Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
501/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. BELMIRO ANDRADE
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
Data do Acordão: 05/12/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TÁBUA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 137º, N.º1, DO CÓDIGO PENAL, 127º, 376º, N.º 2 E 410º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, 351º, 439º E 589º, DO CÓDIGO CIVIL E 24º, N.º 1, DO CÓDIGO DA ESTRADA.
Sumário:

I - O dever de fundamentação das decisões judiciais impede que, na decisão da matéria de facto, o juiz se limite a fazer o “recenseamento” das provas apresentadas contra ou a favor do arguido.
II - Partindo do resultado objectivo, certo e indiscutível, deve tentar reconstituir o facto controvertido, a partir da apreciação e conjugação de todos os elementos de prova entre si e de acordo com a experiência comum, analisando-as criticamente.
III - A prova indirecta, sujeita à livre apreciação, exige um particular cuidado na sua apreciação, apenas se podendo extrair o facto probando do facto indiciário quando seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente plausíveis.
IV - Em matéria de acidentes de viação, dado o perigo que envolve a utilização da máquina e a velocidade, a infracção de norma de trânsito constitui presunção – natural, judicial ou de prova, nos termos do art. 439º e 351º do C. Civil, que não presunção legal de culpa, inadmissível em processo penal face ao princípio in dubio pro reo – de que não foi cumprido o dever de cuidado específico imposto pela norma violada, desde que o resultado seja daqueles que a lei ou regulamento quis evitar.
V - Apontando os vários elementos de prova indirectos – local (troço em terra de prova do Mundial de Ralis, afastado do local de residência), data (domingo à tarde), automóvel adequado à emoção da velocidade, conhecimento prévio do local para onde o arguido costumava deslocar-se com o grupo de amigos ali presente – amigos comuns ao arguido e à vítima – que ali se deslocaram nos seus automóveis, e estavam “a assistir”, tudo confirmado pela prova testemunhal, a evidência do resultado (despiste com capotamento), não havendo ou sendo indicada outra causa plausível do acidente (nem havia outros veículos a circular e não há qualquer referência a eventual falha técnica), apesar de as testemunhas (amigas comuns à vítima e ao arguido, também elas envolvidas na prática ilegal do “rali”) referirem a velocidade “inferior a 40 km./h”, incompatível com a gravidade do acidente, impõe-se que se dê como provado que a causa do acidente foi a inadequação da velocidade às condições da via, julgando-se o arguido responsável pelo crime correspondente.
VI - Ao ISSS assiste o direito de sub-rogação de todas as prestações pagas em virtude da morte da vítima, incluindo o subsídio de funeral.

Decisão Texto Integral:

15

ACORDAM, EM AUDIÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


I. RELATÓRIO

1. O arguido BB, melhor id. nos autos, foi acusado, pelo digno magistrado do MºPº, da prática de um crime de homicídio por negligência p e p pelo art. 137º, n.º1 do C. Penal, em concurso real e efectivo, com uma contra-ordenação p e p pelo art. 131º, n.º1 e 2 do C. E. e uma contra-ordenação p e p pelo art. 14º, n.º1 do DL n.º 544/99 de 16.12.

2. Realizado o julgamento, foi proferida sentença, na qual foi decidido:
- julgar a acusação penal improcedente, por não provada, absolvendo o arguido do crime cuja prática lhe vinha imputada;
- julgar improcedente o pedido de indemnização civil formulado pelo Instituto de Solidariedade e Segurança Social, dele absolvendo o arguido;
- condenar o arguido como autor de uma contra-ordenação p e p pelo art. 131º, n.º1 e 2 do C. da Estrada, na coima de € 250,00; e como autor de uma contra-ordenação p e p pelo art. 14º, n.º1 do DL 544/99 de 16.12 na coima de € 250,00. Em cúmulo, na coima única de € 500,00.

