Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
12/04.5GCVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
LIVRE CONVICÇÃO DO JULGADOR
CRIME DE EXTORSÃO
TENTATIVA
Data do Acordão: 11/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS. 223.º, N.ºS 1 E 3, AL. A), 204, N.º 2, AL. A) E 22 DO CP E127º,380º,410º,412ºE 428º DO CPP
Sumário: 1 A documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse. É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
2 Considerando que a gravação da prova foi efectuada num único CD e que a pouca extensão da gravação das provas em causa permite localizar com alguma facilidade os excertos das passagens que ilustram o ponto de vista do recorrente, o Tribunal da Relação, por uma questão de economia processual , mesmo sem convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação, considera-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, que o recorrente impugna.
3 A convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
4.Importa ainda aqui deixar claro que o objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos ( prova directa ), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este ( prova indirecta ou indiciária).
5. Existe tentativa de extorsão quando o agente, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, pratica actos idóneos, em termos de causalidade adequada, segundo a experiência comum, a constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete para a vítima ou para outrem, um prejuízo, o qual não vem a verificar-se por circunstâncias alheias à vontade do agente.
Decisão Texto Integral:       Relatório

            Pelo 1.º Juízo Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, sob acusação do Ministério Público, foram submetidos a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, os arguidos

            A. e Maria.

imputando-se-lhe a prática dos factos constantes da acusação de fls. 136 e ss dos autos, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, e, consequentemente, a prática, em co-autoria material, de um crime de extorsão, p.p. pelos art.º 223, n.º 1 e 3, al. a), 204, n.º 2, al. a) e 22 todos do CP.



B mulher C. deduziram, a folhas 157 e ss, pedido de indemnização civil contra A. e Maria a sua condenação na quantia de global de € 7.420 (sete mil quatrocentos e vinte euros) a título de danos morais sofridos e ainda as despesas atinentes à constituição de advogado, imputáveis à actuação dos arguidos.


Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal singular, por sentença proferida a 28 de Maio de 2009, decidiu:

- absolver a arguida Maria da prática do crime de extorsão na forma tentada que lhe vinha imputado;

- condenar o arguido A. pela prática, em autoria material e na forma tentada de um crime de extorsão, p.p. pelas disposições conjugadas dos art.º 233, n.º 1 e 3, al. a), 204, n.º 2, al. a) e 22 do CP, na pena de três (3) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual periodo;

- julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por  B. e mulher C. e consequentemente condenar o demandado A.  a pagar-lhes a quantia de € 4.000 (quatro mil euros), sendo € 2.000 (dois mil euros) para cada um dos demandantes, a título de danos não patrimoniais, e ainda o que se vier a fixar em liquidação de sentença, quanto ás despesas relativas à constituição e pagamento de honorários a advogado, até ao valor peticionado.

- absolver a demandada Maria do pedido de indemnização civil contra si deduzido.

            Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido A. , concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1. - O recorrente foi condenado pela prática em autoria material e na forma tentada de um crime de extorsão, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 233.º,n.º 1 e 3, al.a), 204.º, n.º2 , al.a) e 22.º do CPenal, na pena de três (3) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período; Assim como condenado em custas do processo,

2. cremos com todo o respeito pela mesma que o Tribunal “a quo” fez erróneo enquadramento dos factos ao direito, por ter feito errónea apreciação da prova, e por isso julgou incorrectamente os factos.

3. ‑ Deu o Tribunal a quo como provado que o arguido no dia … de … de 2003, em hora não concretamente apurada se deslocou à residência dos ofendidos B e C., sita… em Viseu, e perguntaram pelos mesmos à sua empregada Z. que os informou que estavam ausentes ao que responderam, em tom intimidativo, que “era melhor aparecerem, pois caso contrário seria pior”.

4. ‑ Diz a douta sentença que de seguida, colocaram na porta da residência o papel junto aos autos a fls.5, com os seguintes dizeres: Agradeço que me contactem hoje seja a que hora for com urgência. A. Tel: …

5.    O arguido usa esta expressão como natural, sem qualquer sentido intimidatório ou ameaçador.

6.    Basta atentar ás declarações prestadas pela empregada em apreço,  Z., para concluir‑se pela errónea interpretação e valoração de tal prova, e errónea decisão sobre estes pontos da matéria de facto.

7.    ‑ Diz a empregada Z. ( depoimento prestado e gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal durante dez minutos ‑ é o que consta da acta, não podendo nós referir em concreto por não constar da acta os precisos Mbs‑ arguindo desde já caso Vs. Excelências considerarem da necessidade de precisar os Mbs, como nulidade ‑ negrito nosso)

Quando cheguei vi primeiro o papel e ele disse, ele compareça que é melhor para ele. Ia com um senhor idoso, a mulher e um miúdo com 8 ou 9 anos. Eu disse o S. não está. A Srª procuradora indaga a empregada: Ele não quis saber dos pais do S. A  Z. responde: Não, não, só o S

8.    ‑ Vê‑se que o depoimento desta testemunha, indicada pela própria acusação, Z, não foi devidamente valorado, tendo‑o sido de forma incorrecta, assim como outros factos.

9.    ‑ O arguido, acompanhado da esposa também arguida, do sogro e de um filho com 8 ou 9 anos de idade, não foi à procura dos ofendidos B. e mulher, mas sim do filho destes, S. Foi por isso erroneamente valorado este depoimento.

10. ‑ O S. filho dos ofendidos que segundo a versão do arguido teria violado a filha dos arguidos, sendo certo que tal versão não aconteceu, mas foi sempre nessa pressuposição que o arguido agiu revoltado e magoado e por isso desorientado nas suas atitudes e comportamentos de pai ferido.

11. ‑ Atente‑se que a testemunha da acusação Z. e isto quanto, à intimidação perpetrada pelo arguido aos ofendidos, o seguinte: Nunca mais o vi à porta, e acrescentou que a ofendida C. andava preocupada com o filho.

12. Quando lhe é perguntado se deixaram de comer, ela que é funcionária diz: Não sei deixava‑lhe lá a comida...

13. De acordo com a empregada dos ofendidos, a preocupação destes era com o filho S

14. - A instâncias do advogado dos ofendidos este pergunta: Eles tinham receio que lhes acontecesse a eles também ( referia‑se a algum mal que pudesse acontecer‑lhes perpetrado pelo arguido) , a testemunha respondeu: Acho que sim. E o advogado insiste: Eles tiveram receio? A testemunha em apreço 8 de acusação) responde: Sim, do S. Eles tinham medo que o S saísse a rua. Iam, com ele.

15. ‑ Mas se atentarmos ao depoimento do S, ver‑se‑á que eles, os ofendidos pais deles não o acompanhavam na rua. Diz expressamente S: Os meus pais não têm por norma acompanhar‑me. Por norma não saem comigo. Os meus pais pediam‑me que não andasse de mota, não andasse sozinho. ( depoimento prestado segundo a acta que nos foi facultada pelo Tribunal, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal durante dez minutos)

16. Dizemos nós os ofendidos preocupados com o filho faziam‑lhe as recomendações que todos os pais fazem aos filhos, in casu a um filho menor.

17. ‑ Deu o Tribunal como provado que o arguido exigiu dos ofendidos efectuassem um depósito de 20 a 30 mil contos ou em alternativa uma hipoteca de um imóvel.

