (de Seabra) não se afigura de manter. O proprietário não deve responder apenas quando se prove a sua culpa. Parece dever haver, pelo menos, uma presunção de culpa, com o que se dispensará a vítima de provar a culpa dele. Por um lado, esse ónus seria demasiado, pois ele poderia ter grande dificuldade em demonstrar que o proprietário teve culpa, isto é, não adoptou as cautelas necessárias e devidas para conjurar o perigo; por outro lado, o proprietário conhecendo ou devendo conhecer melhor a coisa e o que fez, melhor pode também fornecer a prova respeitante à sua própria culpa”( In BMJ n.º 88, pág. 27 e 28.)
Prof. Vaz Serra que é, na interpretação do art. 492.º, n.º 1, do CC, recorrentemente citado, também para se dizer que na previsão do preceito está uma perigosidade não tanto da actividade ou do meio, mas da anomalia, não sendo suficiente dizer-se que o próprio evento demonstra o vício de conservação ou o defeito de conservação.

Dito isto – expressamente referido na decisão apelada – parece forçoso ter que reconhecer que a razão está com a apelante.
A própria apelada não ataca directamente as considerações jurídicas da apelante, preferindo antes sustentar ser a situação sub-judice enquadrável, não no art. 492.º do CC, mas sim no art. 493.º do CC.
Trata-se de ponto algo controverso.
A propósito do articulado que esteve na origem do actual art. 492.º escreveu o Prof. Vaz Serra que “(…) se o dono de uma casa, por exemplo, deve responder pelos danos causados por vícios de construção ou falta de manutenção dela, igualmente deve responder por tais vícios ou falta o proprietário de qualquer outra obra unida à casa ou ao solo (…). A doutrina legal seria, portanto, aplicável, por exemplo, também a muros de tapagem ou de suporte, a diques, a monumentos, a pontes, a aquedutos, a pilares, a máquinas unidas ao prédio, a andaimes, a tendas, a poços, a passeios, a pontes, a canalizações, etc.( Local citado, pág. 33 e 34.)”
Em face de tais considerações, não pode o termoacumulador deixar de cair na previsão do art. 492.º ou por – em consonância com o alegado no art. 31.º da PI – ser uma parte integrante do edifício (cfr. art. 204.º, n.º 3, do CC) ou, então, por se considerar como configurando “ outra obra”.
Isto é, a aplicabilidade do art. 492.º não pode ser afastada.
O que não implica a automática inaplicabilidade do art. 493.º( Os art. 492.º e 493.º não são de aplicação alternativa.).
Se os RR. B... e esposa, proprietários da fracção, vivessem nela, era indiscutível, a nosso ver, que também o art. 493.º era ao caso aplicável; a dificuldade reside em a fracção estar, desde 2002, dada de arrendamento
É que, no art. 493.º, n.º 1, do CC, não se responsabiliza o proprietário, mas sim “quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar”
“Pode tratar-se do proprietário da coisa ou animal; mas não tem necessariamente de ser o proprietário (…). É a pessoa que tem as coisas ou animais à sua guarda quem deve tomar as providências indispensáveis para evitar a lesão. Pode tratar-se de um comodatário, do depositário, do credor pignoratício, etc.”( A. Varela, CC Anotado, I.º Vol., 2.ª ed., pag. 430.)
No caso, estamos, recorda-se, perante uma rotura, com fuga de água, num termoacumulador duma fracção habitacional dada de arrendamento.
Assim, não nos parece que estando a fracção, onde ocorreu a rotura do termoacumulador, dada de arrendamento se possa dizer que o senhorio continue a ter tal fracção em seu poder; uma vez que “poder” significa, aqui, “poder de facto” e não “poder jurídico”.
Quem tem a fracção em seu poder – justamente por lhe ter sido proporcionado o seu gozo (1022.º do CC) – é o inquilino, que é a pessoa contra a qual, a nosso ver, pode ser usada a presunção de culpa constante do art. 493.º do CC.