3. Dessa sentença recorre a digna magistrada do MºPº, formulando, na sequência da fundamentação apresentada, as seguintes CONCLUSÕES:
1 - Existiu erro na apreciação da matéria de facto, atentos os factos dados como provados na sentença recorrida e os factos dados como não provados que cremos terem ficado provados, (com algumas correcções), da prova realizada em audiência de julgamento.
2 – Existe, também, insuficiência na matéria de facto provada.
3 - Ocorre este vício quando "da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição."
4- A discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência. É à luz desses factos, pois, e dentro deles dos relevantes para a decisão, que se deve aferir a insuficiência da matéria de facto.
5- Desde logo, uma análise das declarações do arguido, bem como das testemunhas (todas suas amigas) - transcritas parcialmente no ponto 1 do presente recurso e que damos por reproduzidas - conjugadas com as regras da experiência comum, aponta para a prova de que o arguido circulava a velocidade não concretamente apurada, mas superior a 80 Km/hora, não adequada atentas as características da via e o traçado desta.
6- Isto porque alguns populares que acorreram ao local, após o acidente, comentaram perante os agentes da G.N.R. que era habitual irem para ali fazer rally, sendo que, o veículo que foi tripulado pelo arguido na data do acidente, um Datsun SSS, 1.600 (Doc. a fls.30), foi um modelo conhecido pelas suas muitas participações em provas de rally, atentas as suas características, atingindo velocidades de cerca de 180 KM/hora.
7 - O arguido foi para aquele caminho florestal - com cerca de 500/1000metros - para experimentar a caixa de velocidades - como referido pelo próprio e pelas testemunhas José Manuel e Luís Carlos - o que não se mostra compatível com a velocidade a que este e as testemunhas, suas amigas, referem que ele circulava, até pelas características do veículo que se referiram no ponto supra, uma vez que a 30/50 Km/hora o arguido não poderia verificar, tal como pretendia, se a caixa de velocidades não tinha nenhum problema, uma vez que não poderia "meter" todas as mudanças.
8 - O local do acidente foi, até 2000, troço do mundial de rally, como refere o soldado Abel, pelo que, mal se compreende quando o Tribunal, na sua motivação da decisão de facto faz referência à importância que o depoimento das testemunhas, amigas do arguido, tiveram, designadamente porque confirmaram "que as características do local onde ocorreu o acidente não permitem que um veículo lá circule com velocidade”;
9- E, acima de tudo, atentas as características da via e do local do acidente - terra batida, com muita lama, com buracos e fissuras provocados pelas chuvas, traçado curvo, e a descrição que o arguido faz do acidente - referindo que o carro capotou para a direita ficando com o tejadilho no chão, e fez meia volta (altura em que comprimiu o corpo do falecido Reinaldo), voltando de novo à posição de rodas para o ar - não se consegue encontrar, por não existir, estamos convictos, outra explicação que não seja o facto de o arguido imprimir ao veículo uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 80 Km/hora, inadequada para aquele local, seguir desatento às fissuras e traçado da via.
10- Das declarações do arguido e das testemunhas, suas amigas - transcritas em parte no ponto I deste recurso e que damos por reproduzidas - é nosso convencimento que resultou demonstrado que este conduzia a sua viatura permitindo que o Reinaldo não tivesse colocado o cinto de segurança antes de terem arrancado, e que este tivesse seguido, cerca de 100 metros antes da capotagem, sentado na janela da porta dianteira do lado esquerdo (o volante era ao contrário) ficando com a cabeça e tronco no exterior da viatura, as mãos no tejadilho, e as pernas dentro do carro, de costas voltadas para a via.
11 - Ao contrário do que foi afirmado pelo Tribunal na sua motivação da decisão da matéria de facto, é nosso entendimento que o depoimento do arguido, transcrito parcialmente no ponto I deste recurso e que damos por reproduzido, apreciado na sua globalidade e com as correcções que resultam de uma análise conjugada de todos os elementos da prova -
nomeadamente da velocidade (a mais de 80Km/hora e não a 40/50 Km/hora) e estado de piso (com lama e não arenoso) - deu uma versão dinâmica do acidente que, em nosso entendimento, deveria ter sido dada como provada, com as infra apontadas correcções.
12-No que concerne ao estado de espírito com que o arguido conduzia, é nosso convencimento que resultou provado, das suas declarações, que ele seguia desatento, uma vez que como foi por ele afirmado, já era a segunda vez que ele fazia aquele percurso e já se tinha conseguido desviar de algumas fissuras, mas naquela curva não - "fatalidades do destino", nas palavras do arguido, desatenção, imperícia e velocidade excessiva, estamos em crer.
13-Pelo exposto, em nosso entendimento, deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos, alguns dos quais considerados provados pelo Tribunal na íntegra, outros considerados provados mas com algumas correcções, outros, ainda, considerados não provados e outros não constantes da matéria de facto considerada com relevância para a decisão da causa, mas que, em nossa convicção resultaram apurados da audiência de discussão e julgamento e dela deveriam ter constado, por se afigurarem de relevância para a boa decisão da causa e não implicarem alteração substancial dos factos descritos na acusação:
A) No dia 29 de Abril de 2001, cerca das 19h40m o arguido, acompanhado de Reinaldo Lemos Tavares, seu amigo, conduzia o veículo ligeiro de passageiros, Datsun SSS, 1600, matrícula ZE-37-55, pela Estrada Florestal, denominada Caminho de Carris, em Vila Chã, Covas, Tábua, no sentido Norte/Sul.
B) O estado do tempo era bom.
C) O piso dessa estrada é em terra batida e devido às chuvas abundantes do Inverno desse ano, tinha muitas fissuras e buracos no terreno, existindo muito lama.
D) O arguido imprimia ao veículo uma velocidade, não concretamente apurada, mas superior a 80 km./hora e circulava desatento.
E) A estrada por onde seguia o arguido, a dada ocasião, assume um traçado curvo à esquerda, atento o referido sentido de marcha.
F) Ao aproximar-se dessa curva a roda do lado direito do veículo que o arguido tripulava entrou numa fissura do piso, o que este não evitou, como podia e devia, devido à velocidade a que seguia, à manifesta desatenção e à falta de perícia revelada.
G) Dado que o arguido não imprimia ao seu veículo a velocidade adequada para as referidas condições do piso, não conseguiu controlar o seu trajecto, pelo que o veículo atravessou-se na estrada, sempre em derrapagem, despistando-se.
H) Indo embater numa barreira ali existente do lado esquerdo da estrada e capotado.
I) O arguido, ao contrário de Reinaldo Lemos Tavares, seguia com o cinto de segurança, sendo que este, a cerca de 100 metros da referida curva, sentou-se na janela da porta dianteira esquerda (o volante era do lado contrário), ficando com a cabeça e tronco no exterior da viatura, as mãos no tejadilho, e as pernas dentro do carro, de costas voltadas para a via.
J) Como consequência da capotagem, o corpo de Reinaldo Lemos Tavares foi comprimido entre o veículo e a via, pelo que este sofreu as lesões descritas e examinadas a fls.68 e ss, que lhe determinaram, directa e necessariamente, a morte.
K) O arguido seguia desatento e distraído às condições da via, conduzindo de forma imprudente, não imprimindo ao seu veículo a velocidade adequada para aquele local, atentas as referidas condições da via e o traçado da estrada.
L) O arguido circulava, permitindo que a seu lado seguisse o Reinaldo sem cinto de segurança, sentado na janela e com o corpo de fora.
M) O arguido era motorista profissional, conhecia as regras que regulam o trânsito de veículos na via pública, sendo condutor experiente, pelo que podia e devia ter previsto que a sua descrita conduta era adequada a provocar a morte do seu amigo Reinaldo, como de facto veio a suceder.
14- A tais factos deverão acrescer os dados como provados na Douta sentença recorrida, nos pontos 9 a 15.
15- E assim sendo, atenta a 13.ª conclusão, o arguido violou com a sua conduta, o disposto nos artigos 24.°, n.º l, 25.°, n.º l, alínea h) e 54.°, n.os 3 e 4, todos do Código da Estrada, pelo que agiu de forma negligente.
16-Com efeito, quem conduz veículos nas via públicas, está obrigado no exercício da condução, vistos os perigos que tal actividade comporta, a assegurar-se de que o faz sem causar perigo para terceiros.
17- Ao arguido era exigível que observasse o dever objectivo de cuidado;
18- Por outro lado, o arguido, nas concretas circunstâncias em que actuou, e com as suas qualidades, capacidades e conhecimentos, podia ter representado como possível a morte de uma pessoa como consequência da sua condução em excesso de velocidade, atentas as especiais características da via, bem como pelo facto de ter permitido que o ocupante segui-se ao seu lado, naquelas condições, sem cinto de segurança, sentado na janela da viatura, o que de facto sucedeu;
19- Acresce que essa conduta incorrecta do arguido fez aumentar a probabilidade sempre existente, de ferir ou matar pessoas, ou seja, ultrapassou o risco permitido no exercício da condução.
20-Assim tendo o arguido violado os referidos deveres de cuidado, tendo essa violação sido a causa da morte da vítima que seguia ao seu lado, o seu amigo Reinaldo, e não tendo sido tal morte representada pelo arguido como resultado da sua acção, era no entanto previsível e evitável, sendo assim manifesto que o arguido agiu com negligência (inconsciente) - artigo 15°, alínea b) do Código Penal - e cometeu, assim, um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137°, n.º1 do Código Penal.
21-Não o entendendo assim, e absolvendo o arguido, o Tribunal Singular violou o disposto nos artigos 24°, n.º 1,25°, n.º l, alínea h) e 54.°, n.os 3 e 4, todos do Código da Estrada e artigos 15° e 137,°, n. l, estes do Código Penal.
22-Pelo que deverá a douta decisão recorrida ser anulada e reenviar- se o processo de novo para a primeira instância a fim de se apurarem os factos essenciais para se formular um juízo de condenação do arguido pela prática do crime por que se encontrava acusado e pronunciado, ou, caso assim se não entenda, deve ser revogada e substituída por outra que condene o arguido como autor de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137,°, n.o 1 do Código Penal.


4. Respondeu o arguido, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, sustentando, em resumo:
Analisada a prova produzida em audiência resulta que o arguido não representou, nem podia representar a morte do amigo, já que esta resulta directa e necessariamente, não do acidente em si, que não foi de forma alguma grave, uma vez que o arguido não sofreu qualquer lesão, e o carro também não ficou danificado, mas sim da própria conduta da vítima que, de forma inesperada, imprevidente, instantânea e repentina, decidiu ignorar as mais elementares regras de segurança, colocando-se com o tronco de fora do vidro, acenando aos amigos.
Para a condenação do arguido era necessária e indispensável a prova de que este violou um dever objectivo de cuidado, que sobre ele impendia e que esta omissão conduziu à produção do resultado típico e que esse mesmo resultado era previsível e evitável para o homem prudente, era ainda necessária a prova de que o agente não tinha usado a diligência exigida para as circunstâncias concretas para evitar o evento
Ora analisada a prova produzida em audiência não ficou provado que a fatídica morte Reinaldo Tavares tivesse resultado de omissão pelo arguido de um dever de cuidado, nem seque que este tenha omitido qualquer dever de cuidado
A conduta do arguido não assumiu nem potenciou um perigo típico para a vida da vítima, pelo que não está preenchido o tipo de ilícito de homicídio negligente.


5. Neste tribunal o Ex.mo PGA emitiu douto parecer no sentido de que não se verifica a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, mas antes determinada valoração das provas à qual a digna recorrente contrapõe a sua própria valoração, sendo certo que a decisão assenta na convicção formada com base na imediação.

6. Cumprido o disposto no art. 417º, nº2 do CPP não houve resposta.
Corridos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre conhecer e decidir.