18. ‑ Não levou em conta que antes demais na reunião tida em …. ( lª reunião) os ofendidos como resulta dos seus depoimentos, aceitaram assumir as responsabilidades pelos actos dos filhos, não tendo o arguido referido qualquer valor, pedindo antes que eles vissem que responsabilidades deviam assumir.

Não teve em conta o Douto Tribunal que o arguido agiu sempre no ambiente psicológico de forte emoção acreditando que a filha foi violada. ‑ Logo afastando a consciência da ilicitude do acto.

19. Para proteger a filha de sequelas e ou traumas futuros e não a querendo expor na praça pública, como refere no seu interrogatório o arguido: Não queria ver a minha filha no correio da manhã. (depoimento prestado em CD1‑ de 0,000 MBS a 0,212 Mbs).

20. ‑ Resulta do próprio depoimento do ofendido a instâncias da Exma Srª procuradora: Quem teve receio com a expressão do Sr. A? ( a expressão segundo o próprio ofendido foi; não teria mais sossego na vida) o ofendido responde: Perplexo. Foi-nos dito que estávamos perante uma pessoa irascível. A Srª procuradora pergunta: teve receio físico? Resposta: Tive para além do receio de eventuais danos patrimoniais.

21. ‑ A Douta sentença refere nos factos provados que perante tais afirmações os ofendidos levantaram‑se e retiraram‑se do local, tendo o arguido dito, em tom intimidatório  “o senhor não me vire as costas porque senão é pior”.

22. ‑ Ora o tom intimidatório não foi concretizado pelos ofendidos, e a expressão se foi usada provocou medo nos ofendidos?

23. ‑ Resulta claramente que não. Basta atentar que o ofendido saiu indignado, segundo as suas próprias palavras e das testemunhas de acusação J.e F. e no hall da entrada do restaurante …. diz o ofendido em voz alta: “ Vocês sabem o que estes senhores nos acabam de propor”? vinte ou trinta mil contos, senão não temos sossego na vida”‑ Depoimento segundo acta que nos foi fornecido indicando que foi prestado o depoimento no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste tribunal durante setenta minutos.

24.‑ Diz a testemunha  F. ‑ testemunha de acusação - depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste tribunal ‑ isto é o que consta da acta que nos foi fornecida) durante trinta e seis minutos, que o B no ….vinha exaltado.

25. ‑ Ora vinha EXALTADO E NÃO AMEAÇADO. Vinha indignado e não amedrontado ou com receio pela vida, como é referido na douta sentença que os ofendidos ficaram inquietos e recearam pela própria vida.

26. ‑ Refere a sentença que a V, filha dos arguidos não foi violada pelo filho dos ofendidos, S tendo ambos tido relações sexuais de comum acordo, como bem sabiam os arguidos.

27. ‑ Ora o Tribunal a quo desvalorizou o depoimento da V onde esta refere que disse ao pai que lhe fizeram mal. E que não tinha dito ao pai que não foi violada ( depoimento disponível através da gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal durante sessenta minutos).

28. Se o Douto tribunal levasse em conta o depoimento da V chegava à conclusão e a outra interpretação e aplicação do direito, com base na correcta apreciação da prova que o arguido sempre agiu partindo do pressuposto que a filha foi violada,

29. ‑ Não levou em conta o Tribunal os factos vertidos no depoimento da própria ofendida C que refere: pergunta o advogado do arguido: O A. por iniciativa dele, algum dia mais vos procurou desde o encontro em … ( o primeiro encontro). Responde a ofendida: Não. Até hoje. E acrescenta ele disse que não podíamos virar as costas, que a conversa teria de continuar. Ele disse que a justiça seria feita.

30. Diz a Srª procuradora: Ficaram com receio? Sim o S. nunca mais andou sozinho.

31 ‑ A referida matéria de facto foi na nossa humilde perspectiva, e respeitando a douta sentença, mal apreciada, erroneamente valorada e por isso erroneamente enquadrada juridicamente.

32. ‑ Não podia o Tribunal dar como provado o constrangimento sofrido pelos ofendidos.

33. ‑ Não podia dar como provado que o arguido sabia que a filha não foi violada.

34. ‑ Não podia dar como provado que o arguido procurou na casa dos ofendidos, os próprios ofendidos, quando na verdade procurou o filho destes.

35. ‑ Não podia dar as expressões usadas pelo arguido como intimidatória, e muito menos constrangedoras.

36. ‑ Devia o Tribunal a quo valorar o depoimento da V, e não o fez onde esta refere que levou o pai ‑ arguido a acreditar que lhe fizeram mal.

37. ‑ Devia o Tribunal enquadrar o quadro emotivo forte do arguido na vontade de proteger a filha de qualquer sequela futura devido aos factos de índole sexual acontecidos entre a V e o filho dos ofendidos S. que o arguido acreditou terem acontecido sem vontade da filha.

39. E, isto levaria a uma decisão acertada que só podia ser a absolvição do arguido numa primária concretização e realização do direito e por isso uma decisão de justiça material.

39. o constrangimento implica no crime de extorsão que é um crime de dano quanto ao grau da lesão do bem jurídico protegido ‑ o património de outra pessoa, que a acção de constrangimento deve ser adequada a deve ser executada de forma vinculada, por meio de violência ou ameaça.

40. No fundo o arguido limitou‑se a pedir colaboração aos ofendidos para o problema sério que estava a viver face ao quadro de uma violação que o arguido acreditava ter acontecido à filha por banda do filho dos ofendidos.

41. ‑ As expressões usadas pelo arguido nessa ambivalência de emoções e de mágoa não são condizentes nem podem ser interpretadas como ameaçadoras, constrangedoras com mal para a vida ou integridade física dos ofendidos.

42. ‑ Sei como fazer justiça; Não vire as costas senão é pior; Não têm sossego na vida, não são nem foram adequadas a causar sério medo, ameaça, receio ou constrangimento.

43. ‑ E, os ofendidos não demonstraram sentirem‑se ameaçados, ou constrangidos, mas antes preocupados com o filho.

44. ‑ é o que resulta dos depoimentos da empregada z, dos depoimentos dos próprios ofendidos e das testemunhas de acusação J. e F..

45. ‑ Não foram preenchidos os elementos do tipo e da culpa para que se dê, como foi dado erroneamente, pelo Douto tribunal a quo preenchido o ilícito na forma tentada em autoria material praticado pelo arguido de extorsão ‑ art. 223.º, n.º 1 e 3, al a) 204.º, n.º 2, al a) e 22.º do CP, e não do artigo 233.º, mas sim do 223.º, como erradamente refere a douta a douta sentença, que até aí andou mal na indicação do tipo de crime, nulidade o que se invoca para todos os efeitos legais.

46. ‑ Uma correcta interpretação e apreciação da matéria de facto dada como provada supra referida, que não deveria sê‑lo levaria à absolvição do arguido.

47.  A douta sentença viola quanto a nós, e dizemo‑lo com todo o respeito, o disposto nos artigos 223.º, n.º 1, 3, al a) 204.º, n.º 2 al.a ) e 22.º do Código Penal e n.º 2 do art. 410.º do CPPenal, pois interpretadas no sentido da prova produzida levariam a que o tipo de ilícito p,p.p art. 223.º, 204.º, e 22.º do CP não fosse dado como preenchido nos seus elementos objectivos e subjectivos.

48. Pois se tivesse o douto tribunal recorrido valorado a prova supra referida só podia ter feito justiça, o que não aconteceu, absolvendo o arguido pela prática do crime de extorsão.