Em síntese, o art. 493.º – embora aplicável às infiltrações de água provenientes de fracções superiores à do lesado – é apenas aplicável quando é accionado quem tiver o poder de facto sobre a fracção, o que não é o caso dos RR. da acção.
Será pois no estrito âmbito do art. 492.º que, no caso, se poderá estabelecer a responsabilidade dos RR.
Retomemos pois o raciocínio que vínhamos fazendo a partir do art. 492.º do CC.
Não obstante o que atrás se referiu – sobre as judiciosas considerações jurídicas da apelante sobre a interpretação do art. 492.º do CC – afigura-se-nos que os RR. podem e devem ser responsabilizados com fundamento em tal disposição legal.
Sobre o proprietário de um imóvel recai a obrigação de o manter – incluindo a rede de abastecimento de água e os equipamentos que nele estão incorporados ou instalados – em bom estado de funcionamento e de conservação; aliás, o RGEU manda mesmo que o proprietário repare e beneficie o seu imóvel de 8 em 8 anos.
É certo, como já se referiu, que a mera ocorrência dum “sinistro/evento” não prefigura ou demonstra a inadequada conservação por parte do proprietário.
Porém, no caso, se bem atentarmos, temos mais elementos além da mera ocorrência do “sinistro/evento”.
A própria apelante alegou( Cf. art. 16.º e 17.º.) – sustentada na peritagem que mandou efectuar e cujo relatório se encontra junto de fls. 203 e ss. – que “o termoacumulador e/ou cilindro, devido ao seu uso e estado (trata-se dum equipamento já muito antigo), sofreu um destemperamento na estrutura de metal interno de aquecimento de água”; logo acrescentando, tendo em vista afastar a culpa do seu segurado, que tal “facto não é visível do exterior do equipamento”.
É verdade que tais alegações foram vertidas na base instrutória – quesitos 21.º e 22.º – tendo merecido resposta negativa, porém, tratando-se, como vamos demonstrar, de factos desfavoráveis à tese da apelante – de verdadeiras confissões (352.º do CC) – logo deviam ter sido dados como provados, razão por que, num exame crítico das provas, os considerámos provados e os acrescentámos aos factos provados.
A questão é a seguinte:
Para a presunção de culpa do art. 492.º do CC funcionar é necessário provar-se que a “ruína”, total ou parcial, decorre de vício de construção ou de defeito de conservação.
Porém, como é evidente, o vício de construção ou o defeito de conservação podem provar-se por todos os meios, incluindo as presunções( Cf. Vaz Serra, BMJ n.º 88, pág. 14 e 36.)
Assim, sustentando-se que a fuga de água no termoacumulador ocorreu devido ao seu uso e a ser um equipamento já muito antigo, impõe-se concluir, por presunção (349.º e 351.º do CC), que tal fuga decorre de defeito de conservação.
Efectivamente, deve para tal efeito ser considerado como “defeito de conservação” quer o que resulta da omissão das reparações normais e prudentes quer o que decorre da não substituição dos equipamentos que, pela sua vetustez, podem a qualquer momento causar imprevistos contratempos e acidentes.
É verdade – respeitando a indivisibilidade da alegação da apelante – que o destemperamento na estrutura de metal interno de aquecimento de água não era visível do exterior do equipamento, porém, tal circunstância não constitui a prova de que não houve culpa da sua parte.
Quando muito, constitui a prova de que a sua negligência não foi consciente.
Sendo o termoacumulador “um equipamento já muito antigo” os RR. B... e esposa só cumpririam integralmente o dever de conservação e manutenção a que, na qualidade de donos da fracção, estavam obrigados, fazendo uma regular reparação/inspecção geral ao termoacumulador e/ou procedendo à sua substituição.
É justamente por causa disto – por tal não haver sido alegado e/ou provado – que, no contexto do presente “sinistro”, a fuga de água do termoacumulador se deve considerar como, provadamente, decorrente da defeito de conservação dos proprietários da fracção.
É que, no contexto dum litígio como o presente, a prova da regular manutenção/reparação/inspecção do termoacumulador tem que ser colocada – numa equitativa repartição do ónus probatório – a cargo dos proprietários da fracção.
