Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
329/07.7TBVIS-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: MANDATO FORENSE
HONORÁRIOS
CAUSA DE PEDIR
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VISEU – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 312º, 315º E 325º DO C. CIVIL.
Sumário: I. O mandato forense é constituído por todos os actos praticados pelo advogado no processo, tenham sido ou não todos eles quantificados para efeitos da nota de honorários.

II. Na ação em que é pedido o pagamento dos honorários apenas os actos identificados na nota de honorários integram a causa de pedir.

III. Sendo invocada a prescrição presuntiva do pagamento – artigo 312.º do Código Civil –, o respetivo prazo inicia-se a partir do último acto processual praticado no exercício do mandato, ainda que este não faça parte da nota de honorários.

IV – Os actos praticados pelo mandatário que não constem da nota de honorários e tenham sido alegados após a contestação, apenas para determinar o termo inicial do prazo da prescrição presuntiva, não são factos essenciais – artigo 5.º do CPC – e podem ser levados em consideração pelo tribunal mesmo que não constem da petição inicial.

V – O reconhecimento da dívida de honorários antes de concluído o prazo da prescrição presuntiva interrompe o prazo prescricional - artigos 315.º e 325.º do Código Civil.

Decisão Texto Integral:






Sumário:

I. O mandato forense é constituído por todos os atos praticados pelo advogado no processo, tenham sido ou não todos eles quantificados para efeitos da nota de honorários.

II. Na ação em que é pedido o pagamento dos honorários, apenas os atos identificados na nota de honorários integram a causa de pedir.

III. Sendo invocada a prescrição presuntiva do pagamento – artigo 312.º do Código Civil –, o respetivo prazo inicia-se a partir do último ato processual praticado no exercício do mandato, ainda que este não faça parte da nota de honorários.

IV – Os atos praticados pelo mandatário que não constem da nota de honorários e tenham sido alegados após a contestação, apenas para determinar o termo inicial do prazo da prescrição presuntiva, não são factos essenciais – artigo 5.º do CPC – e podem ser levados em consideração pelo tribunal mesmo que não constem da petição inicial.

V – O reconhecimento da dívida de honorários antes de concluído o prazo da prescrição presuntiva interrompe o prazo prescricional - artigos 315.º e 325.º do Código Civil.


*

Recorrente …………………..A...;

Recorrida……………………M...;

ambos melhor identificados nos autos

I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto da decisão final e insere-se numa ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, inicialmente instaurada como injunção por A... contra M...

O Autor pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €14.347,88, a título de capital, acrescida de juros vincendos até integral pagamento, com fundamento na prestação de serviços de advocacia.

A Ré deduziu oposição alegando o pagamento da dívida e a prescrição presuntiva prevista no artigo 317.º, al. c) do Código Civil.

Realizou-se a audiência de julgamento e após foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto o Tribunal julga procedente a presente ação e, em consequência, decide:

a) Não julgar verificada a prescrição presuntiva a que se reporta o art. 317º, al. c) do Código Civil;

b) Condenar a ré a entregar ao autor a quantia de €14.347,88, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a notificação da injunção e até efetivo e integral pagamento.

Custas eventualmente devidas a juízo a cargo da ré, sem prejuízo do beneficio de apoio judiciário com que litiga.

Valor da ação: o já fixado a fls. 71. Registe e notifique.»

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte da Demandada, cujas conclusões são as seguintes:

...

49ª – A douta sentença recorrida violou o disposto no artigo 5º e n.º 5 do artigo 607º, ambos do Código de Processo Civil e artigos 224º, 312º, 313º, alínea c) do artigo 317º, 342º, 344º, 350º, todos Código Civil e o artigo 105º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Pelo exposto REQUER a Vossas Excelências se dignem considerar procedente a presente apelação e, consequentemente, absolver-se a Ré do valor peticionado nos presentes autos a título de honorários, considerando que a Ré procedeu ao pagamento do valor inscrito na nota de honorários;

Se assim não se entender, deverá considerar-se verificada a prescrição presuntiva a que alude a alínea c) do artigo 317º do Código Civil.

c) Contra-alegou o Autor começando por argumentar que o recurso relativo à impugnação da matéria de facto não preenche os requisitos para a sua admissibilidade, tendo depois concluído do seguinte modo:

...