***


II. FUNDAMENTAÇÃO

1. O recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, sendo certo que a decisão absolutória assenta na circunstância de ter dado como não provados os factos essenciais constitutivos do crime, sendo certo ainda que se procedeu à gravação dos depoimentos prestados em audiência e transcrição dos depoimentos prestados. Pelo que, para a decisão, importa ter presente a decisão da matéria de facto. É a SEGUINTE

A) FACTOS PROVADOS:
1. No dia 29 de Abril de 2001, cerca das 19h.45m. o arguido, acompanhado de Reinaldo Lemos Tavares, seu amigo, conduzia o veículo ligeiro de passageiros, matrícula E-37-55, pela Estrada Florestal, denominada Caminho de Carris, em Vila Chá, Covas, Tábua, no sentido Norte/Sul.
2. O arguido imprimia ao veículo uma velocidade não concretamente apurada.
3. A estrada por onde seguia o arguido, a dada ocasião, assume um traçado curvo à esquerda, atento o referido sentido de marcha.
4. Por virtude de causa não concretamente apurada o arguido, ao aproximar-se dessa curva, entrou em despiste.
5. Desta forma, o veículo conduzido pelo arguido foi embater numa barreira ali existente do lado esquerdo da estrada e capotou.
6. Como consequência do embate, o Reinaldo Lemos Tavares sofreu as lesões descritas e examinadas no relatório de autópsia de fls. 68 e segs., que lhe determinaram, como consequência directa e necessária, a morte.
7. No local do embate, a estrada assume traçado curvo.
8. O estado do tempo era bom.
9. O arguido sabia que não podia transitar com o aludido veículo automóvel na via pública, sem que achasse efectuado seguro obrigatório de responsabilidade civil, o que quis.
10. Mais sabia o arguido que não podia transitar com o aludido veículo automóvel, na via pública, sem que mostrasse realizada inspecção periódica do mesmo, o que quis.
11. O ISSS/CNP pagou a Silvestre Lemos Tavares, a título de despesas de funeral pela morte de Reinaldo Tavares a quantia de € 680,36.
12. O arguido encontra-se desempregado há cerca de três meses e recebe, a título de subsídio de desemprego, a quantia de € 390,00. Vive com a sua esposa e a filha de ambos, de 13 meses de idade, em casa arrendada, e paga a quantia de € 250,00 mensais, a título de renda, sendo que a sua esposa trabalha numa fábrica de confecção e aufere o salário mínimo nacional.
13. O arguido é tido por pessoa cuidadosa e condutor diligente e atento.
14. A morte de Reinaldo Lemos Tavares constituiu um choque para o arguido que, após o acidente, esteve sempre ao lado da vítima até ao seu falecimento.
15. O arguido é primário.

B) FACTOS NÃO PROVADOS:
- O arguido imprimia ao veículo uma velocidade superior a 80 Km/hora e que seguia desatento à condução.
- Foi em virtude da velocidade a que seguia, da desatenção manifestada e revelando falta de perícia, que o arguido ao aproximar-se da curva, entrou em despiste, totalmente desgovernado.
- O veículo conduzido pelo arguido foi embater na barreira existente sempre em derrapagem.

C) MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
O Tribunal baseou a sua convicção, quanto aos factos provados e não provados, na análise crítica de todas as provas produzidas e analisadas em audiência de discussão e julgamento, livremente apreciadas e valoradas em conjugação com as regras da experiência comum.
Concretamente, revelaram-se fundamentais para criar a convicção do Tribunal, quanto aos factos dados como provados, os seguintes meios de prova:
- As declarações do arguido que referiu as circunstâncias de tempo e lugar do acidente, bem como a configuração do local, confessou o facto de o carro que conduzia não ter seguro nem inspecção realizada, referiu a sua relação de amizade com a vítima, que a acompanhou sempre até ao seu falecimento, bem como o choque que constitui para si a morte daquele. Relativamente ao modo como ocorreu o acidente relatou uma versão da dinâmica do mesmo, da qual decorria que nenhuma responsabilidade sua existia na produção do mesmo que, desacompanhada de qualquer outro meio de prova, não logrou convencer o Tribunal da sua veracidade.
O arguido depôs ainda acerca da sua situação económica e familiar.
O depoimento das testemunhas Abel Lucas e Rodrigues, ambos agentes da Guarda Nacional Republicana" a prestarem serviço, à data da prática dos factos, no posto de Tábua" que se deslocaram ao local após a comunicação do acidente e elaboraram o documento de fis. 2 e seguintes (participação e croquis do acidente); ambos referiram que quando chegaram ao local o veículo e a vítima já tinham sido removidos do local onde se encontravam após o embate. Confirmaram as características da via e todos os demais elementos objectivos que constam do auto de participação do acidente, contudo, esclareceram que a descrição do acidente constante na participação é baseada apenas em comentários prestados por pessoas que se deslocaram ao local do acidente após a sua ocorrência" mas que não presenciaram quaisquer factos.
Os depoimentos das testemunhas Ana Luísa Tavares dos Santos Mendonça, namorada da vítima, Maria Leonor Freitas de Oliveira, amiga do arguido e da vítima" Carlos Daniel Alves de Matos, irmã do arguido e da vítima, Lúcia Cristina Tavares Correia, amiga do arguido e da vítima, Ana Margarida Lopes Gomes Pereira, irmã do arguido, José Manuel Monteiro Pereira, cunhado do arguido, Luís Carlos Bernardo Nunes, amigo do arguido e da vítima" tudo pessoas que se encontravam no local do acidente na altura em que o mesmo ocorreu, mas que, contudo, não o presenciaram em virtude de a curva onde o mesmo ocorreu lhes retirar a visibilidade, tendo apenas confirmando as características da via" e referido que o mesmo é pessoa cuidadosa e condutor diligente e atento, e que as características do local onde ocorreu o acidente não permitem que um veículo lá circule com velocidade. Mais referiram que a morte de Reinaldo Lemos Tavares constituiu um choque para o arguido e que este, após o acidente, esteve sempre ao lado da vítima até ao seu falecimento.
Ajudou ainda a formar a convicção do tribunal o relatório de autópsia de fis. 68 e sse, os documentos de fis.2,3, 12, 14 a 16, 30, 35 a 39 e o certificado de registo criminal de fls. 9 e 123.


2. APRECIAÇÃO

A digna recorrente pretende, em primeiro lugar a anulação do julgamento, com reenvio para novo julgamento, com fundamento no vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, ou, caso assim não se entenda, o reexame da decisão da matéria de facto e condenação do arguido com base na prova produzida.

2.1. A alteração da decisão recorrida com os fundamentos invocados enunciados nas alíneas do n.º2 do art. 410º tem o respectivo âmbito delimitado, desde logo, pelo texto do mesmo preceito: “desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência”.
A insuficiência, para a decisão de direito, da matéria de facto provada, há-de também ela resultar do texto da própria decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
Como referem Simas Santos/Leal Henriques in Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 61, “Trata-se de uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher”.
Tal verifica-se “Quando a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta. Insuficiência que resulta de o tribunal não ter esgotado os seus poderes de indagação da descoberta da verdade material, deixando por investigar factos essenciais cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa” – cfr. AC. STJ de 14.11.1998 citado por Simas Santos /Leal Henriques, Recursos, cit., p. 63, bem como outros citados no mesmo local e no CPP Anotado dos mesmos autores, 2ª ed., 2º vol., p. 743 a 760.
No mesmo sentido decidiu o Ac. STJ de 24.06.98, citado ainda no CPP Anotado dos mesmos autores, 2ª ed., II vol., p. 756 que “A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – verifica-se quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a decisão correcta, legal e justa”.
Sendo certo que a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, que é coisa bem diferente – cfr., entre outros citados pelos mencionados autores, Ac. STJ de 13.02.1991, in AJ n.ºs 15/16, p. 7.
Salienta-se ainda, como decidiu o Ac. STJ de 13.05.1998, CJ/STJ, tomo II/1998, p. 199, que “O termo decisão, utilizado no art. 410º, n.º2, al. a) do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – refere-se à decisão justa que devia ter sido proferida e não à decisão proferida”.
O AC. STJ de 14.11.1998 acima referido coloca a questão nos termos em que se nos afigura que deve ser colocada, numa interpretação que articula sistematicamente o conceito de insuficiência não só com o poder/dever de investigar os factos submetidos a julgamento, bem como com o dever de fundamentação imposto ao tribunal, por forma a que a decisão apareça, como justa, dentro daquilo que ao tribunal era exigível que dilucidasse, em função da acusação e defesa e factos relevantes que resultem da decisão da causa, tendo como objectivo ultimo a descoberta da verdade material e a justa decisão do caso submetido à apreciação do tribunal.
Ora, no caso em apreço, a decisão apreciou todos os factos que constavam da acusação. E por outro lado, não tendo sido apresentada contestação escrita, apenas se poderia afirmar que não foi dado o devido relevo / destaque a factos que tenham resultado da discussão da causa, designadamente os alegados pelo próprio arguido, em audiência, em sua defesa.
Mas tal omissão, a verificar-se, não impõe o reenvio para novo julgamento, mas quando muito o cumprimento do 358º do CPP - desnecessário desde que se trate de matéria alegada pela própria defesa, face ao disposto no n.º2 do citado preceito.
Pelo que a questão, no caso em apreço, mais do que a insuficiência, será de reapreciação das provas produzidas, de acordo com o segundo pedido formulado na alegação de recurso – possível, em termos amplos, dado ter havido registo da prova e transcrição, nos termos previstos no art. 431º do CPP.