Simplificando, podemos dizer:
Demonstrando-se que o termoacumulador, instalado numa fracção habitacional, em que ocorreu uma fuga de água, causadora de danos nas fracções inferiores, é “já muito antigo”, compete aos proprietários da fracção em que o mesmo está instalado – para que não se possa extrair, em seu desfavor, que a fuga de água decorre de “defeito de conservação” “causado” pela vetustez – demonstrar que procederam à sua normal manutenção/inspecção.
Solução esta, aliás, que está inteiramente de acordo com a “realidade da vida”, que ao direito cumpre regular e organizar com rectidão e equilíbrio.
Quem, num prédio em propriedade horizontal, sofre infiltrações provenientes de fracções superiores, não está, por regra, na melhor situação para demonstrar os exactos e concretos contornos da omissão do dever de conservação dos proprietários das fracções superiores, pelo que não se deve ser muito exigente na prova da omissão de tal dever de conservação, tendo-se por suficiente uma espécie de “princípio de prova” – uma vez que os lesantes, caso não tenham culpa, facilmente a neutralizarão tal “princípio de prova”.
Enfim, face ao exposto, deve considerar-se como tendo ficado provado o pressuposto – defeito de conservação – de que depende o funcionamento da presunção de culpa do art. 492.º, n.º 1, do CC, razão por que improcede a 1.ª questão suscitada no presente recurso.

Quanto à 2.ª questão – sobre resolução do contrato de seguro, por causa e a partir da data da verificação dum agravamento, não participado, do risco:
Sustenta a apelante que, após a celebração do contrato de seguro, ocorreram circunstâncias que alteraram as condições do risco seguro, alterações que não lhe foram comunicadas e que têm influência nas condições do seguro, razão por que, nos termos dos art. 10.º, 12.º, n.º 1 e 4, das Condições Gerais, e 446.º do C. Comercial, se deve o contrato considerar como automaticamente resolvido desde a data em que as alterações deviam ter sido comunicadas.
Mais refere, concretizando as circunstâncias que alteraram as condições do risco seguro, que os segurados não lhe comunicaram que eram emigrantes e que o local seguro estava arrendado; acrescentando, ainda, que tais circunstâncias faziam parte do questionário entregue aquando da celebração do contrato – tendo os segurados respondido que seguravam a fracção na qualidade de proprietários e que a residência era “principal” – pelo que se configuram como circunstâncias essenciais na caracterização do risco seguro.
Não nos parece, antecipando desde já a conclusão, que assista razão à apelante.
Vejamos porquê:
É certo, não se olvida, que a seguradora baseia toda a sua prestação nas declarações do tomador do seguro, nas quais deve ter toda a confiança; e que, em consequência, deve ser conferida relevância às inexactidões, omissões e reticências, designadamente, quando possam influir sobre a existência ou condições do contrato de seguro
É igualmente verdade que, sendo o contrato de seguro, um contrato de execução sucessiva, incumbe ao tomador do seguro declarar o risco, quer por ocasião da formação do contrato, quer durante a sua vigência; uma vez que estamos, em ambas as situações, perante a comunicação ao segurador de circunstâncias que influem sobre o risco.
Tão pouco se contesta que a obrigação de declarar do tomador do seguro também compreende, além das respostas ao habitual questionário (elemento de facilitação concedido pela seguradora ao segurado), todos os factos e circunstâncias dele conhecidas (ou que não devesse desconhecer) e cuja relevância para a formação do contrato esteja ao alcance dum segurado diligente e com capacidade normal.
Dito de outro modo, o tomador de seguro deve declarar todas as circunstâncias de que ele deverá razoavelmente ter conhecimento e que deva esperar que influenciem a avaliação, aceitação e manutenção do risco por um segurador prudente.
Ora, é justamente isto que – no concreto contexto da proposta de seguro, respectivo questionário e condições gerais da apólice – não ocorre; isto é, não se pode dizer que se esteja perante alterações de circunstâncias que era expectável, para um segurado normal e prudente, terem que ser participadas.