II. Objeto do recurso.

O âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, se as houver, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as atinentes ao mérito da causa.

As questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 – (In)admissibilidade do recurso.

A primeira questão colocada pelo recurso consiste em verificar se assiste razão ao Autora quando alega que o recurso deve ser imediatamente rejeitado no que respeita à impugnação da matéria de facto porque não cumpre os requisitos previstos no art. 640º do CPC.

2 – Em segundo lugar, caso a primeira questão não tenha procedido, vêm as questões relativas à impugnação da matéria de facto, ou seja:
(I) – A recorrente pretende que os factos identificados sob os pontos 6 e 8 dos factos provados passem a integrar os factos não provados, com esta redação:

«a) Além dos serviços identificados em 2 e tendo em vista o registo do imóvel o autor prestou ainda à ré a seu pedido e no seu interesse os seguintes serviços;

1. Requerimento a solicitar a emissão de certidão;

2. Levantamento da certidão datada de 05/04/2016 e constante de fls. 61;

3. Pagamento, em 12/04/2016, da referida certidão;

4. Requerimento a solicitar a emissão de nova certidão;

5. Levantamento da certidão datada de 17/06/2016 e constante de fls. 63;

6. Pagamento em 8/07/2016 da referida certidão”,

b) O autor por conta dos serviços identificados em 7. emitiu nota de honorários conjunta constante de fls. 30 a 39 e cujo teor se considera integralmente reproduzido tendo o valor final apurado sido dividido em 2 partes iguais;»
(II) – Que o facto não provado da alínea g) passe a integrar os factos provados, com esta redação: «A ré procedeu ao pagamento integral das quantias referentes aos serviços descritos em 2 dos factos provados (alínea g) dos factos não provados);» (conclusão 35)
A Recorrente entende, em síntese que « 32ª – A modificação da matéria de facto, assenta essencialmente na análise da prova documental junta aos autos, que a justifica e suporta, não consente a inclusão dos factos mencionadas nos factos 6 e 8 cuja modificação se pretende» e «33ª – Já no que concerne ao pagamento a que alude a alínea g) dos factos não provados, impõe-se a respectiva modificação, considerando a presunção de pagamento de que beneficia a Ré, em virtude da verificação da prescrição presuntiva.»
3 – Em terceiro lugar colocam-se as questões relativas ao mérito da causa:
(a) Cumpre verificar se os factos provados do n.º 6 (relativos ao pedido e levantamento de certidões do processo para efeitos de registo predial do prédio) deverão ser qualificados como factos essenciais e se, tendo tal qualificação, estarão fora da causa de pedir alegada, uma vez que não foram afirmados na petição e, sendo assim, não poderão ser levados em consideração face ao disposto no artigo 5.º do Código de Processo Civil, sob pena de existir, diz a Ré, excesso de pronuncia e violação do princípio do dispositivo por parte do tribunal a quo.
(b) Se decorreram os dois anos necessários para a existência da prescrição presuntiva de cumprimento, desde o termo da prestação dos serviços até à instauração da ação, cumprindo eventualmente analisar se existiu reconhecimento da dívida e interrupção do prazo prescricional.

III. Fundamentação

a) (In)admissibilidade do recurso

O Autor pretende que o recurso seja rejeitado imediatamente na parte relativa à impugnação da matéria de facto porquanto não satisfará os requisitos estabelecidos no artigo 640.º, nºs 1 e 2, al. a) do CPC.

Porquanto a impugnação não procede a uma análise crítica das provas, não especifica a decisão que deve ser proferida sobre cada facto e não indica com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso.

Citou diversa jurisprudência nesse sentido.

Não procede esta argumentação porque, muito embora a impugnação não seja modelar, percebe-se, contudo, como abaixo se verá, aquilo que a Recorrente pretende, isto é, os factos que pretende ver alterados e as respetivas razões, afigurando-se desproporcionado rejeitar o recurso nestas condições.