49.  Acreditamos dever ser a douta sentença recorrida revogada, por outra decisão essa judicativa que dê como provado os factos supra relatados e absolvendo o arguido, fazendo‑se dessa forma JUSTIÇA.

            O Ministério Público na Comarca de Viseu respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da douta sentença recorrida.

           

            O assistente B respondeu também ao recurso interposto pelo arguido concluindo que o recurso não merece provimento, pelo que deve manter-se a decisão recorrida.

            O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação de Coimbra emitiu parecer no sentido de que o recurso da matéria de facto nos termos do n.º 3 do art.412.º do C.P.P. não deve ser objecto de apreciação; se o for, deve, pelas razões constantes da Resposta de fls. 462 a 471, ser julgado improcedente; não há verdadeiramente, recurso da matéria de direito, pelo que nada há a apreciar nesse âmbito; e este Tribunal da Relação deve, nos termos do n.º 2 do art.380.º do C.P.P., proceder à correcção do lapso que, na indicação do artigo violado, se observa no dispositivo da sentença.

            Dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal respondeu o arguido no sentido de discordar do parecer do Ex.mo P.G.A.    

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

      Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respectiva motivação constante da sentença recorrida é a seguinte:

            Factos provados

            No dia … de … de 2003, a hora não concretamente determinada, os arguidos deslocaram-se à residência de B e mulher C … em Viseu, e perguntaram pelos mesmos à sua empregada Z, que os informou que estavam ausentes ao que responderam, em tom intimidativo, que “era melhor aparecerem, pois caso contrario seria pior”

            De seguida, colocaram na porta da residência o papel junto aos autos a fls. 5, que se dá por integralmente reproduzido, com os seguintes dizeres: Agradeço que me contactem hoje seja a que hora for com urgência. A… Tel:…

            Na manhã do dia 30 de …. de 2003, B, telefonou ao arguido A, tendo este lhe dito que o assunto era grave e que queria que o casal fosse à sua residência em… para tratarem do caso, nada mais adiantando.

            Cerca das 15h30m, os arguidos, juntamente com o pai e irmão da arguida, deslocaram-se à casa do queixoso, tendo B afirmado que não se deslocava à localidade de …, mas que poderiam conversar noutro local, tendo o arguido A sugerido a localidade de----

            Uma vez chegados à localidade de …., deslocaram-se à residência do cunhado do arguido e no interior da mesma foi comunicado pelos arguidos que o filho dos queixosos havia violado a filha dos arguidos, de nome V, pondo assim em causa a honra da Família.

            De seguida, os arguidos exigiram aos queixosos que assumissem os actos praticados pelo filho, ao que estes responderam que o fariam caso houvesse algo a assumir e perguntaram se do acto resultou a gravidez da rapariga, ao que os arguidos responderam que não.

            Depois o arguido A afirmou que tinham de regressar à … e que caso os queixosos não assumissem as responsabilidades que iriam tomar as devidas providências.

            No dia… de … de 2004, encontraram-se novamente no restaurante … sito na Estrada Nacional n.º 229,… cerca das 18h30m, sendo que os queixosos se faziam acompanhar de J. e de F. e os arguidos, novamente, do irmão e pai da arguida, tendo nessa altura o queixoso afirmado que, após conversa com o filho e de ter recolhido informações, rejeitava completamente qualquer ideia de violação, uma vez que tal não aconteceu, tendo a V e o filho tido relações sexuais desejadas por ambos.

            Nessa altura o A disse que tinha algo a dizer sobre o assunto mas que para o efeito os acompanhantes dos queixosos teriam de abandonar o local.

            Então na presença apenas da arguida e dos queixosos, o arguido A disse que mantinha a sua versão sobre a existência de uma violação e que na sua família já se havia passado algo idêntico com uma rapariga que ficou traumatizada, pelo que exigia que os queixosos efectuassem um depósito em dinheiro ou em alternativa a hipoteca de um imóvel, sendo que recusava qualquer veículo automóvel já que tinha bastantes.

            Os queixosos perplexos com a exigência pediram que concretizasse melhor o que pretendia, ao que o arguido A afirmou que exigia uma verba entre os vinte e os trinta mil contos ou um prédio de valor equivalente.

            O queixoso solicitou aos arguidos que fizesse a proposta por escrito, para ponderar melhor e que lhe responderia também por escrito, ao que aquele de imediato recusou e afirmou que exigia que procedesse ao deposito no prazo de uma semana porque se assim não fosse os queixosos não teriam mais um momento de descanso na vida.

            Nessa altura o queixoso disse-lhe que não poderia fazer tal exigência e que só na justiça é que o assunto poderia ser decidido, tendo o arguido A, de imediato, afirmado que o assunto não era para ser tratado na justiça e caso a sua exigência não fosse cumprida integralmente e no prazo indicado, saberia como fazer justiça.

            Perante tais afirmações os ofendidos levantaram-se e retiraram-se do local, tendo o arguido dito, em tom intimidatório “o senhor não me vire as costas porque senão é pior”.

Os ofendidos nunca chegaram a entregar qualquer quantia monetária aos arguidos tendo antes apresentado queixa crime contra os mesmos e que deu origem ao presente processo.

A filha dos arguidos, V não foi violada pelo filho dos ofendidos,S, tendo ambos tido relações sexuais de comum acordo, como bem sabiam os arguidos.

Ao actuar da forma descrita o arguido agiu de forma livre, consciente e com o propósito de obterem para si um enriquecimento ilegítimo e causarem prejuízo aos ofendidos, bem sabendo que ao actuar da forma acima descrita constrangia os ofendidos, causando-lhes receio de que algo de mal lhes poderia acontecer e bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar tal receio e constrangimento nos mesmos e que dessa forma forçava os ofendidos a disporem dos seus bens patrimoniais, procedendo como pretendia, o que só não acontecer porque os ofendidos resolveram apresentar queixa contra os arguidos e não pagar qualquer importância.

O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Em resultado directo das ameaças proferidas pelo demandado A, os demandantes ficaram inquietos e recearam pela própria vida.

Ficaram constrangidos e passaram a viver sobressaltados e temendo pela sua vida e integridade física.

Evitavam andar na rua sem acompanhamento.

Tiveram dificuldade em repousar devidamente sempre receando que algo de mal lhes acontecesse.

Os ofendidos terão de despender uma quantia em dinheiro a título de honorários ao seu mandatário constituído.

O arguido A é empresário, comerciante de …. e máquinas de …. e diz auferir cerca de € 2.000 por mês.

Tem dois filhos, a V, que se encontra em Portugal, e é estudante universitária, e o mais novo, com 14 anos que está consigo na …..

Diz possuir três casas em Portugal e outras três na …., sendo que duas estão arrendadas auferindo de rendas cerca de € 1.200 mensais, que utiliza para amortização dos créditos contraídos para a sua aquisição.

Tem o 10.º ano de escolaridade.

O arguido tem uma personalidade temperamental e pouco tolerante, sendo considerado um homem conservador.

A arguida Maria aufere cerca de € 1.800 mensais.

O arguido A. sofreu uma condenação, por acórdão transitado em julgado em 16/09/2002, no processo comum colectivo n.º …. do 2.º Juízo Criminal deste Tribunal Judicial de Viseu, pela pratica em …. de um crime de abuso de confiança, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de três anos, mediante condição de proceder à reparação do mal do crime

 A arguida Maria é primária.