Efectivamente, não sendo o tomador um técnico de seguros, não é alcançável a um segurado normal, em face das perguntas contidas na proposta e no questionário, concluir estar perante alterações das circunstâncias; ainda que não essenciais para a caracterização do risco.
Após dar a fracção de arrendamento, continuou o tomador a ser o seu proprietário, pelo que é razoável que continue a considerar exacta e precisa a resposta que, no momento da celebração do contrato, deu à pergunta sobre a “qualidade em que segura”.
Após dar a fracção de arrendamento, continuou a fracção a servir de residência “principal”, agora do inquilino, pelo que é igualmente razoável que continue a considerar exacta e precisa a resposta que, no momento da celebração do contrato, deu à pergunta sobre o “tipo de residência”.
Por outro lado, – mesmo admitindo a ocorrência duma alteração das circunstâncias – a seguradora, aqui apelante, não demonstrou, como lhe competia, que, caso lhe tivesse sido comunicada tal alteração das circunstâncias, não manteria o seguro ou, então, conservá-lo-ia, noutras condições.
Costuma considerar-se, é certo, que devem considerar-se como influenciando a avaliação do risco as questões relativamente às quais existiam na proposta de seguro perguntas específicas.
Porém, revestindo, como já referimos, tais perguntas e respostas alguma “ambiguidade” e situando-se a eventual omissão declarativa do tomador, não no momento da declaração inicial do risco, mas durante a vigência do contrato, importava também, para extrair relevo da omissão declarativa, que aqui tivesse ficado provado que o conteúdo e sentido das cláusulas gerais vertidas nos art. 10.º 12.º das condições gerais da apólice lhe foi devidamente comunicado e explicado, de acordo e nos termos dos art. 5.º e 6.º do DL 446/85 (diploma sobre as cláusulas contratuais gerais)
Efectivamente, não basta dizer que, nos termos do art. 12.º, n.º 4, das condições gerais, ocorreu uma alteração do risco e que esta, não tendo sido comunicada, gera a automática resolução do contrato.
Sempre seria necessário alegar e provar – o que não aconteceu – que foi explicado ao segurado que, situações como a presente, configuram, para a seguradora, uma alteração/agravamento do risco seguro, a comunicar obrigatoriamente.
É que, acrescenta-se ainda, o art. 446.º do C. Comercial – embora imponha ao segurado o dever de participar ao segurador os factos e circunstâncias supervenientemente agravantes do risco nos 8 dias seguintes à sua ocorrência – apenas tem em mente as alteração do risco que consistam num aumento apreciável ou permanente do risco ou que conduzam a um aumento do prémio( Cf. José Bento, Direito dos Seguros, pág. 174; e José Vasques, Contrato de Seguro, pág. 228.), o que, face ao que ficou provado, não se pode dizer que seja o caso.
Como bem se observa na sentença recorrida, “não se crê que o arrendamento do imóvel objecto do seguro ou a emigração dos seus donos o tenha exposto a maior risco”; e, para o art. 446.º do C. Comercial poder funcionar, a exposição a uma maior risco até teria que ser apreciável.
Enfim, no caso, a “desvinculação” contratual da apelante teria sempre que se situar no âmbito da aplicação das cláusulas constantes das condições gerais da apólice, cláusulas que – como cláusulas contratuais gerais que são – estão sujeitas à prova, a cargo da apelante e não efectuada, da respectiva comunicação e informação, bem como a regras de interpretação favoráveis ao tomador (cfr. art. 5.º, 6.º e 11.º do DL 446/85), o que, tudo somado, equivale a dizer que também improcede a 2.º questão suscitada no presente recurso.


Impõe-se pois – uma vez que a tais questões se circunscreve o âmbito da presente apelação, não estando em causa o montante da indemnização e o respectivo cálculo – concluir que improcede tudo o que se invoca na alegação recursiva, o que determina o naufrágio do recurso e a confirmação do sentenciado na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam, nem viola qualquer uma das disposições indicadas.


IV – Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e consequentemente confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.

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Coimbra, 30/05/06