Pelo exposto, o recurso será analisado também na sua vertente de impugnação dos factos provados e não provados.

b) Impugnação da matéria de facto
1 – A Recorrente pretende que os factos identificados sob os pontos 6 e 8 dos factos provados passem a integrar os factos não provados, com esta redação, respetivamente:

▪ Ponto 6 - «Além dos serviços identificados em 2 e tendo em vista o registo do imóvel o autor prestou ainda à ré a seu pedido e no seu interesse os seguintes serviços;

1. Requerimento a solicitar a emissão de certidão;

2. Levantamento da certidão datada de 05/04/2016 e constante de fls. 61;

3. Pagamento, em 12/04/2016, da referida certidão;

4. Requerimento a solicitar a emissão de nova certidão;

5. Levantamento da certidão datada de 17/06/2016 e constante de fls. 63;

6. Pagamento em 8/07/2016 da referida certidão»; e

▪ Ponto 8 - «O autor por conta dos serviços identificados em 7. emitiu nota de honorários conjunta constante de fls. 30 a 39 e cujo teor se considera integralmente reproduzido tendo o valor final apurado sido dividido em 2 partes iguais.»

Vejamos.

Ponto 6 - Deve manter-se este facto provado n.º 6, pelas seguintes razões:

Esta factualidade está documentada no processo de inventário. Ou seja, está aí documentado que o Autor requereu a emissão dessas certidões e levantou-as depois de as pagar.

Sendo assim, não pode deixar de se considerar provada esta factualidade.

E também se forma a convicção de que o Autor procedeu assim no exercício do mandato que a Ré lhe havia conferido, pois só esse exercício permite compreender que ele tenha formado a intenção e subsequente decisão de requerer as certidões.

Isto é, não se procede assim sem se ter uma finalidade em vista e essa finalidade até consta das próprias certidões: «“(…) destinando-se a presente a fins de registo e por ter sido requerida pelo Dr. A..., Advogado, (…), passo a presente certidão (…)”».

Ou seja, se não fosse por ser mandatário da Ré nesse inventário, o Autor não teria procedido assim; não teria solicitado, pago e levantado as certidões, pois estas não tinham qualquer interesse para si fora do exercício do mandato.

Concorda-se, pois, com a convicção explicitada pelo tribunal recorrido quando disse o seguinte:

«Os serviços prestados pelo autor e descritos em 6. dos factos provados – bem como as datas em que foram prestados – têm respaldo nos documentos constantes de fls. 61 a 64 e o que das suas literalidades concerne, valorados conjugadamente com as declarações prestadas por M..., que se identificou como advogada, mais dizendo que trabalha no escritório do autor há cerca de 2/3 anos, e que neste particular afirmou que apesar de não ter tido intervenção no processo de inventário no âmbito do qual o autor prestou os seus serviços tomou conhecimento de tais serviços porque, como referiu, o autor pediu-lhe ajuda a elaborar a nota de honorários, mais asseverando que este pediu certidões, as quais disse terem sido levantadas por si. Aponta-se ainda que a emissão destas certidões, constantes de fls. 61 e 63, também se mostra documentada no processo de inventário, bastando para assim concluir atentar nos registos denominados “Certidão”, datados de 05/04/2016 e 17/06/2016 e que correspondem às juntas a fls. 61 e 63, respetivamente.

Para prova de que o autor ficou mandatado de registar o imóvel em nome da ré – registo que acabou por não ser efetuado por si – tendo inclusivamente diligenciado nesse sentido vejam-se novamente as referenciadas certidões, maxime a que faz fls. 63 e onde se escreve, entre outros dizeres, “(…) destinando-se a presente a fins de registo e por ter sido requerida pelo Dr. A..., Advogado, (…), passo a presente certidão (…)”, documento este cujo teor infirma o que em sentido contrário foi declarado pela ré e que por esta razão não relevámos.