            Factos não provados

Não provado:

            Os arguidos se deslocaram a casa dos ofendidos cerca das 24h30m.

            A arguida Maria também afirmou que tinham de regressar à …. e que caso os queixosos não assumissem as responsabilidades que iriam tomar as devidas providências.

            Os arguidos quando responderam que não tinha resultado qualquer gravidez já tinham levado a V a realizar exames médicos.

            A arguida Maria  actuou de comum acordo e em comunhão de esforços com o arguido A, e com o propósito de obter, conjuntamente com ele, enriquecimento ilegítimo e causar prejuízo aos ofendidos.

            Os ofendidos com a constituição de advogado para os representar no processo não despenderão quantia inferior a € 2.000, acrescido de Iva à taxa de 21%, o que soma € 2.420.

            Motivação da decisão de facto:

Factos provados:

Os factos provados resultaram desde logo das declarações dos arguidos que confirmaram os contactos tidos com os ofendidos, após confronto da filha, e em que esta terá revelado uma suposta violação, por parte do S, filho dos ofendidos. Nesse sentido, confirmaram que se deslocaram a casa dos ofendidos, à sua procura, tendo falado com a empregada, bem como o facto de terem deixado o papel na porta. Foi ainda mencionado e confirmado os encontros na casa do irmão da arguida Maria assim como, posteriormente no restaurante …

Mais referiu o arguido A, que para evitarem exposição pública da filha e para acautelar eventuais traumas que pudessem vir a verificar-se, ou uma eventual gravidez, que desconheciam, fez-lhe uma proposta de depositarem uma quantia que rondava os € 20.000 a € 30.000.

No entanto o arguido A sempre negou que de alguma forma tivesse querido intimidar ou ameaçar os ofendidos, mencionando ter referido apenas, aquando do encontro no Restaurante …, que teria de tratar do assunto de outra forma, fazendo referencia a uma eventual denuncia, recorrendo à lei e aos Tribunais.

            Ora tal justificação por parte do arguido, para além de ir contra aquilo que foi mencionado pelos ofendidos, e corroborado pelas testemunhas J. e F. que os acompanharam na deslocação ao restaurante …, vai também contra a própria atitude do arguido que desde sempre referiu que ficou com tamanha vergonha e sempre quis evitar exposição da filha em face da situação. Também contraria o seu comportamento posterior aos factos, na medida em que, após saber que os ofendidos não iriam proceder a qualquer pagamento, não diligenciou no sentido de apurar a eventual responsabilidade criminal do eventual “violador” da filha, caso efectivamente estivessem cientes de que tal tinha acontecido.

            O depoimento dos ofendidos mereceu-nos total credibilidade, quer quanto ao modo como foram abordados pelos arguidos, em especial pelo arguido A, quer quanto à exigência de entrega de dinheiro ou de hipoteca de um imóvel, quer quanto às expressões proferidas pelo arguido, e que foram por si sentidas como intimidatórias e limitadoras da sua liberdade de movimentação, assim como criaram o receio de que algum mal lhes acontecesse, assim como ao próprio filho.

            Acresce que o depoimento das testemunhas referidas, ainda que não presenciais do discurso do arguido A em relação aos ofendido, é de molde a fazer o Tribunal acreditar que, efectivamente, o arguido  intimidou os ofendidos. Na verdade por ambos foi referido que quando os arguidos e os ofendidos saíram da sala, o ofendido B, incrédulo, indignado e em tom elevado mencionou que o arguido tinha exigido uma quantia de 20 ou 30 mil contos ou em alternativa a hipoteca de um imóvel, porque caso contrario não mais terias sossego na vida.

            A testemunha F referiu mesmo que o ofendido B estava mesmo indignado com a proposta apresentada pelo arguido.

            Também confirmaram os receios com que os ofendidos ficaram de o arguido cumprir com as ameaças que tinha efectuado.

            A testemunha S, filho dos ofendidos permitiu esclarecer o relacionamento que tinha com a V, de quem, aliás continua amigo, bem como o contacto inicial que teve, por parte do pai da V. Também permitiu perceber, ainda que de forma indirecta o tipo de relacionamento que a V tinha com os pais, pessoas conservadoras, ao ponto de, durante aquelas ferias de Natal, e enquanto os pais estivessem em Portugal, lhe ter pedido para não terem contactos.

            Relatou ainda os receios e os medos com que ele próprio e os pais andavam, na sequência dos contactos tidos com os arguidos, sempre no receio de que concretizasse algo contra as suas pessoas ou contra os seus bens.

            A testemunha Z confirmou que quando chegou ao trabalho encontrou um papel à porta de casa, e que de depois tocaram à campainha sendo que eram os arguidos acompanhados por um senhor idoso e por um miúdo com cerca de 8 ou 9 anos e queria saber do S, que era melhor que comparecesse porque senão seria pior para ele.

             A testemunha L.confirmou ter ido com a ofendido C a um café falar com a V, tendo esta esclarecido que não tinha existido qualquer violação, e o que tinha acontecido entre ela e o S tinha sido de livre e espontânea vontade e uma decisão conjunta.

            De realçar que a testemunha V de pouco ou nada adiantou ao Tribunal, tendo um depoimento inócuo e quase que escusado. Na verdade para além das constantes contradições entre o que efectivamente ocorreu no dia em que foi confrontada, pelos pais, com o seu relacionamento com o S, e com aquilo que efectivamente terá referido, a V permitiu ao Tribunal ter como assente que o seu envolvimento com o S foi de livre e espontânea vontade, e não o contrário. Ademais também permitiu ao Tribunal ter como acente que não referiu aos pais que tinha sido violada, e que depressa tentou esclarecer as coisas com a mãe, sendo que não sabia se a mesma comentou com o pai alguma coisa.

            Acerca do depoimento da testemunha de defesa, J.S., a mesma pouco ou nada veio trazer ao Tribunal para além de nos permitir aferir o estado de exaltação em que o arguido andava. Esta testemunha teve conhecimento de que haveria algum problema entre os pais da V e o S, filho dos ofendidos, através do seu filho, também S., demonstrando-lhe alguma preocupação acerca do que poderia acontecer. Acresce que conjugado com o depoimento da testemunha C.A. , contribuíram para se aferir da personalidade temperamental e pouco tolerante do arguido, o que lhes gerou alguma preocupação, atento o circunstancialismo que conheciam, ao ponto de se deslocaram a casa dos ofendidos, para ver se ali encontravam o arguido, e com alguma preocupação de evitar conflitos designadamente físicos entre as partes.

            O tribunal teve ainda em conta o teor do documento que se encontra a fls. 5 dos autos, bem como os respectivos CRC.

Fundamentação dos factos não provados:

            Quanto aos factos não provados, para além de não se ter feiro prova quanto a alguns, o certo é que em relação á arguida Maria para além de ter resultado que ela acompanhava o marido, não resultou que a sua intervenção fosse além disso, e que houvesse qualquer acordo prévio ou actuação conjunta, com vista a obterem, por meio de qualquer ameaça importante um beneficio patrimonial ilegítimo, por parte do casal.