3.2. Reapreciação da decisão da matéria de facto
A função jurisdicional de aplicação do direito ao caso concreto, fazendo justiça, não fica realizada com uma perspectiva linear de prova ou não prova dos factos da acusação. Tanto mais perante a constatação, indesmentível, no caso, de um acidente de viação com a gravidade que o resultado final evidencia. Bem como perante a alegação do próprio arguido de que é um condutor profissional sendo certo ainda que, tendo prestado declarações, não deu qualquer explicação plausível para o acidente. E muito menos foi invocada ou ventilada qualquer ocorrência súbita que o arguido, enquanto condutor, não pudesse ter previsto e que pudesse ter provocado o despiste.
Os factos da acusação devem ser vistos e interpretados não de forma isolada, soltos ou desgarrados uns dos outros, mas no seu significado de episódio existencial, acontecimento da vida real dotado de unidade de sentido.
Para a reapreciação da decisão dentro do enquadramento referido, importa ter presente o núcleo da questão de facto submetida à apreciação do tribunal, o mesmo é dizer, o “facto histórico ou recorte de vida, enquanto unidade de sentido” submetido a julgamento.
Ora vem submetida à apreciação e decisão do tribunal a conduta do arguido, quando conduzia um veículo automóvel, numa estrada florestal, em terra batida, tendo-se despistado e capotado, assim causando a morte de um amigo que o acompanhava.
Estão em causa, em resumo, duas versões diferentes do acidente que podemos assim sintetizar:
- de um lado a da acusação, de onde resulta o entendimento de que o arguido andava a “fazer rali” (com um automóvel apropriado para o efeito, um “Datsun SSS”, num troço de estrada onde costumava decorrer uma prova “classificativa” do extinto Rali de Portugal, quando fazia parte do “Mundial de Ralis”), imprimindo ao veículo velocidade superior a 80 Km./h., inadequada para o local, em terra batida, numa curva; e
- do outro a versão do arguido que, dizendo-se amante de automóveis antigos, alega que foi para aquele lugar “experimentar a caixa” de velocidades do velho automóvel, circulando a menos de 40 Km./h., mostrando-se extremamente cuidadoso, tanto que levou o dito “Datsun SSS” para o local numa carrinha de um amigo, sendo que o único culpado foi o próprio falecido que ia a brincar, com parte do corpo colocado de fora do automóvel, exibindo-se para os amigos que estavam nas proximidades.
Estando o tribunal vinculado aos factos alegados por acusação e defesa, poderia dizer-se, no limite, que, no caso, a tarefa do julgador se resumiria a determinar qual destas duas versões se conforma com a prova produzia, tendo em vista o resultado, inequívoco, do acidente em que o automóvel capotou (portanto necessariamente animado de velocidade suficiente para causar esse capotamento), tendo sempre por referência as regras da experiência comum.
Ainda que o tribunal deva esclarecer, até onde for processualmente possível, a verdade material dos factos trazidos a julgamento, usando se necessário dos mecanismos previstos no art. 340º e 358º do CPP, dificilmente o núcleo da matéria a ponderar estará fora da acusação e da defesa. Mas a decisão, dando os factos como provados ou não provados, no que toca ao comportamento de cada um dos intervenientes, deve apresentar uma estrutura lógica e racional que se enquadre na objectividade inequívoca, tendo por referência o caso concreto na sua envolvência e significado sociológico. Não basta fazer o levantamento, indiferente, dos depoimentos prestados em audiência, a favor ou contra o arguido. Partindo do enquadramento objectivo, certo e indiscutível dos factos, deve esclarecer o caso, dentro do que é razoavelmente exigível, tentando reconstruí-lo, a partir do resultado, tendo em conta todos os elementos de prova, conjugando-os entre si e com as regras da experiência comum. E não logrando chegar a um veredicto, a decisão deve explicitar porque não foi possível, apesar daquilo que é certo e inequívoco.

Com efeito, como refere Marques Ferreira in Jornadas de Direito Processual Penal do C.E.J., O Novo Código de Processo Penal, ed. Almedina, p. 229-230, “de acordo com os princípios informadores do Estado de Direito Democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado nos arts. 320º, n.º1 e 210º, n.º da Constituição a fundamentação deve ser tal que, intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico e racional que lhe subjaz. E extraprocessualmente deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade”.
O acto de julgar não pode resumir-se à constatação de determinado número de depoimentos num sentido ou noutro, podendo dizer-se que se assim fosse constituía tarefa desnecessária – a sorte do pleito resultaria do número de vozes levantados contra ou a favor do arguido, sendo desnecessária a mediação do juiz.

Focando o caso em apreço, verifica-se que a decisão da matéria de facto, assenta nesta leitura da prova: as testemunhas ouvidas declararam que o arguido não andava a fazer rali e imprimia ao veículo velocidade inferior aos 80 km./h., indicados na acusação, logo tal facto não pode ser dado como provado, daí se impondo a absolvição do arguido.
No entanto, em termos de senso comum, sendo inequívoco o acidente, fica a impressão que algo fica por explicar, face à gravidade do acidente. Tanto mais que o “excesso de velocidade” constitui um conceito relativo, que não se basta com o apuramento da velocidade instantânea, mas há-de resultar do confronto da mesma com as circunstâncias em que se verifica.
Com efeito, nos termos do art. 24º, n.º1 do C. E. “O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo às condições da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.
No caso, se é certo que não há prova directa da velocidade superior a 80 Km./h., o excesso poderá alcançar-se com recurso à prova indirecta, conjugando todos os elementos de prova entre si e com as regras da experiência comum.
Com efeito, é conhecida a clássica distinção entre prova directa e prova indirecta ou indiciária – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Curso de Processo Penal, 3ª ed., II vol., p. 99.
Aquela incide directamente sobre o facto probando, enquanto esta incide sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar.
Embora a nossa lei processual não faça qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária, a aceitação da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, embora sendo uma convicção pessoal, como acima se disse, terá que ser sempre racional, objectivável e motivável.
Acresce que na apreciação da prova indirecta ou indiciária que incide sobre factos diversos do tema de prova (sujeita à livre apreciação nos termos do art. 127º do CPP e que deve ser devidamente fundamentada) mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar.
Sendo certo que a prova indirecta exige um particular cuidado na sua apreciação, sendo certo que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 3ª ed., II vol., p. 100/1001.
Na expressão de MARQUES FERREIRA (Jornadas, cit., p. 221): “o direito probatório, abrangendo as normas relativas à produção e valoração de provas, constitui o verdadeiro cerne da qualquer processo” ... “a arte do processo não é essencialmente senão a arte de administrar as provas”.
Se é certo que o CPP normativizou cuidadosamente a matéria atinente à prova, dentro da preocupação de acatamento dos imperativos constitucionais relativos à dignidade pessoal e integridade física do cidadão, no quadro de um Estado de Direito Democrático e Social em que a justiça deve ser alcançada exclusivamente por meios processualmente válidos e efectivamente controláveis, não é menos certo que, salvas as limitações em que a apreciação da prova é normativizada, vigora como princípio geral o princípio fundamental da livre apreciação das provas, acolhido, de forma expressa, no art. 127º do CPP, princípio esse que, entre nós tem sido unanimemente aceite a partir da primeira metade do Séc. XIX com as reformas judiciárias saídas da Revolução Liberal – Cfr. Marques Ferreira, in Jornadas, cit., p. 227.
Nesta matéria, apesar da minuciosa regulamentação das provas, continua assim a vigorar o princípio fundamental de que na decisão da “questão de facto”, a decisão do tribunal assenta na livre convicção do julgador, ainda que devidamente fundamentada, devendo aparecer como conclusão lógica e aceitável à luz dos critérios do art. 127º do Cód. Proc. Penal.
A reconstituição processual da realidade histórica de certo facto humano não é ou dificilmente poderá ser a expressão precisa e acabada de um qualquer meio de prova e particularmente da prova testemunhal, dadas as naturais dificuldades em se reproduzir fiel e pormenorizadamente o que foi percepcionado ou vivenciado, geralmente de forma passageira e ocasional, muito antes da audiência de discussão e julgamento, local privilegiado para a produção e discussão das provas.
Muito menos podem os vários depoimentos ser entendidos isoladamente, retirando-os do respectivo contexto, apenas com base em frases transcritas num mero suporte documental e em certas imprecisões de algum dos testemunhos – por vezes justificáveis desde logo pelas circunstâncias dialécticas em que são produzidos, durante o interrogatório cruzado, formal, surgindo sempre um novo elemento em cada questão suscitada por cada um dos sujeitos processuais. Questões já de si formuladas dentro da perspectiva antagónica e por vezes conflituante de acordo com a posição cada sujeito processual.
Como refere o Prof. FIGUEIREDO DIAS (Direito Processual Penal, p. 202-203) “ a apreciação da prova é na verdade discricionária, tem evidentemente como toda a discricionariedade jurídica os seus limites que não podem ser ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova, é, no fundo uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios de objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo”...”não a pura convicção subjectiva ... se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão ... a convicção do juiz há-de ser .. em todo o caso uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de se impor aos outros ... em que o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável”.
“A livre convicção é uma conclusão livre, porque subordinada á razão e á lógica e não limitada por prescrições formais exteriores ... o julgador, em vez de se encontrar ligado por normas prefixadas e abstractas sobre a apreciação de prova, tem apenas de se subordinar à lógica, à psicologia, e às máximas da experiência” – cfr. CAVALEIRO FERREIRA, Curso de Processo Penal, II, p. 298.
O formalismo e rigor do CPP, com o acrescido dever de fundamentação exigido ao juiz, poderá ser porventura indutor de uma postura de mero “recenseamento” de provas produzidas do que, através delas tentar reconstituir, sempre no respeito da lei, mas empenhadamente, o facto. A decisão, tendo que assentar nas provas produzidas em audiência envolve sempre algo desconhecido, sendo que a certeza absoluta só poderia existir se o julgador tivesse assistido ao facto. Mas, em contrapartida, essa circunstância constituía impedimento automático do acto de julgar – cfr. art. 39º, n.º1, al. d) do CPP.