Não se olvidando que o registo não foi efetuado pelo autor – como o próprio admite – e que apenas o foi no ano de 2018, concretamente em 26/06/2018 (cfr. certidão da Conservatória do Registo Predial de fls. 68 a 70 – cerca de 2 anos após a emissão de tais certidões –) também não se pode olvidar que, como afirmou a testemunha M..., o registo ficou pendente deles (incluída a ré) obterem dinheiro, o que se mostra consentâneo com a demais prova produzida, maxime a circunstância das partes terem acordado que os honorários apenas seriam liquidados após a venda do imóvel, como inequivocamente afirmou a ré em julgamento, e tudo a fazer crer pela insuficiência de fundos não só para liquidação dos honorários bem como das despesas a suportar para o registo, o qual se foi protelando até ao momento da venda do imóvel, data em que a ré, entre outros, obteriam receita, altura em que custeariam os custos pelo registo e como entendemos ter na realidade acontecido, sendo esta a explicação, e não outra, para as datas dos registos do imóvel, a favor da ré, entre outros, e do terceiro adquirente, serem a mesma e posterior à data das escrituras de compra e venda que fazem fls. 88 a 100.»

Por conseguinte, mantêm-se estes factos na factualidade provada.

Ponto 8 – Tem esta redação: «O autor por conta dos serviços identificados em 2. e 7. emitiu nota de honorários conjunta constante de fls. 30 a 39 e cujo teor se considera integralmente reproduzido tendo o valor final apurado sido dividido em 2 partes iguais.»

A Recorrente pretende que se exclua a referência aos factos provados do ponto 7.

Assiste razão à Recorrente.

Com efeito, nos factos provados do ponto 7 consta que «Durante o ano de 2017 o autor acompanhou a ré e demais herdeiros à imobiliária C..., sita na Av. ..., em ..., o que fez para todos se inteirarem da evolução do processo da venda do imóvel.»

O próprio julgador referiu, na exposição da convicção, referiu o seguinte:

«Neste ponto relevam as concretas datas em que as certidões de fls. 61 e 63 foram levantadas do Tribunal, as quais ressumam dos recibos de fls. 62 e 64, datando o último de 08/07/2016, data esta que entendemos corresponder à do ultimo serviço prestado pelo autor, o que não se mostra contrariado pela circunstância também apurada do autor ter-se deslocado juntamente com a ré e demais herdeiros e no ano de 2017 à imobiliária identificada em 7., pois que tal deslocação teve como fito apurar a evolução do processo da venda do imóvel, finalidade esta que não tem qualquer nexo com a prática de quaisquer serviços jurídicos, como de resto também a testemunha M... acabou por assumir, como já mencionámos.»

Por conseguinte, se a deslocação à imobiliária não teve qualquer nexo com a prática de quaisquer serviços jurídicos, então, de acordo com esta convicção, a nota de honorários referida no ponto 8 dos factos provados também não se lhe refere.

Terá existido lapso na redação do ponto 8 quando se fez referência aos factos provados do ponto 7, referência que será eliminada, por conseguinte, do facto provado do ponto 8.

Passando à impugnação seguinte.
b – A Recorrente pretende que o facto não provado da alínea g), ou seja: «A ré procedeu ao pagamento integral das quantias referentes aos serviços descritos em 2 dos factos provados» passe a integrar os factos provados.
A Recorrente entende que o pagamento resulta da presunção de pagamento de que ela beneficia em virtude da verificação da prescrição presuntiva (cfr. Conclusão 33.ª).

Não lhe assiste razão, pois não há prova que permita formar a convicção de que tal pagamento foi efetuado.

Apenas a Ré disse que pagou e isso é insuficiente, tanto mais que o facto por si afirmado lhe é favorável.
O facto não provado da al. g), «A ré procedeu ao pagamento integral das quantias referentes aos serviços descritos em 2 dos factos provados», significa apenas que não se provou que a Ré tenha pago, mas esta afirmação não implica que na realidade histórica não tenha existido pagamento por parte da Ré.
O facto não provado da al. g), repete-se, apenas significa que não resultou provado esse pagamento.
[A jurisprudência tem referido que a resposta negativa a um facto significa apenas que esse facto não resultou provado e nada mais que isso, não implicando tal resposta que se considere provado o facto contrário – Acórdãos do S.T.J. de 08-2-1966, no B.M.J. n.º 154-304; de 28-05-1968, no B.M.J. n.º 177-260; de 30-10-1970, no B.M.J. n.º 200-254 e de 06-04-2006, com referência ao n.º 06B305, em www.dgsi.pt.]
Por conseguinte, a declaração do tribunal no sentido de que o facto em causa resultou «não provado» deixa em aberto quer a possibilidade de ter existido pagamento, quer a hipótese de não ter havido pagamento.
Nestas circunstâncias inconclusivas (non liquet), entram em funcionamento as regras sobre ónus da prova e também o regime da prescrição presuntiva.
Mantém-se, pelo exposto, o facto como não provado.

c) 1. Matéria de facto – Factos provados

...