Quanto ao facto de não saberem de qualquer gravidez resulta do depoimento da própria arguida que não foi com a filha ao médico, sendo que até se ausentou para a …. e que só posteriormente, com a sua cunhada é que a filha foi ao


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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos , face às conclusões da motivação do arguido A. as questões a decidir são as seguintes :

- se o Tribunal a quo incorreu em erro de valoração da prova, quer ao dar como provado que o arguido procurou, na casa dos ofendidos, os próprios ofendidos; que sabia que a filha não tinha sido violada; o constrangimento sofrido pelos ofendidos; e que as expressões usadas pelo arguido foram intimidatórias e constrangedoras com mal para a vida ou a integridade física dos ofendidos; quer ao não dar como provado que o arguido acreditou que os factos de indole sexual ocorridos entre a V e o S aconteceram sem vontade da V;

- se uma correcta interpretação dos factos deve levar à absolvição do arguido por não estarem preenchidos os elementos do tipo e da culpa do crime de extorsão; e

- se a sentença recorrida padece de nulidade ao condenar o arguido pelo crime de extorsão, p. e p.  pelos artigos 233, n.º 1 e 3, al. a), 204, n.º 2, al. a) e 22 todos do C.P., e não pelos art.223.º, n.ºs 1 e 3 , al. a), 204, n.º 2, al. a) e 22 do C.P..

            Passemos ao conhecimento da primeira questão.
O Tribunal da Relação conhece de facto e de direito ( art.428.º , n.º1 do C.P.P. ) .
No entanto, a modificação da decisão da 1ª instância em matéria de facto só pode ter lugar, sem prejuízo do disposto no art.410.º, do C.P.P., se se verificarem as condições a que alude o art.431.º do mesmo Código , ou seja :
  « a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
     b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou
     c) Se tiver havido renovação de prova .”.
Em conjugação com este preceito legal importa atender ao disposto no art. 412.º, n.º3 do Código de Processo Penal, que impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto o dever de especificar:

  « a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ;

     b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida ;
     c) As provas que devam ser renovadas.»

E acrescenta o n.º 4 deste preceito legal :
« Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.»
O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. ( n.º 6 do art.412.º do C.P.P.).

Sobre o dever das menções dos n.ºs 3 e 4 do art.412.º do C.P.P. constarem das conclusões da motivação, o STJ já se pronunciou no sentido de que a redacção do n.º 3 do art.412.º do C.P.P., por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem de dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que “ versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda (…) ”, já o n.º 3 se limita a prescrever que “ quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (…)”, sem impôr que tal aconteça nas conclusões. Perante esta margem de indefinição legal, tendo o recorrente procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, ou o Tribunal da Relação conhece da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convida o recorrente a corrigir aquelas conclusões. – cfr. acórdão do STJ, de 5 de Julho de 2007, proc. n.º 07P1766, www.dgsi.pt/jstj.

Sobre esta problemática importa ainda aqui mencionar o acórdão do STJ , de 4 de Dezembro de 2008, que decidiu que tendo o recorrente especificado os pontos de facto que considerou incorrectamente julgados e indicado as concretas provas que impunham decisão diversa, referenciando-as aos respectivos suportes técnicos, mas de uma forma genérica em relação a cada uma das provas, pela indicação das voltas onde começavam e acabavam os depoimentos gravados, cumpriu substancialmente o ónus de impugnação que a lei lhe impõe.

O facto de o recorrente não ter localizado com precisão, nos respectivos suportes , os excertos das provas com que foi ilustrando os seus pontos de vista, não constitui fundamento de rejeição liminar do recurso. Antes de rejeitar o recurso, deve o tribunal convidar o recorrente a corrigir as conclusões, referenciando as provas que impunham decisão diversa da recorrida aos precisos locais, nos suportes técnicos, onde se encontravam os excertos de que se serviu para fundamentar os seus pontos de vista. - CJ, n.º 121, pág. 247.

O art.417.º, n.º 3 do C.P.P., na actual redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, permite o convite ao recorrente para completar ou esclarecer as conclusões formuladas.

No presente caso, o recorrente A. a indica nas conclusões da motivação os concretos factos que foram dados como provados na sentença recorrida e o outro que deveria ter sido dado como provado, que considera incorrectamente julgados e as provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida.

O arguido indica, nas conclusões da motivação, por transcrição, curtos segmentos das provas produzidas oralmente na audiência que apoiam o seu ponto de vista, com remessa  para o CD 1 e para o início e fim de cada uma dessas provas.

O que o recorrente faz é, assim, remeter de forma genérica para a totalidade de cada uma das provas gravadas por ele mencionadas, sem localizar com precisão o excerto da prova que ilustra o seu ponto de vista.

Alega o mesmo que os não os pode indicar porque da acta de audiência de julgamento não constam os precisos Mbs dessas provas.

Salvo o devido respeito, é evidente que da acta não constam os precisos Mbs de cada um dos segmentos que o arguido realça, mas a sua totalidade. Só o recorrente sabe quais os segmentos de cada uma das provas que tem como relevantes e assim onde concretamente constam no  CD.

De todo o modo, considerando que a gravação da prova foi efectuada num único CD e que a pouca extensão da gravação das provas em causa permite localizar com alguma facilidade os excertos das passagens que ilustram o ponto de vista do recorrente, o Tribunal da Relação, por uma questão de economia processual , mesmo sem convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação, considera-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, que o recorrente A. impugna.
Antes da abordagem directa da questão ora objecto de recurso, importa realçar que a documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse. É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao principio da livre apreciação da prova , previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal , que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente , a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.

As normas da experiência são , como refere o Prof. Cavaleiro de Ferreira , «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico , independentes do caso concreto “sub judice” , assentes na experiência comum , e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam , mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.

Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias que esta é “... uma convicção pessoal -  até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais  -  , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros .”- Cfr., in “Direito Processual Penal”, 1º Vol. ,  Coimbra  Ed. , 1974, páginas 203 a 205.

O principio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento , encontrando  afloramento  , nomeadamente , no art. 355.º do Código de Processo Penal . È ai que existe a desejável  oralidade e imediação na produção de prova , na recepção directa de prova.

O principio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo , pessoal , entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar , e com as coisas e documentos que servirão para  fundamentar a decisão da matéria de facto.

Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias , ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação  diz o mesmo: « Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos  e estáveis na história do direito processual penal . Já de há muito , na realidade , que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita  , desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha , e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da  credibilidade de um depoimento. (...) .Só estes princípios , com efeito , permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido , a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem , por outro lado , avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais “. - In “Direito Processual Penal”, 1º Vol. ,  Coimbra  Ed. , 1974, páginas 233 a 234 .

Na verdade, a convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.

Do exposto resulta que, para respeitarmos os princípios oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum , ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.

Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra , de 6 de Março de 2002 ( C.J. , ano XXVII , 2º , página 44 ) , “ quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade , o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.

Em suma, diremos que o preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.

Importa ainda aqui deixar claro que o objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos ( prova directa ), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este ( prova indirecta ou indiciária).

A prova indirecta “ … reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova” – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “ Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág. 289. Como salienta o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996 , “ a inferência na decisão não é mais do que ilação , conclusão ou dedução , assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.” – cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal , ano 6.º , tomo 4.º, pág. 555. No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV,  1.º, pág. 51.

O recorrente A. defende que o Tribunal a quo, ao dar como provado que no dia … de … de 2003 os arguidos “ perguntaram pelos mesmos (ofendidos) à Z …” e que tendo esta informado que estavam ausentes , «…responderam  tom intimidativo, que “era melhor aparecerem, pois caso contrario seria pior”.», errou no julgamento da matéria de facto, pois a testemunha a Z declarou em audiência que o arguido não quis saber dos ofendidos , mas só do S, filho destes. Assim, não poderia dar como provado que o arguido procurou na casa dos ofendidos os próprios ofendidos.