No caso em apreço, como se disse, a decisão recorrida assenta no pressuposto de que, tendo presentes os depoimentos prestados em audiência, não foi possível estabelecer com a necessária segurança os factos essenciais para a procedência da acusação.
Não faz porém - apesar de o excesso de velocidade ser ligado pela acusação a que os factos teriam ocorrido num circuito do Mundial de Ralis - qualquer referência ao depoimento do agente da GNR, na parte em que relata factos de que tem conhecimento directo.
Ora, como resulta do seu depoimento, para além de ouvir dizer no local a vários populares que “andavam ali a fazer rali”, a testemunha declarou saber que o local do acidente era um troço do “mundial de ralis”, invocando, nessa parte, como razão de ciência, o facto de ter feito, na qualidade de agente da GNR, anos consecutivos, segurança, no local, ao Rali de Portugal.
Tão-pouco a decisão deu qualquer realce às declarações do arguido em como: era condutor profissional experiente; “andava a experimentar a caixa” do automóvel; que se tratava de um “Datsun SSS”; que a vítima ia sentada na janela com o corpo de fora.
E se a vítima ia com o corpo de fora, no banco ao lado do arguido, dada a dificuldade que a colocação nessa posição envolve, para, sendo extremamente difícil, senão impossível, de realizar em movimento, não podia o arguido deixar de se ter apercebido desse facto, tanto que refere que a vítima ia a exibir-se para os amigos, que se encontravam a alguma distância.
Tão pouco deu relevo a que as testemunhas – amigos comuns ao arguido e à vítima, entre elas a namorada da vítima, uma irmã e um cunhado do arguido – referiram que se encontravam numa estrada florestal (tendo-se deslocado para o efeito das suas residências, o que não tem justificação razoável numa simples experimentação de um carro velho).
Sendo certo que o seus depoimentos têm que ser interpretados nesse contexto. Com efeito, sendo amigos do arguido e do falecido, dando-se o caso de estes andarem a fazer “rali”, também esses amigos comuns acabavam por estar envolvidos na mesma actividade ilícita, com a natural reserva em assumi-la, tanto mais que daí resultou a morte do amigo que nada pode trazer de volta, e, sendo a vítima também culpada, não se justificará, na sua perspectiva de amigos comuns da vítima e do arguido, a condenação deste, por já suficientemente castigado com o peso da morte do amigo e companheiro.

Fazendo um resumo dos aspectos mais relevantes da prova produzida temos:
- o arguido andava a “experimentar” o automóvel – declaração do arguido das testemunhas seus amigos;
- num local que constituía um troço do Mundial de Ralis - depoimento do agente da GNR, com conhecimento de causa, por ali ter efectuado serviço de segurança às provas e não só de ouvir dizer, como parece resultar da sentença recorrida;
- a vítima mortal ia-se “a exibir para os amigos”, sentado na janela, com o tronco e a cabeça de fora, o que aponta para o aspecto lúdico da condução do arguido;
- a presença do grupo de amigos a assistir – Ana Luísa (namorada do falecido), Maria Leonor, Carlos Daniel, Lúcia Cristina, Ana Margarida (irmã do arguido), José Manuel (cunhado do arguido);
- amigos que ali se deslocaram, de propósito, para o efeito, nos seus automóveis. E a simples experimentação de uma caixa de velocidades de um automóvel velho não justificava a deslocação das respectivas residências até aquele local isolado;
- “exibição” / brincadeira referida pela testemunha Ana Luísa, namorada do falecido, de que este “na segunda vez que passaram ia na brincadeira, ia sentado na janela” – facto reconhecido também pelos outros amigos/testemunhas, e pelo arguido;
- tratava-se de local já anteriormente frequentado pelo arguido e amigos – v. depoimento de Luís Carlos: “é um sítio que a gente conhece, de vez em quando passávamos por ali”;
- o automóvel era um Datsun “SSS” ou “Tri S” como sugestivamente ficou conhecido - que, se bem que antigo (e aqui a antiguidade se o desvaloriza, justifica o excesso, dado o valor em causa ser reduzido) constitui um automóvel adequado às “emoções da velocidade”.
- transporte do automóvel desde a residência do arguido até ao local, na carrinha de um amigo, facto invocado pelo arguido - com inerente despesa injustificada para uma simples experimentação de caixa de um carro velho;
- o acidente ocorreu quando o veículo ia “a descer”, depois de previamente o arguido ter efectuado, pelo mesmo troço de caminho, uma passagem para cima – depoimento de várias das testemunhas, amigos comuns do arguido e da vítima;
- capotamento do veículo – incompatível com a velocidade inferior a 40 Km./h. indicada pelo arguido e testemunhas, a que dificilmente aconteceria um acidente desta envergadura, pelo menos sem a intervenção de outros veículos, ou qualquer outro facto imprevisto;
- ausência de intervenção de outros veículos ou algum factor imprevisto, que ninguém referencia;
- experiência do arguido - condutor profissional, como o próprio reconhece.
- Podendo acrescentar-se, para rematar o quadro, que o acidente ocorreu num Domingo - 29 de Abril de 2001 – facto notório, por acessível a qualquer pessoa do simples exame de um calendário ou de uma agenda do ano de 2001. Sendo legítimo questionar que outra coisa poderia este grupo de amigos andar a fazer, naquele troço do extinto “mundial de ralis”, num Domingo à tarde, em local afastado das suas residências, andando o arguido a “experimentar” um Datsun SSS, numa estrada florestal – que ia dar a “Candosa”, como refere o arguido (sendo a prova da “Candosa” bem conhecida no rali de Portugal), se não “experimentar” sim, mas a velocidade do automóvel?. Sendo certo a “simples experimentação da caixa” que o arguido refere contrariada por todos os referidos elementos conjugados com a experiência comum (dia, hora, local, automóvel, deslocação do automóvel experimentado em transporte próprio).