2. Matéria de facto – Factos não provados

... 

d) Apreciação das restantes questões objeto do recurso

1- Vejamos se os factos provados do n.º 6 (relativos ao pedido e levantamento de certidões do processo para efeitos de registo predial do prédio) deverão ser qualificados como factos essenciais e se, tendo tal qualificação, estarão fora da causa de pedir alegada, uma vez que não terão sido afirmados na petição e, sendo assim, não poderão ser levados em consideração face ao disposto no artigo 5.º do Código de Processo Civil, sob pena de existir, diz a Ré, excesso de pronuncia e violação do princípio do dispositivo por parte do tribunal a quo.

Cumpre começar por definir o que se entende por factos essenciais, complementares e instrumentais face ao disposto no artigo 5.º do Código de Processo Civil, cuja redação é a seguinte:

«1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.

2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;

c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.»

O facto recebe da lei a designação de essencial quando integra a causa de pedir da ação ou integra a matéria da exceção invocada como facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito invocado, tratando-se de um facto que está pressuposto abstratamente na respetiva regra jurídica cuja aplicação se invoca.

Os factos complementares, a que alude a al. b), do n.º 2, são complementares relativamente aos factos essenciais, isto é, embora não integrem a causa de pedir podem ser necessários para que esta seja operante face às diversas normas jurídicas aplicáveis. Por exemplo, quando a causa de pedir invocada é complexa e os factos essenciais, nucleares, carecem ainda da conjunção de outros factos para desencadearem o efeito jurídico previsto na facti species legal.

Vejamos um exemplo.

Nos termos do artigo 351.º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro), «Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.»

No n.º 2 deste artigo enumeram-se diversos tipos de justas causas de despedimento, entre as quais, na al. a), a «Desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores.»

Esta causa de despedimento, os factos que integram a «desobediência ilegítima às ordens...» são factos essenciais, mas são insuficientes só por si, pois carecem de ser complementados por outros factos que revelem um grau de gravidade e consequências que tornem imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.

Estes últimos são factos complementares.

Os factos instrumentais desempenham essencialmente duas funções:

Uma mais remota, servindo para preencher o contexto ou fundo factual onde se movem os factos essenciais, tornando-os acessíveis à compreensão;

Outra mais chegada aos factos essenciais, constituindo provas ou contraprovas da existência destes últimos.

Ou seja, uma vez provados os factos instrumentais, estes integrarão a premissa menor de um raciocínio por presunção que poderá conduzir à convicção de que o facto essencial agora presumido existiu ou, então, não existiu.

Vejamos então o caso dos autos.

Quanto à causa de pedir, o Autor afirma no requerimento inicial o seguinte: «Contrato de: Fornecimento de bens e serviços»; «Data do contrato: 16-10-2009»; Período a que se refere: 16-10-2009 a 02-10-2017». Depois indica na nota de honorários o rol de diligências que praticou, tempo gasto, preço da hora de trabalho, sendo que o último dos factos alegados na nota de honorários foi praticado, como resulta documentado no processo de inventario, em 3 de maio de 2016, data da notificação do último despacho do juiz e respetiva análise pelo mandatário, ora autor.

Provou-se, no entanto, que além destes atos o autor ainda praticou no processo os atos mencionados no facto provado n.º 6, ou seja, os relativos ao pedido, pagamento e levantamento de certidões para efeitos de registo predial do imóvel, sendo o último dos atos levado a cabo em 08/07/2016 (pagamento da certidão).

Coloca-se, como se disse, a questão de saber se estes últimos atos integram a causa de pedir.

A resposta é negativa, muito embora tais atos tenham integrado o exercício do mandato no referido processo de inventário.