No entender do recorrente, o mesmo Tribunal errou ainda no julgamento da matéria de facto ao dar como provado que o arguido sabia que a filha não tinha sido violada, pois o arguido agiu convencido desse facto, tendo declarando que o fez para proteger a filha de sequelas e traumas futuros, não a querendo expor na praça pública, no correio da manhã.

Quanto ao constrangimento sofrido pelos ofendidos, dado como provado pelo Tribunal a quo, e  que as expressões usadas pelo arguido foram intimidatórias e constrangedoras com mal para a vida ou a integridade física dos ofendidos, existiu também erro de valoração da prova. Refere para este efeito e em síntese, que ao dizer à Z que “era melhor aparecerem, pois caso contrario seria pior”.», usou “esta expressão como natural”, sem qualquer sentido intimidatório ou ameaçador, bastando atentar ao depoimento da Z. A propósito da intimidação perpetrada pelo arguido aos ofendidos, a testemunha Z declarou que nunca mais viu o arguido à porta e que a preocupação destes era que o arguido fizesse mal ao  filho, indo com ele à rua; o S por sua vez declarou que os pais por norma não o acompanhavam quando saia e pediam-lhe para não andar de mota sozinho, ou seja, faziam-lhe recomendações como todos os pais fazem aos filhos. Do depoimento do ofendido B e das testemunhas J. e  F.resulta que da conversa havida no restaurante … aquele saiu indignado e não amedrontado ou com receio pela vida e a ofendida C, ao ser-lhe perguntado se ficaram com receio declarou que sim, o S nunca mais andou sózinho..

Finalmente, defende o arguido/recorrente que o Tribunal a quo devia ter dado como provado que o arguido acreditou que os factos de indole sexual ocorridos entre a V e o S aconteceram sem vontade da V, pois esta declarou que levou o arguido a acreditar que lhe fizeram mal.

Vejamos.

Relativamente ao alegado erro de julgamento da matéria de facto pelo Tribunal a quo, que resultará da testemunha Z ter declarado em audiência que o arguido não quis saber dos ofendidos, mas só do S, filho destes e que assim não poderia ter dado  como provado que o arguido procurou na casa dos ofendidos os próprios ofendidos, o Tribunal da Relação, após a audição da gravação do depoimento da testemunha Z , prestado em audiência de julgamento, verifica que esta declarou , logo no ínicio do seu depoimento, que quando abriu a porta da casa dos ofendidos, onde era empregada doméstica, o arguido A. perguntou-lhe pelo S. e “pediu para falar com o Ricardo, só com o Ricardo”. Porém, na continuação do seu depoimento , a testemunha Z acabou por mencionar “  Não tenho a certeza se perguntaram pelos pais, mas pelo Ricardo perguntaram”. 

Tendo a testemunha Z declarado que foi A quem a interpelou à porta da casa dos ofendidos, no dia ---- de …de 2003, o Tribunal da Relação procedeu à audição das declarações prestadas pelo arguido A a este propósito.

Dessa audição constata-se que o Ex,mo Advogado dos ofendidos perguntou ao arguido o seguinte: Quando o Sr. foi a casa não disse à funcionária, à senhora, quando lá deixou o papel,  que se o S não aparecesse que seria pior?

O arguido respondeu então o seguinte: “Não. Eu queria falar primeiro com os pais. Eu procurava os pais.”. cfr. minuto 57.

Posteriormente, a instâncias do seu Ex.mo Advogado foi perguntado o seguinte ao arguido: “Quando voltou na 2.º vez a casa dos pais do S, quando lá estava a tal senhora, que seria funcionária, perguntou pelos pais ou pelo S ?” 

Ao que respondeu o arguido: “Eu perguntei pelos pais, eu queria falar com os pais. Andava fora de mim, era uma situação em que podia cometer uma asneira se encontrava o S. Eu queria falar com os pais. Não queria falar com o S. – cfr. 1h17m/1h19m.

Da fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida consta que os arguidos declararam que “ confirmaram que se deslocaram a casa dos ofendidos, à sua procura, …”, e o recorrente não impugna nas conclusões da motivação que fizeram essa declaração em audiência.

Do teor do próprio papel deixado na porta da residência dos ofendidos B e C , e assumidamente escrito pelo arguido A, consta a expressão no plural “ Agradeço que me contactem ..” e não “ Agradeço que me contacte ..”, como certamente deveria constar se o arguido quisesse apenas contactar com o S.

Deste modo, o Tribunal da Relação não reconhece, nesta parte da matéria de facto provada, nenhum erro de julgamento por parte do Tribunal a quo.

Passando agora a conhecer do alegado erro de julgamento da matéria de facto, por parte do Tribunal recorrido, por haver dado como provado que o arguido sabia que a filha não tinha sido violada - pois que o arguido agiu convencido desse facto e para proteger a filha de sequelas e traumas futuros, não a querendo expor na praça pública, no correio da manhã -, resulta das declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, que o mesmo disse que nas férias de Natal de 2003, a sua filha V tinha algo de estranho e o dinheiro tinha desaparecido da conta dela , pelo que “Apertei com ela, dei-lhe umas bofetadas” e ela “Confessa-me que tinha sido violada e diz-me que tinha sido o S.”. Mais declarou o arguido, que foi logo ter com o S filho do Z.L, o qual lhe disse que era ele , mas outro S. Não perguntou à filha quando foi a violação, como o S a consumou e se namorou com o S.  Perante essa confissão da V ela saiu de casa, “ Não foi bem pôr fora de casa, ela vai explodir carinho para os avós”. Não comprovou se ela tinha sido violada, nem apresentaram queixa crime contra o S e nunca falou com o S, filho dos ofendidos.

Salvo o devido respeito, foge às regras da experiência comum que um pai, tomando conhecimento através da filha, que foi violada, não procure de imediato pormenores dessa alegada violação, não lhe dê acompanhamento moral , nem participe criminalmente contra o autor desse crime grave.

A propósito desta situação, a V, filha dos arguidos, cujas declarações gravadas o Tribunal da Relação ouviu – e a que o Tribunal a quo atribuiu pouca relevância pelas razões que consignou na fundamentação da matéria de facto - declarou, designadamente, que no momento em que os pais lhe  perguntaram se me tinham violado, o arguido , seu pai, “estava a bater-me” e “Eu disse-lhe que me tinha feito mal”; não pode dizer ao certo que tenha dito isto, mas sugeriu que tinha sido violada.

Tendo-lhe sido perguntado se os pais dela acreditaram que tinha sido violada, respondeu: “ Não sei se acreditaram que tinha sido violada. Provavelmente não, para eu ter de ir para casa dos meus avós.”.

“ Depois eu fui para casa dos meus avós; a minha mãe sugeriu que eu fosse para lá. Eles ficaram magoados comigo.”

Não é razoável acreditar que os pais fiquem magoados com uma filha que seja sujeita a uma violação e a mandem ainda sair de casa.