Acresce que em matéria de circulação rodoviária, sujeita a apertada regulamentação, dado o perigo criado pela utilização da máquina automóvel e da velocidade que envolve, tem-se admitido que a infracção de norma de trânsito, constitui presunção (natural, ou judicial) de que não foi cumprido o dever de cuidado específico imposto pela norma violada, desde que o resultado seja daqueles que a lei ou regulamento quis evitar, ou se situe dentro do âmbito dos interesses protegidos pela norma – neste sentido AC. RC de 06.03.2002, na CJ, tomo II/2002, p. 42. Isto sob pena de se transformar a prova, em tribunal, dos pressupostos dos crimes cometidos no âmbito do trânsito rodoviário, em tarefa impossível, ou lotaria forense, como já foi chamada.
No entanto trata-se de uma presunção judicial, natural, ou de prova – nos termos consentidos pelo art. 439º e 351º do C. Civil - que não se confunde com a presunção legal de culpa, inadmissível em processo penal, face o princípio in dubio pro reo. Neste sentido v. Ac. R. P. de 02.02.1982, no BMJ 314º, p. 212.
Este parece ser também o sentido da anotação de F. Dias no C. Penal Conimbricence, ao art. 137, p. 108: “uma tal violação (de norma de algum regulamento) pode por isso constituir legitimamente indício do preenchimento do tipo de ilícito, mas não pode, em caso algum fundamentá-lo”.

Perante a conjugação de todos os elementos acima referenciados, em termos de experiência comum – e há um acidente grave incontornável – a única explicação razoável em termos susceptíveis de fazer “encaixar todas as peças do puzzle” é a de que o arguido andava, na companhia dos amigos, a divertir-se, procurando emoções fortes da velocidade, portanto nos “nos limites” que o carro (SSS) permitia, a descer, não tendo controlado o automóvel por essa circunstância, sendo essa a causa do acidente, cuja gravidade e as consequências estão aí para confirmar, tal como o capotamento, só compatível com uma velocidade de todo inadequada às condições da via, para mais, sendo o condutor um profissional experiente e conhecedor do local.
Do mesmo modo da defesa do arguido e natureza das coisas, não pode deixar de se concluir que o arguido se apercebeu, como não podia deixar de ser, dado seguirem lado a lado e a dificuldade inerente em a vítima se colocar naquela posição, de que a vítima ia sentada na janela, com o corpo de fora.

Pelo que se entende ser de alterar os pontos 2, 3 e 4 da matéria de facto provada, nos seguintes termos:
2. O arguido andava a experimentar o veículo, tendo efectuado uma primeira passagem pelo mesmo local, a subir.
3. A estrada por onde o arguido seguia, assume, a dada ocasião, um traçado em curva, à esquerda, atento o referido sentido de marcha (texto da decisão recorrida).
3-A. O arguido, apercebeu-se que o falecido ia sentado na janela, com o corpo de fora e os pés para dentro.
4. Devido á velocidade que o arguido imprimia ao veículo, que não foi possível definir em concreto mas que não lhe permitia descrever a curva em segurança, dadas as características da via - curva, terra batida, com lama e sulcos deixados pelas chuvadas - o arguido não conseguiu controlar o veículo, entrando em derrapagem.

Dado que esta matéria contende com a matéria indicada na sentença no elenco da “não provada”, por inconciliável com a acabada de referir, terá que ser eliminada a matéria de facto constante da sentença recorrida como “Não provada”.

Podia questionar-se se tal não obriga à comunicação prévia, nos termos do art. 358º do CPP.
No entanto, como já acima foi referido, os factos ora recenseados sob os n.ºs 2 e 3-A resultam da defesa apresentada em audiência pelo arguido e o n.º3 constava já da sentença, apenas se elencando para sequência.
Por outro lado, que foi a velocidade excessiva a causa do acidente consta da acusação, constituindo o facto essencial ali imputado ao arguido como causa do acidente. E o facto provado não constitui surpresa para o arguido, tanto que constituiu não só objecto da instrução, como ainda de toda a ampla discussão produzida em audiência, e agora no recurso, mantendo-se o facto ora dado como provado dentro da velocidade apontada como causa do acidente.
Sendo assim desnecessária qualquer comunicação.



2.4. Fundamentação de DIREITO

2.4.1. Dada a alteração da decisão da “questão de facto”, importa daí retirar todas as consequências legais, em termos de responsabilidade criminal, face ao comando dos arts. 402º, n.º1 e 403º, n.º3 do CPP.
No caso em apreço, estamos perante um crime negligente, título excepcional de responsabilidade em direito penal – cfr. art. 13º do C. Penal.
Postula o art. 15º do C. Penal: Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
A negligência inconsciente, a que se reporta a al. b) é a que suscita maiores dificuldades de aplicação. Nesta modalidade de imputação subjectiva, a lei, para evitar a realização dos resultados típicos antijurídicos, proíbe a prática de condutas idóneas para os produzir, querendo que eles sejam representados pelo agente. Ou permite tais condutas mas rodeadas dos necessário cuidado para que os resultados se não produzam.
A localização da negligência no tipo de ilícito ou na culpa tem sido objecto de discussão, havendo quem entenda que se trata exclusivamente de um elemento da culpa; outros que é de todo estranha à culpa e releva apenas ao nível do tipo de ilícito subjectivo; e numa posição intermédia a teoria da “dupla valoração”, segundo a qual, embora primacialmente constitua elemento do tipo de ilícito subjectivo também releva como grau de culpa, entendida como “juízo autónomo de censura ético-jurídico” – cr. Figueiredo Dias, Temas básicos de Direito Penal, Coimbra ed., p. 349 e segs.
Este entendimento da “dupla valoração” é o consagrado, segundo o citado autor (ob. cit., p. 352) pelo art. 15º: no proémio unitário onde se contém a violação do tipo de ilícito (violação de cuidado a que o agente está obrigado e é objectivamente devido) e o tipo de culpa violação do cuidado de que o agente é capaz segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais.
O tipo de ilícito do facto negligente, adverte o mesmo autor “não deixa pois, em caso algum, integrar-se completamente pela mera causação de um resultado (por ex. no crime do art. 137º pela morte de outra pessoa causada pela conduta do agente). Para além disso torna-se indispensável que tenha ocorrido a violação, por parte do agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu ao resultado típico; e, consequentemente que o resultado fosse previsível e eceitável para o homem prudente”.- ob. cit. p. 353-354.
“Assume importância fundamental, na aferição do preenchimento por uma conduta do tipo de ilícito negligente, a determinação do cuidado objectivamente devido no caso concreto” ... “O que em abstracto é perigoso pode deixar de o ser no caso concreto” – cfr. ob. cit. p. 359 e 360
A violação do dever objectivo de cuidado conexionado com um determinado resultado não implica necessariamente a imputação ao agente do crime negligente respectivo, sob pena de se regressar à teoria da versari in re ilicita, segundo a qual se o agente praticar um acto proibido, são-lhe imputadas como negligentes todas as consequências que daí advenham.
Tal dever objectivo de cuidado tem duas manifestações: o cuidado interno, ou seja, o dever de representar ou prever o perigo que da conduta pode advir para o bem jurídico tutelado e o cuidado externo, que se traduz no dever de praticar um comportamento externo correcto, com vista a evitar a produção do resultado típico.
A delimitação do dever de cuidado há-de analisar-se segundo um juízo ex ante, em que se atenderá ao cuidado exigível "a um homem medianamente conhecedor e diligente, do tipo social e profissional do autor, colocado na situação concreta deste e com os conhecimentos especiais que o autor tinha".
Como escreve ROXIN (Problemas Fundamentais de Direito Penal, 257), “a questão fundamental, no que concerne aos crimes negligentes é a seguinte: como se pode reconhecer se uma violação do dever de cuidado à qual se segue uma morte, fundamenta, ou não, o homicídio negligente? ... examine-se qual a conduta que não se poderia imputar ao agente como violação do dever, de acordo com os princípios do risco permitido; faça-se uma comparação entre ela e a forma de actuar do arguido e comprove-se então se, na configuração dos factos submetidos a julgamento, a conduta incorrecta do autor fez aumentar a probabilidade de produção do resultado, em comparação com o risco permitido. Se assim for, existe uma violação do dever que se integra na tipicidade e dever-se-á punir a título de crime negligente. Se não houver aumento do risco, o agente não poderá ser responsabilizado pelo resultado e consequentemente deve ser absolvido”.
A negligência não se satisfaz, com a mera postergação de um dever objectivo de cuidado, aqui imposto por uma norma legal. Impõe-se ainda subjectivar esse dever, estabelecendo um nexo psicológico entre o agente e o facto que é consequência da violação do dever de diligência.
No caso, alega o arguido que não ficou provado que tenha omitido qualquer dever de cuidado.
No entanto, neste aspecto o art. 24º, n.º1 do C. E. supra citado é explícito: “O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo às condições da via e do veículo, à carga transportada, às condições metereológicas ou ambientais e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.
A que acrescem as condições “conhecidas” do condutor (características e condições do piso irregular, enlameado, a curva), bem como as suas capacidades (facto de se tratar de condutor profissional).
Também no que toca à circunstância de o amigo seguir sentado na janela com parte do corpo de fora que o arguido aceita e invoca em seu favor, o arguido sustenta que não violou nenhum dever de cuidado.
Ora, enquanto dono e condutor do veículo - com a direcção efectiva do mesmo – afigura-se que tal entendimento não pode ser aceite.
Com efeito o dever de não permitir tal actuação da parte de um ocupante, naquelas circunstâncias, retira-se antes de mais do dever geral de cuidado – de que o Código da Estrada mais não é do que a adaptação desse dever a cada caso concreto, em função de cada circunstância típica e dos conhecimentos técnicos. Face ao incremento do perigo que tal actuação envolve, para além daquele que representa a simples condução de veículo automóvel, qualquer pessoa de entendimento mínimo, se apercebia do incremento de risco que tal significava e teria impedido tal actuação.
No entanto esse dever resulta desde logo do disposto no art. 3º do C. E.: “As pessoas devem abster-se de actos que ... comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias”.
Bem como do art. 54º, n.º 3 do mesmo diploma: “É proibido o transporte de passageiros ... de modo a comprometer a sua segurança ou a segurança da condução”.
E mais especificamente do n.º 4 do mesmo artigo: “É igualmente proibido o transporte de passageiros fora do dos assentos, salvo em condições excepcionas a definir em regulamento”.
A circunstância de o falecido ter contribuído, com a sua conduta – ao sentar-se na porta, com o tronco e cabeça de fora – para a sua própria morte, não invalida que o arguido seja o responsável em primeiro grau. Desde logo porque foi ele que provocou o despiste e era ele que tinha o “domínio sobre o facto” enquanto dono e condutor do veículo. Se não fosse a conduta do próprio arguido, a do falecido, só por si, nunca poderia ter causado a morte, dado que era aquele que conduzia o veículo. Pelo que nem se pode falar aqui de interrupção do nexo causal.
O resultado é assim imputável ao arguido, a título de culpa negligente – negligência inconsciente – dado que, conhecendo bem o traçado e estado da via, imprimia ao veículo uma velocidade de todo inadequada para descrever a curva em segurança, dando causa ao acidente e ainda por circular naquelas condições, sabendo e permitindo que o amigo seguia a seu lado sentado na janela, com o tronco e cabeça de fora e pés para dentro, aumentando assim o risco de lesões graves ou morte.
Tudo para concluir que em face da alteração da matéria de facto operada se mostram verificados os pressupostos quer do tipo objectivo quer do tipo subjectivo do crime que vem imputado ao arguido.