Com efeito, sendo a causa de pedir a factualidade concreta, histórica, valorada pela lei substantiva, de onde emerge o direito alegado pelo Autor, então, no caso dos autos, a causa de pedir é genericamente constituída pelo contrato de mandato e pelo conjunto de atos praticados pelo autor no exercício desse mandato forense no mencionado processo de inventário.

Com efeito, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 44.º do CPC, «O mandato atribui poderes ao mandatário para representar a parte em todos os atos e termos do processo principal e respetivos incidentes, mesmo perante os tribunais superiores, sem prejuízo das disposições que exijam a outorga de poderes especiais por parte do mandante.»

Por conseguinte, o mandato forense é constituído por todos os atos praticados no processo ao abrigo desse contrato, tenham ou não sido quantificados todos eles para efeitos da nota de honorários.

Como se vem referindo, coloca-se a questão de saber se essa causa de pedir é constituída apenas pelos atos identificados na nota de honorários ou se a causa de pedir abrange antes todos os atos, constantes ou não dessa nota de honorários.

Dir-se-á que só podem integrar a causa de pedir os atos referidos na nota de honorários porque só esses relevam para efeitos de remuneração do mandato.

Contrapor-se-á que não, que poderão existir outros atos com relevância jurídica e que não contam para efeitos de determinação da remuneração do mandato, como é o caso, por exemplo, de atos praticados que possam contar para determinação do termo final do mandato, mas não contam para efeitos de remuneração, como ocorre no caso dos autos com o pedido de emissão de certidões do processo para efeitos de registo predial.

Porém, concluindo-se que tais atos (pedido de certidões) ainda integram o mandato, tal não significa que sejam factos essenciais integrantes da causa de pedir.

Com efeito, tais factos só se tornaram relevantes no processo porque a Ré invocou a prescrição presuntiva consagrada na alínea c) do artigo 317.º do Código Civil.

Se a Ré não tivesse invocado a prescrição presuntiva tais factos eram processualmente desnecessários, inúteis, e permaneceriam desconhecidos.

Por conseguinte, tendo tais factos sido alegados apenas e só para neutralizar a invocação da prescrição presuntiva por parte da Ré, então isso mostra que não fazem parte da causa de pedir e não podem ser qualificados como essenciais.

Não podendo tais factos ser qualificados como essenciais têm de caber no conceito de factos complementares, pois seguramente não são factos instrumentais, como resulta da destrinça a que se procedeu supra.

Como se disse, os factos complementares, a que alude a al. b), do n.º 2, são complementares relativamente aos factos essenciais. Relevam quando estes últimos carecem ainda da conjunção de outros factos para desencadearem o efeito jurídico previsto na facti species legal.

É o que ocorre no caso dos autos, pois a Ré ao invocar aos factos atinentes ao funcionamento da prescrição presuntiva fez surgir a necessidade, para o Autor, de invocar factos adjuvantes dos invocados como causa de pedir, de modo a evitar que estes perdessem a sua eficácia constitutiva do direito invocado.

Por conseguinte, os factos invocados como sendo os últimos praticados no exercício do mandato que serve de causa de pedir à ação, embora não integram a nota de honorários, complementam os que aí constam, os que constituem a causa de pedir.

Como factos complementares, podiam ser tomados em consideração pelo tribunal, como foram, face ao disposto no artigo 5.º do Código de Processo Civil, acima transcrito.

Aliás, é esta visão que equilibra os interesses do credor e do devedor.

Com efeito, o mandato forense só se extingue no final do processo, que coincidirá com o último ato praticado pelo advogado (por exemplo: receção e leitura de uma notificação) e podem existir atos no final do processo que o advogado entenda não quantificar para efeitos de remuneração, dada a sua simplicidade, como, por exemplo, a leitura de um despacho cujo teor já era esperado.

No entanto, a simplicidade do ato e a existência de atos que não justificam remuneração só fica estabelecida no final do processo, isto é, só no final, depois de se saber o que de facto aconteceu, é que o advogado sabe o que deve ser contabilizado e o que não deve ser.