Mais razoável, por estar de acordo com as regras da experiência comum, é que os arguidos, como pais de uma família de costumes conservadores, que o arguido declarou em audiência integrar-se , tenham ficado magoados por a sua filha de 17 anos manter relações sexuais consentidas com um rapaz da mesma idade.
Perante estas razões e as que constam da fundamentação de facto da sentença, o Tribunal da Relação tem como perfeitamente admissível que o Tribunal recorrido tenha concluído, na base da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, que o arguido sabia que a filha não tinha sido violada, afastando a versão do arguido A  de que agiu perante os ofendidos B e C convencido da violação da filha V e para a proteger de sequelas e traumas futuros, e não a expor na praça pública, designadamente no correio da manhã.
Passando agora ao alegado erro de julgamento relativo ao constrangimento sofrido pelos ofendidos.
O arguido A defende que as expressões dadas como provadas como por ele por proferidas não foram intimidatórias e constrangedoras.
Começa por alegar, para este efeito, que , no dia … de …. de 2003, ao dizer à Z que “era melhor aparecerem, pois caso contrario seria pior”.», usou “esta expressão como natural”, sem qualquer sentido intimidatório ou ameaçador, e que para tal basta atentar ao depoimento da Z
Importa aqui esclarecer, antes do mais, que o termo “intimidatório” não existe, sendo que dos factos provados na sentença consta que os arguidos, na sequência da resposta da Z dada aos arguidos, de que os ofendidos estavam ausentes, aqueles «… responderam, em tom intimidativo, que “era melhor aparecerem, pois caso contrario seria pior”.»,
Tom intimidativo significa tom enérgico, que inspira receio ou medo.

A este propósito a testemunha Z declarou , que o arguido lhe disse “Diga-lhe que compareça que era melhor para ele. Disse isto em “tipo de ameaça”. Depois de dizer o que estava no papel escrito, o arguido foi-se embora, dizendo-lhe “Não se preocupe que não é nada consigo.”
Ao contrário do alegado pelo arguido no seu recurso, a mensagem que deixou à testemunha Z era causa de preocupação, embora não para esta, como o arguido frisou, sendo que a testemunha a considerou “ tipo ameaça”.
Para qualquer pessoa de cultura média, a expressão “era melhor aparecerem, pois caso contrario seria pior”, não é uma “expressão natural”, no sentido de inócua, nem o arguido fez qualquer prova de que para si não tinha o fim de avisar os ofendidos de que se não aparecessem algo de “pior” aconteceria.

O resto do depoimento da testemunha Z também não é favorável à pretensão do arguido, pois esta declarou, designadamente, que se é certo que nunca mais viu o arguido à porta da casa dos ofendidos, onde trabalhava para os ofendidos à 2.ªfeira e à 6.ª feira, após as 14 horas, também declarou que a ofendida C dizia-lhe que o arguido andava sempre a ameaçá-los à entrada da porta, e que os ofendidos andavam preocupados em proteger o S, que deixou de ir às aulas, chegando a tirar-lhe a mota, também os ofendidos “tinham receio de que lhes pudesse acontecer algum mal a eles.”  
Os segmentos do depoimento da testemunha S mencionados pelo recorrente nas conclusões e motivação do recurso, no sentido de que aquele declarou que os pais por norma não o acompanhavam quando saia e pediam-lhe para não andar de mota sozinho, é irrelevante para a decisão da causa pois o arguido não se encontra acusado, nem consta dos factos provados, que a conduta do arguido foi causa adequada de receio e constrangimento do S, para o forçar a dispor de bens patrimoniais a favor do arguido, mas sim que o arguido visou com a sua conduta causar receio e constrangimento nos ofendidos para os forçar a dispor de bens patrimoniais a favor do arguido.

Sobre a consequência da conversa entre os arguidos e os ofendidos no restaurante…, a testemunha J. declarou que o ofendido B quando saiu da sala do restaurante  “estava transtornado”, e contou a conversa havida com os arguido. Depois dessa conversa os ofendidos andaram aflitos e preocupados, sentiram-se ameaçados, porque lhe disseram que não mais teriam sossego no resto da vida. Até o filho deixou de andar sozinho.
Por sua vez, a testemunha F. , declarou designadamente, que o ofendido B saiu da sala do restaurante ---, “um bocado exaltado, ar ansioso” e contou-lhes o que se tinha passado na reunião com os arguidos. Saíram do restaurante e despediram-se , tendo acompanhado depois, de alguma maneira,  a preocupação dos ofendidos de que se podiam concretizar os receios que pudesse acontecer alguma coisa ao filho, por andar de mota e chegar tarde e também em relação aos seus bens, apontando o factos do carro do ofendidos aparecer “amassado” e até um problema que teve na carpintaria.

Quanto ao entendimento da ofendida C sobre as expressões utilizadas pelo arguido, esta foi clara no sentido de que este “ameaçou-nos”, que a conversa tinha que continuar.”, que o assunto não era para ser tratado na justiça e ele sabia como a justiça tinha de ser feita. “A minha aflição era principalmente o S.”, pelo que ele parou os estudos imediatamente, por receio do que lhe acontecesse a nível físico. Mas “È também um receio nosso; a ameaça foi-nos feita a nós, mas em primeiro lugar está o S.”

Ainda hoje têm receio do arguido, sendo que pode ser uma coincidência, mas o carro dos ofendidos ainda hoje aparece amachucado, o único na rua.

Tal como consta da fundamentação da matéria de facto, também o ofendido B considerou as expressões em causa intimidadoras e constrangedoras, pois este declarou, designadamente, que depois da conversa com o arguido no … , “a primeira  expressão foi de perplexidade.”, mas depois, face ao que o Comandante da PSP lhe disse, de que deviam tomar precauções, quer eles, quer o S, e de ter obtido informações de pessoas de que o arguido era pessoa de feito irascível, ficaram com receio do que podia acontecer a nível de agressão física e de danos no património. Em determinada altura, quando estavam a conversar com os arguidos no…, entraram no Café dois indivíduos, de 20 ou 30 anos que passaram a ouvir uma parte da conversa. Veio a saber depois que esses dois jovens eram de uma terra próxima do arguido e um deles tinha um comportamento menos conveniente, o que “adensou as nossas preocupações”.
A atitude dos arguidos no …., de em determinado momento quererem apenas falar na presença dos ofendidos, quando quem acompanhava os arguidos e os ofendidos conheciam a imputação de violação destes ao S, aponta claramente para que aqueles tinham perfeita consciência da ilicitude, que quiseram esconder de terceiros, da  proposta de exigência aos ofendidos de um depósito de vinte a trinta mil contos, no prazo de uma semana ou de um prédio de valor equivalente e da respectiva promessa de mal futuro se nesse prazo não fosse cumprida a sua exigência. A promessa de mal futuro traduziu-se em dizer aos ofendidos que, se assim não fosse, estes não teriam mais um momento de descanso na vida, que o assunto não era para ser tratado na justiça, e que caso a sua exigência não fosse cumprida integralmente e no prazo indicado, saberia como fazer justiça.
Em suma, o Tribunal da Relação não vislumbra também quanto à matéria de facto agora em apreciação, qualquer erro de julgamento por parte do Tribunal recorrido.
Por fim, relativamente ao alegado erro de julgamento do Tribunal a quo , por não ter dado como provado que o arguido acreditou que as relações de índole sexual entre o S e a V aconteceram sem a vontade desta, é evidente que ele não existe.
Deixámos já consignado, com a respectiva fundamentação, que a decisão do mesmo Tribunal não merece qualquer censura quando deu como provado que os arguidos sabiam que a sua filha V não foi violada pelo S filho dos ofendidos B e C , e que ambos os arguidos sabiam que a filha tinha tido relações sexuais de comum acordo com o S.