2.4.2. Importa por isso determinar agora a medida da pena a aplicar ao arguido
O crime referenciado é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Dispõe o art. 40º do C. Penal, no seu nº1 que “a aplicação da pena ... visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. E acrescenta o nº2: “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Como refere FIGUEIREDO DIAS, in Direito Penal Português, As Consequência Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, p. 227 - tendo já por referência o projecto que veio a ser plasmado no art. 40º da redacção actual do Código Penal - as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas.
“... só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal a conferir fundamentos e sentido às reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas de prevenção positiva ou de integração, isto é de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face á violação da norma ocorrida” – Cfr. F. Dias, As consequências, p. 72.
Neste contexto sustenta ROBALO CORDEIRO, após a revisão de 1995 do C. Penal, in Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal – CEJ - p. 48, que “as exigências geral positiva e de prevenção especial de socialização dominam agora a operação de escolha da pena, a culpa esgotou as suas virtualidades na determinação da pena principal”.
A pena há-de ser eficaz por forma a proteger o bem jurídico violado servindo como elemento dissuasor da prática de novos crimes, constituindo a retribuição justa do mal praticado, dando satisfação ao sentimento de justiça e segurança da comunidade. Para além de dever contribuir, na medida do possível, para a reinserção social do delinquente. Sendo a culpa já não "o critério e medida da pena", mas apenas o seu "limite".

O art. 70º do C. Penal postula: “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dará preferência à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da pena”.
No caso o crime, como se referiu á punido com prisão ou multa.
Ora, tendo em atenção designadamente a necessidade de protecção do bem jurídico violado, atenta a sinistralidade das estradas portuguesas, a que o espírito “latino” de desafiar o risco sem pensar nas consequências, a gravidade dos factos, que o arguido não assumiu os mesmos no essencial, o grau da negligência, entende-se que no caso a multa não satisfaz de forma adequada as finalidades da pena na vertente da protecção dos bens jurídicos em questão, pelo que será aplicada pena de prisão.

Por sua vez o art. 71º, nº1 do CP estabelece depois um critério geral segundo o qual “a medida da pena deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigência de prevenção” - denotando assim (ao colocar a culpa em primeiro lugar) não ter sido adaptado à nova redacção do art. 40º.
Critério que é precisado depois no nº2, que estabelece: na determinação da pena há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.
Os factores concretos a ter em conta são depois definidos nas várias alíneas do citado nº2, reconduzindo-se a três grupos ou núcleos fundamentais: factores relativos à execução do facto {alíneas a), b) e c)}; factores relativos à personalidade do agente {alíneas d) e f)}; e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior a facto {alínea e)}.

No caso a morte do amigo constituirá sem dúvida a maior pena que ao arguido poderá ser aplicada. Mas os factores a ter em conta são os referidos, sendo que a culpa do falecido não retira a do próprio arguido que era quem detinha o “domínio do facto”, enquanto dono e condutor do veículo era o arguido.
Diversões do género, entre jovens, com grande imprevidência, não podem levar à desresponsabilização, sendo que em termos de prevenção geral numa sociedade em que os tempos livre ocupam cada vez mais tempo, surgem com alguma frequência ecos de aventuras de velocidade com consequências nefastas como a dos autos.
Em contrapartida o arguido apenas pôs em perigo a vida dele e do amigo que embarcou com ele na aventura, sabendo os riscos que corria. Sendo certo que não colocou em perigo outros utentes da via, dado tratar-se de estrada florestal, sem trânsito. Acresce a falta de antecedentes criminais do arguido, a sua integração social, com família constituída.
Tudo visto, entende-se ajustada a pena de 10 (dez) meses de prisão.

2.4.3. Nos termos do art. 50º do C. Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão não superior a 3 anos de prisão se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Como escreve FIGUEIREDO DIAS, in As Consequência Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, p. 342, para além do pressuposto formal (pena inferior a 3 anos de prisão), alei exige um pressuposto e ordem material, ou seja a verificação, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do caso, de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido no futuro.
O pressuposto da protecção dos bens jurídicos violados foi posto em destaque como primeira finalidade das penas, como acima de disse, pelo art. 40º, n.º1 do C. Penal, após a Reforma de 95.
Apesar de tudo, dada a actuação da própria vítima que assumiu de alguma forma o risco que acabou por ser fatal, entende-se que o sentimento de justiça e segurança da comunidade, ficará acautelado com a suspensão da pena.
Do mesmo modo afigura-se legítimo fazer o mencionado juízo de prognose favorável no sentido de que a ameaça da pena bastará para afastar o arguido de novas infracções, satisfazendo, do mesmo passo, as demais finalidades da pena, dado o arguidos ser primário e socialmente integrado, para além de lamentar profundamente e morte do amigo.
Pelo que se entende ser de suspender a execução da pena pelo período de 3 anos.