Por isso, poderia ser desproporcionado e injusto que o termo inicial da prescrição presuntiva se contasse do último ato contabilizado para efeitos de remuneração do mandato, pois poderia dar-se o caso de ter decorrido largo tempo entre esse ato e o final do processo e nada de relevante se tivesse passado nesse espaço de tempo, sendo certo que só no final o advogado ficou a saber que nada de relevante tinha ocorrido que justificasse ser integrado na conta final.

Concluindo.

Os factos do ponto 6 dos factos provados são factos complementares daqueles que constituem a causa de pedir e podiam ser levados em consideração, como foram, pelo tribunal, apesar de não alegados na petição.
Não existiu, pois, violação do princípio dispositivo, nem excesso de pronuncia.

2 – Vejamos agora se decorreram o prazo de 2 anos a partir dos atos levado a cabo no exercício do mandato, em 08/07/2016 (pagamento da certidão), até à instauração da ação.

A resposta é negativa.

Nos termos da alínea c) do artigo 317.º do Código Civil, «Prescrevem no prazo de dois anos: (…); c) Os créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes.»

É o caso dos autos, pois a advocacia é considerada, sem contestação, uma profissão liberal.

A razão para a existência destes prazos curtos é-nos apontada, embora para as normas correspondentes do Código Civil de Seabra, pelo Prof. Manuel de Andrade, nestes termos:

«Quais os motivos da lei quanto aos prazos de 6 meses a 3 anos? Ela estabeleceu curtos prazos para a prescrição dos créditos do merceeiro, do hoteleiro, do advogado, do procurador, etc., etc., porque se trata de créditos que o credor adquire pelo exercício da sua profissão, da qual vive. Ao fim dum prazo relativamente curto o credor, em regra, exige o seu crédito, pois precisa do seu montante para viver. Por outro lado, o devedor, em regra, também paga estas dívidas dentro de curto prazo, porque são dívidas que ele contraiu para prover às suas necessidades mais urgentes. Mesmo quando o devedor é pessoa de más contas, prefere não pagar outras dívidas e ir pagando estas, até porque de outra maneira acabaria por não ter quem o servisse. Finalmente, o devedor em regra não cobra recibo destas dívidas, quando as paga; e se exige recibo não o conserva por muito tempo» - Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Coimbra/1987, pág. 452.

Nestes casos, o artigo 313.º do Código Civil dispõe que «1. A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser elidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão.

2. A confissão extrajudicial só releva quando for realizada por escrito.»

Continuando ainda com o Prof. Manuel de Andrade, dir-se-á:

«…a lei presumiu que decorridos estes prazos, o devedor teria pago. Isto tem a sua importância no próprio regime destas prescrições. Elas são tratadas, não bem como prescrições, mas como simples presunções de pagamento. Por isso elas são afastadas pela prova da existência da dívida, mas só nos limitados termos que vamos dizer.

Enquanto nas prescrições verdadeiras, mesmo que o devedor confesse que não pagou, não deixa por isso de funcionar a prescrição, nestas prescrições presuntivas parece que não pode ser assim: se o devedor confessa que deve, mas não paga, é condenado da mesma maneira, e a prescrição não funciona, embora ele a invoque» – Ob. cit., pág. 453.

Nas palavras de António Menezes Cordeiro «Tal presunção é, todavia, muito forte. O credor, contra o que resulta das regras gerais das presunções iuris tantum – artigo 350.º/2 – não pode ilidir a presunção provando que, afinal, o devedor nada pagou. Apenas o devedor, caindo em si, o poderá fazer: por confissão: artigo 313.º» - Tratado de Direito Civil Português I, Parte Geral, Tomo IV. Almedina 2005, pág. 181.

As prescrições presuntivas não podem, por isso, ser invocadas, por exemplo, quando for negada a dívida ou impugnado o seu montante, pois tais atitudes são inconciliáveis com a presunção de cumprimento

No caso dos autos, verifica-se que a Ré aceitou a existência dos serviços prestados e o seu valor, alegou o pagamento e não confessou a dívida em audiência, nem existe confissão extrajudicial reduzida a escrito.