Em face de todo o exposto, o Tribunal da Relação considera definitivamente fixada a matéria de facto nos termos que constam da douta sentença, improcedente assim esta questão.

A questão seguinte objecto de recurso é se uma correcta interpretação dos factos deve levar à absolvição do arguido por não estarem preenchidos os elementos do tipo e da culpa do crime de extorsão.

Para decidir desta questão interessa mencionar o disposto no art.412.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, que estatui que versando matéria de direito, as conclusões indicam as normas jurídicas violadas, o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada. 

No caso em apreciação, o recorrente A alega, quer nas conclusões da motivação, quer na motivação, que a aplicação e interpretação dos factos ao direito deveu-se a uma errónea valoração da prova, pois o arguido não procurou os ofendidos na sua casa, mas sim o filho destes, e os ofendidos não se sentiram constrangidos, nem as expressões proferidas pelo arguido podem ser interpretadas como ameaçadoras, pois, no fundo, o arguido limitou‑se a pedir colaboração aos ofendidos para o problema sério que estava a viver face ao quadro de uma violação que o arguido acreditava ter acontecido à filha por banda do filho dos ofendidos.

Das conclusões da motivação resulta, assim, que o erro de interpretação e aplicação do direito resulta da má valoração da prova, e não propriamente da má interpretação e aplicação do direito aos factos que o Tribunal recorrido teve como provados.

Do já exposto anteriormente resulta que a versão do arguido A  de que o mesmo se limitou a pedir colaboração aos ofendidos para o problema sério que estava a viver face ao quadro de uma violação que o arguido acreditava ter acontecido à filha por banda do filho dos ofendidos, não logrou convencer o Tribunal da Relação, como antes não convencera o Tribunal recorrido.

O art.223.º do Código Penal, estatui designadamente:

«1. Quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete para ela ou para outrem, prejuízo, é punido com pena de prisão até 5 anos.   

(…)

  3. Se se verificarem os requisitos referidos:

     a) Nas alíneas a), f) ou g) do n.º 2 do artigo 204.º, ou na alínea a) do n.º2 do artigo 210.º, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos. ».

O crime de extorção é um crime contra o património em geral que lesa ainda a liberdade de decisão e de acção da vítima.

É um crime de resultado, em que uma certa cooperação da vítima, em resultado de violência ou chantagem por parte do agente, é necessária para a sua consumação, que se dá com a obtenção por parte do agente de uma vantagem patrimonial ilegítima à custa do prejuízo do extorquido. 

A extorção exige o dolo do agente, isto é, o conhecimento e vontade de realização dos elementos objectivos  do tipo, com conhecimento da ilicitude da sua conduta.

Existe tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se ( art.22.º, n.º1 do Código Penal).

Existirá assim tentativa de extorsão quando o agente, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, pratica actos idóneos, em termos de causalidade adequada, segundo a experiência comum, a constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete para a vítima ou para outrem, um prejuízo, o qual não vem a verificar-se por circunstâncias alheias à vontade do agente.

Da audiência de julgamento resultou provado que o arguido A sabia que a filha  não foi violada pelo filho dos ofendidos, S, pois que ambos haviam tido relações sexuais de comum acordo.

Assim, no circunstancialismo descrito na matéria de facto provada, o arguido A , ao exigir aos ofendidos a entrega de um depósito em dinheiro entre os 20 e os 30 mil contos, no prazo de uma semana ou em alternativa a hipoteca de um imóvel de valor equivalente, porque se assim não fosse não teriam mais um momento de descanço na vida, que o assunto não era para ser tratado na justiça e que caso a sua exigência não fosse cumprida integralmente no prazo indicado saberia como fazer justiça, querendo causar nos ofendidos, como causou, receio e constrangimento, deixando estes inquietos e a recear pela própria vida ou integridade física, bem sabendo que a sua conduta era ilicita, só não conseguindo obter a pretendida vantagem patrimonial ilegítima à custa do prejuízo dos ofendidos porque estes resolveram apresentar queixa crime contra os arguidos e não lhes entregarem qualquer importância , preencheu todos os elementos constitutivos do crime de extorsão, sob a forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 223.º, n.ºs 1 e 3 , al. a), 204.º, n.º 2, al. a) e 22.º do Código Penal.

Deste modo, impunha-se a condenação do arguido A  e não a sua absolvição, como pretende, sem sucesso, o recorrente.

Por fim, defende o arguido que a sentença recorrida padece de nulidade ao condenar o arguido pelos artigos 223.º, n.ºs 1 e 3 , al. a), 204, n.º 2, al. a) e 22 do C.P..

Importa aqui recordar que o arguido A vem acusado pelo Ministério Público da prática, em co-autoria, de um crime de extorsão, p. e p.  pelos artigos 223.º, n.ºs 1 e 3 , al. a), 204, n.º 2, al. a) e 22 do C.P..

Na fundamentação de direito da sentença o Tribunal a quo reproduz o tipo penal pelo qual o arguido vem acusado e, depois de analisar os seus elementos constitutivos, subsume os factos dados como provados ao crime de extorção, na forma tentada, p. e p.  pelos art.223.º, n.ºs 1 e 3 , al. a), 204, n.º 2, al. a) e 22 do C.P..

No dispositivo da sentença o Tribunal condena o arguido pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de extorção, p. e p.  pelos art.233.º, n.ºs 1 e 3 , al. a), 204, n.º 2, al. a) e 22 do C.P..

È manifesto que o Tribunal a quo cometeu um lapso de escrita ao mencionar no dispositivo o “ art.233.º”- tipo que respeita ao “Âmbito do objecto de receptação” – em vez do “art.223.º” do Código Penal.  

Esta situação não se integra nas nulidades de sentença, enumeradas de forma taxativa no art.379.º, n.º1 do Código de Processo Penal, pelo que não existindo qualquer outra disposição que comine o manifesto lapso de escrita como nulidade, não se reconhece a nulidade da sentença.

Nos termos do art.380.º, n.º1, al. b) do C.P.P., o tribunal procede oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença, quando esta «… contiver erro , lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.».

O n.º2 deste preceito acrescenta que « Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.».  

Assim, atento o disposto no art.380.º, n.ºs 1, al. b) e 2 do C.P.P., o Tribunal da Relação procederá agora à correcção do lapso manifesto ocorrido no dispositivo da sentença, de modo que dela fique a constar que o arguido A vai condenado, pela prática em autoria material e na forma tentada de um crime de extorsão, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.º 223.º, n.ºs 1 e 3, al. a), 204, n.º 2, al. a) e 22 do CP, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por igual periodo.

 

           Decisão

 

           Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em:

- negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A e,

- proceder à correcção de um lapso manifesto existente no dispostivo da sentença, decidindo-se que onde consta que o arguido A… vai condenado, «…  pela prática, em autoria material e na forma tentada de um crime de extorsão, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.º 233.º, n.º 1 e 3, al. a), 204.º, n.º 2, al. a) e 22.º do CP, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por igual periodo. », deve passar a constar que o arguido A vai condenado, «... pela prática, em autoria material e na forma tentada de um crime de extorsão, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.º 223.º, n.ºs 1 e 3, al. a), 204.º, n.º 2, al. a) e 22.º do CP, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por igual periodo. ».

               Custas pelo recorrente , fixando em 8 Ucs a taxa de justiça.

                                                                         *

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                      

   *

                                                                                        Coimbra,


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.