2.4.4. Direito de sub-rogação invocado pelo I.S.S.S. (legal sucessor do ex-Centro Nacional de Pensões - art.3º, nº6 do DL 45-A/2000, de 22.03 e art.2º, nº1 do DL 316-A/2000, de 7/12), quanto ao subsídio de funeral
Como refere SINDE MONTEIRO in Estudos Sobres Responsabilidade Civil, Coimbra, 1983, 78, o problema da coordenação entre a responsabilidade civil e as restantes fontes de reparação (designadamente a prestada pela Segurança social ou outras prestações do Estado aos seus agentes) constitui uma questão de capital importância no futuro, definindo o papel que as diferentes fontes devem desempenhar no interior de um «serviço geral de segurança».
A sub-rogação pelo devedor, como forma de transmissão de créditos (prevista no Capítulo do Código Civil subordinado a esta epígrafe), supõe que um terceiro cumpre uma obrigação a que é alheio – cfr. art. 589º do C. Civil, que define a sub-rogação pelo próprio credor que recebe a prestação de terceiro.
Ao lado da sub-rogação pelo credor, que tem natureza contratual, existe a sub-rogação legal, que resulta de “outras disposições da lei” - art. 592º do C. Civil.
Nos termos do actual art.66º da Lei 17/2000, de 8/08 (redacção idêntica à do art. 16º da Lei 24/84 de 14.08), que define as bases do sistema de Segurança Social, no caso de concorrência, pelo mesmo facto, do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhe cabe conceder.
No desenvolvimento daqueles princípios, estabelece o art. 3º do DL 59/89 de 22.02 que os devedores da indemnização são solidariamente responsáveis pelo reembolso dos montantes que tenham sido pagos pelas Instituições de Segurança Social.
No preâmbulo do citado DL 59/89 realçava-se que “a Segurança Social assegura provisoriamente a protecção do beneficiário, cabendo-lhe, em conformidade, exigir o valor das pensões ou dos subsídios pagos”.
A Segurança Social tem assim uma “função supletiva” que lhe confere o direito de reembolso das quantias pagas, por parte do responsável civil do evento que determinou o pagamento dessas prestações.
Responde provisoriamente, em primeira linha. E os pagamentos que efectuou são impostos pela lei, não podendo afirmar-se que pagou indevidamente.
Mas, depois, como refere ANTUNES VARELA, Obrigações, I. Vol., p. 697, o risco próprio do veículo causador do acidente funciona como uma causa mais próxima do dano.
No que toca ao subsídio de funeral, nos termos do disposto no art. 11.º/1, do DL n.º 133-B/97, de 30-5, constitui-se como uma «prestação que visa compensar despesas de funeral», que não pode, pelo seu âmbito e objectivos, deixar de ver-se integrado no referido art. 16.º, da LSS.
A questão da sub-rogação da Segurança Social pelos subsídios e pensões pagas aos seus beneficiários tem dado origem a decisões jurisprudenciais desencontradas, não só no regime anterior (cfr. DARIO M. ALMEIDA, Manual de Acidentes de Viação, p. 446), como no actual – cfr. AMÉRICO MARCELINO, Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 5ª ed., 2001, 539.
A jurisprudência maioritária tem entendido que há direito de sub-rogação das Instituições de Previdência (pelas prestações já efectivamente pagas), sendo a sua responsabilidade subsidiária em relação aos civilmente responsáveis - neste sentido, v., para além da citada na decisão recorrida, na jurisprudência do STJ, Ac STJ de 28.10.92, CJ, IV, 29; Ac STJ de 29.09.93, CJ/STJ, III, 40; Ac STJ de 05.01.95, na CJ/STJ, I, 163; Ac. de 01.06.1995, na CJ/STJ, II, 222; Assento do STJ de 09.01.1977 in D.R. 22.03.78 - I Série.
Trata-se de um dos casos de sub-rogação previstos em outras disposições da lei, sendo consequentemente devidas, a tal título, o reembolso, pela demandada, aos demandantes CNP e CRSS, as prestações por estes antecipadas, a título de subsídio por morte e de subsídio de funeral - excerto do Ac. RP 7.03.2001, www.dgsi.pt., citando vários outros do mesmo tribunal, no mesmo sentido.
Como refere o Acórdão STJ de 05.01.1995, supra citado, “tem de se concluir que, nas relações com o ofendido, o referido serviço (CNP/ISSS) é um co-devedor solidário da respectiva prestação e que, nas relações internas entre o mesmo serviço e o lesante, este último funciona como principal pagador, por só ele, a final, dever suportar o encargo da dívida, ao passo que o primeiro assume a natureza de simples garantia do pagamento da obrigação”.
Sufraga-se o entendimento do acórdão do T.R.E. de 16.11.2000, na CJ, 2000, V, 264/266 (citando no mesmo sentido os acórdãos da R.E. de 28.10.97 e 30.19.97, exarados respectivamente nos processos 248/97 e apelação 613/96 e o Acórdão R.L. de 18.10.95, no BMJ 450, 552, para além de outros já referidos supra): “na senda de grande parte da jurisprudência temos visto defender o entendimento que perfilha a orientação de que ao Centro Nacional de Pensões assiste o direito a ser reembolsado das prestações sociais por si pagas, nelas se incluindo o subsídio de funeral”.
Não se trata de liberalidade do ISSS, mas sim de uma obrigação legal que tem por fundamento o acréscimo de despesas dos familiares do beneficiário causadas pelo acto ilícito civil - que o ISSS não teria que suportar pelo menos no momento em que o suportou se não fosse esse facto ilícito. Se é certo que sempre o ISSS teria que pagar o subsídio de funeral, não existe uma relação causal directa entre o pagamento do subsídio por morte que o ISSS teria que suportar, por causa natural, num futuro mais ou menos longínquo e o respectivo pagamento por acidente causado por terceiro.
Ao argumento de que o subsídio de funeral constitui como que “um custo normal” que a Segurança Social sempre teria que suportar, pode contrapor-se, na mesma lógica, que sendo pago por morte natural, tendo por referência a esperança média de vida, o falecido, até lá, continuaria a contribuir para os Cofres da Instituição.
Por outro lado, se a lei não distingue, também não deve o intérprete fazê-lo: ubi lex non distinguet nec nos distinguire debemos.
Conclui-se pelo direito do ISSS de ser reembolsado pelo arguido do subsídio de funeral pago por morte da vítima.




III. DECISÃO
Termos em que se decide:
A) - julgar procedente o recurso da matéria de facto, alterando-se os pontos 2, 3 e 4 da matéria de facto provada, nos seguintes termos:
2. O arguido andava a experimentar o veículo, conhecendo o local.----
3. A estrada por onde o arguido seguia, assume, a dada altura, um traçado em curva, à esquerda, atento o referido sentido de marcha (texto da decisão recorrida).----
3-A. O arguido sabia que Reinaldo Tavares ia sentado na janela, com o corpo e cabeça de fora do automóvel e pés para dentro.----
4. Devido á velocidade que o arguido imprimia ao veículo, que não foi possível definir em concreto mas que não lhe permitia descrever a curva, dadas as características da via - curva, terra batida, lama e sulcos deixados pelas chuvadas - o arguido não conseguiu controlar o veículo, entrando em derrapagem.-----
B) - Eliminar, em consequência, a matéria indicada na sentença no elenco da “não provada”.
C) - Manter em tudo o mais a decisão da matéria de facto recorrida.
D) - Em face da referida alteração da decisão da matéria de facto, julgar a acusação procedente, condenando o arguido, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência p e p pelo art. 137º, n.º1 do C. Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, que se declara suspensa na sua execução pelo período de 3 anos.
E) - julgar procedente o pedido formulado nos autos pelo ISSS condenando o arguido no pagamento da quantia reclamada a título de subsídio de funeral.

Custas pelo arguido em 1ª e 2ª instância (deduziu oposição) – cfr. art. 513º, n.º1 do CPP. Taxa de justiça: 8 UC.

Não tendo sido impugnada a decisão recorrida na parte relativa à condenação pelas contra-ordenações, transitou em julgado nessa parte, dado ser de todo estranha ao objecto do presente recurso.