Por conseguinte, tendo decorrido o prazo e na ausência de confissão do devedor fica apenas em pé a presunção de ter existido o pagamento e sendo assim, o pagamento surge como facto certo, o que implicava que a pretensão do Autor/credor não proceda.

Isto será assim no caso dos autos, se efetivamente tiver decorrido o prazo da prescrição e verifica-se, como se vai ver, que não se completou.

Na sentença deu-se relevo ao facto provado n.º 10, onde se diz que a Ré reconheceu a existência da dívida em maio de 2018 («10. Após José Ribeiro ter recebido tal nota deslocou-se, juntamente com a aqui ré e ainda no decurso do referido mês de maio de 2018, ao escritório do aqui autor onde ambos reconheceram que os honorários eram devidos mais tendo ambos dito que aguardavam a venda do prédio que lhes tinha sido adjudicado no processo de inventário referido para procederem ao seu pagamento, bem como das despesas»).

Entendeu-se que este reconhecimento tinha valor jurídico para efeitos do disposto no artigo 325.º do Código Civil, onde se dispõe o seguinte:

«1. A prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito, efectuado perante o respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido.

2. O reconhecimento tácito só é relevante quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam.»

Como referiu Vaz Serra, «O efeito interrruptivo do reconhecimento é justificável, pois, se o prescribente reconhece o direito do titular, é razoável que perca o benefício do prazo prescricional já decorrido: tal reconhecimento pode interpretar-se como renúncia da sua parte a prevalecer-se desse prazo, visto supor a vontade de cumprir, além de que o titular pode confiar na opinião manifestada pela outra parte, não tendo, por isso, que a demandar. É geralmente admitido nas legislações, como se viu» - Prescrição Extintiva e Caducidade, Boletim do Ministério da Justiça n.º 106, pág. 219/220.

A norma do artigo 325.º Código Civil é aplicável às presunções presuntivas por força da remissão feita no artigo 315.º do mesmo código.

(Cfr. neste sentido J. Rodrigues Bastos. Notas ao Código Civil, Vol. II. Lisboa 1988, pág. 79: «No mais a prescrição presuntiva é disciplinada pelas normas gerais sobre prescrição ordinária, designadamente (…), à interrupção (arts. 324.º-327.º) …» e António Menezes Cordeiro. Tratado de Direito Civil Português I, Parte geral, Tomo IV. Almedina 2005, pág. 183: «Para além destes aspectos ligados ao seu fundamento, a prescrição presuntiva rege-se pelas regras gerais: artigo 315.º. Têm aplicação as normas sobre a indisponibilidade, a invocação, o decurso do prazo, a suspensão e a interrupção»).

Verifica-se que a Ré reconheceu a dívida em maio de 2018.

Tal reconhecimento da dívida ocorre após o envio da carta com a nota de honorários, esta enviada como se vê da data que consta do registo postal, que é 7 de maio de 2018 – talão junto pelo autor e que se encontra a fls. 40 e 41dos autos.

Este reconhecimento da dívida ocorreu antes de completados 2 anos sobre o último ato praticado no exercício do mandato, que foi o dia 08/07/2016 (pagamento da certidão).

Este reconhecimento da dívida numa altura em que ainda não se tinha constituído a presunção, pelo decurso do prazo de 2 anos, interrompeu o prazo prescricional, tendo sido inutilizado todo o tempo que havia decorrido, pelo que começou a correr desde então um novo prazo de 2 anos, por força do disposto no artigo 326.º do Código Civil («1. A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo, sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo seguinte.

2. A nova prescrição está sujeita ao prazo da prescrição primitiva, salvo o disposto no artigo 311.º»)

O novo prazo de prescrição completar-se-ia em maio de 2020.

Como o requerimento de injunção que deu origem à presente ação deu entrada junto do Balcão Nacional de Injunções em 17/04/2019, verifica-se que o novo prazo não se consumou.

Concluiu-se, por conseguinte, como na decisão recorrida, que o prazo da prescrição presuntiva não chegou a completar-se, pelo que improcede a respetiva invocação, o que leva à procedência da ação, como foi decidido em 1.ª instância.

Improcede, pelo exposto, o recurso.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.


Coimbra, 09/11/2021